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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

UMA BREVE INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO HEGELIANO:

DIALÉTICA DO SENHOR E DO ESCRAVO

Nathalie dos Santos Caldeira 1


Valéria de Souza Arruda Dutra 2

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo fazer uma breve introdução ao pensamento
hegeliano, afirmando a necessidade da interpretação do capítulo IV da
Fenomenologia do Espírito de Hegel onde se situa a dialética do senhor e do
escravo como uma parábola da filosofia ocidental, e não em sua simples literalidade.
Para alcançar o objetivo proposto, após a síntese de conceitos aplicados à dialética
hegeliana, será exposta a relação entre senhor e escravo enquanto construção do
reconhecimento da consciência cindida em consciência de si e consciência para si,
que inverte-se enquanto formação do indivíduo para o saber no discurso.

Palavras-chave: Dialética, Senhor, Escravo, Reconhecimento.

1
Mestranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas
e especialista em Direito Material do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro
– UCAM-RJ.
2
Mestranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC
2

1. DIALÉTICA HEGELIANA DA CONSCIÊNCIA E DO RECONHECIMENTO

Hegel pretende superar a dualidade ser/dever ser e reconciliar o ponto de


vista da vontade com o da inteligência. Para ele, não se pode aplicar aos
acontecimentos um juízo moral. A história é o “único tribunal” em relação ao
absoluto. Assim, a verdadeira autonomia do homem não depende do critério formal
e vazio da intenção conforme à lei moral.

A lei moral, segundo Hegel, recebe seu conteúdo de éticas concretas: os


costumes familiares, sociais, políticos. A autonomia é adquirida quando o indivíduo
vive a lei como liberação em relação às suas paixões egoístas, à sua individualidade
empírica e, não quando a suporta como um constrangimento, ou seja, um dever.

Assim, Hegel defende que todo homem sabe qual é seu dever e seu direito,
porque não os aprende consultando a lógica da sua razão, mas a moralidade
objetiva adquirida pela educação, pela integração a um todo social concreto. Se a
ideia de bem moral, a moralidade subjetiva, corresponde ao objeto da vontade,
expressão consumada da dialética do espírito subjetivo, em compensação a verdade
da ideia moral requer o ponto de vista do espírito objetivo, da moralidade objetiva –
“vida ética”, costumes, valores – que se prende às três esferas do espírito objetivo:
família, a sociedade civil e o Estado. No Estado, a vontade se torna livre em e para
si, no qual se reconciliam o universal e o particular.

A originalidade de Hegel está em considerar a realidade absoluta, declarada


incognoscível por Kant, não apenas como substância (conforme Spinoza já o fizera),
mas como sujeito. Assim, declara Hegel que o mundo não se deixa deduzir ou
construir a partir de uma unidade que seria a indiferença absoluta. A substância é
sujeito: ela possui em si mesma o princípio das suas determinações; ela é o objeto
para si mesma, inteligibilidade, espírito. Mas seu conhecimento não é acessível na
forma da intuição.

O conhecimento da substância requer a formado conceito: as categorias em


que o espírito explicita seu conteúdo não podem ser os meios com os quais um
entendimento finito interpreta o real, mas os próprios conceitos do absoluto. A
filosofia é a ciência do absoluto. A filosofia não tem objeto que seja exterior a ela: ela
é seu próprio sujeito.
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O absoluto só pode alcançar o saber de si sob a única forma que lhe convém,
a de um sistema (modo de desenvolvimento científico racional, e não puramente
formal, dotado de uma realidade interna) que construa a totalidade do saber como
“saber absoluto”, sem outro fundamento além de si mesmo e compreendido por si
mesmo como autoprodução da razão.

Conceito e razão são sinônimos. O conceito (apreensão conceitual) designa a


natureza verdadeira do ato de pensar que não consiste em opor uma ideia, uma
representação mental a um real, a um objeto exterior, a uma essência das coisas
que seria o ser dessas coisas, separado do pensar.

Pensar, conhecer racionalmente é compreender: a) que não se pode separar


o pensamento como atividade do sujeito pensante (a razão como faculdade
subjetiva de julgar, de discernir o verdadeiro do falso) e a realidade como objeto de
pensamento (a razão como ordem inteligível das coisas); b) que o verdadeiro se
reflete no que é. O pensamento como “conceito”, a razão se apreender como
absolutamente contígua a si mesma na realidade, como ao mesmo tempo subjetiva
– proveniente do sujeito pensante e objetiva, proveniente da realidade pensável.

O absoluto é reflexão: o sistema especulativo é como uma imensa proposição


cujo sujeito único se reflete nos predicados, os quais levam a marca da sua relação
necessária com o sujeito. Todo conhecimento de um objeto deve compreender que
ele tem o pensamento como sujeito único, centro de todas as determinações. Se o
absoluto é sujeito, sua realização será dialética. Sua identidade consigo deverá
aparecer na contradição entre uma forma imediata de subjetividade e dissociar a
subjetividade da imediatidade. Inversamente, essa forma de subjetividade como
ruptura com o imediato – liberdade, interioridade, transcendência infinita – deverá
aparecer por sua vez na identidade (do absoluto), isto é, reconciliada com a
imediatidade, numa imediatidade secundária, vinda a ser.

O absoluto é essencialmente resultado. No fim das contas, ele não é senão


aquilo que ele deve ser. O discurso do filósofo em que o absoluto se compreende a
si mesmo só pode intervir no fim do processo da sua realização, e como a reflexão
em si final do processo – “só se compreende depois”, “a coruja de minerva alça vôo
ao cair da noite”.

A dialética, processo pelo qual o absoluto-sujeito se desenvolve (se auto-


realiza) até o saber total de si, comporta um desenvolvimento ternário: 1) um
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primeiro momento em si, em que a razão está como em germe no estado de


plenitude imediata inconsciente; 2) um segundo momento, em que ela se neva, se
exterioriza num estar-aí, se aliena, torna-se outra, a fim de se colocar para si e se
compreender; 3) um terceiro momento, em que ela nega a primeira negação, integra
e supera os dois primeiros momentos como parciais e unilaterais, e chega assim ao
que os tornou possíveis e necessários: a consciência de si e auto-compreensão
completa. Tem-se então uma nova modalidade de existência, um novo tipo de
imediatidade para si.

Os três momentos em que se desenvolve a dialética do absoluto-resultado


são:

1) A Ideia: forma lógica, pura em si, ideia do conceito pensado como


realizado ou o conceito no elemento abstrato do pensamento, o verdadeiro
em seu nível mais formal. Trata-se do nível da lógica uno com a ontologia.
A lógica diz o que é a razão, enquanto os outros saberes filosóficos
empreenderão sua exploração e o modo de encontrá-la.

2) A Natureza: a Ideia se proporcionando a existência de um ser-aí, a Ideia


sob a forma de alteridade, o conceito (ou razão) se alienando na matéria a
fim de, nela se perdendo, nela se reapreender para si. A Ideia tem de se
perder como natureza na desrazão da exterioridade (o espaço) e na forma
imediata da multiplicidade de existências indiferentes, exteriores umas às
outras.

3) O Espírito: a Ideia no elemento do espírito humano, a Ideia que alcançou a


existência em e para si, ou a Natureza aparecendo ante a si mesma (para
si) como Ideia. O Espírito é o conceito concreto, em que o pensamento se
encerra e se torna Espírito do mundo. Ele é pois sujeito da História, única
verdade verdadeiramente substancial, essencialmente individual e
subjetiva (a razão na história). Ele exprime na experiência humana o que o
Conceito é abstratamente: a unidade do pensamento e da realidade.

As três figuras do Espírito são:

1) O espírito subjetivo: vida interior individual, cuja alma sensitiva, a dialética


eleva à liberdade e à vontade.
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2) O espírito objetivo: realização da vontade livre na História, no mundo das


instituições jurídicas em que as leis asseguram a passagem do Universal
ao individual, encontrando sua forma acabada no Estado. Falta a essa
figura do Espírito a consciência de si de ser a dimensão espiritual
imanente ao mundo, o absoluto efetivo.

3) O espírito absoluto: no qual o espírito ultrapassa os pontos de vista


separados da subjetividade e da objetividade, para conceber a unidade
substancial de ambos. Torna-se, então, o espírito em si e para si, o
absoluto como espírito, puro saber de si da Ideia. Seus três momentos são
a arte, a religião e a filosofia.

Mas é só na filosofia, sob sua forma acabada, especulativa – o saber absoluto


– , que o espírito se eleva a si mesmo, como verdadeiro universal concreto: Deus e
o Homem não são exteriores um ao outro; a filosofia dissolve a exterioridade do
absoluto, da Ideia, a contradição que subsistia na religião entre o conteúdo do saber
(o conceito) e a forma do saber (a representação); a forma é idêntica ao conteúdo.

Como pensamento puro, ela mostra seu objeto (o pensamento) em sua


pureza (no elemento puro do pensamento), manifestando a liberdade do Espírito. Na
filosofia se reconciliam natureza e liberdade, subjetividade e objetividade, finito e
infinito.

Arte, religião e filosofia têm o mesmo conteúdo – a ideia da unidade do finito e


do infinito, do humano e do divino – , mas somente a filosofia especulativa dá uma
forma adequada a esse conteúdo. A filosofia não impõe por um método exterior a
conciliação das contradições, ela apenas reflete o absoluto no movimento da sua
autoprodução.

Assim, a sucessão das doutrinas filosóficas contraditórias corresponde à


historicidade da Ideia, o seu desenvolvimento conflitual interno. Cada uma delas
exprime a cultura do seu tempo, que ela não poderia por si só superar, e não é
refutável como falsa mas como unilateral.

O sistema absoluto que Hegel constrói, porque sua época o torna possível e o
pede, integra todas as doutrinas do passado como momentos parciais que compõem
a essência imperecível do espírito e, a esse respeito, não envelheceram, pois o
objeto da história da filosofia não envelhece, está atualmente vivo.
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A filosofia que se elevou à especulação dialética, tornou-se capaz de


reencontrar na realidade e no pensamento o desenvolvimento dos três momentos do
conceito:

• Universal

• Particular

• Singular

Ou os três momentos da Ideia:

• Em si

• Ser aí

• Para si

A filosofia do espírito mostra a natureza tornando-se racional para si, Ideia


para si mesma, e isso nos três níveis do espírito:

• Subjetivo (fenomenologia do espírito na consciência individual);

• Objetivo (a história, as instituições: família, sociedade civil, Estado etc);

• Absoluto (a cultura).

A história do homem corresponde à dialética do espírito objetivo,


compreendida como desenvolvimento da mais elevada necessidade espiritual. Nela,
conflitos e crises não mais aparecem como desprovidos de sentido, nem como o
efeito inteligível dos planos de uma providência exterior, mas como a realização da
razão, que encontra sua forma acabada no Estado Moderno.

Certamente, a racionalidade global do processo escapa aos indivíduos, que


realizam a necessidade sem ter consciência de que o fazem. A razão se realiza por
meio do seu contrário, o irracional ou a desrazão; o universal pelo particular; o direito
pela força; o bem pelo mal; a consciência pelo inconsciente; a razão pelas paixões.
Podemos chamar de artimanha da razão o fato de ela deixar as paixões agirem em
seu lugar.
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Mas como se trata do desenvolvimento necessário do espírito absoluto, que


não é nada sem o espírito dos homens, o objetivo da História não é outro senão, a
liberação humana. Seus efeitos perversos vão no sentido do que a vontade humana
pode desejar de melhor.

A História universal não é uma força cega, mas o progresso na consciência


da liberdade – o devir – Espírito da humanidade em marcha para uma consciência
cada vez mais clara da sua destinação profunda: libertar-se do ser-aí natural para
encarnar uma verdade em ato, realizada na vida concreta de cada indivíduo.

2. A DIALÉTICA DO SENHOR E DO ESCRAVO NA FENOMENOLOGIA DO


ESPÍRITO DE HEGEL

Em seu artigo Senhor e Escravo: uma parábola da filosofia ocidental, o Pe.


Henrique C. de Lima Vaz alerta os leitores para a significação da dialética do
senhorio e da servidão na obra de Hegel, a qual teria se tornado uma das
encruzilhadas do pensamento pós-hegeliano, sobretudo após a interpretação do
capítulo IV da Fenomenologia do Espírito de Hegel por Marx.

O contexto especulativo-histórico da dialética do senhor e do escravo é bem


mais amplo e complexo do que aquele ao qual foi reduzido pela hermenêutica
marxista e suas versões posteriores. Segundo Vaz, Hegel pretende fazer da sua
fenomenologia um ponto de partida do sistema apresentado como Sistema da
Ciência, traçando o caminho que o filósofo trilha ao escrever o texto filosófico, o aqui
e o agora da escrita, rememorando-o posteriormente.

O fio que une o caminho as experiências é o discurso dialético, que


demonstra a necessidade de se passar por etapas diferentes para que ao fim se
alcance o desvelamento total do sentido do caminho. Para Vaz, falar de experiência
implica falar de sujeito e significação, ou seja, de sujeito e objeto; e Hegel teria
articulado por meio de seu discurso científico as figuras do sujeito (consciência) em
sua relação com seu objeto (mundo objetivo).
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O primeiro título escolhido por Hegel para a sua Fenomenologia do Espírito


era “Ciência da experiência da consciência”. Pela sua escolha anterior demonstra-se
o foco de sua obra nas suas considerações sobre o caminho percorrido pela
consciência enquanto consciência de si e para si, sendo que esta que experimenta a
si mesma considerando-a distinta da primeira. A escolha do segundo título, o
definitivo, demonstra a preocupação de Hegel em responder à aporia da Crítica da
Razão pura ao idealismo alemão, que aponta a cisão entre a ciência do mundo
como fenômeno e do conhecimento do absoluto ou do incondicionado, da coisa em
si que permanece como ideal da Razão.

Hegel pretende mostrar que a abstração na qual o mundo é visto sem história,
como na mecânica newtoniana, em que conceitos como força são utilizados como
pressupostos de univocidade, o sujeito igualmente “aparece” nas formas acabadas
das categorias do Entendimento, como um momento baseado na certeza sensível
do aqui e do agora, que não pode ser dissociado do sujeito. Hegel parte da situação
histórico-dialética do sujeito que é fenômeno para si mesmo em sua construção do
saber através da experiência. A perspectiva hegeliana do processo de formação do
sujeito para a ciência é, portanto, uma originalidade da Fenomenologia.

Segundo Vaz, a Fenomenologia apresenta três significações fundamentais:

- filosófica, definida pela pergunta que situa Hegel em face de Kant (o que
significa a consciência experimentar-se a si mesma através de sucessivas formas de
saber que são assumidos e julgados por essa forma suprema que chamamos
ciência ou filosofia?);

- cultural, definida pela interrogação que habita e impele o “espírito do tempo”


na hora da reflexão hegeliana (o que significa para o homem ocidental moderno
experimentar seu destino como tarefa de decifração do enigma de uma história que
se empenha na luta pelo Sentido através da aparente sem-razão dos conflitos, ou
que vê florescer “a rosa da Razão na cruz do presente?”);

- histórica, definida pela questão que assinala a originalidade do propósito


hegeliano (o que significa para a consciência a necessidade de percorrer a história
da formação de seu mundo de cultura como caminho que designa os momentos de
seu próprio formar-se para a Ciência?).
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Após desenvolver em seus três primeiros capítulos o esquema dialético do


sujeito que conhece alguma coisa e se experimenta na certeza de possuir a verdade
do objeto conhecido, Hegel trata de dissolver essa certeza sensível.

Hegel institui a verdade da certeza de si mesmo como a origem da verdade


do mundo, dividindo a consciência em consciência de si – que se distingue de si
mesma ao criar a consciência para si. Para a consciência que retorna a si pela
supressão de seu objeto na certeza da verdade, o objeto assume as características
da vida e a figura da consciência de si é o desejo. A vida aparece então como objeto
da consciência de si, enquanto o puro fluir ou a infinidade que suprime todas as
diferenças.

A passagem da dialética do desejo para a dialética do reconhecimento se dá


pela consciência de que o sujeito humano se constitui tão somente no horizonte do
mundo humano e a dialética do desejo deve encontrar sua verdade na dialética do
reconhecimento. Aqui a consciência faz verdadeiramente a sua experiência como
consciência de si porque o objeto que é mediador para o seu reconhecer-se a si
mesma não é o objeto indiferente do mundo mas é ela mesma no seu ser-outro, é
outra consciência de si.

A figura dialético-histórica da luta pelo reconhecimento aparece na obra


de Hegel como um estágio no caminho pelo qual a consciência de si alcança a sua
universalidade efetiva e pode pensar-se a si mesma como portadora do desígnio de
uma história sob o signo de razão.

O primeiro momento da dialética do reconhecimento é denominado como o


“conceito puro do reconhecer”, que exprime a identidade abstrata da consciência de
si, o seu situar diante de outra consciência de si. As consciências de si reconhecem
a si mesmas enquanto reconhecem-se mutuamente. Cada um aparece para o outro
como um objeto ou o que está simplesmente diante, marcado com um caráter
negativo. O indivíduo que é consciência de si ainda está mergulhado na imediatez
da vida.

Em um segundo momento dá-se uma luta de vida ou morte entre as


consciências de si, que tem por fim elevar à verdade a certeza de que elas são para
si mesmas ou afirmar sua transcendência sobre a imediatez da vida mostrando-as,
com o risco da vida, como liberdade em face da própria vida. Porém, a solução da
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luta de vida ou morte não poderia se dar com a morte de um dos oponentes, o que
resultaria na eliminação de qualquer possibilidade de avanço no reconhecimento do
outro. Através dessa luta, uma consciência escraviza outra. Uma consciência de si,
na sua independência, escraviza outra, mantendo-a em sua dependência. Então
surge a relação entre senhor e escravo.

O senhor é a consciência que é para si ou é livre pela mediação de uma outra


consciência que renuncia a esse ser-para-si e e transfere a sua independência para
um ser de coisa, para a cadeia que a prende ao senhor. O escravo, no outro termo
da relação é, assim, a consciência de si que permanece encadeada ao ser da coisa,
mas não mais na relação do desejo que tende à tende à satisfação imediata mas
naquele tipo de relação humanizante da coisa por meio da qual ela é oferecida à
livre satisfação do senhor: na relação do trabalho.

O escravo e a coisa exercem respectivamente a função mediadora que


permite à consciência de si do senhor afirmar-se na independência reconhecida do
seu ser para si. A unilateralidade do reconhecimento reside aqui no fato de que o
senhor não reconhece o escravo como outra consciência de si mas como mediador
da sua ação sobre o mundo. Ao escravo cabe o trabalho exercido sobre a coisa, ao
senhor a fruição da coisa trabalhada que passa além da simples satisfação animal
do desejo. Enquanto mediadora, a consciência servil passa a ser a verdade da
consciência independente.

Enfim, para Hegel, senhor e escravo não são personagens de uma espécie
de situação arquetipal da qual procederia a história, são apenas figuras de uma
parábola com as quais ele pretende designar momentos dialéticos entrelaçados
rigorosamente no discurso que expõe a formação do indivíduo para o saber.
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CONCLUSÃO

Em sua Fenomenologia, Hegel procura superar a dualidade entre ser/dever


ser e reconciliar o ponto de vista da vontade com o da inteligência, tendo a história
como o “único tribunal” em relação ao absoluto. Somente assim a verdadeira
autonomia do homem não depende do critério formal e vazio da intenção conforme a
lei moral.

Os três momentos em que se desenvolve a dialética hegeliana são: 1º - a


Ideia: forma lógica, pura em si; 2º - a Natureza: a Ideia se proporcionando a
existência de um ser-aí, a Ideia sob a forma de alteridade, o conceito (ou razão) se
alienando na matéria a fim de, nela se perdendo, nela se reapreender para si; 3º - O
Espírito: a Ideia no elemento do espírito humano, a Ideia que alcançou a existência
em e para si, ou a Natureza aparecendo ante a si mesma (para si) como Ideia.

O Espírito, por sua vez, possui três figuras: o espírito subjetivo, vida interior
individual, cuja alma sensitiva, a dialética eleva à liberdade e à vontade; o espírito
objetivo, realização da vontade livre na História, no mundo das instituições jurídicas
em que as leis asseguram a passagem do Universal ao individual, encontrando sua
forma acabada no Estado; o espírito absoluto, no qual o espírito ultrapassa os
pontos de vista separados da subjetividade e da objetividade, para conceber a
unidade substancial de ambos. Torna-se, então, o espírito em si e para si, o absoluto
como espírito, puro saber de si da Ideia. Seus três momentos são a arte, a religião e
a filosofia.

O sistema absoluto que Hegel constrói, porque sua época o torna possível e o
pede, integra todas as doutrinas do passado como momentos parciais que compõem
a essência imperecível do espírito e, a esse respeito, não envelheceram, pois o
objeto da história da filosofia não envelhece, está atualmente vivo.

Uma das maiores encruzilhadas do pensamento hegeliano e pós-hegeliano é


a dialética do senhor e escravo, que demonstra uma amplitude hermenêutica bem
superior à superficialidade com que é tratada por Marx e seus seguidores.

Segundo Vaz, no capítulo IV da Fenomenologia do Espírito, Hegel pretende


fazer da sua fenomenologia um ponto de partida do sistema apresentado como
Sistema da Ciência, traçando o caminho que o filósofo trilha ao escrever o texto
filosófico, o aqui e o agora da escrita, rememorando-o posteriormente. O discurso
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dialético, que demonstra a necessidade de se passar por etapas diferentes para que
ao fim se alcance o desvelamento total do sentido do caminho, é o fio que une o
caminho das experiências na história.

Hegel percorre o caminho do reconhecimento seguido pela consciência de si


ao perder a si mesma quando cindida em consciência de si e consciência para si. O
primeiro momento da dialética do reconhecimento é denominado como o “conceito
puro do reconhecer”, que exprime a identidade abstrata da consciência de si, o seu
situar diante de outra consciência de si. Neste primeiro momento, o indivíduo que é
consciência de si ainda está mergulhado na imediatez da vida. No segundo
momento trava-se uma luta de vida ou morte entre ambas as consciências, na qual
uma escraviza e a outra é escravizada. Ao escravo cabe o trabalho exercido sobre a
coisa, ao senhor a fruição da coisa trabalhada que passa além da simples satisfação
animal do desejo.

Porém, enquanto mediadora, a consciência servil passa a ser a verdade da


consciência independente, mantendo o senhor sob sua dependência. Portanto, a
dominação encontra sua própria essência na inversão daquilo que ela quis ser; por
sua vez, a servidão, reprimida em si, se abre à verdadeira independência, como
contraparte daquilo que ela é de modo imediato.

A interpretação de Vaz sobre o capítulo IV da Fenomenologia é de suma


importância por considerar a dialética do senhor e do escravo como uma parábola
que deverá ser interpretada de forma a demonstrar a formação do indivíduo para o
saber, a ambição hegeliana de que através da dialética seja instaurada uma
sociedade onde toda forma de dominação ceda lugar ao livre reconhecimento de
cada um, no consenso em torno de uma razão que é de todos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópoli:


Vozes, 2001. 2 v.

SANTOS, José Henrique. O trabalho do negativo: ensaios sobre a


Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

VAZ, Henrique C. de Lima. Senhor e Escravo: Uma parábola da filosofia ocidental.


Revista Síntese, 2001, n.21, 1981, p. 7-29.

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