Em defesa da vida: aborto e desperta polêmica e coloca em campos
opostos grupos que se autodenominam direitos humanos. defensores do direito à escolha por parte da mulher e outros que criminalizam diretamente CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce essa ação. Tais divergências têm sido objeto de (Orgs.). opiniões que se circunscrevem não somente aos campos jurídicos ou da saúde, como também São Paulo: Católicas pelo Direito de ao campo religioso e moral, tangendo o poder Decidir, 2006. 230 p. legislativo, a mídia e a opinião pública (p. 111). Compreendendo o aborto como um fato social total,1 uma vez que o tema perpassa tanto várias esferas da vida social como diferentes campos interdisciplinares, abordar esse tema é sempre Dos mais de 50 milhões de abortos um ato de coragem, uma vez que se refere a induzidos a cada ano, por todo o mundo, cerca um problema que atinge todos os sujeitos – e, de metade é realizada sem condições de em particular, as mulheres de uma sociedade. segurança. As interdições ao aborto não evitam Nessa perspectiva, o livro Em defesa da sua prática e somente o tornam clandestino e vida: aborto e direitos humanos, editado pelas inseguro. Com efeito, esse problema social
Católicas pelo Direito de Decidir,2 uma coletânea dade e que para eles essa seria a expressão de artigos e de entrevistas, é um exemplo máxima do respeito pela vida humana, sendo o concreto de defesa da vida das mulheres. Por aborto sua negação mais absoluta. Rosado paradoxal que possa parecer o título do livro, Nunes aponta para os deveres do Estado no conforme destaca Maria José Rosado Nunes, que diz respeito às políticas de planejamento os diferentes artigos defendem a dignidade das familiar. Nesse campo, a legalização do aborto, mulheres e a proteção da maternidade: assim como a universalização do acesso aos Nós escolhemos esse título “Em defesa da vida: serviços públicos e da garantia do exercício da aborto e direitos humanos” exatamente porque plena cidadania, deveria realizar-se de acordo defendemos a legalização do aborto e estamos com a decisão das pessoas relativas à procrição. defendendo a vida das mulheres. Defendemos, Lembra que Estados democráticos devem por mais paradoxal que isso possa parecer, a assumir responsabilidade de legislar para uma dignidade da maternidade. Nós queremos que sociedade diversa e plural em que o político se pense a maternidade como um processo não deve ser influenciado por quaisquer crenças que é resultante de um ato humano de desejo, religiosas. Para a autora, normas que restrinjam de vontade e de um assumir realmente aquela a liberdade das mulheres, independentemente gravidez e não como um resultado de um de seu credo religioso, as impedem de exercer processo biológico que começou, e que não seus direitos de cidadania, negando-lhes sua me sinto no direito de interromper.3 humanidade. O livro, organizado por Alcilene Cavalcante No artigo de Marco Segre, “Considerações e Dulce Xavier, é dividido por temas que éticas sobre o início da vida: aborto e reprodução exploram questões como a Vida, a Saúde, os assistida”, o autor questiona, conforme já destaca Direitos e a Lei, e foi escrito por profissionais e no título, qual seria o parâmetro para determinar militantes que lidam diretamente com a questão o início e o fim da vida humana. Observa que do aborto em suas práticas cotidianas, assim isso seria uma tarefa aparentemente simples como por pesquisadores/as acadêmices/as que para biólogos, mas impossível na esfera de uma têm o aborto como objeto de investigação. reflexão filosófica que leve em conta a vida A primeira parte do livro aborda as percebida pelo “sujeito”. Segre argumenta que complicadas e complexas questões que determinados critérios são necessários para tal envolvem o início da vida e são discutidas por definição, embora sejam aleatórios e devam Leonardo Boff, teólogo e ex-padre católico, ser reconhecidos para que se possa discutir Maria José Rosado Nunes, coordenadora das bioética livremente. Critica a discussão sobre o Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), Marco início da vida através de dogmas ou de tabus e Segre, presidente de honra da Sociedade observa que, quando se apela para a ciência Brasileira de Bioética (SBB), e Ennio Candotti, para demarcar o início da vida, o que se faz é presidente da Sociedade Brasileira para o uma utilização “religiosa” – nas palavras do autor Progresso da Ciência (SBPC). – da observação científica, que apenas pode Leonardo Boff, numa entrevista às indicar o momento da fecundação. integrantes da CDD, argumenta que o surgimen- Na continuidade, Ennio Candotti reforça a to da vida deve ser entendido processualmente, crítica já destacada pelos demais autores de uma vez que ela nunca está pronta e pode ser que o início da vida se dá na fertilização do interrompida em qualquer momento, mesmo óvulo pelo espermatozóide, argumento quando ela ainda não atingiu sua relativa adotado pela Igreja Católica em nome da autonomia. Para Boff, esse processo deve ser defesa da vida. Em seu artigo “Na terra como protegido ao máximo, entretanto se deve no céu”, Candotti alerta para o número de compreender que tal processo pode ser abortos realizados anualmente no Brasil e para interrompido por múltiplas razões, estando, entre as políticas de aborto adotadas em outros países elas, a determinação humana. e demonstra, através de alguns parágrafos da Maria José Rosado Nunes destaca, em seu Constituição e do Código Civil Brasileiros, como artigo “Aborto, maternidade e a dignidade da os direitos das mulheres não estão sendo vida das mulheres”, que a defesa incondicional respeitados. Observa que as políticas públicas da vida é pregada pela Igreja Católica, uma referentes à segurança, à alimentação, ao vez que, para essa instituição, “o aborto não planejamento familiar, aos direitos reprodutivos tem história” (p. 23). Chama atenção ao fato de devem estar ao alcance de todos para se que os fundamentalistas têm uma concepção garantir e promover a solidariedade humana. fortemente arraigada em relação à materni-
Na segunda parte do livro, Humberto Costa não desejada ou não planejada, depende de abre a discussão tratando os aspectos da saúde medidas eficazes que assegurem orientação, relativos ao aborto. Nessa entrevista, o médico prevenção e suporte psicológico e social. A psiquiatra e ex-ministro da saúde do governo autora traz dados de uma pesquisa realizada Lula (2003–2005) responde a questões relativas em 2002 com adolescentes que engravidaram, às falhas do planejamento familiar no Brasil, as num estudo comparativo entre as adolescentes quais podem ser associadas à incidência de que levaram a gravidez até o final e aquelas abortos clandestinos. Fala da responsabilidade que tiveram aborto espontâneo ou aborto dos sistemas de saúde público e privado, os provocado. quais devem viabilizar o acesso por parte das A enfermeira Carmen Lúcia Luiz revela um pessoas, dando informações que auxiliem numa panorama sobre o aborto a partir de sua larga política de planejamento familiar mais organiza- experiência em enfermagem e, em particular, da. Critica a visão preconceituosa e conserva- a partir de seu trabalho nos serviços de atenção dora de alguns profissionais da saúde no às vítimas de violência sexual. Nesse artigo, sob atendimento às mulheres que realizaram o título “Mulheres em situação de abortamento: clandestinamente um aborto e que buscam um olhar sobre o acolhimento”, a autora observa atendimento nos serviços de saúde, mas ao que diferentes considerações sobre o aborto mesmo tempo chama atenção para o fato de são construídas com bases em valores morais, que boa parte desses profissionais tem religiosos e culturais. Critica a banalização da consciência de que o abortamento no Brasil é discussão em torno da questão “proteger o realmente um “problema de saúde pública”. direito do feto x proteger o direito da mulher” ou Dessa forma, finaliza sua entrevista apontando na polêmica entre “ser contra” ou “ser a favor”. para o fato de que esses profissionais revejam Destaca que muitas mulheres em situação de suas concepções no que diz respeito ao tema. abortamento sofrem punições por parte da Thomaz Rafael Gollop, no artigo equipe médica e de enfermagem e que tal “Abortamento por anomalia fetal”, fala de sua realidade carece de mudanças urgentes por experiência na participação da instalação, em parte dos profissionais da saúde, que, segundo abril de 2005, da Comissão Tripartite para a ela, “devem ter atitudes menos investigativas e Revisão da Legislação Punitiva do Aborto. Reflete punitivas”. Do mesmo modo, fala da urgência sobre como essa experiência demonstrou a em implantar estratégias de planejamento necessidade de aprofundar as discussões familiar mais eficazes, como também esclarece relativas à Interrupção Seletiva da Gravidez (ISG), os procedimentos das Normas Técnicas do ou seja, interrupções por anomalias fetais. Com Ministério da Saúde (1999 e 2005), as quais o advento das ultrassonografias, ele, como propõem um protocolo de atendimento às médico ginecologista, lembra que já questio- vítimas de violência sexual. nava, há muitos anos, a Sociedade Brasileira Maria Berenice Dias, Daniel Sarmento, para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre qual Roberto Arriada Lorea e Miriam Ventura nos seria a atitude dos médicos em face de um deixam a par das questões relativas à terceira diagnóstico de patologia fetal, caso a mulher parte desse livro, dedicada ao tema do Direito, ou o casal não quisesse levar adiante uma destacando a legalização e descriminalização gravidez com essas características. Nota que, do aborto, direitos (e deveres) constitucionais passados trinta anos, o mesmo problema ainda no Brasil e também em outros países. está por ser compreendido pelos médicos e A desembargadora do Rio Grande do Sul pela sociedade brasileira. Maria Berenice Dias dá destaque, em sua A ginecologista e obstetra Zenilda Vieira entrevista, à lei que vigora no Código Penal Bruno aborda em seu artigo as questões de Brasileiro de 1940 sobre o aborto. Para ela, essa saúde relativas ao “Abortamento na adoles- lei tem como projeto preservar a moral familiar cência”. A autora chama atenção para o em detrimento da questão da dignidade da atendimento precário das adolescentes nas mulher. Observa que, mesmo o aborto sendo unidades de saúde, nas quais não é oferecido criminalizado, isso não impede sua prática na apoio ou aconselhamento adequado para as clandestinidade e argumenta que sua penaliza- jovens, que, por diversas vezes, entram no ciclo ção se dá por influência da religião e por outros repetido da gravidez-abortamento. Ressalta que interesses lucrativos que enfatizam a perversidade a incidência de óbitos na adolescência constitui da ação. Não cabe ao Estado, segundo Dias, uma grande preocupação social e que sua definir o início da vida, uma vez que nem a redução, assim como a redução da gravidez ciência conseguiu fazê-lo. Além disso, de acordo
com a desembargadora, as anomalias fetais ressalta que as recomendações das Conferên- graves, a exemplo da anencefalia, não devem cias de Cairo e de Beijing refletem alguns desses ser consideradas abortos. Para ela, a solução avanços quando atribuem aos Estados a jurídica seria a inclusão de um permissivo legal obrigação de reformular o tratamento dado ao sobre essa questão no Código Penal Brasileiro. aborto como um problema de saúde pública. Nessa mesma direção, o Procurador Do mesmo modo, a Constituição Federal de Regional da República do Rio de Janeiro e 1988 estabeleceu algumas condições essenciais professor de Direito Daniel Sarmento ilustra, em para a reformulação do Código Penal Brasileiro, seu artigo “Legalização do aborto e Constitui- estando entre elas a não-incorporação da ção”, um panorama das leis sobre o aborto em proteção da vida desde a concepção. Consi- várias nações, argumentando que o Brasil dera que a desigualdade de direitos impõe às deveria partilhar da solução adotada por grande mulheres ônus sociais e pessoais infinitamente parte dos países europeus que legalizaram a maiores do que aqueles impostos aos homens realização do aborto voluntário no primeiro e questiona “como o Estado controla a vida trimestre da gestação. Observa que esses reprodutiva dos homens” (p. 186) perante o mesmos países também criaram mecanismos controle explícito da vida reprodutiva das extrapenais para evitar a “banalização do mulheres. aborto”, a exemplo do planejamento familiar, Fecham essa coletânea os textos de Gilda da educação sexual e de uma rede de Cabral, Ivan Paixão e Jandira Feghali, que proteção social para as mulheres. Argumenta traçam aspectos da legislação brasileira sobre que não somente a Constituição, mas também a elaboração de projetos de leis e as decisões a racionalidade e a moral, indicam a urgência tomadas a respeito deles. de uma reformulação das leis brasileiras no que Gilda Cabral, sócia-fundadora da ONG diz respeito ao aborto. CFEMEA – Centro de Estudos Feministas e de Na continuação da terceira parte do livro, Assessoria –, destaca como a Constituição o juiz gaúcho Roberto Arriada Lorea reflete sobre Brasileira de 1988 pode ser considerada uma o direito ao aborto a partir dos argumentos de “Constituição cidadã”, pois ela abriu e ampliou ordem pública válidos no mundo jurídico. Para espaços democráticos e a participação direta tanto, Lorea recorre ao conteúdo de dos cidadãos e cidadãs brasileiros/as. Cabral conferências internacionais, como a observa nessa entrevista que o CFEMEA trabalha Conferência Mundial sobre Populações e suprapartidariamente junto aos parlamentares Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a IV no Congresso Nacional, argumentando, Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995), e negociando e buscando convencer esses também a decisões de organismos representantes políticos sobre a questão do internacionais de solução de conflitos, demons- aborto. O principal argumento usado é trando a necessidade de uma mudança laicidade do Estado, uma vez que boa parte urgente na legislação para garantir a proteção dos políticos não separa suas manifestações integral dos direitos humanos das mulheres, pois, religiosas de sua atuação política. Destaca que segundo o autor, uma parcela significativa dos o maior desafio para alterar a legislação sobre juristas brasileiros tem ignorado a relevância o aborto no Brasil ainda é a sociedade. Para dessas conferências. Lorea oferece nesse texto ela, a sociedade brasileira necessita de maiores uma abordagem estritamente jurídica do tema informações sobre o tema e, sobretudo, aborto, tendo como foco a orientação jurispru- conhecer que o aborto é real e praticado por dencial sobre ele. Argumenta que a questão milhares de mulheres. Lembra que o aborto do aborto não recebeu a devida atenção por clandestino realizado na precariedade afeta a parte dos operadores do Direito, o que saúde das mulheres e que os hospitais e compromete a capacidade desses profissionais profissionais da saúde devem tratá-las com de enfrentar com profundidade tal assunto. dignidade, respeitando seus direitos humanos. Miriam Ventura, advogada integrante da Somente seguindo essas premissas, segundo a Rede Feminista em Saúde e Direitos Reprodutivos, autora, as mulheres podem parar de morrer por pontua alguns avanços significativos no que diz complicações relativas aos abortos inseguros. respeito ao reconhecimento dos direitos das Ivan Paixão faz uma incursão na história do mulheres relativos aos seus direitos sexuais e aborto, discutindo posteriormente o avanço da reprodutivos, tanto no plano internacional como Constituição Federal de 1988 e a relação do no nacional. Em seu texto intitulado “Descrimina- Estado com a Igreja Católica. “Aborto: aspectos lização do aborto: um imperativo constitucional”, da legislação brasileira” é um artigo que chama
atenção às restrições da legislação brasileira discussão, dois aspectos relativos à construção relativas ao aborto em comparação a outros da legislação e à contraposição aos argumentos países. Nele o autor critica os setores conserva- que colocam o direito constitucional à vida dores da sociedade que impingem opiniões como entrave para a descriminalização do parciais ao conjunto de sua sociedade demo- aborto. crática e laica. Paixão observa que a descrimi- O conjunto dos artigos acima é abordado nalização do aborto não obrigará ninguém a a partir de considerações médicas, políticas, praticar o aborto, mas que essa ação respeitará éticas, históricas, filosóficas e jurídicas sobre o a consciência individual e os princípios tema da legalização e da descriminalização do elementares do ordenamento jurídico, que se aborto, o que representa, segundo Silvia Pimentel tornará, segundo o autor, uma realidade con- (p. 7), uma contribuição notória ao debate creta. De qualquer modo, o médico e ex-depu- público no país. A partir das diferentes posições tado federal (PPS/SE) salienta que todo e qualquer apresentadas, o livro mostra um panorama avanço nas possíveis mudanças na legislação segundo o qual o aborto ilegal e inseguro através de forças progressistas devem ser vigia- predomina no Brasil, e demonstra o desafio de das, pois sempre haverá uma intensa luta dos tratar a questão a partir de uma compreensão setores conservadores contra a modernidade humanística, que tem como princípio o respeito democrática que apela para as mais autoritárias aos direitos humanos das mulheres. práticas de desqualificação através de uma Notas “indisfarçável tendência inquisitorial” (p. 210). 1 Marcel MAUSS, 1974. “Aborto no Brasil: obstáculos para o avanço 2 A CDD é uma Organização Não-Governamental feminista da legislação” é o último artigo dessa coletânea criada em 1993 por teólogas, sociólogas, psicólogas, escrito por Jandira Feghali, médica e ex-depu- cientistas da religião e outras profissionais. tada federal (PCdoB/RJ). Feghali fala sobre a 3 Entrevista concedida por Maria José Rosado Nunes, necessidade de ampliar a discussão sobre o coordenadora do CDD no Brasil, ao Jornal Pequeno: Órgão aborto, lembrando que, nos últimos anos, a das Multidões, on line, em 17 de junho de 2007. sociedade civil vem observando o debate feito Referência bibliográfica em diversos fóruns através da mídia. Entre outros assuntos, dá destaque à Comissão Tripartite MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e instalada pelo Executivo com o objetivo de revisar razão da troca nas sociedades arcaicas”. a legislação do aborto e as discussões promovi- In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropolo- das pela Comissão de Seguridade Social e gia. São Paulo: EPU, 1974[1924]. v. 2. Família, que acabou por colocar em pauta o Projeto de Lei 1.135, que descriminaliza a prática Rozeli Maria Porto do aborto no Brasil. No artigo, a autora analisa Universidade Federal de Santa Catarina os obstáculos que impedem a aprovação dessa lei, a qual é considerada por ela um avanço na Miriam Pillar Grossi legislação, além de dar cabo, caso aprovada, Universidade Federal de Santa Catarina à indústria clandestina do aborto. Aborda, nessa