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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

COMUNICAÇÃO SOCIAL – PUBLICIDADE E PROPAGANDA


PROJETO EXPERIMENTAL III

REPRESENTAÇÕES DO NEGRO BRASILEIRO NOS TEMPOS DA


RETOMADA
Allan Martins Terra

Rio de Janeiro
Junho de 2006.
ALLAN MARTINS TERRA

REPRESENTAÇÕES DO NEGRO BRASILEIRO NOS TEMPOS DA


RETOMADA

Monografia apresentada à disciplina


Projeto Experimental III como requisito à
obtenção da graduação no Curso de
Comunicação Social – Publicidade e
Propaganda

ORIENTADOR: Prof. Luiz Flávio La Luna


Di Cola.

Rio de Janeiro
Junho de 2006.

i
ALLAN MARTINS TERRA
REPRESENTAÇÕES DO NEGRO BRASILEIRO NOS TEMPOS DA
RETOMADA

grau

___________________________________

BANCA EXAMINADORA

Professora Sandra Almada

___________________________________

Professora Irene Black

___________________________________

Professor Flávio Di Cola

___________________________________

Rio de Janeiro
Junho de 2006.

ii
Dedicatória
Sonia (mãe), Samantha (irmã) e Panda
(bebê). Obrigado pela paciência.

iii
Agradecimentos

Ao meu orientador e mestre Flávio Di Cola, uma das pessoas mais importantes ao longo
desses meses de trabalho. Sua confiança, dedicação e amizade estarão sempre em minha
memória.

Para as professoras Irene Black e Sandra Almada (minha inspiração para este projeto),
que enriqueceram minha banca e minha vida acadêmica.

Aos amigos da Estácio (especialmente para Raquel, Renata, Rafael e Carlos Henrique) e
da vida (Simone, Sebastião e André), pela trajetória já percorrida e pelos futuros passos.

Aos meus familiares (em especial para mãe, irmã, tio Zé e Eduardo), pelo apoio nas
horas certas.

iv
“Negro ou branco, ator é ator. Não tem que estar ali escrito:
‘negro de 30 anos’. Não, basta estar: ‘forte, bonito, bem-
apessoado, 33 anos’, e você pode dizer: esse sou eu. Mas é
raro o diretor que lê isso e diz para um ator negro: ‘Tem aqui
um personagem para você’. Que é o que nós queremos”.
Antônio Pitanga

v
Resumo

Este projeto pretende promover o debate sobre a representação do negro


brasileiro no cenário cultural a partir dos anos 90 e aborda como esses personagens vem
revertendo um quadro de branqueamento racial, construído desde o descobrimento do
país. Assim, no capítulo 1 foram estudadas as relações entre colonizadores e escravos
no século XVI no Brasil e a visão pitoresca e “domesticada” da elite oitocentista sobre o
exótico brasileiro, através da fotografia. Já no capítulo 2, a presença estereotipada do
negro brasileiro em três dos principais produtos da cultura de massa nacional
(telenovela, cinema e propaganda). E no capítulo 3, o momento da retomada brasileira
(econômica, política e cultural), quando o afro-descendente desfruta de um novo cenário
que, apesar de ainda limitado, é o mais democrático da história. E ainda, a trajetória de
duas personalidades (Lázaro Ramos e Jorge Furtado) e a análise de duas obras (O
Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara), exemplos para a diversidade cultural
brasileira.

Palavras-chave: mídia e raça, cinema da retomada, Jorge Furtado, Lázaro Ramos.

vi
Lista de anexos

Foto 1 – Dona Marcellina ......................................................................................p. 69


Foto 2 – Tipos de escravos ....................................................................................p. 69
Foto 3 – Ama-de-leite ............................................................................................p. 70
Foto 4 – Socagem do café ......................................................................................p. 70
Foto 5 – Caça aos piolhos ......................................................................................p. 71
Figura 1 – Capitão do mato (Rugendas) ................................................................p. 71
Figura 2 – Aplicação do castigo (Debret) ..............................................................p. 72
DVD – O Homem Que Copiava ............................................................................capa
DVD – Meu Tio Matou Um Cara ..........................................................................capa

vii
Sumário

Introdução ............................................................................................................p. 09

Capítulo 1 – O negro no Brasil do século XVI ao XIX .....................................p. 11


Negros e brancos na terra dos índios – a trajetória da formação
multirracial brasileira .............................................................................................p. 11
O negro na fotografia brasileira do século XIX – uma relação
pitoresca entre o Brasil e a Europa ........................................................................p. 17

Capítulo 2 – O negro brasileiro na cultura de massa nacional .......................p. 23


O negro brasileiro no cinema – da Era muda à Era Collor ........................p. 23
O negro brasileiro na telenovela – da estrutura americana ao tímido
retrato nacional ......................................................................................................p. 31
O negro brasileiro na publicidade – o mercado e a diferença ................... p. 40

Capítulo 3 – O negro brasileiro no cenário da retomada ................................p.44


Black is beautiful – o novo momento da raça negra brasileira .................. p. 44
Luzes na escuridão da sétima arte – o cinema brasileiro da retomada ...... p. 48
Lázaro Ramos e Jorge Furtado – personagens do cinema brasileiro
da retomada ............................................................................................................p. 52
Análise dos filmes O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um
Cara .......................................................................................................................p. 59

Considerações finais ............................................................................................p. 62

Referências bibliográficas ...................................................................................p. 64

Anexos ...................................................................................................................p. 68

viii
9

INTRODUÇÃO

O abandono das temáticas do início do século XX (importadas de outros países),

a concorrência entre as emissoras de televisão e, principalmente, os interesses da

população por produções que abordam a realidade brasileira, fizeram com que os meios

de comunicação diversificassem suas programações. A realidade brasileira surge em

filmes, telenovelas, documentários, reportagens de jornais e revistas, ratificando o poder

desses produtos culturais na sociedade. Aproveitando o retorno da produção

cinematográfica, achei interessante associá-lo às demais mudanças e definir como uma

“retomada brasileira” todas essas mudanças culturais, ocorridas a partir dos anos 90.

O resultado desse momento cultural é único na história do Brasil: o debate sobre

a multirracialidade brasileira está em foco e o negro brasileiro ganha destaque. A

trajetória de luta contra a discriminação parece finalmente alcançar o cenário da cultura

nacional e integrar um pacote de ações positivas em relação à representação da raça

negra brasileira. No final da década de 80, por exemplo, as telenovelas com a temática

escravagista apresentaram um negro participativo no processo da abolição. As obras

anteriores, ao contrário, sustentavam o abolicionista branco como o único herói da

libertação, perpetuando uma relação de gratidão dos subordinados aos seus senhores.

Esses mitos e tabus, como a ideologia do branqueamento e a utópica democracia racial,

hoje são reconhecidos pela sociedade e os seus desusos conferem uma representação

mais natural e realista do afro-descendente brasileiro.


10

Para a compreensão do tema, estão inseridas ao longo do estudo a histórica

relação entre brancos e negros do século XVI ao XIX (com anexos de fotos e figuras da

época para a compreensão do tratamento do negro na fotografia oitocentista), o

surgimento de três importantes produtos culturais de massa (telenovelas, cinema e

publicidade) com a atuação do negro brasileiro, e as conquistas da raça negra no cenário

da retomada (a representação na revista Raça Brasil, os personagens modernos do

cinema e os sucessos da dupla multirracial Lázaro Ramos e Jorge Furtado em O Homem

Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara – com os filmes disponíveis em anexo no

formato DVD).

O objetivo desta monografia não é traçar um perfil superpositivo da atual

representação do negro na sociedade brasileira, até porque ainda existe muito a se fazer.

Mas valorizar as conquistas obtidas, mesmo que ainda desproporcionais ao tamanho da

população afro-descendente, são importantes para direcionar a construção de uma

verdadeira diversidade cultural no país.


11

CAPÍTULO 1 – O NEGRO NO BRASIL DO SÉCULO XVI AO XIX.

A história do negro brasileiro começa quase que simultaneamente ao do

descobrimento do Brasil. Importados pelos portugueses, os escravos foram adaptados

aos hábitos e costumes daqueles líderes. Apesar dessa “domesticação”, é inquestionável

a contribuição da cultura negra para a cultura brasileira. A culinária, os rituais religiosos

e a música de origem africana venceram obstáculos e fazem parte do cotidiano nacional.

Mas como, diante de um cenário tão controlador vivido nos séculos da escravidão, todos

esses elementos resistiram e o negro conquistou o seu lugar dentro de uma sociedade tão

diversificada? Nas próximas páginas, o leitor encontrará o começo dessa história – que

passa pelo interesse português na mão-de-obra escrava, o crescimento populacional

brasileiro através da miscigenação dos povos, a luta contra a escravidão e o interesse da

elite oitocentista em mostrar ao mundo como era pitoresca e “domesticada” a relação

entre os habitantes e a bela terra do Novo Mundo.

Negros e brancos na terra dos índios – a trajetória da formação multirracial

brasileira.

Em 1500, quando Portugal descobriu o Brasil, os portugueses logo avistaram

não só uma terra rica em belezas naturais. O potencial de exploração comercial era

imenso. Mas seria preciso ocupar o território com mão-de-obra a fim de explorar as

riquezas. Em Lisboa ou em outras cidades da metrópole, os homens estavam longe,

empenhados nas navegações. Na colônia recém-descoberta “só havia índios, entre os


12

quais alguns antropófagos, equipados com arco-e-flexa e tacape, à espera de uma

chance para guerrear e se livrar dos invasores”.1

Aos navegantes que ficaram, mais tesouros: a beleza das índias. A população de

mestiços mamelucos cresceu rapidamente, porém ainda não existiam pessoas suficientes

para o trabalho. Capturados, os índios morriam facilmente. Em contato com os brancos,

os nativos tinham pouca imunidade. A solução encontrada foi buscar escravos na África

para o cultivo da cana-de-açúcar. Já em 1516, as primeiras levas de negros escravos

chegaram ao Brasil.

Nesta época, a sociedade brasileira organizava-se através do sistema patriarcal.

As fazendas constituíam verdadeiros clãs e todos os membros deste grupo (esposas,

concubinas, filhos, amigos, afilhados e escravos, entre outros) obedeciam e viviam sob

as regras de um senhor. Até mesmo o Estado, responsável pela ordem pública e

indiferente às questões familiares, procurava muitas vezes não contrariar o patriarca,

pois via nesta figura um colaborador para o crescimento da população.

A estrutura da família patriarcal ajuda a explicar o alto grau de miscigenação

entre brancos e negros no Brasil. A autoridade do patriarca criou vínculos de

subordinação entre ele e suas mulheres (brancas, índias, mulatas ou negras), resultando

no alto grau de mestiçagem da época. Além disso, era preciso aumentar a população

para ocupar o imenso território brasileiro. Para as lideranças,

“(...) o problema não era apenas a falta de mulheres brancas com as


quais os colonos pudessem se casar, mas principalmente a falta de
homens em quantidade suficiente para ocupar e defender o território.

1. ERMAKOFF; 2004: 20.


13

Foi isso que abriu a brecha para a promoção de mestiços - as


ocupações dentro do sistema colonial e escravista”.(RUY; 2005:01).

Para Gilberto Freire, esse processo de mistura racial produziria um

enriquecimento para a cultura brasileira. Em 1933, quando escreveu a grande obra

“Casa Grande & Senzala”, defendeu que a relação entre os senhores e suas escravas

marcou um convívio harmonioso entre brancos e negros, promovendo uma cordial

“democracia racial”. Sua tese insere o negro e o mestiço na sociedade brasileira e

defende a não existência de um preconceito racial por parte dos colonizadores e

patriarcas. Nesta teoria, negros e mulatos dependeriam apenas de sua própria força de

vontade para chegar aos mais elevados níveis sociais.

Com a instalação da República, em meados do século XIX, o patriarcalismo

demonstra sinais de fraqueza. O país começa a se modernizar: “são as cidades, as novas

profissões, a luz elétrica, os bondes, os imigrantes, as lojas comerciais, as indústrias,

que ameaçam o patriarca”.2 Se antes os parentes e subordinados do patriarca viviam

dentro de um sistema fechado, ambientado dentro da casa grande, agora surgem novos

cenários. Os filhos do senhor começam a estudar nas faculdades e formam laços com

famílias ricas e prósperas da capital. O próprio se vê obrigado a estabelecer negócios e

conhecer novos contatos nos centros urbanos. “Chega também o momento de abandonar

a casa-grande e se mudar para um palacete na Capital”.3

E a situação do negro também começa a mudar a partir da metade do século

XIX. A proibição do tráfico escravo (1850) acabou com o comércio de negros trazidos

2. http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=412
3. Idem.
14

da África. A Guerra do Paraguai (1864-1870) deu impulso ao movimento abolicionista,

já que milhares de ex-escravos retornaram vitoriosos e alguns até condecorados. “Em

1872, a distribuição percentual da população brasileira era de 38,1% de brancos, 38,3%

de pardos e 19,7% de negros”.4 A Lei do Ventre Livre (1871) deu liberdade aos filhos

de escravos nascidos desde então, apesar de mantê-los sob tutela dos seus senhores até

completarem 21 anos. A Sociedade Brasileira Contra a Escravidão (1880), liderada por

importantes políticos da época como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, incentivou a

libertação dos negros e gerou a formação de dezenas de outros grupos e de publicações

como o jornal O Abolicionista, de Nabuco e a Revista Illustrada, de Ângelo Agostini,

todos engajados no fim do sistema escravagista. E a Lei do Sexagenário (1885) tornou

livre os negros com mais de 60 anos. Todos esses acontecimentos deram início a

inúmeras revoltas de negros escravos, que fugiam das fazendas e buscavam liberdade

nas cidades ou em bandos, formando pequenas sociedades nos quilombos.5

A luta dos negros pela própria liberdade foi tão importante que suas ações

repercutiram no país e no mundo. O exército nacional pediu publicamente que não fosse

mais solicitado para a captura de fugitivos. A situação da escravidão também não era

vista com bons olhos no exterior e diversos manifestos chegavam, principalmente da

Europa, pedindo a libertação dos escravos. Assim, os dois movimentos mais

importantes da época, o abolicionista e o republicano, se uniram e tornaram mais fortes

as vozes pelas mudanças no Brasil.6

No final do século XIX, a Abolição da Escravatura (1888) foi assinada e a

4. ARAÚJO; 2000: 29.


5. http://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil
6. Idem.
15

Proclamação da República (1889) tornou-se fato. Era o fim da época oitocentista

brasileira. Parte da elite nacional temia a presença de negros no país e considerava-os

desqualificados para o trabalho e uma ameaça para a construção cultural e racial do

país. Em 1890, um decreto determinou a proibição da “entrada de ‘criminosos,

mendigos, indigentes e indígenas da Ásia e da África’. Os africanos e asiáticos só

poderiam ser admitidos mediante autorização do Congresso Nacional”.7 Começa uma

série de medidas para o embranquecimento cultural e racial do Brasil. O Estado adota a

ideologia do branqueamento e promove a imigração de italianos, espanhóis,

portugueses, japoneses e alemães. O objetivo foi incentivar a ocupação do território

brasileiro com mão-de-obra qualificada e civilizada, fazendo o possível para tornar o

país livre da presença de não-brancos. O negro estava livre, mas excluído da sociedade.

Os imigrantes que chegavam não se juntaram aos negros para construir,

“(...) mas tomar-lhes o lugar nas lavouras de café; vinham na verdade


acalmar o medo que as elites urbanas e fundiárias tinha do indivíduo
de pele escura. A república proclamada, por sua vez, não previa
nenhum mecanismo de incorporação do ex-escravo ao regime baseado
no ideário liberal. Na nova ordem, controlada por oligarquias
regionais, a maioria populacional ficava sistematicamente excluída do
processo eleitoral, o que eliminava as chances de representatividade
política das camadas subalternas, onde predominavam os negros”.
(SODRÉ; 2000:239).

O que fica claro nesta relação entre brancos e negros no Brasil é uma constante

defesa dos líderes por seus ideais. O líder português descobriu, ocupou e se apropriou

do território, conferindo a ele a posse do país. O índio, primeiro habitante, foi dominado

e isolado. E os negros, importados para uso da colônia, foram domesticados e liderados.

Quando o liderado se mostra próximo ao líder (crescendo dentro da sociedade, por

exemplo), acontece a discriminação. A discriminação seria a forma defensiva do líder

7. ARAÚJO; 2000: 27
16

preservar seu poder e espaço, mostrando à sociedade que o liderado é diferente e não

pode fazer parte como indivíduo daquela identidade. E a identidade da liderança

brasileira - desde o colonizador português até a elite republicana - construiu-se a partir

do território, da cultura e do sistema capitalista europeu, onde o negro foi ausente.

Assim,

“(...) a semelhança sugere proximidade de territórios e de corpos, daí


implicar sempre o racismo uma desterritorialização – do Mesmo e do
Outro. Abandonando o seu lugar predeterminado, o Outro (o
imigrante, o diferente, o negro) é conotado como o intruso que ameaça
dividir o lugar do Mesmo hegemônico. O Outro é aquele que
supostamente não conhece o seu lugar – assim se expressa o senso
comum discriminatório -, isto é, aproxima-se demais, rompendo com a
separação dos lugares em todas as suas configurações possíveis (..) e
deste modo conspurcando a pureza pressuposta de uma hierarquia
territorial”. (SODRÉ; 2000:261).

Mas como o negro foi apresentado, ainda durante o século XIX, para os

brasileiros e para o mundo? A idéia de apresentar o negro como o outro (intruso,

diferente, porém “domesticado”), encontra no momento oitocentista brasileiro a elite

(dominadora) branca - seduzida pela temática do pitoresco e encantada pelo poder de

controle sob a natureza. O avanço científico da época registra a relação entre líderes e

liderados através de uma das mais surpreendentes invenções de todos os tempos: a

fotografia.
17

O negro na fotografia brasileira do século XIX – uma relação pitoresca entre o

Brasil e a Europa.

Desde o início do século XVI, diversos inventores e cientistas de todo o mundo

trabalharam para criar uma nova técnica que pudesse registrar imagens, sem a emoção

do desenho e da pintura. A idéia era desenvolver “uma nova técnica que, em suporte

bidimensional, conferisse fidelidade total à imagem produzida”.8 Por mais realistas que

fossem, as obras de pintores e desenhistas sempre contavam com suas interpretações e

estilos próprios. A fotografia, como hoje é conhecida, passou por diversas evoluções,

mas com um objetivo inicial: ser fiel ao que era registrado.

No dia 19 de agosto de 1839, em Paris, o inventor Louis-Jacques Mandé

Daguerre criou o primeiro processo de reprodução de imagem: o daguerreótipo,

aparelho que levou o seu nome. O abade Louis Compte, amigo do inventor, veio ao

Brasil e fez uma apresentação do invento na praça em frente ao Paço Imperial, no dia 17

de janeiro de 1840. Surpresas e encantadas, dezenas de pessoas acompanharam a

exposição daquilo que seria o primeiro passo para a evolução da fotografia.

O menino Pedro de Alcântara, encantado com a invenção, logo encomendou um

aparelho para reproduzir seus próprios daguerreótipos. Anos mais tarde, depois de

assumir o trono brasileiro e ser intitulado D. Pedro II, deu importante impulso ao

invento. Sua idéia foi estimular profissionais a trabalharem com o aparelho e nomeá-los

como Fotógrafos da Casa Imperial. O imperador foi “o primeiro fotógrafo de

8. ERMAKOFF; 2004: 106


18

nacionalidade brasileira e o primeiro soberano fotógrafo do mundo”.9

Os Fotógrafos da Casa Imperial dedicaram-se a fotografar, principalmente, a

família imperial. A classe senhorial, dona de terras e escravos, e a população urbana,

comerciantes e prestadores de serviço à Corte, também eram clientes. Em 1870, 38

profissionais exerciam seus ofícios com estúdios próprios, concentrados geralmente no

centro da cidade – na rua do Ouvidor, e anúncio fixo no Almanaque Laemmert,

importante publicação da época.10 Nas demais províncias do país, como na Bahia,

Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo, também era possível dispor de outros

excelentes estúdios. O trabalho mais pedido na época era a carte-de-visite,11 utilizado

para enviar como lembrança ou decorar a sala da família.

No estúdio fotográfico, o retrato dava ao fotógrafo e, principalmente, a quem

pagava por ele, a possibilidade de fazer daquela cena, uma realidade. Mesmo que

inventada. Recursos como a iluminação, o foco e o enquadramento, para profissionais

da época, não tiravam a originalidade e nem interferiam no resultado, já que “a

fotografia era fiel ao momento registrado”. No século XIX, tal exigência era

considerada um simples capricho do cliente, mas que o bom profissional precisava estar

apto para atender. Da escolha do profissional à pose para a fotografia, ficava a

mensagem: o cliente queria ser registrado tão moderno e interessante quanto os

9. VASQUEZ; 2003: 5.
10. ERMAKOFF; 2004: 38.
11. Formato de apresentação de fotografias inventado pelo francês André Adolphe-Eugène Disdéri em
1854. Recebeu este nome em virtude de seu tamanho reduzido (apresentava uma fotografia de cerca de
9,5 x 6 cm montada sobre um cartão rígido de cerca de 10 x 6,5 cm). Em 1860, tornou-se um modismo
em escala mundial e foi produzido aos milhões em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil. O cartão de
visita começou a declinar a partir de 1870, embora tenha sido empregado por alguns fotógrafos até o fim
do século XIX.
19

acontecimentos oitocentistas. O processo seguia algumas tendências, como:

“a competência do fotógrafo em controlar a tecnologia fotográfica; a


idéia de performance, ligada ao fato de o cliente assumir uma máscara
social que, muitas vezes, não lhe competia; e a produção de uma nova
forma de expressão visual adequada aos tempos do telégrafo e do trem
a vapor”. (MAUAD; 1997:2).

Antes do invento da fotografia, a partir do século XVIII, o europeu adota a

estética do pitoresco para compreender e admirar obras da época. Pinturas e desenhos

mostram uma natureza com “imperfeições e assimetrias em cenas repletas de detalhes

curiosos e característicos que procuram remeter a uma natureza acolhedora e

generosa”.12 O pitoresco, diferente do discurso anterior – o sublime, convida o

espectador à uma reflexão dos elementos, deixando-o à vontade para a descoberta de

novas sensações. A “domesticação” do europeu à natureza e ao desconhecido, ocorreu

de forma sistemática e racional. A própria paisagem da capital do Império – o Rio de

Janeiro – foi um exemplo desse processo,

“(...) produto de um longo processo de intermediações culturais


suscitadas pelas Luzes do século XVIII, pois, até então, a natureza era
considerada a morada das forças demoníacas e o mar o grande
recipiente universal de todos os detritos. Acreditava-se, também que
fazia parte da natureza do mar rejeitar, ao longo das praias, suas
secreções e impurezas (...). Não é difícil perceber como esse olhar
atento e entusiasmado sobre a natureza, e como a redescoberta e a
valorização cultural do mar e da praia serão importantes para a futura
projeção do Rio de Janeiro e de sua paisagem no imaginário
ocidental”. (DI COLA; 2003: 13).

Na fotografia, a poética do pitoresco continua. Entre 1858 e 1860, o fotógrafo

francês Victor Frond realizou um projeto com registros de paisagens, povos e costumes

brasileiros. Brazil Pittoresco foi considerado o “mais ambicioso trabalho fotográfico

realizado no país durante o século XIX”.13 A curiosidade européia pelo exótico encontra

12. Itaú Cultural – www.itaucultural.org.br.


13. VASQUEZ; 2003: 18.
20

no Brasil um rico cenário para o despertar deste espírito pitoresco. E o Brasil encontra

na fotografia o modo de se divulgar civilizado e moderno (registrando a construção de

cidades e estradas), mas com elementos exuberantes (a riqueza da fauna e flora

brasileira).

Um dos “objetos exóticos” foi o negro. Justamente por ser considerado tão

exuberante quanto às terras do Novo Mundo, o negro quase sempre foi mostrado em

situações ou com temáticas que em nada representava o seu cotidiano real. O anexo foto

1 mostra uma exceção. Dona Marcellina, ex-escrava do senhor Antônio, posa sua nova

condição de mulher livre. O retrato foi anexado ao processo de pedido de anulação de

casamento (em 1887) movido pela esposa branca de seu Antônio, que o acusava manter

a amante negra na Corte. Na foto, algumas tendências da época:

“uma mulher vestida e penteada à moda européia, com seu leque. O


leque era um detalhe importante, pois era um símbolo de distinção e
frescura, cujo uso e manuseio corretos, através de um ritmo elaborado
de gestos, denotavam que a elegante era afeita aos usos da sociedade.
Para compor o cenário, o fotógrafo escolheu uma ambientação rústica
(também em moda no período)”.14

Aproveitando a relação entre o europeu e as exuberâncias do Brasil, os

fotógrafos brasileiros exploraram o negro na fotografia. Publicado no Almanaque

Laemmert de 1866, Cristiano Júnior, um dos principais fotógrafos da época, fez a

seguinte propaganda de seu trabalho na publicação: “variada coleção de costumes e

tipos de pretos (...), uma coisa muito própria para quem se retira para a Europa”.

A principal diferença que se observa nas fotos dos senhores e dos escravos é a

14. Studium 9 - http://www.studium.iar.unicamp.br/nove/6.html?studium=index.html.


21

temática do singular e do generalizado. Singular, pois assim são as fotos dos senhores;

únicas. Mesmo manipulados, estes são trabalhos que representam um indivíduo. E eram

produzidas para uso pessoal. A fotografia dos negros, produzida para fins comerciais,

não representava a história do indivíduo que ali posava. As imagens eram categorizadas,

buscavam representar um grupo ou tipo da “espécie” e seu destino eram as mãos dos

curiosos viajantes ou para quem se fizesse interessante. Basicamente, “se o retrato do

senhor é uma forma de cartão de visita, o retrato do escravo é uma forma de cartão

postal”.15

Nas séries de cartões de visita especializadas em negros brasileiros ao longo dos

séculos XIX e XX, os fotógrafos representavam os escravos por estarem com os pés

descalços. Mesmo que bem vestidos e elegantes, eles eram fotografados em estúdio e

encenavam a realização de afazeres domésticos, mas sem calçados. Como mostra o

anexo foto 2, a idéia é mostrar uma domesticação da escravidão, o que era civilizado e

apropriado para o consumo europeu. O anexo foto 3 tem o mesmo teor, mas representa

uma ama-de-leite. Muitos escravos, após conseguirem a alforria, adquiriam algum tipo

de calçado.

Victor Frond, fotógrafo francês que se dedicou a fotografar o Brasil entre 1857 e

1862, registrou alguns momentos dos negros fora dos estúdios fotográficos. No anexo

foto 4, os escravos trabalham na socagem do café. No anexo foto 5, um momento de

lazer entre três mulheres: a caça aos piolhos. Frond foi o primeiro a focalizar, em 1858,

o escravo no Brasil.16 A temática é registrar o negro em seu habitat natural. Havia a

15. DA CUNHA, 1988: 3.


16. VASQUEZ, 2003: 10.
22

preocupação em se registrar o cotidiano, de chegar mais próximo da realidade daquele

povo. Os dois trabalhos, realizados em locações externas ou no estúdio, atendem ao

público ávido por exuberância. A diferença é clara:

“ao contrário dos retratos de escravos de Frond, feitos em locações


externas, mostrando-os em situação de trabalho ou lazer, os de
Christiano Junior são deprimentes e melancólicos, espalhando o cruel
absurdo da dominação de uma raça humana por outra”. (VASQUEZ;
2003: 82).

A realidade da escravidão foi pouco registrada. Apenas para pintores, como

Rugendas (anexo figura 1) e Debret (anexo figura 2), seria possível documentar os maus

tratos a um escravo, por exemplo. O artista guardava o momento em sua memória e

posteriormente pintava-o. Para o fotógrafo, a missão era mais delicada. O equipamento

era robusto, fotossensível e os senhores dificilmente permitiriam registrar uma cena de

agressão a um escravo. Nestes casos, a informação era complementada por textos como

o de Charles Riberoylles, colaborador de Frond na obra Brazil Pittoresco:

“as penas disciplinares infligidas aos negros são o chicote, a


palmatória, o tronco, a prisão e a golilha, nos casos de falta grave ou
deserção. Nas cidades a lei intervém, regula e fiscaliza. Nas fazendas,
porém, a vontade do senhor decide e os feitores executam. Que cenas
terríveis não se passarão nessas solidões”. (VASQUEZ; 2003: 15).

A fotografia de tipos de negros do século XIX vendia a imagem de um Brasil

que ao mesmo tempo em que se constituía como uma nação moderna e civilizada,

também permitia a existência de tipos exóticos. O fotógrafo, incentivado pelo

imperador, transmite a civilização e a modernidade da sociedade brasileira. O escravo,

pitoresco, aparece domesticado, bem tratado e serve como um “manequim” que, com o

auxílio de poses e cenários, desfila os elementos desta nova pátria. Para quem visualiza

a foto, seja estrangeiro ou mesmo brasileiro, fica a idéia de uma nação civilizada, em

franco desenvolvimento. Mas sempre única e bela. Exuberante.


23

CAPÍTULO 2 – O NEGRO BRASILEIRO NA CULTURA DE MASSA

NACIONAL.

A cultura de massa produz os mais variados produtos para um grande público,

receptor dessas mensagens. No Brasil, a população assiste à exibição do seu retrato

cultural pela televisão, rádio, jornais, revistas, cinema, etc. São meios que se

desenvolveram a partir do final do século XIX e até hoje produzem atrações de enorme

empatia com o público, tendo a importante função de trabalhar no imaginário de

milhões de pessoas conceitos para a apresentação e valorização da brasilidade. Mas nem

sempre toda a massa brasileira se vê representada nos filmes, nas telenovelas e nas

propagandas nacionais. A representação do negro brasileiro nesses três produtos

culturais ganha destaque nas próximas páginas, que mostram velhas ideologias (como o

desejo de uma elite pelo branqueamento e pela euro-norte-americanização de obras

nacionais) limitando a participação desses personagens no cenário brasileiro da cultura

popular.

O negro brasileiro no cinema – da Era muda à Era Collor.

No Brasil, o cinema surge pelas mãos do italiano Affonso Segretto, em 1896,

quando pouco restou deste período cinematográfico mudo brasileiro - chamado pelo

pesquisador Vicente de Paula Ribeiro como “bela época” por ter sido um dos momentos

de maior número de produções realizadas.


24

O final do século XIX foi marcado por ideologias discriminatórias contra os

negros e pela perseguição da polícia aos cultos afro-brasileiros. O registro de negros em

documentários foi quase zero. Mas, no primeiro filme proibido no Brasil por motivos

políticos, o negro estava presente. A Vida de João Cândido (1912), contava a história

sobre a revolta dos marinheiros negros da Marinha de Guerra contra os castigos

corporais, numa apologia romanceada do líder da Revolta da Chibata.

Outros filmes, também desaparecidos, contavam com a presença negra: Os

Capadócios da Cidade Nova (1908) e A Quadrilha do Esqueleto (1917), ambientados

no Rio de Janeiro; uma versão paulista de A Cabana do Pai Tomás, com atores brancos

pintados; duas versões silenciosas de A Escrava Isaura; Os Guaranis (1908) - filmagem

da adaptação para picadeiro do romance de José de Alencar - protagonizado com grande

sucesso por Benjamin de Oliveira, popularíssimo palhaço/ator dramático negro do Circo

Spinelli. Das primeiras produções, ainda restam fragmentos de três obras “que mesmo

centrado nos personagens brancos, revelam posições ambíguas, porém expressivas, no

tratamento dos personagens negros”.17 São elas: O Segredo do Corcunda (1924); A

Filha do Advogado (1926); e Thesouro Perdido (1927), em que “o perfil de uma criança

negra é intercalado na montagem com as fuças de um sapo, animal associado à feiúra, à

feitiçaria e ao mal”.18

No final da década de 20, surge o cinema sonoro. As obras cinematográficas de

1930 a 1945 sofrem muita influência do rádio e do teatro. O pouco movimento de

câmeras e o excesso de diálogos marcam o estilo cinematográfico do período. A censura

17. RODRIGUES; 2001:79.


18. Mnemocine (Memória e Imagem) – www.mnemocine.com.br
25

limita os temas e o personagem negro é, em poucas oportunidades, abordado com uma

visão paternalista. O Despertar da Redentora (1942), média-metragem produzida pelo

Instituto Nacional do Cinema Educativo (um órgão governamental do período

getulista), é um bom exemplo das produções da época. Esse filme conta um episódio da

vida de Princesa Isabel ainda jovem, em que jurava libertar todos os escravos brasileiros

ao ser afrontada por não conseguir impedir o castigo de uma proprietária à sua escrava.

O filme exibe cenas fortes de violência contra o negro e termina com um ex-escravo

sorrindo, agradecido à princesa pela assinatura da Lei Áurea. Como defendido no

Estado Novo, o personagem branco aparece como único salvador da raça negra.

“Nenhuma menção das fugas em massa das fazendas, das centenas de mortos, nem da

campanha dos abolicionistas, que durou quase 70 anos e empolgou negros e brancos de

todo país”.19

E é do teatro que surgem os primeiros grandes atores negros do cinema nacional.

Grande Otelo, Pérola Negra e Chocolate traziam no nome artístico o orgulho por suas

etnias. Mas ainda sob forte intervenção da censura, os atores negros tiveram quase

nenhum espaço. Dois sucessos musicais da época exemplificam essa situação. Favela

dos Meus Amores (1935), dirigido por Humberto Mauro, foi um dos primeiros filmes

realizados fora do estúdio. O cenário era uma favela verdadeira do Rio de Janeiro e os

protagonistas (brancos e mulatos claros) interpretam sambistas e compositores. Na obra,

o negro aparece como figurante. A obra foi censurada “porque mostrava muito pobre e

muito preto”,20 mas liberada posteriormente. Já em O Ébrio (1945), dirigido por Gilda

de Abreu, apenas três negros integram o elenco. Seus personagens são empregados

19. Mnemocine (Memória e Imagem) – www.mnemocine.com.br.


20. Idem.
26

domésticos que cuidam bondosamente de seus patrões brancos (protagonistas). O

dramalhão conta as desgraças de um cantor alcoólatra, que é enganado pela própria

família. O filme foi o maior sucesso do cinema brasileiro da época, ficando em cartaz

por duas décadas. Nos quatro primeiros anos de exibição, num Brasil que contabilizava

50 milhões de habitantes, estima-se que foi visto por mais de quatro milhões de

espectadores.21

A redemocradização política de 1945 trouxe ao cinema nacional uma nova fase.

Com a censura mais tolerante e o fim das restrições à importação de negativos, o

número de produções cinematográficas explodiu. As famosas chanchadas (gênero que

mescla humor e música) eram dirigidas ao grande público analfabeto e semi-analfabeto

da época, que não conseguia ler as legendas dos filmes norte-americanos. Essas

comédias musicais satirizavam os filmes hollywoodianos e faziam críticas à sociedade.

“Encontramos personagens satirizando portugueses, italianos, libaneses, judeus,

americanos, franceses - e também os negros”.22 Em O Mundo se Diverte (1948), de

Watson Macedo, o personagem de Grande Otelo se descreve por telefone a uma

desconhecida admiradora, encantada por sua voz: “- Sou alto, branco, louro, de olhos

verdes etc.”.23 Em O Caçula do Barulho (1949), do italiano Ricardo Freda (diálogos de

Alinor Azevedo), o personagem de Oscarito reclama quando tem que distrair uma

criada negra e gorda: “- Eu vou ter que me declarar... a isso?!”, “- Eu cheguei perto da

macacada etc. etc.”.24 Em Vou Te Conta (1958), de Alfredo Palácios, o personagem de

Chocolate exerce o racismo ao contrário quando comenta sobre o personagem Bonitão,

21. Adoro Cinema Brasileiro – www.adorocinemabrasileiro.com.br.


22. Mnemocine (Memória e Imagem) – www.mnemocine.com.br.
23. RODRIGUES; 2001: 122.
24. RODRIGUES; 2001: 113.
27

um bandido: “- Sujeito quando não é banco nem preto, cuidado com ele!”. 25

Estudos apontam que Cajado Filho (1912 – 1966) foi o primeiro cineasta

brasileiro negro. Foi um ótimo cenógrafo e escreveu algumas das melhores chanchadas

de todos os tempos: O Petróleo é Nosso (1954), De Vento em Popa e Garotas e Samba

(1956), e O Homem de Esputinique (1958). Ele é também o diretor negro com a

filmografia mais extensa: dirigiu, entre 1949 e 1951, três filmes: Estou Aí, Todos por

Um e Falso Detetive. Depois, na Atlântida, acumulou as funções de diretor,

argumentista, roteirista e cenógrafo na produção E o Espetáculo Continua (1958), e

dirigiu Aí Vem a Alegria (1959).

Outro negro de destaque no cinema brasileiro foi Grande Otelo (1915 – 1993).

Estrelou dezenas de comédias ao lado de Oscarito e, depois, Ankito, comediantes

brancos. Mas o talento também fazia dele um excelente ator dramático, que participou

de dois filmes importantes para o negro no cinema nacional. O primeiro é Também

Somos Irmãos (1949), de José Carlos Burle, que “trata abertamente do preconceito

racial na história de dois irmãos negros, um advogado, o outro marginal, e como a

sociedade reage diferentemente a um e outro”.26 Foi considerado, pela crítica

especializada da época, o melhor filme do ano. Já em Rio, Zona Norte (1957), dirigido

por Nelson Pereira dos Santos, vive o personagem Espírito da Luz; “negro, favelado,

compositor de sambas, que morre ao cair de um trem, no exato momento em que sua

música alcança o sucesso nas rádios”.27 É considerada a melhor atuação de Otelo.

25. RODRIGUES; 2001: 113.


26. RODRIGUES; 2001: 123.
27. Idem.
28

A partir da década de 50, o paternalismo de filmes anteriores foi abandonado.

Nos filmes sobre a escravidão, aparece um negro mais atuante, participativo junto com

abolicionistas brancos no processo da abolição da escravatura. Como exemplo, temos:

Sinhá Moça (1953), dirigido por Tom Payne e Osvaldo Sampaio, produzido pelo

estúdio Vera Cruz e premiado no Festival de Veneza; e Ganga Zumba (1964), de Carlos

Diegues. Mas quando o assunto era os cultos religiosos afro-brasileiros, as

discriminações estavam representadas. Em Bahia de Todos os Santos (1960), de

Trigueirinho Neto, a perseguição da polícia do Estado Novo ao culto do candomblé é

reproduzida logo nas primeiras cenas do filme. A história é de um grupo de

adolescentes marginais (negros, mulatos e brancos), na Salvador dos anos 30. Em

Barravento (1962), primeiro filme de Glauber Rocha, o cineasta “aceita a máxima

marxista de que a ‘religião é o ópio do povo’ e (...) condena os cultos afro-brasileiros

como perpetuadores do subdesenvolvimento”. 28

Com o Golpe Militar de 1964, que durou até 1983, o Brasil entra num regime

autoritário e nacionalista. Apesar disso, os investimentos de estatais no cinema nacional

foram altos, a liberdade temática ficou assegurada e importantes filmes para a afirmação

da imagem do negro e da cultura afro-descendente foram produzidos. Compasso de

Espera (1969), dirigido por Antunes Filho, narra a história de um intelectual negro

superando as dificuldades de se viver em São Paulo, em conflito com personagens

brancos. Já O Amuleto de Ogum (1974), conta uma história policial ambientada nos

bastidores do culto da umbanda, enquanto A Tenda dos Milagres (1977), uma adaptação

do clássico de Jorge Amado, é uma importante produção sobre a miscigenação

28. RODRIGUES; 2001: 102.


29

brasileira na Bahia. Ambos foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos. Xica da

Silva (1976), dirigida por Carlos Diegues, baseia-se na história verídica de uma escrava

que consegue liberdade e ascensão social quando conquista a mais alta autoridade

lusitana na região de Vila Rica, a maior produtora mundial de ouro do século XVIII. Foi

uma das maiores bilheterias da história do cinema nacional e repetiu o sucesso quando

exibida na televisão em forma de novela, na extinta Rede Manchete. Enquanto Diegues

opta por uma “carnavalização de cenários, dos figurinos e até da interpretação dos

autores (...), no intuito quase sempre bem-sucedido de estabelecer metáforas com a

época contemporânea”,29 Walter Lima Júnior dirige Chico Rei (1985) de forma oposta.

A estética da cenografia e dos figurinos “se baseiam nas gravuras de viajantes europeus

como Debret, Rugendas e Franz Post (...). Ao contrário de Xica, a ascensão social se faz

sem a perda da dignidade”.30 A história conta a lenda de um rei africano vendido como

escravo para o Brasil. Através de seu trabalho nas minas de ouro, conquista sua

liberdade e a dos demais integrantes da sua tribo. Ainda no gênero da ficção, Olá

Balogun, cineasta nigeriano com extensa filmografia na língua ioruba, dirigiu, escreveu

e co-produziu, em 1979, A Deusa Negra. “O argumento é sobre um intelectual africano

que vem ao Brasil à procura do amuleto de um antigo antepassado escravizado,

conhecendo assim as comunidades negras do Rio de Janeiro e Bahia”.31

A ajuda estatal foi suspensa no início dos anos 90, coincidindo com o fim do

governo militar e a chegada da crise econômica. A produção anual despenca de uma

média de 70 filmes anuais para apenas quatro. Somente a partir de 1993 o país retoma a

29. RODRIGUES; 2001: 65.


30. RODRIGUES; 2001: 65.
31. RODRIGUES; 2001: 139.
30

produção cinematográfica. Esta fase será estudada do capítulo 3.

Nestes cem anos de cinema, o retrato do povo negro brasileiro foi mostrado de

forma tímida nas telas do país. E fora delas também. O personagem negro vive no

cinema do Brasil os mesmos problemas em todas as épocas: sua composição é

estereotipada e seus resultados acabam por ser negativos, resultando na folclorização da

sua cultura. O negro espectador brasileiro assiste a uma sucessão de papéis que não

inspiram nele o orgulho de pertencer a uma raça afro-descendente, sempre regida pelo

comando dos brancos (dentro e fora da tela). Ainda assim, obras memoráveis foram

produzidas. O negro representou o marginal, a prostituta e o malandro. Representou

também o advogado, a cabeleireira e o intelectual. Representou o bom e o mau. Mas a

contribuição para a valorização da raça negra ainda ficou adormecida, fazendo com que

o próprio negro não se interessasse em assistí-lo.

Outro grande produto cultural é a telenovela. O sucesso deste fenômeno de

audiência em todo o território nacional estreou um ano após o surgimento da televisão

no país (1950) e em poucos anos tornou-se o programa de maior influência e

mobilização da população brasileira. O negro brasileiro aparece em algumas dessas

produções, mas nem sempre o papel destinado a esses atores condiz com a realidade do

povo que está sendo dramatizado.


31

O negro brasileiro na telenovela – da estrutura americana ao tímido retrato

nacional.

Até os anos 70, as novelas brasileiras sofreram forte influência das indústrias de

sabonete e dentifrício. Empresas como Gessy-Lever, Colgate-Palmolive e Kolynos-Van

Ess patrocinaram cerca de dois terços das produções da época. O esquema foi o mesmo

adotado pela soap opera 32 norte-americana, programa que surgiu nos anos 30 em rádios

dos Estados Unidos e, posteriormente, na televisão. As tramas brasileiras eram

adaptações de obras de diversos países da América Latina, realizadas por autores que

trabalhavam nas agências de publicidade dos patrocinadores.

“Autores brasileiros se destacaram nas décadas seguintes, como


Walter George Dürst e Benedito Ruy Barbosa, iniciaram sua carreira
na telenovela, trabalhando no interior dessas agências de publicidade
das ‘fábricas de sabão’ e tendo como função selecionar e adaptar
scripts de sucesso do México, de Cuba, da Argentina e da Venezuela”.
(ARAÚJO; 2000:83).

Mesmo com a adaptação brasileira, as novelas abordavam temas e estereótipos

de outros países da América Latina. A consolidação do gênero se deu justamente em

meados da década de 60, quando o país vivia os dias do golpe militar. Mas na

telenovela, a história era outra. “Eram velhos clichês folhetinescos, que nada têm em

comum com a realidade brasileira daqueles dias março e abril de 1964”.33

O Direito de Nascer, telenovela produzida pela primeira vez no Brasil em 1964

pela TV Tupi, tornou-se a primeira produção de sucesso da televisão brasileira. A trama,

32. O nome soap opera surgiu da seguinte combinação: soap faz referência aos patrocinadores, empresas
do ramo de higiene pessoal como a Procter and Gamble; e opera pela semelhança com os espetáculos
teatrais, caracterizados pelo caráter musical e dramático.
33. ARAÚJO apud FERNANDES; 2000: 82.
32

do autor cubano Félix Caignet, conta a história do jovem branco Albertino Limonta

(vivido por Amílton Fernandes), recém-formado em medicina, que fora adotado desde

bebê por uma criada negra, Maria Dolores Limonta. Interpretada pela atriz negra Isaura

Bruno, Mamãe Dolores (como era chamada carinhosamente pelo público) foi um dos

principais papéis da novela e entra para a história ao se tornar a primeira personagem

negra a despertar no público brasileiro total empatia. O personagem é uma mistura de

dois estereótipos:

“a mãe negra – presente na literatura e no teatro brasileiro desde o


período da abolição da escravatura, caracterizada pelo seu amor
extremo ao filho e abnegação sublime de qualquer outro
relacionamento social e amoroso – e a mammie, transposição de um
estereótipo norte-americano de sucesso”.(ARAÚJO; 2000:85).

A Rede Globo, que estreou sua primeira novela em 1965, levou ao ar A Cabana

do Pai Tomás, em 1969. Na época, a novela era a que mais havia apresentado atores

negros em seu elenco, mas também protagonizou um dos mais polêmicos episódios

sobre a questão racial na televisão brasileira. O papel do negro Pai Tomás foi

interpretado pelo ator branco Sérgio Cardoso. Para dar vida ao personagem, Sérgio era

“pintado de preto e usava rolhas no nariz e atrás dos lábios para aparentar uma pessoa

negra de nariz largo e beiçudo”,34 utilizando o recurso do blackface (muito usado no

início do cinema norte-americano). O acontecimento criou um mal-estar terrível entre

produtores, atores e o público, encurtando a trama. A possibilidade é de que os

produtores da época não acreditavam no talento de atores negros para assumir o

personagem principal, já que era comum dar a eles papéis secundários, de pessoas

subalternas.

“No Brasil, representar outras raças, tais como negros e índios, sempre
foi uma prerrogativa unilateral dos atores euro-brasileiros, e não dos
atores afro-brasileiros (...). Em Aritana, apresentada em 1979, o
34. ARAÚJO; 2000: 90.
33

personagem principal, um índio, foi interpretado pelo ator Carlos


Alberto Ricelli. Da mesma forma, as personagens mulatas dos
romances de Jorge Amado, quando protagonistas, são
sistematicamente representadas por atrizes brancas”. (ARAÚJO;
2000:95).

A novela Beto Rockfeller (1969) da TV Tupi torna-se um marco ao abordar a

vida urbana no Brasil e criar diálogos mais próximos do dia-a-dia nacional. Mas foi na

Rede Globo que a busca por uma novela mais brasileira encontrou espaço e sucesso. A

emissora contratou grandes nomes do teatro brasileiro, como Dias Gomes, buscou

dramaturgos inovadores de outras emissoras, como Bráulio Pedroso da TV Tupi e

apostou tudo nesse novo jeito de fazer telenovelas, com ingredientes que faziam parte

da realidade nacional. Mas foi com Janete Clair que a rede conseguiu seu primeiro

sucesso: Irmãos Coragem (1970). A autora ficou famosa pelos personagens femininos

que criou, sempre abordando a luta pela emancipação familiar, sexual e profissional.

Janete Clair foi a autora que menos utilizou personagens estereotipados e “quem

mais contribuiu para a revalorização do negro (...)”.35 Na novela Selva de Pedra (1972),

a atriz Léa Garcia interpretou uma secretária negra de classe média, inteligente e

sofisticada. Milton Gonçalves atuou e co-dirigiu, junto com Daniel Filho e Reynaldo

Boury, o sucesso Irmãos Coragem, sendo o primeiro diretor negro da televisão

brasileira. E foi para Milton o papel negro de maior destaque desenvolvido pela autora:

o psiquiatra doutor Percival Garcia, em Pecado Capital (1975). Ao longo da trama, a

participação do personagem sofreria uma ampliação, com um romance entre ele e

Vitória (Tereza Amayo), mulher branca, irmã de sua paciente. Mas o affair entre os dois

não aconteceu por pressões do público e da censura política. Para o ator Milton

35. ARAÚJO; 2000: 115.


34

Gonçalves, a relação entre os personagens seria um acontecimento natural. “Mas foi

uma enxurrada de cartas protestando, mesmo o cara tendo diploma em Harvard, o

escambau, mesmo sendo um cara altamente estruturado”. Apesar do destaque, o

personagem se apresentou isolado de um núcleo negro e despreocupado com questões

raciais.

Ainda na década de 70, começaram as novelas ambientadas no período da

escravidão. A Escrava Isaura foi escrito em 1875, pelo autor abolicionista Bernardo

Guimarães e virou um grande sucesso na televisão. A escolha de uma “mulata quase

branca”, para ser a escrava heroína, refletia a necessidade “de provar uma exceção à

regra de que negros eram escravos por natureza e para não ofender suscetibilidades de

um público leitor fundamentalmente pró-escravatura”.36 Se para os consumidores dos

romances oitocentistas era difícil imaginar uma negra inocente e pura, e por isso os

escritores da época precisassem aproximá-la o máximo possível de uma branca, para os

produtores da novela de 1977 também existiu esse preconceito. A personagem

homônima foi interpretada pela atriz Lucélia Santos. O fim da falta de ousadia na

televisão brasileira só viria a ser decretada quase 20 anos depois, na Rede Manchete,

com a telenovela Xica da Silva.

Até o fim da década de 70, as novelas que abordavam a escravidão na Rede

Globo sempre apresentavam o abolicionista branco como o responsável pela libertação

dos escravos. O escravo era dócil, não tinha orgulho pela raça e nem lutava contra a

escravidão. Nos anos 80, Sinhá Moça (1986) – de Benedito Ruy Barbosa - mostra, no

36. ARAÚJO apud BROOKSHAW; 2000: 202.


35

fim da trama, um momento crítico pós-abolição: os imigrantes italianos chegavam para

substituir o negro e os ex-escravos vagavam pelas estradas do país.

Pacto de Sangue (1989), novela de Regina Braga, exibida na Rede Globo e

dirigida por Herval Rossano, mostrou a luta contra a escravidão liderada por

personagens brancos e negros. O orgulho negro, as ricas vestimentas africanas e a auto-

estima foram abordados e ganharam vida nas mãos de grandes personagens. Atores

negros de destaque como Ruth de Souza (a babalorixá Mãe Quitinha), Angela Corrêa (a

líder guerreira Baoni), Haroldo de Oliveira (Damião) e Zezé Motta (Maria) fizeram

parte da história que, apesar de continuar trazendo nas tramas principais romances de

personagens brancos, abordou de forma mais equilibrada as relações entre brancos e

negros pela luta abolicionista. A novela foi ao ar justamente no período de

comemoração de cem anos da abolição e “a imagem do Brasil como um paraíso da

democracia racial, que a telenovela sempre promoveu, foi arranhada”.37

A família de classe média negra só apareceu em 1985, na novela Corpo a Corpo

da Rede Globo. Sônia, interpretada por Zezé Motta, vive um romance com Cláudio

(Marcos Paulo). O núcleo familiar gira em torno da personagem, uma arquiteta de

classe média. Nenhum dos personagens lutam nas questões de conflitos raciais.

Simplesmente adotam “uma postura dócil e subalterna”.38

Em Pátria Minha (1994), exibida na Rede Globo, o protesto de negros

aconteceu na vida real. A trama de Gilberto Braga foi o cenário de “uma das cenas mais

37. ARAÚJO; 2000: 227.


38. ARAÚJO; 2000: 228.
36

abertamente racistas da televisão brasileira”.39 A cena foi ao ar nos dias 1º e 2 de

novembro de 1994, num momento em que a audiência estava morna. O vilão da

história, Raul Pelegrini (Tarcísio Meira), acusou injustamente o seu jardineiro Kennedy

(Alexandre Moreno) de ter roubado seu cofre. Começam as agressões verbais contra o

empregado:

“‘Você abriu meu cofre, negro safado’. Kennedy, assustado e


intimidado, diz que não vez nada daquilo. Raul retruca (...): ‘Desde
quando acredito na palavra de um crioulo? Vocês quando não sujam
na entrada, sujam na saída. Foi vingança? Vingança porque não deixei
você estudar? Você pensa que conseguiria aprender alguma coisa?
Não sabe que o cérebro de vocês é diferente do nosso?’ Kennedy, de
cabeça baixa, não reage, não se defende, não enfrenta o vilão e foge da
sala”. (ARAÚJO; 2000:272).

A entidade paulista Geledés/SOS Racismo recorre na justiça e avalia que o

problema não foi o comportamento do vilão, mas sim o do personagem de Kennedy. A

coordenadora da entidade, Suely Carneiro, declara: “o jardineiro não se portou com

dignidade (...). Teve uma conduta que não reflete o comportamento do negro

contemporâneo”.40 Na notificação, a entidade pedia que o personagem fosse

conscientizado por outros personagens negros. Depois de mais manifestações (de outras

entidades negras paulistanas e de poucos atores negros), a trama levaria ao ar uma cena

em que Kennedy desabafa com sua madrinha Zilá (Chica Xavier). Na conversa, o jovem

expressaria seu medo em aceitar o trabalho em uma loja de bijuterias:

“‘às vezes, fico achando que não é só o doutor Raul, não, tem muita
gente que acha que...’. Zilá o interromperia energicamente,
evidenciando o tabu: ‘Que negro é inferior a branco?’. Ele: “Não sei.
Isso tudo fica martelando na minha cabeça’. A partir daí, Zilá faria um
longo depoimento em que concluiria, com veemência: ‘Nunca deixei
safadeza de racista atrapalhar a minha vida. Se você, Kennedy, entrar
nessa de complexo, vai estar fazendo o jogo dos safados, dos burros. E
eu vou ficar muito decepcionada’”. (ARAÚJO; 2000: 274).

39. ARAÚJO; 2000: 270.


40. ARAÚJO apud CARNEIRO; 2000: 272.
37

No final, o vilão Raul demonstra sinais de regeneração e a novela acaba com o

tradicional final feliz em que brancos e negros estabelecem amizades sinceras e os

vilões se arrependem, mais uma vez ressaltando a ideologia da democracia racial. A

polêmica serviu para mostrar que a população negra, através de entidades políticas,

conseguiu visibilidade para a valorização da auto-estima e conscientização racial.

Em A Próxima Vítima (1995), de Sílvio de Abreu e exibida na Rede Globo, a

família Noronha conquistou a simpatia do público. Cléber (Antônio Pitanga), patriarca

machista, não gosta quando a sua esposa Fátima (Zezé Motta) pensa em voltar a

trabalhar como secretária. Sidney (Norton Nascimento), filho mais velho, gerente bem-

sucedido de uma agência bancária, também compartilha da opinião do pai. O

preconceito acontece de forma invertida, quando a filha caçula do casal Patrícia (Camila

Pitanga) leva o namorado Cláudio (Roberto Bataglin), um fotógrafo branco, para jantar

com a família. O conservadorismo dentro da própria família acaba sendo o principal

obstáculo tanto no namoro inter-racial quanto na carreira de modelo que a jovem

Patrícia quer assumir. A trama foi um sucesso de público porque o autor criou um

núcleo negro com pessoas bem sucedidas, “uma família de classe média comum e

tradicional, acabou por acertar em cheio o desejo histórico do segmento populacional

negro brasileiro”.41

Na história da telenovela do Brasil, profissionais da elite televisiva brasileira

aderiram à ideologia do branqueamento e aos padrões da euro-norte-americanização

para a construção da cultura nacional. Há anos, o negro é representado dentro dessas

41. ARAÚJO; 2000: 294.


38

fronteiras e o resultado gera uma distorção da realidade racial. A população brasileira é

constituída por cerca de 50 por cento de afro-descendentes (mulatos e negros),42 mas

nas telas a abordagem é diferente. A constatação foi feita em pesquisas realizadas por

Joel Zito Araújo nas telenovelas dos anos 80 e 90 produzidas pela Rede Globo, época

que marcou a ascensão do negro na teledramaturgia. Nas 98 produções realizadas neste

período, com exceção das que traziam como tema a escravidão, não foram encontrados

personagens negros em 28 delas. Em 29 obras, o número de personagens afro-

descendentes conseguiu ultrapassar 10 por cento do total do elenco, sendo este o maior

percentual encontrado nas tramas da televisão.

Muitos atores negros se destacaram ao longo desses mais de 50 anos de

telenovelas no Brasil. Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Zezé Motta, Nelson Xavier,

Grande Otelo, Jacyra Silva, entre outros. Mas somente uma atriz negra conseguiu, até o

momento, protagonizar uma novela. E por duas vezes. Taís Araújo interpretou Xica da

Silva, na produção homônima da extinta Rede Manchete (1996) e reprisada pelo SBT

(2005), e Da Cor do Pecado (2004), na Rede Globo. A primeira foi ambientada no

período do século XVIII. A atriz interpreta Xica, escrava que luta para viver ao lado da

maior autoridade da região, o contratador João Fernandes. Nas duas ocasiões em que foi

ao ar, a telenovela conquistou ótimos índices de audiência. Já na segunda, a atriz vive a

personagem Preta. E com o personagem Paco, interpretado por Reynaldo Gianecchini,

mais um casal de raças diferentes sofre nas mãos de vilões, brancos e negros, até

terminarem juntos. A audiência foi ótima e o público se identificou com a trama.

42. ARAÚJO; 2000: 29.


39

Os produtores e os donos das redes de televisão do Brasil assumem sua

preferência pela euro-norte-americanização já na sua estréia, importando o esquema de

patrocínio semelhante ao da soap opera americana. Ao longo dos anos, o que se vê são

personagens negros estereotipados e subordinados às ações dos protagonistas da trama,

representados por brancos. O que sobra ao ator afro-brasileiro é atuar sobre a

folclorização de sua cultura em cenários e sobre seres subalternos, “que buscam compor

o espaço da domesticidade, ou da realidade das ruas, em especial das favelas”.43 Na

construção de uma identidade positiva dos afro-brasileiros, uma das poucas

contribuições da telenovela foi a revisão da história oficial do período da escravidão,

trazendo para as telas heróis negros na luta pela liberdade. Somente a partir dos anos 90,

os personagens negros começaram a aparecer com freqüência nas novelas. A abordagem

passou a ser mais natural e o negro ganhou papéis de maior destaque dentro da trama,

mostrando ao grande público a existência de relacionamentos entre diferentes raças

dentro de uma só nação - mesmo que ainda de forma desproporcional à realidade.

Os produtos da cultura de massa recebem, geralmente, o patrocínio de empresas

e grupos investidores, que usam a publicidade para anunciarem seus produtos e

serviços. A propaganda, veiculada nos principais meios de comunicação do Brasil,

também usa os elementos nacionais (o povo, a natureza, o estilo de vida) para criar uma

identificação entre o transmissor e o receptor da mensagem. Mas como o negro

brasileiro está representado nesta enorme teia de negócios? A seguir, as análises do

mercado publicitário e a situação dos afro-brasileiros dentro do mundo da propaganda.

43. ARAÚJO; 2000: 308.


40

O negro brasileiro na publicidade – o mercado e a diferença.

Em 1900, com o lançamento da Revista da Semana, começa no Brasil uma nova

maneira de apresentar produtos para o grande público. As empresas foram exigindo

cada vez mais das revistas, que tentavam acompanhar os pedidos para manter suas

publicações. Em 1913 nasce a primeira empresa de propaganda brasileira. A

especialização veio depois das Revoluções de 1930 e 1932, que paralisaram totalmente

as propagandas. Nos anos 40, a J. Walter Thompson cria o primeiro escritório no país,

vindo para servir a conta da General Motors, fazendo, então, com que o seu

departamento de propaganda fechasse.44

Com a chegada da televisão no Brasil, em 1950, as agências de publicidade

intensificaram o poder da propaganda no Brasil. Antes, as revistas e o rádio eram os

veículos em que uma grande empresa poderia anunciar seu(s) produto(s). A propaganda

brasileira se desenvolveu a partir do modelo americano. As grandes agências

internacionais começaram a atuar no país e passaram a ditar o tom da criação.45

O negro brasileiro praticamente não apareceu nas campanhas publicitárias do

século XX. Seja em revista ou na televisão, no outdoor ou no jornal, sua presença era

apenas solicitada quando era preciso expressar uma situação coadjuvante dentro do

anúncio. Quando se tratava de uma campanha para anunciar marcas e/ou empresas de

renome, o negro não servia. “A lógica da sociedade, dos empresários e dos publicitários

– e que aponta para o fato do negro ser sinônimo de pobre e que, portanto, é igual a

44. Markteam – www.acontecendoaqui.com.br


45. Idem.
41

consumo de subsistência -, é arraigada no pensamento destes, em toda a sua extensão”.46

Tal pensamento pôde ser constatado em 1986, diante de um debate entre representantes

da população negra paulista e um grupo de publicitários renomados da época. Esse

encontro revelou um pouco mais sobre esse cenário limitado para a atuação de negros

na publicidade. Em resumo:

“a) a propaganda trabalha com um modelo de família classe média


brasileira, no qual quase não existem negros; b) o negro não é
consumidor; c) os clientes não aceitavam a inclusão do negro no seu
produto; d) a publicidade é um reflexo da sociedade preconceituosa e
racista”. (ARAÚJO; 2000: 66).

Em 1982, Carlos A. Hasenbalg conclui que o negro brasileiro sofria com o

branqueamento promovido na tevê, pois sua presença só se deu em 3% dos

comerciais.47 Em 1991, os pesquisadores Subervi-Velez e Oliveira divulgaram um

levantamento minucioso, com base em 1.500 comerciais assistidos durante 59 horas de

programação em horário nobre. Foram escolhidas as três maiores redes de tevê no

período, nas capitais do Rio de Janeiro e Minas Gerais. O resultado foi o seguinte:

somente em 4 comerciais os negros apresentaram papéis proeminentes (em 1,

comemoravam-se os 100 anos da Abolição da escravatura, e nos outros 3, anunciavam-

se produtos da indústria musical). Apareceram em 39 comerciais, sendo que em apenas

9 representavam papéis com fala.48

A pesquisadora da ECA-USP, Solange Couceiro de Lima, em um artigo

publicado na Revista da Comunicação e Artes, em maio de 1992, fez menção ao que

caracterizaria os ideal perfeito na estética publicitária:

46. SANTOS; 2003: 28.


47. ARAÚJO apud HASENBALG; 2000: 67
48. ARAUJO apud SUBERVI-VELEZ & OLIVEIRA; 2000: 67.
42

“o homem é retratado com branco, magro, bonito e elegante, enquanto


a mulher é sempre linda, magra, charmosa e, muitas vezes, sem
cérebro. Contrapondo-se a esse ideal, o deficiente (...), o feio, o negro
são ‘defeitos’ de uma minoria desprezada”. (ARAÚJO apud LIMA;
2000: 68).

Enquanto no Brasil o destaque em anúncios publicitários são para personagens

brancos, em alguns países essa situação não é a mesma. Na revista Veja, em 23 de junho

de 1993, Roberto Pompeu de Toledo escrevia exatamente sobre essa diferença. De

acordo com uma leitora brasileira, que vivia em uma cidade da Dinamarca, existiam

muito mais negros, mulatas e japoneses nas propagandas dinamarquesas do que nas

campanhas brasileiras. A constatação foi ratificada com recortes de diversas

publicações, enviadas pela leitora. O caso comprova que a elite publicitária ainda não

via no grupo negro brasileiro uma força econômica para integrar o mercado publicitário.

“Na lógica dessa maioria, preto é igual a pobre, que é igual a consumo de

subsistência”.49

As vésperas do século XXI, institutos de pesquisa passaram a investigar também

a vida do negro brasileiro. O mercado sofre mudanças contínuas e a notícia de que, em

1997, 28% dos brasileiros que têm uma renda superior a vinte salários mínimos são

negros50 começou a mudar a visão de algumas empresas. No mesmo ano, a empresa de

chocolates Lacta colocou, em rede nacional, um comercial de ovos de Páscoa. Nele, os

atores negros representavam uma família de classe média negra, chamada a família do

senhor Natalino F. Coelho.51

49. ARAÚJO; 2000: 39


50. ARAÚJO apud HASENBALG; 2000: 67
51. ARAUJO; 2000: 69.
43

A C&A foi pioneira em apostar no negro brasileiro para representar sua marca.

Desde 1990, a loja optou pelo mineiro Sebastião Fonseca, o Sebastian. Para o ator, a

escolha faz da empresa uma multinacional mais brasileira: “A C&A completou 25 anos

no Brasil e assumiu uma postura de brasilidade trazendo um cidadão afro-brasileiro para

representá-la”.52 Em 2001, o personagem Sebastian dividiu pela primeira vez o posto de

garoto-propaganda. A parceria foi com a top model brasileira Gisele Bündchen. Na

visão do publicitário Eduardo Correa, a contratação da personagem branca para a

campanha trouxe uma aproximação dos ideais da ditadura do branqueamento. Assim,

“o uso do modelo negro levou à decodificação, por parte do público


receptor da mensagem publicitária, de que a loja vendia roupas para as
camadas mais pobres da população (...), obrigando-os à necessidade
de fazer um up-grade de imagem a partir da contratação de um outro
protagonista. No caso, a modelo internacional Gisele Bündchen”.
(SANTOS apud CORREA; 2003: 28).

Com exceção do case Sebastian, ainda é comum assistir a utilização limitada do

negro em campanhas do governo, em propagandas de produtos e bens semi-duráveis ou

nas já tradicionais participações em que interpreta papéis secundários. As recentes

pesquisas apontam para o crescimento da renda do afro-descente que, junto com as

ações de entidades e organizações pró-negros, despertam em empresários e publicitários

uma nova visão sobre o consumidor negro (principalmente a partir dos anos 90, como

veremos no capítulo 3). A publicidade também usa a ideologia do branqueamento para

exaltar a mensagem de que belo é ser branco, destinando aos negros uma posição de

coadjuvante no mercado publicitário.

52. Portal Afro - www.portalafro.com.br/entrevistas/sebastian/internet/sebastmodamix.htm


44

CAPÍTULO 3 – O NEGRO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA RETOMADA.

Os anos 90 começam abalados pela política do Brasil. A palavra impeachment

ganhou as ruas e o país parou. Os anos seguintes foram marcados pela retomada do

desenvolvimento nos cenários da política, da economia e da cultura nacionais que, além

das interferências internas, sofreram a influência da globalização. Nas próximas

páginas, o destaque pelo reconhecimento e valorização do negro brasileiro, o reinício

polêmico da produção do cinema nacional e as novas oportunidades para o ator afro-

descendente neste produto cultural. As histórias de Lázaro Ramos (ator – negro) e Jorge

Furtado (diretor – branco) como personagens deste momento cultural e a análise de duas

obras da dupla: O Homem que Copiava e Meu Tio Matou um Cara.

Black is beautiful – o novo momento da raça negra brasileira.

Desde a década de 70, movimentos pela valorização da cultura negra começaram

a mudar a história dos afro-descendentes. A idéia era desmascarar o mito da democracia

racial e incentivar políticas anti-racismo. Mas a partir dos anos 90, as ações se tornaram

mais eficazes. Na política,

“(...) alguns prefeitos e governadores começaram a instituir


‘secretarias de assuntos negros’; criou-se no âmbito do Governo
Federal a Fundação Palmares, destinada à promoção da cultura afro-
brasileira; um negro elegeu-se prefeito de São Paulo, a cidade mais
próspera do país. Cidadãos de pele escura começaram a entrar em
partidos políticos, tanto de esquerda como de direita. Um grande
número de bandas e grupos musicais negros passou a freqüentar os
dispositivos da cena pública, sempre com discursos de politização da
identidade racial”. (SODRÉ; 2000:248).
45

Um movimento conhecido como imprensa negra, formado por um grupo de

paulistas afro-descendentes (1915), inaugurou uma linha alternativa no campo da

comunicação. Durante quase 50 anos, diversos periódicos foram produzidos. Mas em

1964, com a ditadura militar, o movimento teve seu fim decretado pela perseguição

política. O público negro só voltaria a ter uma publicação específica para os seus

interesses mais de 30 anos depois dessa repreensão.

A revista Raça Brasil, da Editora Símbolo, chegou às bancas em 1996. No seu

lançamento, atingiu uma tiragem de 280 mil exemplares,53 virando um verdadeiro

fenômeno editorial. Aborda questões sociais, matérias e anúncios comerciais específicos

para o leitor afro-descendente. No primeiro editorial, as seguintes palavras: “Dar a você,

leitor, o orgulho de ser negro. Todo cidadão precisa dessa dose diária de auto-estima:

ver-se bonito, a quatro cores, fazendo sucesso, dançando, consumindo. Vivendo a vida

feliz”.54 Nota-se que, como nos primeiros periódicos do início do século XX, um das

funções da Raça Brasil é valorizar a cultura negra e aumentar auto-estima da população

afro-descendente.

Hoje, a revista Raça Brasil é a única no país dedicada ao público negro. Sua

publicação passou de trimestral para mensal e seus anúncios publicitários vendem,

principalmente, produtos de higiene e beleza étnicos. Em 1999, Raça Brasil passou por

um novo projeto a fim de tentar superar uma crise nas vendas. Sandra Almada, na época

colaboradora da revista, refletia sobre o desinteresse do leitor:

“O que aconteceu com a Raça, no meu modo de ver, é que esse leitor
negro é meio arredio, como devem ser os outros leitores e outros

53. Com Ciência – O Brasil negro; http://www.comciencia.br/reportagens/negros/08.shtml.


54. SODRÉ; 1999: 253.
46

telespectadores. Será que somos ainda tão subservientes a tudo que a


mídia nos coloca como produtos a serem consumidos? Penso que as
novas perspectivas em termos de pesquisa de comunicação mostram a
necessidade de um olhar mais complexo para analisar essa questão”.
(ALMADA; 2002:56).

O mercado brasileiro percebeu a diferença e começou a investigar. Uma das

pesquisas mais comentadas sobre o consumo da raça negra brasileira foi realizada pela

empresa Grottera Comunicação, em 1997. Intitulada Qual é o pente que te penteia? – o

perfil do consumidor negro do Brasil, foi realizada em 22 estados brasileiros. O estudo

revelou que 1,7 milhão de famílias eram formadas por negros com alto nível de

escolaridade (45% do colegial completo e 34% de nível superior completo) e que a

renda familiar média chegava a pouco mais dois mil dólares mensais. Esse nicho era

bem atrativo e mereceu do mercado uma atenção especial para motivar uma grande

variedade de negócios.

A partir de 1999, o setor de higiene e beleza promoveu uma imensa variedade de

produtos direcionados ao afro-descendente brasileiro. A Unilever, multinacional gigante

do ramo, lançou quatro produtos especialmente ao público negro, dentre eles, o

desodorante Rexona Ebony, com investimentos de R$ 8 milhões em 2004. A empresa

Shizen oferece a linha Essenza para tratamento capilar desde 2003, que corresponde a

5% do seu faturamento no país e por 25% em São Paulo.55 De acordo com a Associação

Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal e Cosméticos, o mercado faturou em 2003

R$ 25 bilhões, sendo R$ 1,3 bilhão referentes a produtos étnicos.

Com toda essa dedicação da indústria, a utilização de negros em campanhas

55. “Cheios de Raça”. In: Revista Veja. São Paulo, ed. Abril, edição 1789, 21/01/2004, p. 60.
47

publicitárias cresceu, refletindo um desejo do próprio consumidor: em pesquisas sobre o

tema, cerca de 71% dos afro-descendentes entrevistados declaram estar dispostos a

consumirem produtos cuja as propagandas utilizassem negros.56 Para Jaques

Lewkowicks, sócio-diretor da agência de publicidade Lew, Lara, “um negro na tela

evoca a identidade brasileira, a beleza estética e a diversidade”.57

A seguir, outro movimento de luta pelo resgate da cultura nacional. Funcionando

como um verdadeiro turbilhão de informações e técnicas (vindas de outros produtos

culturais de massa como a telenovela, os videoclipes musicais e a propaganda), o

cinema da retomada conquistou a atenção de público e de crítica especializada, dentro e

fora do país.

56. SODRÉ, 1999: 253


57. “Cheios de Raça”. In: Revista Veja. São Paulo, ed. Abril, edição 1789, 21/01/2004, p. 61.
48

Luzes na escuridão da sétima arte – o cinema brasileiro da retomada.

Em 1990, o Brasil escolheu o primeiro presidente pela democracia: Fernando

Collor de Melo. Logo após assumir a Presidência, Collor rebaixou o Ministério da

Cultura a Secretaria e extinguiu vários órgãos culturais, dentre eles, a Embrafilme

(Empresa Brasileira de Filmes S.A.). Em 1992, a situação ficou tão grave que apenas

duas obras de longa-metragem foram lançadas no Brasil.58 No mesmo ano, Collor foi

deposto por impeachment e o seu vice, Itamar Franco, assumiu o mandato. Para o

cinema, uma das piores fases de toda a sua história.

Em 1993, foi promulgada a Lei nº 8.685. Conhecida como a Lei do Audiovisual,

sua função era aperfeiçoar leis antigas de incentivo fiscal. O Prêmio de Resgate do

Cinema Brasileiro promoveu três seleções entre 1993 e 1994, contemplando 90 projetos

(dentre eles 56 de longa-metragem). A partir dessas iniciativas, alguns chamaram este

momento de Retomada do Cinema Brasileiro, justamente por marcar o reinício da

produção cinematográfica nacional. Outros acreditam que o termo “retomada”

funcionaria antes de tudo como uma estratégia de marketing. Para José Joffily, quem é

experiente no assunto já sabe que “essa história de ‘renascimento’ do cinema brasileiro

já foi vista tantas vezes...”.59

O cinema brasileiro voltou a ser prestigiado pelo público e pela imprensa,

produzindo, já nas primeiras obras, sucessos de bilheteria. Entre eles, Carlota Joaquina

(1995, de Carla Camurati), o primeiro grande sucesso da retomada brasileira, O

58. NAGIB; 2002: 13.


59. NAGIB apud JOFFILY; 2002: 13.
49

Quatrilho (1995, de Fábio Barreto) e Central do Brasil (1998, de Walter Salles),

considerado filme-símbolo da retomada. Esses filmes ultrapassaram a casa de 1 milhão

de espectadores, mesmo com distribuição e exibição deficientes.60 As mudanças

políticas, as leis de incentivo (em especial a Lei do Audiovisual) e as premiações

tornaram o cenário da cinematografia brasileira um terreno democrático, aberto para

quem nele quisesse trabalhar. José Álvaro Moisés, ex-secretário do Audiovisual,

declarava que entre 1994 e 2000, 55 novos cineastas surgiram no país.61

Uma grande característica do cinema da retomada é a diversidade. Profissionais

de áreas diferentes da cultura de massa (como a televisão e a publicidade) passaram a

atuar no campo cinematográfico. Cineastas de todas as regiões do país começaram a

despontar, mostrando um Brasil além do eixo Rio-São Paulo (como Jorge Furtado, do

Rio Grande do Sul, que será comentado ainda neste capítulo). E a participação feminina

na produção e na direção cinematográfica, que alcançou números surpreendentes na

segunda metade da década de 90.

A partir de 1996, uma medida provisória na Lei do Audiovisual elevou de 1%

para 3% o limite de dedução de impostos das empresas. Cineastas dirigem suas câmeras

às classes pobres e aos costumes populares, exibindo as desigualdades sociais em cenas

deslumbrantes. A linguagem publicitária e a dinâmica da televisão (principalmente a

agilidade dos videoclipes popularizados pela MTV Brasil), dão uma nova “roupagem”

ao cinema brasileiro. Ivana Bentes, conhecida pelas críticas contra este tipo de

tendência, lamenta que a “estética da fome” do Cinema Novo tenha se transformado

60. NAGIB; 2002: 14.


61. Idem.
50

numa “cosmética da fome” da Retomada.62 Para uns, tal comparação entre esses dois

momentos é pertinente, já que em ambos existe semelhança de se abordar a identidade

nacional como temática. Para outros, como o crítico do jornal Folha de São Paulo,

Inácio Araújo, “a retomada se dá num momento em que estamos na rabeira tecnológica,

ao contrário do que acontecia nos anos 60. Entre a retomada e o Cinema Novo mudou

praticamente tudo: o público, a câmera, o som”.63

E foi com esse turbilhão imagético que o filme “Cidade de Deus” (2002, de

Fernando Meirelles). O filme foi baseado no romance homônimo de Paulo Lins e conta

a história da favela carioca, surgida nos anos 60. O longa trouxe à tona a realidade local

e escandalizou com cenas fortes de tiroteios e crianças armadas ou em situação de risco.

Meirelles fez questão de levar à tela jovens de diversas comunidades e favelas do Rio de

Janeiro. Muitos deles nunca tiveram contato com a arte de atuar, gerando mais de 2000

entrevistas e testes para capacitar parte do elenco. No cenário internacional, o longa foi

indicado a quatro Oscar 2004 (roteiro adaptado, fotografia, montagem e diretor) e

concorreu na categoria de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro 2003. Ganhou

prêmio de melhor edição no BAFTA 2003 (considerado o “Oscar britânico”) e 9

prêmios do Festival de Havana, entre outros.64

A retomada do cinema brasileiro está longe de ser constituída apenas por casos

de sucesso. Algumas obras fracassaram, outras nem saíram do papel. Mas, nos últimos

tempos, nunca se assistiu tanto aos filmes nacionais. Até no exterior, o momento é de

62. NAGIB; 2002: 16.


63. Revista de Cinema – www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao31/estética/index.shtml.
64. Adoro Cinema Brasileiro – www.adorocinemabrasieliro.com.br.
51

destaque. Três obras foram indicadas ao Oscar de melhor filme estrangeiro65 e um Urso

de Ouro em Berlim conferido a Central do Brasil em 1998. A diversidade deste

momento é tão grande que outros ciclos do cinema são referências para os novos

cineastas. “A admiração pela geração do Cinema Novo, do Cinema Marginal, do

Cinema de Boca, mesmo da chanchada e da pornochanchada é explícita (...)”.66 As

influências da publicidade e da televisão fizeram uma aproximação entre o espectador

brasileiro e o seu cinema esquecido, imprimindo um ritmo mais moderno e uma

qualidade técnica comparada aos blockbusters hollywoodianos. O resultado é a

experiência de um cinema tão diversificado quanto o seu tempo e o seu público.

O cinema da retomada diversificou para uns, mas outros grupos ainda continuam

fora da direção de filmes e documentários. Dentre eles, o negro brasileiro. Para o

cineasta Rosemberg Cariry, tal fato é pertinente porque a abertura do cinema da

retomada à diversidade ainda não é plena, restringindo as produções aos “grandes

produtores brasileiros estabelecidos no Sudeste, que têm acesso às verbas das grandes

empresas”.67 Mas para o ator afro-descendente a situação é de destaque. Nas próximas

páginas, duas personalidades que fazem desse momento cinematográfico uma realidade

mais aproximada da verdade multirracial do Brasil: Lázaro Ramos (ator) e Jorge

Furtado (diretor).

65. O Quatrilho (indicado em 1996); O Que É Isso, Companheiro? (1997, de Bruno Barreto, indicado em
1998); e Central do Brasil (indicado em 1999). A atriz Fernanda Montenegro, protagonista de Central do
Brasil, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, também em 1999.
66. NAGIB; 2002: 17.
67. NAGIB apud CARIRY; 2002: 15.
52

Lázaro Ramos e Jorge Furtado – personagens do cinema da retomada.

Um ator negro e um diretor branco. Lázaro Ramos e Jorge Furtado. No cinema

nacional, isso acontece. Mas quando um diretor escolhe, por duas vezes seguidas,

protagonizar seus filmes com um ator negro, a situação muda. Principalmente quando,

nas histórias, esses personagens principais não carregam fardos da discriminação e

poderiam, também, ser interpretados por um profissional branco. Ousadia do diretor?

Talvez sim. Competência do ator? Com certeza. E do diretor também. A brasilidade se

mostra mais diversa na história desses dois personagens do cinema brasileiro da

retomada.

Jorge Alberto Furtado nasceu em 09/06/1959, na cidade de Porto Alegre, Rio

Grande do Sul. Começou a cursar Medicina, largou, optou por Artes Plásticas, desistiu,

e seguiu Jornalismo. Não terminou nenhum curso. Mas foi com o jornalismo que teve

sua primeira experiência audiovisual: na TV Educativa, em 1981. Lá, fazia um

programa semanal chamado Quizumba, mistura de jornalismo e ficção. Em 1984, fez

seu primeiro curta. O Temporal, baseado numa história de Luiz Fernando Veríssimo, foi

produzido com o mesmo grupo do programa de TV. A vontade de fazer cinema surgiu

nessa época,

“(...) em 1981, que passei a me interessar por cinema brasileiro. Antes


disso só conhecia filmes de Teixeirinha, dos Trapalhões, do
Mazzaropi, filmes infantis ou similares. Só vim a conhecer Glauber
Rocha no programa de televisão Abertura, entre 1979 e 1980,
apresentado pelo próprio Glauber. Vi os filmes do Cinema Novo que
ficaram famosos muito tempo depois do lançamento, quando o
movimento já tinha acabado”. (NAGIB apud FURTADO; 2002: 209).
53

Depois de dois anos como diretor de televisão, Furtado foi convidado a dirigir o

Museu de Comunicação Social de Porto Alegre, segundo ele, uma espécie de Museu da

Imagem e do Som. Começou, então, a promover mostras de cinema no local. O projeto

lhe rendeu descobertas, como o filme Limite (1931), de Mário Peixoto. Furtado conta

que Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, é seu filme brasileiro

preferido, mas declara que o cinema brasileiro não fez parte da sua formação

cinematográfica. Assim, continua:

“(...) gostava de filmes como espectador, não tive uma formação


teórica (...). Gosto de certos filmes brasileiros, mas confesso que não
sou um ardoroso defensor do nosso cinema (...). Considero Nelson
Pereira dos Santos o maior cineasta brasileiro, maior até que Glauber,
em razão de sua filmografia incluir, no meu entendimento, no mínimo
cinco obras-primas: Rio Zona Norte, Rio 40 graus, Amuleto de Ogum,
Memórias do Cárcere e Vidas Secas”. (NAGIB apud FURTADO;
2002: 210).

Em 1986, o curta O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, dirigido por

Furtado e José Pedro Goulart, dividiu o prêmio de melhor curta-metragem no Festival

de Gramado com outros dois filmes. Em 1995, Furtado dirigiu o episódio Estrada, do

filme Felicidade É..., uma produção que, apesar do resultado comercial fraco,

conquistou três prêmios de melhor filme do júri popular no festivais brasileiros de

Cuiabá, Brasília e Gramado. O elenco contou com a participação de atores renomados,

como Pedro Cardoso e Débora Bloch.

Ilha das Flores (1989), curta-metragem famoso de Furtado, aborda questões

como a pobreza, o desperdício alimentar, a fome e a exclusão social. Sua edição lembra

uma verdadeira colagem, imprimindo um ritmo acelerado. A narração do ator Paulo

José orienta o espectador e se torna um marco nas obras de Furtado (como será visto na

última parte deste capítulo). O projeto, que se confunde com ficção e documentário,
54

ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais, dentre eles, melhor filme de curta

metragem (júri oficial, júri popular e prêmio da crítica), melhor roteiro, melhor

montagem e mais quatro prêmios regionais (melhor filme, melhor direção, melhor

roteiro e melhor montagem) no Festival de Gramado (1989) e Urso de Prata para

melhor curta-metragem no Festival de Berlim (1990). Além da direção, Furtado também

assinou o roteiro do filme.68

Assinando novamente roteiro e direção, Furtado produz seu primeiro longa-

metragem. Houve Uma Vez Dois Verões (2002), que caiu nas graças do público e da

imprensa, conta de forma suave, mas consistente, a história do relacionamento entre

dois adolescentes durante as férias. O jornalista da Folha de São Paulo, Guilherme

Werneck, fez a seguinte crítica em 16/09/2002:

"Em cartaz em São Paulo, Houve Uma Vez Dois Verões consegue
retratar os adolescentes, suas dúvidas e ansiedades com irreverência e
fidelidade. Furtado constrói personagens que têm como trunfo uma
aparente normalidade. São jovens sem afetação e sem rótulos
estampados na testa, gente comum que você acha que pode encontrar
a toda hora em qualquer lugar. (...) No lugar de pirotecnias
tecnológicas, Furtado usou duas armas: um roteiro bem estruturado,
com um humor sutil, e um modo de filmar clássico, seguro, sem
grandes invenções."

Sobre o incentivo fiscal e a participação da televisão neste no momento

cinematográfico, Furtado declara:

“De todas as formas de produzir cultura (...), o governo está


direcionando dinheiro para a produção cinematográfica, e isto é muito
bom, pois penso que o cinema é uma forma de expressão cultural
estratégica, fundamental (...). Outro fator primordial seria a
participação da televisão nestas produções, como acontece em vários
países (...). No Brasil, onde a televisão é uma concessão pública, as
emissoras deveriam ser obrigadas a co-produzir filmes”. (NAGIB
apud FURTADO; 2002: 212)

68. CasaCinePoa - http://www.casacinepoa.com.br/port/filmes/ilhadasf.htm


55

Em 2003, chega aos cinemas brasileiros mais um sucesso de Furtado: O Homem

Que Copiava. Vencedor do prêmio de melhor roteiro no 21º Festival Internacional de

Miami em 2004, o filme marca a estréia da dupla com Lázaro Ramos, escolhido após

diversos testes com outros atores. Segundo Furtado, que assinou roteiro e direção da

obra, todos os personagens foram escritos já com os seus respectivos atores escolhidos,

menos André:

“Eu testei vários atores antes de escolher o Lázaro. Ele tem uma voz
muito boa, uma boa vivência de teatro. A voz era muito importante,
porque nos primeiros 40 minutos ele praticamente não tem um
diálogo, tem uma longa narração em off. A escolha foi um contato de
olhar.”69

Luiz Lázaro Sacramento Ramos nasceu em 01/11/1978, na cidade de Salvador,

Bahia. Aos 10 anos, começou a fazer teatro, substituindo o primo numa peça infantil.

Depois, atuou em 14 espetáculos com o Bando Olodum. No intervalo entre uma

produção e outra, Lázaro passou no vestibular para bioquímica na Universidade Federal

da Bahia, mas nunca foi a uma aula sequer. Sua primeira participação no cinema foi em

Cinderela Baiana (1998), estrelado por Carla Perez. Depois desse filme, parou de

trabalhar como técnico em patologia, num hospital de Salvador.

Em 2000, Lázaro foi convidado por João Falcão para fazer o espetáculo A

Máquina, junto com Wagner Moura, Vladmir Brichta e Gustavo Falcão. A partir daí,

surgiram vários convites para atuar no cinema. No mesmo ano, ao lado de Penélope

Cruz e Murilo Benício, participa da comédia O Sabor da Paixão, da diretora

venezuelana Fina Torres.

69. CineWeb - http://www.cineweb.com.br/index_textos.php?id_texto=276.


56

Mas foi em 2002 que o ator virou sucesso nacional. No filme Madame Satã, de

Karim Aïnouz, Lázaro interpreta João Francisco dos Santos, transformista que virou o

mito Madame Satã da boemia carioca na década de 30. O filme lhe rendeu dois prêmios

nacionais de melhor ator (Mostra de São Paulo e Troféu APCA) e mais três

internacionais na mesma categoria (festivais de Huelva, na Espanha; Quito, no Equador;

e Lima, no Peru). O ator conta sobre a preparação para o personagem:

“O primeiro teste para o Madame foi três anos antes de filmar. Mas foi
só três semanas antes de começar a filmagem que o Karim me
convidou. Não sabia se ia dar conta – mas sabia que seria um presente:
não é toda hora que você encontra um personagem lírico desse. Aí,
você se entrega. Fiz musculação, capoeira, estudei a entrevista dele no
Pasquim, um vídeo com imagens já velho... Ele inventava tanta
mentira [risos]!”(“Homem Invisível”. In: Revista V. São Paulo, ed.
Parágrafo, edição 10, 01/02/2005, p. 14.)

Depois, Lázaro atuou também em Homem do Ano (2003), de José Henrique

Fonseca. Mas seu segundo protagonista seria o personagem André em O Homem que

Copiava (2003), de Furtado. Atuou ao lado de Leandra Leal, com quem fez par

romântico, Luana Piovani e Pedro Cardoso. O filme foi um sucesso do cinema

brasileiro, registrando na primeira semana de exibição mais de 66 mil espectadores.70

Lázaro conta sobre como foi escolhido:

“Vários fizeram testes e o Jorge [Furtado] me escolheu pelas minhas


qualidades. Lembro de uma reunião em que surgiu a pergunta ‘Ih,
Lázaro é negro, o que a gente vai fazer com o texto agora?’ Jorge
disse: ‘Nada’. É um salto muito grande. Como ator, me incomoda
quando as pessoas me limitam à minha cor. Mas claro que gosto de
fazer coisas relacionadas à minha cor”. (“Homem Invisível”. In:
Revista V. São Paulo, ed. Parágrafo, edição 10, 01/02/2005, p. 18.).

Na televisão, Lázaro protagonizou com Wagner Moura, Lúcio Mauro Filho e

Bruno Gracia a série Sexo Frágil (2003), na Rede Globo. Os quatro atores

70. Adoro Cinema Brasileiro – http://www.adorocinemabrasileiro.com.br.


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interpretavam personagens femininos, baseados na peça Homem Objeto, de Luis

Fernando Veríssimo. Antes, em 2002, havia atuado na mesma emissora, na minissérie

Pastores da Noite. Mas seu primeiro papel em novelas só surgiu este ano, em 2006, na

trama de João Emanuel Carneiro, Cobras & Lagartos, também na Rede Globo. Seu

personagem, Foguinho, rendeu as seguintes palavras do ator:

“(...) é um personagem sem código nem similares. Por isso não se


compara a nenhum outro papel que eu tenha interpretado antes. Na
verdade, ele é uma mistura de vários outros. O Foguinho é, talvez, o
personagem mais surpreendente que já vivi, pois nunca sei o que vai
acontecer com ele e para onde vai. A cada semana, quando chega o
roteiro, penso: ‘Olha o que o Foguinho está fazendo, gente! Olha para
onde ele foi!’ (...). O Foguinho, por exemplo, faz as pessoas rirem
porque é azarado, mas o olhar que tenho dele foge um pouco à
comédia, sem ser demasiadamente dramático. Existe também uma dor
ali e é isso que eu acho bacana no personagem”.71

Lázaro atuou no sucesso Carandiru (2003), de Hector Babenco, como o surfista

Ezequiel e fez uma pequena participação em Nina (2004), de Heitor Dhalia. Em Meu

Tio Matou Um Cara (2005), mais uma parceria com Furtado, o personagem Éder lhe

rendeu outro protagonista, o terceiro da sua carreira no cinema. O ator conta sobre como

foi interpretar esse papel:

“Muito bom, porque é um anti-herói. É o primeiro personagem burro


que eu faço. Geralmente faço personagens heróicos, tipo o Madame
Satã. Esse não, ele é encantador, carismático, bem-humorado – mas é
burro, se apaixona pela mulher errada, faz coisas erradas, os negócios
dele todos vão à falência... E é a história de uma família também, que,
Jorge Furtado, mais uma vez, contou inteligentemente, uma história de
uma família comum, de classe média, só que formada por negros... É
muito engraçado. Nunca tinha feito uma comédia assim”. (“Homem
Invisível”. In: Revista V. São Paulo, ed. Parágrafo, edição 10,
01/02/2005, p. 19.).

Também em 2005, mais quatro filmes chegaram aos cinemas com a participação

de Lázaro. Em Cafundó, de Clóvis Bueno e Paulo Betti, interpretou o quarto

71. Correio da Bahia – http://www.correiodabahia.com.br.


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protagonista da carreira cinematográfica: João de Camargo. Trata-se de uma ficção,

inspirada em um personagem real saído das senzalas do século XIX. O filme foi rodado

em 2003, no estado do Paraná. Já na obra Quanto Vale ou É por Quilo, de Sérgio

Bianchi, ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante no Cine Ceará. Em Cidade

Baixa, mais um papel principal, agora dividido com o amigo Wagner Moura. E em A

Máquina, de João Falcão, o sétimo personagem onde atua ao lado de Moura. O filme foi

baseado na peça homônima de Falcão, onde Lázaro também atou em 2000.72

Lázaro é o ator mais requisitado do cinema brasileiro da retomada. De 1996,

quando fez uma pequena participação em Jenipapo (1996), até hoje, são 14 personagens

vividos em 10 anos de carreira cinematográfica, sendo quatro como protagonista. Seu

talento e empatia com o público explicam a tamanha demanda de trabalho.

Para o ator negro brasileiro, o caso de Lázaro Ramos ainda é uma exceção. Mas

não deixa de ser também um novo caminho. Com a imagem em circulação nos

principais meios de comunicação do país (na televisão, no cinema e em revistas), o afro-

descendente ganha destaque e as velhas ideologias discriminatórias começam a ser

abolidas. E as investidas de diretores, como Jorge Furtado, em negros para a

interpretação de seus personagens, aumenta o debate da multirracialidade brasileira.

Em julho deste ano, 2006, mais uma obra com a parceria de Jorge Furtado e

Lázaro Ramos se somará à lista de filmes do cinema brasileiro.73 A seguir, a análise dos

dois projetos da dupla: O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara.

72. Adoro Cinema Brasileiro – http://www.adorocinemabrsileiro.com.br.


73. O Fuxico - http://ofuxico.uol.com.br/Materias/Noticias/noticia_24153.htm
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Análise dos filmes O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara.

Nas obras O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara, Jorge Furtado

constrói personagens comuns, com problemas reais, mas que encontram caminhos

inusitados para resolver seus problemas. E o ator Lázaro Ramos protagoniza essas

tramas, acrescentando seu talento a dois grandes sucessos do cinema nacional, que estão

disponíveis na seção anexos no formato DVD.

O Homem Que Copiava conta a história de André (Lázaro Ramos), um jovem

que mora com a mãe e a ajuda com as despesas. Trabalha em uma papelaria tirando

xerox. Em casa, desenha histórias em quadrinhos e observa Sílvia (Leandra Leal),

jovem por quem é apaixonado, do seu quarto, de binóculos. Sílvia trabalha numa loja de

roupas e, assim como ele, ganha um salário modesto. Um dia, o rapaz resolve seguí-la e

estabelece o primeiro contato com a moça na loja onde ela trabalha. Promete voltar no

fim daquela semana e comprar um chambre de presente para a mãe, com o intuito de

impressionar a moça. Na realidade, ele não tem como pagar a roupa. Começa, então,

uma série de planos para conseguir dinheiro e mudar sua vida. Entre eles, copiar cédulas

de R$ 50 e assaltar um banco.

No início do filme, fica clara a preferência do diretor em contar a história sem se

ater à ordem cronológica dos acontecimentos. De acordo com o próprio Furtado, em

comentários no DVD, a estrutura da trama lembra muito a do seu curta-metragem Ilha

das Flores. Em ambos, o ritmo acelerado e a sobreposição constante de imagens

imprimem um estilo ágil, resultando numa verdadeira colagem audiovisual. O narrador,


60

André, que atua quase 40 minutos em off, ajuda no desenvolvimento e compreensão do

roteiro. Outra característica é a mistura de quadrinhos animados que divertem e

acrescentam informações ao espectador.

Ao longo do filme, os personagens Marinês (Luana Piovani) e Cardoso (Pedro

Cardoso) entram na trama e participam dos planos com André. O final é feliz para o

nosso anti-herói e seus amigos: ele vai para o Rio de Janeiro com Sílvia. O personagem

de Lázaro Ramos é o único negro de destaque na trama (o outro é a mãe dele, com uma

participação mínima). Em nenhum momento da obra existem questionamentos ou

atitudes discriminatórias em relação à cor de André. A preferência por relacionamentos

amorosos inter-raciais é abordada nas duas obras por Furtado, como veremos a seguir.

Em Meu Tio Matou Um Cara, as ações estão concentradas em uma família de

classe média afro-descendente, formada por Éder – o tio (Lázaro Ramos), Duca – o

sobrinho (Darlan Cunha), Laerte – pai de Duca / irmão de Éder (Ailton Graça) e Cleía –

mãe de Duca / cunhada de Éder (Dirá Paes). A trama conta a história de Éder, que mata

o ex-marido de sua namorada Soraya (Deborah Secco). Duca, jovem de quinze anos,

aficionado por jogos e Internet, começa a desconfiar da história contada pelo tio e

resolve investigar o caso. Apaixonado por sua amiga de infância Isa (Sophia Reis), que

é apaixonada pelo amigo Kid (Renan Giolli), os três amigos se envolvem em diversas

aventuras.

Furtado monta um verdadeiro jogo de vídeogame já nos créditos iniciais. O

formato também aparece quando o personagem Duca descobre informações importantes


61

sobre o caso do tio. A narração é feita por Duca e, como na outra obra, orienta o

espectador dentro da trama. Os patrocinadores são inseridos de forma eficiente e

oportuna dentro do filme (como o provedor Terra, que sempre aparece quando Duca

consulta à Internet). Vários recursos de computação gráfica foram utilizados,

principalmente para corrigir pequenos deslizes de produção e uma mudança de planos

do diretor. A personagem de Deborah Secco, que originalmente se chamava Fátima,

mudou de nome e virou Soraya, depois que Furtado ouviu a música Soraya Queimada,

de Zeu Britto.

Duca descobre, no final, que seu tio Éder não era o assassino e acaba

conquistando o amor de Isa, conferindo à trama o segundo relacionamento inter-racial

(o primeiro é o de Éder e Soraya). Ao contrário da outra obra, Meu Tio Matou Um Cara

apresenta pequenas questões sobre discriminação, mas sempre muito bem resolvidas

pelo personagem Duca, que mostra-se sempre superior aos comentários.

Nos dois filmes, a presença de relacionamentos entre negros e brancos

(praticamente) não cria conflitos discriminatórios e nem apresenta personagens

estereotipados. Na temática de Furtado, o negro ganha uma invisibilidade em relação

aos questionamentos da raça, muitas vezes utilizados na dramaturgia de forma

inadequada e mal-resolvida. São representações de pessoas comuns, como a maioria dos

afro-descendentes brasileiros, que lutam para viver e vencer os obstáculos do dia-a-dia.

Ao “ator sem cor” , como defende Antônio Pitanga na epígrafe deste projeto, surge mais

uma oportunidade de trabalho, que não denigre nem enaltece; mas gera visibilidade.
62

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A década de 90 foi um marco na produção cultural de massa brasileira. Depois

do momento Collor, houve uma retomada não só do cinema, mas da população no

interesse pelas “coisas” do Brasil. Inserido nessa temática, o negro brasileiro conquista

uma visibilidade inédita nos meios de comunicação. A condição favorece ao

descobrimento de sua própria identidade, provocando na sociedade um debate sobre a

diversidade cultural.

O trabalho contra a discriminação e pela valorização do afro-descendente

começou antes dos anos 90. E o resultado dessas ações ratifica, hoje, uma posição

segura para o caminho personagens da cultura brasileira. Alguns indicadores merecem

destaque, como a presença de negros militantes em instituições do poder executivo,

judiciário e legislativo; a dedicação de ONGs (Organizações Não-Governamentais) à

vítimas de discriminação racial; o sucesso de uma revista exclusiva para o público

negro, a Raça Brasil; e a existência de uma classe média negra consumidora, com

demandas étnicas definidas.

No campo cultural, as velhas ideologias discriminatórias (como a do

branqueamento e da democracia racial) cedem lugar a uma abordagem natural e

contemporânea do afro-descendente. Nas telenovelas e no cinema (como analisado nos

filmes O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou Um Cara), surgem relações inter-

raciais sólidas e personagens negros livres de estereótipos. Essas temáticas imprimem,


63

nas produções nacionais da retomada, uma compreensão mais brasileira e moderna, de

acordo com os interesses do próprio espectador.

Esses acontecimentos não mudaram a situação social do afro-descendente

brasileiro, que continua ruim (e se torna péssima quando comparada aos índices da

população branca). Em 1992, por exemplo, 26% dos negros com mais de 25 anos não

sabiam ler e o salário chegava a ser menos da metade do trabalhador branco.74 Mas a

dedicação da indústria em diversificar seus produtos e a visibilidade que a publicidade

vem proporcionando ao afro-descendente (conquistados depois da constatação de uma

classe média negra consumidora) aumenta as chances de negócios no setor e ajuda,

direta ou indiretamente, na questão sócio-econômica do negro.

As novas representações do negro na sociedade brasileira ainda não são regras,

mas exceções que exercitam a auto-estima da própria raça. Para a outra parte da

população (cidadãos brancos), uma oportunidade de enxergar o grande cenário da

multirracialidade. Aos poucos, a ideologia do branqueamento perde espaço para a

diversidade e o mito da democracia racial vira realidade. Neste processo, o papel de

diretores como Jorge Furtado são fundamentais para o desenvolvimento de personagens

geradores de visibilidade aos afro-descendentes. E o preparo de atores como Lázaro

Ramos vitais para a sustentação da obra dentro e fora da tela. O sol, segundo o ditado,

nasce para todos. Mas cada um precisa conhecer o seu lugar. O negro brasileiro, agora,

começa a achar o seu.

74. “Cheios de Raça”. In: Revista Veja. São Paulo, ed. Abril, edição 1789, 21/01/2004, p. 61
64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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65

Dissertação:

DI COLA, Luiz Flávio La Luna. Rio de Janeiro: uma paisagem em construção.

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RUY, José Carlos. A mestiçagem é sinônimo de democracia racial? In: Revista

Espaço Acadêmico. São Paulo, março de 2005, p. 1;

SANTOS, Hugo. A representação do negro na campanha ‘Brasil 500 anos’. In:

Revista Dissertar. Revista da Associação de Docentes da Estácio de Sá. Rio de Janeiro,

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DVD:

MEU TIO MATOU UM CARA. Direção: Jorge Furtado. Produção: Paula

Lavigne, Guel Arraes, Nora Goulard e Luciana Tomasi. Roteiro: Jorge Furtado e Guel

Arraes. Brasil: Natasha Filmes e Casa de Cinema de Porto Alegre, 2004. 1 DVD (85

min.), color., 35mm;


67

O HOMEM QUE COPIAVA. Direção: Jorge Furtado. Produção: Nora Goulard

e Luciana Tomasi. Roteiro: Jorge Furtado. Brasil: Casa de Cinema de Porto Alegre,

2002. 1 DVD (124 min.), color., 35mm.


68

ANEXOS
69

Foto 1 – Dona Marcelina.


De Carneiro e Gaspar, sem data.
Anexada ao processo de anulação de casamento do
Sr. Antônio em 1887.

Foto 2 – Tipos de escravos.


De Cristiano Junior, 1871.
70

Foto 3 - Ama de leite Mônica


com Arthur Gomes Leal.
Da Coleção Francisco Rodrigues,
1862.

Foto 4 – Socagem do café.


De Victor Frond,1867
71

Foto 5 – Caça aos piolhos.


De Victor Frond, 1862.

Figura 1 – Capitão do mato.


De Rugendas, 1842.
72

Figura 2 – Aplicação do castigo do açoite.


De Debret, 1834.

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