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A libertação da estética filosófica por Kant


Por Martin Seel - professor catedrádico de Filosofia da Universidade de Giessen
Sobre o tema em questão publicou a obra “Ästhetik des Erscheinens”, Munique, 2000
Tradução: Alfred Keller
Copyright: Goethe-Institut, Online-Redaktion
Fevereiro de 2004
http://www.goethe.de/br/sap/kultur/ano_kant.htm#E3

A atualidade da estética de Kant baseia-se no desenvolvimento de uma sensibilidade pelos


fenômenos estéticos. Kant insiste na importância da consciência estética para a vida humana como um
todo. Por isso, a sua teoria não trata apenas das áreas da natureza estética e da arte, mas mostra também o
significado do belo na vida prática cotidiana. A experiência estética é vista por Kant como uma
experiência da possibilidade de se levar uma vida autodeterminada.
A estética de Kant cabe na metade de um livro. Encontramo-la na primeira metade de sua “terceira
crítica”, isto é, na última parte da série de obras básicas que teve início com a publicação da “Crítica da
Razão Pura”, em 1781, e continuou em 1788 com o lançamento da Crítica da Razão Prática. Em 1790,
finalmente, veio a lume a Crítica da Faculdade do Juízo, em que a estética ocupa um espaço considerável.
Mas é mais do que isso: esse meio livro constitui até hoje a estética mais abrangente que já se escreveu.
Pois Kant não trata apenas do belo natural e da constituição das obras de arte, ele desenvolve também
uma teoria de grande alcance da consciência estética que encontra oportunidades para o exercício de uma
forma especial de atenção da sensibilidade não apenas na natureza e na arte, mas em toda parte do mundo.
Para Kant, a percepção estética não ocupa um lugar secundário ao lado da orientação teórica e prática,
nem é apenas um complemento bonito desta, ela é, isto sim, um estado de vida de direito próprio.
Nesse ponto, Kant se distingue não apenas de seus antecessores, mas também de muitos de seus
sucessores. Alexander Gottlieb Baumgarten que, com a publicação de sua Aesthetica em 1750, fundou a
disciplina filosófica que leva esse nome, via na estética nada mais que uma subdivisão da teoria do
conhecimento. Para Georg Friedrich Hegel, o seu representante mais influente depois de Kant, o centro da
estética localizava-se na investigação da história e do presente da arte; por isso dedicou as suas Preleções
sobre a Estética simplesmente à “Filosofia da Arte”. Nas discussões contemporâneas, a posição de Kant
se reveste de importância especial justamente por ele não ter dado esse passo. Partindo do pensamento de
Kant, fica claro que o prazer estético tem o seu lugar não apenas na grande arte, mas também em muitas
situações da vida cotidiana.
Para Kant, essa capacidade de fruição estética está intimamente ligada às outras faculdades do ser
humano. Ela acontece quando fazemos uso especial de nossas faculdades cognitivas. É verdade que, no
debate com Baumgarten, Kant contesta a afirmação deste de que a percepção estética importa sempre em
aumento do conhecimento. Mas nem por isso ele deixa de acentuar em sua Crítica da Faculdade do Juízo
a grande importância do envolvimento de todas as faculdades do conhecimento na percepção estética.
Mas ele acrescenta expressamente que a percepção estética não depende de conhecimentos. Nesse caso,
as faculdades do conhecimento não são empregadas para atingir conhecimento: é esse o cerne das
numerosas proposições paradoxais com que Kant caracteriza a abordagem estética no início de sua teoria
da estética.
Apesar de ser capaz de determinação cognitiva, o sujeito da contemplação estética não se vale
dessa determinação. Ele não fixa o objeto de sua percepção segundo características isoladas. Em lugar
disso abarca-o na plenitude indescritível de suas características. Dessa maneira torna-se capaz de observar
o objeto em sua peculiaridade individual. Ao contemplar, por exemplo, uma bela flor – no início de sua
estética, Kant menciona sobretudo objetos da natureza – importa “manter as faculdades do conhecimento
ocupadas sem mais propósitos. Permanecemos na contemplação do belo porque essa contemplação se
reforça e se reproduz a si própria.” Ao contrário da contemplação teórica, a contemplação estética não
procura intelecções determinadas a serem obtidas pela dedicação ao objeto. Não se trata de conceituar o
objeto, nem de abordá-lo em vista de um fim determinado. Sem que seja reduzido a esta ou aquela
determinação, interessa tão somente perceber a presença de sua manifestação. Assim, o prazer estético é
visto como um prazer que consiste em perceber a presença não reduzida dos objetos e ambientes em que
se realiza a própria vida no momento mesmo da percepção.
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Com isso chega-se a uma caracterização básica confiável e de longo alcance da estética. Mais
claramente do que Baumgarten, Kant relaciona a análise estética do objeto a uma análise da percepção do
objeto (e a análise dessa percepção a uma análise dos juízos que descrevem a sua realização). O objeto
estético e a percepção estética são vistos como conceitos complementares. O objeto estético é objeto de
uma determinada forma de percepção que não se importa com manifestações isoladas, e sim com a
manifestação processual de seus objetos.
Kant realça esse caráter processual do estado de fruição estética sobretudo no conceito do jogo –
do “jogo livre das faculdades cognitivas” que desencadeia do lado do objeto um “jogo de formas”. A
manifestação estética de que se fala aqui não é de modo algum apenas uma manifestação subjetiva (como
no caso de alguém afirmar: “Me pareceu que havia um gato ali.”) ou uma convicção meramente subjetiva
(como no caso de alguém afirmar: “Para mim, o gato parece ser um gambá.”); também não se trata do
fenômeno geral de uma aparência evidente ou não para a coletividade (como no caso da ilusão de que o
sol gira em torno da terra). Na verdade trata-se de fenômenos que são dados de uma maneira especial e
que podem ser confirmados intersubjetivamente (como o “nascer” e o “pôr” do sol que continuam
evidentes mesmo na era copernicana). De outra maneira, afirma Kant, juízos estéticos seriam impossíveis.
A manifestação estética pode ser observada por todos que, em primeiro lugar, disponham dos respectivos
recursos sensoriais e cognitivos e que, em segundo lugar, estejam dispostos a dirigir a sua atenção para a
presença plenamente sensitiva de um objeto, desconsiderando os resultados cognitivos e práticos (cf. a
segunda linha do presente parágrafo).
Essa teoria da manifestação estética desenvolvida por Kant disponibiliza, ao lado de um conceito
mínimo da percepção estética, um conceito igualmente mínimo do objeto estético. Trata-se de definições
“mínimas” porque realçam um aspeto que é característico para todos os objetos estéticos e as suas
maneiras de assimilação, por mais diversos que estes sejam sob outros pontos de vista. O que Kant
destaca no início de sua estética é algo que é importante em todos os objetos desde que sejam percebidos
num estado de atenção estética: em objetos da natureza ou da arte, em objetos de uso ou em outros seres
humanos, em cenas domésticas ou no espaço público das cidades. O objeto estético é um objeto-em-
manifestação e a percepção estética é a atenção que se dá a essa manifestação.
Apesar de tratar-se apenas de um ponto de partida mínimo, é ao mesmo tempo um ponto de
intersecção em que se encontram as áreas filosóficas da estética, da teoria do conhecimento e da ética,
inicialmente separadas por Kant:. Segundo a explicação dada por Kant, na realização da percepção
estética estamos livres de uma maneira muito especial, pois estamos livres das imposições do
conhecimento conceitual, livres das considerações que acompanham a ação instrumental, livres do
conflito entre o dever e a inclinação. No estado estético estamos livres da obrigação de determinar o
mundo e a nós mesmos. Essa liberdade negativa tem, segundo Kant, também o seu lado positivo: no jogo
da percepção estética estamos livres para experimentar a determinabilidade de nós mesmos e do mundo.
Onde a realidade se apresenta numa diversidade e mutabilidade que, apesar de inapreensível, pode ser
assentida, experimenta-se um espaço para possibilidades de conhecimento e ação que sempre foi um
pressuposto de toda a orientação teórica e prática. É por isso que Kant vê na experiência do belo (e mais
ainda do sublime) a realização das capacidades mais elevadas do ser humano. A riqueza do real admitida
na contemplação estética é experimentada como afirmação prazerosa de sua ampla determinabilidade por
nós.

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