A Memória e a Pesquisa Nos Arquivos Pessoais do IEB-USP
Maria Cecília de Castro Cardoso
Os arquivos pessoais sempre tiveram um lugar de destaque como fonte
primária, tanto no âmbito da historiografia brasileira como estrangeira. A crescente conscientização de segmentos representativos da sociedade brasileira de que, como nos ensinou Jacques Le Goff, “a memória é elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades”, tem se refletido não só na guarda e preservação como na utilização de nossa arquivália. Nos últimos anos, com a farta exploração da memória individual pelas ciências humanas, os arquivos pessoais juntamente com as histórias de vida passaram a desempenhar um novo papel como fonte primária, sobretudo para análise das mentalidades. A utilização dos documentos existentes nos arquivos pessoais, como fonte primária é anterior ao século XIX, mas até chegar aos nossos dias muitas mudanças ocorreram quanto ao: 1) tipo de arquivo pessoal privilegiado pela pesquisa histórica. 2) natureza das instituições que os incorporaram em seu acervo documental. 3) quanto à ação tutelar do Estado promulgando leis ou medidas protecionistas no sentido da preservação documental. A atitude tomada por países europeus e pelo Estados Unidos, de recolhimento e preservação de arquivos pessoais, começou a ser adotada no Brasil a partir das décadas de sessenta e setenta, com a criação de várias instituições governamentais ou privadas interessadas em coligir arquivos privados, a maior parte delas ainda concentradas nos dois maiores centros culturais do país: Rio de Janeiro e São Paulo. A dinamização ocorrida nessa área cultural coincide com os impulsos dados ao desenvolvimento arquivístico do país, com a preocupação com a preservação da memória nacional, que deixa de ser do interesse de um pequeno número de historiadores, pesquisadores e arquivistas, para se tornar de domínio público, com a restauração de museus, monumentos, igrejas, prédios, etc. Enquadra-se nesse caso o IEB, que a partir de 1968 começou a incorporar ao seu acervo, arquivos pessoais de escritores, intelectuais e artistas que tiveram um papel de relevância na cultura brasileira, de forma a propiciar aos pesquisadores novas fontes primárias para a pesquisa em todos as áreas da cultura brasileira. O IEB teve um caráter pioneiro ao integrar ao um acervo, o arquivo do escritor Mário de Andrade, em 1968. Ele foi doado pela família do escritor por ocasião da compra pela USP de sua biblioteca e coleção de artes visuais e incorporados ao acervo do IEB, que pretendia criar um Centro de Estudos do Modernismo, por sugestão do Prof. Antonio Cândido em março de 1967, ao então Diretor do IEB, Prof. José Aderaldo Castello. Atualmente o Arquivo - IEB, possui em seu acervo cerca 30 arquivos pessoais de: 1) Escritores : Afrânio Zuccolotto, Fernando Mendes de Almeida, Freitas Valle, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Julieta Godoy Ladeira, Mário de Andrade, Osman Lins, Theon Spanudis, Newton Freitas, Odete Barros Mott e recentemente Valdomiro Silveira 2) Historiadores: Caio Prado Jr, Ernani Silva Bruno, Julita Scarano, Lídia Besouchet, José Honório Rodrigues e Raul Andrada e Silva. 3) Pintoras: Anita Malfatti e Yolanda Mohalyi 2
4) Geógrafo: Pierre Monbeig,
5) Educador e sociólogo: Fernando de Azevedo, 6) Músicos ; Camargo Guarnieri e Francisco Mignone 7) Cantora Julieta Telles Meneses e da artista de teatro Lélia Abramo 8) Funcionária do consulado do Brasil na Alemanha: Aracy Carvalho Guimarães Rosa e da museóloga Waldisa Rússio Camargo Guarnieri. Esses fundos são diferentes segundo a sua composição estrutural, podendo ser classificados como: 1) Aqueles que por seu caráter eminentemente "biográfico" oferecem subsídios a trabalhos orientados para a pesquisa da vida e obra do autor e de sua áreas de atuação profissional, que geralmente são os mais frequentes. Podemos aqui incluir os arquivos de: Afrânio Zuccolotto, Anita Malfatti, Aracy Carvalho Guimarães Rosa, Camargo Guarnieri, Fernando de Azevedo, Fernando Mendes de Almeida, Freitas Valle, Francisco Mignone, Graciliano Ramos, Odete Barros Mott, Pierre Monbeig, Theon Spanudis, Waldisa Rússio. 2) Arquivos que poderíamos chamar de "monumentais" ou "conjunturais", no qual os documentos foram acumulados "segundo a lógica de uma edificação de uma imagem histórica", cuja documentação extrapola a simples participação do indivíduo no tempo isto é, este arquivo contêm além de dados biográficos e relativos às atividades profissionais do titular, importantes informações para reconstituir o meio no qual evoluía o titular do arquivo, os grupos de pressão da época e seus valores tradicionais ou inovadores e que em função de suas atividades profissionais e seus interesses pessoais contem material recolhidos em trabalho de campo, através de informantes , informações de terceiros , depoimentos importantes para a preservação da memória coletiva e imaginário de uma época. Um exemplo desse tipo de arquivo é o Arquivo Mário de Andrade. 3) Arquivos mistos que reúnem documentação encontrada nos dois tipos descritos anteriormente, mas que não poderíamos classificá-lo como "biográfico" ou "monumental". O exemplo disto é o Arquivo de João Guimarães Rosa e o de Caio Prado Jr. No caso do Guimarães Rosa, a consulta à documentação de seu arquivo pessoal mostra que o material é riquíssimo em registros das mais diversas manifestações da cultura popular. Dizer que a cultura popular está lá, dentro da obra de Rosa não representa nenhuma novidade. Ela salta aos olhos até do leitor mais desavisado. Quadras, provérbios, estórias, conhecidos de todos nós se entrelaçam na trama do texto. Já existem importantes estudos dedicados à obra de Guimarães Rosa e muitos são aqueles em que a presença da cultura popular é apontada e atestada. Vários pesquisadores investigam toda sorte de documento relacionado com a arte de criar, relativos a construção do texto e os diversos estágios de produção em que tem sido utilizado os documentos da série Estudos para Obra, provavelmente a parte mais rica deste arquivo, possibilitando pesquisas variadas e inovadoras, a recuperação da diversas etapas da construção do texto, objeto da crítica genética, assim como a recuperação do imaginário mineiro.
A potencialidade informacional de um arquivo pessoal varia de acordo com os
usos e sentidos que podem surgir a partir desse universo documental, podendo mesmo alcançar um campo infinitamente mais vasto que a vida e a obra do produtor/detentor dos papéis. Colocamos o Arquivo Ernani Silva Bruno como um dos marcos importantes para a reconstituição da história e da memória paulista. A organização deste acervo se encontra ainda em andamento, tendo já sido feita a sua higienização, limpeza, acondicionamento provisório e identificação inicial. Foi possível perceber que os documentos iconográficos e visuais como postais, fotografias colecionadas em função de suas obras sobre São Paulo e História Regional do Brasil, contêm dados que podem ser aproveitados não só em trabalhos históricos, mas por especialistas das mais variadas áreas. 3
Da sua entrada em uma instituição até ser considerado organizado e aberto à
pesquisa, há a interferência de diversos agentes que atuam nesse processo de comunicação e transformação de dados em informação: desde quem acumula um arquivo, a pessoa que efetivamente pratica a sua doação a uma instituição, o profissional que vai trabalhar em sua organização, até o pesquisador que vem em busca da informação. A diversidade destes fundos aponta para a riqueza de pesquisas, análises e reflexões que eles contem. A variedade documental e as restrições de acesso e consulta formulado por legislação em vigor impõe a permanência de uma reflexão sobre a adoção de critérios de uso de arquivos pessoais sob a guarda de instituições públicas.