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livro das
trevas
Por Julio dosan
A
tarde fria me congelou no jardim florido de minha casa
confortável. Entrei, acendi a lareira e me sentei na cadeira,
herança de meu finado pai, assim como tudo que eu possuía
até ali.
Balancei uma, duas, três vezes... A tontura me pegou e decidi
parar, nunca havia conseguido mais que aquilo, me incomodava
pensar que meu velho pai passava toda a tarde balançando e lendo
um velho livro ao mesmo tempo, sem mostrar enjôo ou tontura. Era
um dom tolo que eu queria possuir.
Me levantei ainda sobre o efeito do frio, fui até a estante antiga e
me estiquei até o velho livro que ele lia: “Fragmentos”.
Desde pequeno, aquele livro grande e grosso me colocava medo, eu
o via sentado aos pés da cadeira de balanço, lendo encorajado, os
lábios grossos transparecendo seu fino bigode. Eu o olhava como um
aluno olha seu mestre, e a idéia de ler aquele livro imenso, me
causava náusea e um espanto avassalador. Algo que eu nunca pude
entender.
Ele lia o livro enquanto eu tentava ler ele o lendo... Foi ai
que ele levantou os óculos e disse algo que me perseguiu para todo o
sempre:
- Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo
mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lerá este livro e
ficaras tão aliviado quanto eu.
Esta frase me perseguiu de menino tolo a adulto com
problemas de homem. Os problemas de homem, fatalmente se
converteram a desespero, e após enterrar o corpo de meu sábio pai,
me pus a ler o livro.
Na vigésima terceira pagina, vi uma foto fina de um
homem que eu tão bem conhecia. Era meu finado avô, pai de meu
velho pai. Olhei curioso a feição da fotografia... Era como estivesse
me vendo em um espelho que refletia em preto e branco. Foi então
que reparei nas letras grossas, escritas atrás da fotografia:
“Quando ele entrou sem ser convidado em uma casa com três
crianças e um bebê, me sorrindo escabroso e peçonhento, não
ousei enfrentá-lo. Na ausência de meu pai, o próprio Diabo
entrou em minha casa e me deu um embrulho. Olhou para o
berço de bambu, alisou meu rosto e pegou meu irmão recém
nascido, incomodamente, a causa da morte de minha
mãezinha, Madalene:
- Seu pai não se importará – Me disse sorrindo. Não
se importou.
Uma coisa que nunca contei ao meu pai: O Diabo
devorou ali, naquele instante, o meu irmão.
Acho que ele não sabia que o bebê era batizado... Ele
engoliu em uma única bocada aquele recém nascido... Vi seus
olhos arderem e fui testemunha de todo seu sofrimento... O vi
vomitar meu irmão moído por seus dentes... Ele recuperou o
fôlego, olhou a cena de seu grande pecado e como castigo
divino, antes de sumir de minha vista, o vi limpar o chão de
minha casa, enquanto praguejava insano, pois sabia que
seria punido por ter devorado um anjo.
Depois de meu irmão, nenhum membro de minha
família havia sido batizado.
Meu pai se encantou pelo livro de tal forma que
ignorou até mesmo o amor que sentia por minha mãe e pelo
seu cavalo, que ainda ferido e desprezado pela ingratidão do
dono, fugiu de nossas vidas, tal qual o Diabo.
Minha mãe se dedicou a outras coisas, a escrita e a
costura. Encontrava tempo para escrever suas memórias em
um caderno. Era um caderno enorme, com capa rosa, feita de
pano grosso, bordado seu nome em vermelho rubro:
Madalene.
Eu um dia ousei ler, memórias tristes de uma mulher
solitária, abandonada pelo marido que a buscou no vale da
sombra da morte... Mas o que mais me chamou a atenção em
seu caderno de recordações e tristezas, foi ela ter escrito que
o corte da cesária nunca havia cicatrizado. Eu a observava
em seus banhos, tentativa de ver o tal corte, e um dia o vi,
sangrando. Em momento algum tive piedade dela, ao
contrario disto, mostrei curiosidade. Curiosidade esta que ao
longo de minha vida, me alimentou a ser cirurgião.
Como profissional, consegui reconhecimentos e
méritos, no entanto, jamais consegui fechar aquele corte de
minha mãe. Quando meu pai se foi, tentei enterrar com ele
aquele livro que ele tanto lia. Desisti, e em um dado
momento, comecei a ler também... Só então tive profundo
conhecimento com relação ao seu fascínio pela obra.
Casei-me com uma professora, tive um único filho e lhe
ensinei sobre a importância do livro em nossa linhagem.
Teodoro, como qualquer menino era desatento e não dava
atenção alguma ao livro. Tirei uma foto de mim e escrevi a
mensagem a qual queria que ecoasse por sua mente vazia, no
dado momento em que eu não mais fizesse presente:
Quando meu pai morreu, minha mãe se casou de novo e foi morar
na capital, junto de seu novo marido. Eu fiquei só, naquela casa que
pertenceu a toda minha linhagem... Jamais pensei em me casar, sou
ainda muito jovem, e embora cobice mulheres, não tenho nem o dom
e nem a paciência para conquistá-las. Mas agora, lendo tal livro que
condenou homens que viveram naquela casa antes de mim, decidi
que faria ao meu modo.
Quando o frio bateu, trouxe com ele a solidão, foi neste
momento que decidi ler o livro. Parei estarrecido, após o depoimento
de meu pai. Ainda restavam duas paginas para seu final, estas
estavam em branco... Eu percebi ali que eu teria que concluí-lo. Mas
o que teria eu a dizer? O que poderia eu por em linhas, se nada
tinha de interessante? Então eu enxerguei o pé da figueira, e para
desespero do Diabo, decidi desenterrar o caixão da minha bisavó,
Madalene. O que aconteceu então passo a narrar neste final de
livro, que agora vocês lêem junto a mim:
FIM
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