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«Fora» da filosofia

As formas de um conceito em Sartre, Blanchot, Foucault e Deleuze

Editado por Golgona Anghel e Eduardo Pellejero

Vol. I
Edição: Golgona Anghel e Eduardo Pellejero.

Titulo: «Fora» da filosofia. As formas de um conceito em Sartre,


Blanchot, Foucault e Deleuze

Capa: Manuel Anghel

Data: Janeiro de 2008


ISBN:
Depósito legal:

Este livro foi realizado no âmbito do Centro de Filosofia das


Ciências da Universidade de Lisboa (POCTI-ISFL-20-678).
«Fora» da filosofia
«O Fora de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação», «Deleuze,
‘Fora’ da literatura e com a casa tomada», «Michel Foucault:
Pensar de fora o Ocidente» e «De Sartre a Deleuze: Onde é
que pára o compromisso literário?» foram apressentados no I
Workshop – «Fora» da Filosofia, organizado pelo Centro de
Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, em
colaboração com o Centro de Centro de História e Filosofia
da Ciência e da Tecnologia da Faculdade de Ciência e
Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e o
Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.

«A clausura do fora» foi publicado antes em: Peter Pál Pelbart,


Da clausura do fora ao fora da clausura - Loucura e desrazão, São
Paulo, Brasiliense, 1989.

«E cantam na planura» foi publicado em espanhol em:


Archipiélago, Cuadernos de Crítica de la Cultura, nº 17, Octubre-
Diciembre 1994.
A abóbora que se tornou cosmos
A exposição do pensamento ao fora da filosofia

Freedom fighters come and go


Bloody, righteous - and mentally slow
We're out of work
We're out of time
We're out of luck
We're out of line
Now we're on the borderline
we've really gone and done it this time
People say it could never happen here
But this is a strange frontier.
Roger Taylor, Strange Frontier

Duma maneira ou outra estamos todos fora. Minados por


deslocamentos linguísticos, culturais ou políticos, os nossos
lugares de enunciação parecem cada vez mais precários no qua-
dro do sistema que aspira à totalização do real pela representa-
ção (duma representação que pretende regular o que significa
pensar, criar, lutar, viver). E talvez seja nesse sentido que deve-
mos ler a afirmação de Herberto Hélder: todos os lugares estão
no estrangeiro (e, seguramente, a de Deleuze: cada um tem o
seu sul e o seu terceiro mundo).
Desejar numa língua, escrever noutra, pensar numa terceira
(viver na que nos seja possível). E fazer filosofia, claro, na língua
que lhe é própria (as alfândegas filosóficas funcionam nisto
muito melhor do que as nacionais ou comunitárias: há que
adequar-se a um modelo, inscrever-se numa tradição, para ter
direito a exercê-la; o resto fica na fronteira). Antes de começar
sequer, impõe-se uma forma, um conteúdo.
Antes de estalar a segunda guerra mundial no seu país, o
escritor polaco, Witold Gombrowicz, sobe ao bordo dum tran-
satlântico via Buenos Aires. A viagem atrasa-se 24 anos em ter-
ras argentinas. As conversações no Café Rex, o xadrez e a por-
nografia, as mulheres ricas que acreditam na sua obra, as expe-

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero

riências homossexuais e sobretudo a língua do exílio, o caste-


lhano, constroem as palavras e a fama de W., Toldo, Witoldo.
Kafka era judeu e checo mas tinha que escrever em alemão.
Kundera ainda não foi traduzido integralmente do francês para
a sua língua materna e é o escritor checo mais famoso do
momento embora a academia de Praga se tenha vindo a recusar
até agora a outorgar-lhe o prémio mais importante de literatura
daquele país. Outros escritores de expressão francesa mas de
origem alheia, os romenos Gherasim Luca e Eugen Ionescu
fizeram das suas dificuldades linguísticas, da impossibilidade de
escrever em francês (por isso mesmo inevitável fazê-lo) um lugar
para questionar os próprios limites da literatura. Luca insiste
num gaguejar criativo enquanto Ionescu revela que foram preci-
samente as tácticas exaustivamente repetitivas e mecânicas dos
manuais de língua que o fizeram levar ao absurdo o teatro na
língua de Racine. Cioran nunca teria sido conhecido, quiçá, se
não tivesse abraçado as formas dessa língua maior. Um con-
temporâneo seu, Celan, anagrama do romeno Ancel, seguiu o
mesmo caminho do exílio francês mas escreveu em alemão,
escreveu tanto que se tornou num dos mais importantes poetas
modernos da língua alemã. E é preciso mesmo ter uma anticabe-
ça e um coração de gás para abrir a página do dicionário, espetar
um estilete sobre a palavra “dada” e assim nomear um movi-
mento de vanguarda. Sami Rosenstock, o romeno judeu, o
homem aproximativo conhecido nas noites de Zurique como Tris-
tan Tzara, teve esta audácia e assim nasceu o dadaísmo.
Parece que é preciso, não só sair para fora de si para alimen-
tar a sua própria voz mas pactuar com o fora, agenciar o outro
com o outro, fazer corpo com essas linhas intempestivas e
domar essa geografia onde o tempo se desconhece por um
momento na história, abrindo o espaço para o surgimento do
novo.
Duma maneira ou outra estamos todos expostos ao fora.
Não já o ser para a morte heideggeriano, mas o ser formatado a
priori pela existência duma força plural e coextensiva da vida.
Bichat, por exemplo, em vez de pensar a morte como fizeram os
clássicos, como um ponto, converte-a numa linha que afronta-
mos continuamente, que trancamos até ao momento em que se

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A abóbora que se tornou cosmos

acaba. É disso que se trata, enfrentar a linha do Fora, dobrá-la


como quem fecha à chave os quartos da casa. 1 Recordando esta
estética do fim derradeiro, Rilke conta num dos seus livros (Os
cadernos de Malte Laurids Brigge) que em tempos imemoriais as
pessoas levavam com elas a sua morte, assim como as ameixas
levam dentro o seu caroço. Os adultos tinham uma grande e as
crianças uma pequena. As mulheres andavam com ela no seio,
os homens traziam-na sepultada no peito. Cada um tinha a sua
morte e esta consciência dava-lhes orgulho, maquinava-lhes uma
arte de (sobre)viver. No volume sobre Foucault, Deleuze parece
contar a mesma história, aquela do tempo-morte que se trans-
forma num Si. Isto é, o fora cria um dentro nas suas dobras, um
dentro que se apresenta como resistência, presente, vida, indi-
viduação. Uma história semelhante deste tempo estranho pare-
ce funcionar no processo heteronímico pessoano. Não é Fer-
nando Pessoa, o autor de Chuva oblíqua, que escreve. Ele sus-
pende-se enquanto autor e passa a existir num plano virtual
para deixar que a personagem do tempo das pirâmides, a Esfin-
ge, vista a roupa do actual e se torne mais real que o próprio
Pessoa, porque mais forte, mais fértil.
De volta à filosofia, basta pensar as dificuldades que levan-
tam qualquer tentativa de pensar por conceitos fora de Europa.
É-nos permitido, no melhor dos casos, as veleidades da literatu-
ra, de uma certa literatura, legitimada pelos vagos prestígio do
mágico (e inclusive na América anglo-saxónica, uma vez que-
brado o cordão que o ligava à terra mãe – o círculo de Viena, a
escola de Frankfurt – o pensamento perde o direito à filosofia e
deve limitar-se aos guetos dos estudos culturais). Eis aqui duas
maneiras de fechar o fora da filosofia na interioridade dos
departamentos universitários ou nas marcas de família de um
género.
Há um pensamento do fora que segue sem ter direito a um
lugar na filosofia, na literatura, nas artes plásticas; pensamento
da loucura, da colónia, da minoria.
Como em qualquer sociedade medieval, as mulheres da cor-
te japonesa, embora muito privilegiadas em comparação com as
das classes mais baixas, estavam sujeitas a uma série de regras e
limites. Além de totalmente isoladas do mundo externo, elas

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero

também viviam limitadas pela própria língua, visto que desco-


nheciam a escrita Kanji e o vocabulário importado do chinês
pela linguagem culta, que era então de uso exclusivo dos erudi-
tos de sexo masculino. Apesar das circunstâncias, coube a um
grupo de nobres japonesas talentosas usar a escrita fonética
Kana para dar assim origem à literatura japonesa e inventar
uma grafia que deu depois lugar à invenção de dois alfabetos
usados hoje em dia: hiragana e katacana. A escritora japonesa,
Murasaki Shikibu (978? - 1026?), é o nome mais eminente deste
período. O seu livro, Genji Monogatari ou a História de Genji, é o
primeiro romance da literatura japonesa. Harold Bloom confe-
re-lhe o poder fundacional do Dom Quixote.
Camille Caudel passa despercebida na história da arte devi-
do a sua doença mental surgida no seguimento da ruptura da
sua relação com Rodin. Colaboradora e amante do escultor
durante mais de quince anos, a sua prolífica produção artística
foi ignorada completamente numa época em que as mulheres
eram circunscritas às limitações duma minoria negligenciável. A
sua psicose provocada pela separação de Rodin reforçou o seu
isolamento e favoreceu a névoa em que se perdió a sua obra.
Poucos sabem hoje que muitas foram as esculturas trabalhadas
em comum com Rodin e que a Camille Claudel tinha a exímia
habilidade para esculpir as mãos e os pés.
Contudo, o tema do fora retoma de alguma maneira o pro-
blema da crítica, só que o faz de tal modo que não a reformula
sem propor a través desse movimento uma extensão criativa.
Um pensamento do fora, de facto, seria aquele que não colo-
casse a pergunta sobre as condições de possibilidade da expe-
riência (análise) sem questionar-se ao mesmo tempo sobre as
condições de possibilidade duma experimentação que teria por
objecto pensar aquilo que escapa às primeiras (diagnóstico).
Trata-se, então de desenvolver as armas, os meios de expressão
necessários para pensar aquilo que escapa à representação (de
facto e de direito).
Em vez de resposta, um eco: «a arte não mostra o visível, ela
torna visível». É o grito de Klee contra a mimese e as teorias
clássicas da representação. Não é um sentido prévio que mostra

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A abóbora que se tornou cosmos

o movimento das coisas, é o devir das coisas que se constituem


como movimento de sentido.
E já Foucault assinalava como Marx, Nietzsche e Freud nos
abriram novas possibilidades de interpretação 2 , no mesmo sen-
tido em que Deleuze dirá que dispomos hoje de meios de pene-
trar o sub-representativo (que através de Freud dispomos, por
exemplo, de uma nova noção do inconsciente 3 ), marcando
nessa direcção uma das linhas programáticas da filosofia (o
filósofo como aquele que torna pensáveis as forças que ainda
não são pensáveis) 4 .
Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze, são os nomes que mar-
cam esta linha menor da filosofia que vem dar uma continuida-
de paradoxal a este exercício de pensamento que se situa nos
limites da representação, da racionalidade, da saúde: Sade,
Hölderlin, Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille, Klossowsy. E,
inclusive se não podemos afirmar para além de qualquer suspei-
ta, que “atracção é para Blanchot o que, sem dúvida, é para
Sade o desejo, para Nietzsche a força, para Artaud a materiali-
dade do pensamento, para Bataille a transgressão” 5 , a verdade é
que na apropriação de todos os conceitos se volta a pôr em jogo,
cada vez, a sobredeterminação do pensamento pelo possível
(formal, transcendental, histórico, material), assim como as
eventuais linhas de fuga.
Para além, da conquista laboriosa da sua unidade, a exposi-
ção da filosofia à erosão indefinida do fora, leva desta maneira
o pensamento a pôr em causa os seus pressupostos e colocar em
questão a (im)possibilidade radical do seu incessante recomeço.
A aposta do jogo é a sorte de outro jogo (quando já não parece
possível continuar a jogar); é a perversão de um teatro que, à
força de má vontade, renova a esperança (desesperada) de
encontrar uma saída. Ao abrir-se ao que está além das suas
determinações históricas e transcendentais, a filosofia procura
assim que a cruel indiferença do caleidoscópio ou o golpe cruel
dos dados sobre a mesa (como um ponto de crise, de fusão ou
de congelação, de ebulição ou de cristalização), revele as virtua-
lidades as virtualidades latentes de um mundo que se fecha
sobre a actualidade mais claustrofóbica. O pensamento abraça
assim, o mistério da criação, como quem diz o “mistério da fé”

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero

(pelo menos se nos situamos no horizonte teórico que Deleuze


propõe na sua leitura de Peguy), isto é, o assombro radical de
que “um problema do qual não se via o fim, um problema sem
saída, um problema em que todo o mundo estava estagnado, de
repente deixe de existir e nos perguntemos de que é que esta-
mos a falar”. Peguy, de facto, assinalava que os acontecimentos,
como certos estados de sobrefusão, só se precipitam ou cristali-
zam pela introdução de um fragmento de acontecimento futuro,
por forças que se apropriam de um fenómeno, de um valor, de
uma representação, diria Nietzsche, para lhe dar outro sentido,
outra essência, outra vida – pela gravitação, generalizemos, do
que nesta artificial família de filósofos ganhará o nome do fora.
Irrupção que faz com que, de repente, sem ter acontecido nada
de relevante, se esteja «num povo novo, num novo mundo,
num novo homem», e que «pensar seja de novo possível no
pensamento e que valha a pena pensar».
E, neste sentido, poderíamos parafrasear Foucault e dizer
que a filosofia não é então nem a verdade nem o tempo, nem a
eternidade nem o homem, senão a forma sempre renovada do
fora.
Uma vez assentes estes elementos minimais para a problema-
tização do conceito, da figura ou da gravitação do fora, as cone-
xões se multiplicam e com elas se vai povoando um plano de
singularidades ideais. Os personagens são velhos amigos da
tropa (alguns, inclusive, partilharam a territorialidade primitiva
do bairro e da juventude). Retratamos a seguir as suas apresen-
tações formais.
Patrícia San Payo situa o pensamento do fora para além da
filosofia e do conceito; recuperando a escrita de Blanchot, afir-
ma a experiência do fora como a experiência da arte por exce-
lência; “olhar por intermédio do qual o Outro se dá a conhecer
sem contudo perder a sua alteridade e exterioridade”. Contra-
mundo cuja presença assombra o pensamento e o incita a pen-
sar (actuar), no mesmo sentido, talvez, que o fantasma do seu
pai mobiliza Hamlet na procura de uma justiça impossível de
realizar (espectros da loucura, da perversão, do menor em geral,
diríamos nós, pensando em Derrida, sem querer com isso poli-
tizar em demasia a sua leitura de Blanchot.)

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A abóbora que se tornou cosmos

Ao levar-nos intempestivamente ao domínio da música, José


Luis Pardo lembra-nos outro nome deleuzo-guattariano para o
fora: a música, que desde uma perspectiva que procura pôr em
questão a filosofia heideggeriana, constitui o fora da linguagem.
A Heidegger lhe devemos, de facto, uma curiosa cantilena que
“reza assim: a liguagem é a casa do ser (deixem-se de músicas,
nunca sairão da linguagem) (...) Fora da linguagem nada é. De
modo que a suposição mais prudente, por muito aberrante que
possa parecer, seria que habitamos uma casa que não tem exte-
rior, que vivemos confinados num interior sem exterior no qual
jamais entrámos e do qual jamais – nem sequer pelo negro
buraco da morte – sairemos”. A esta filosofia que pretende fazer
coincidir o fim da metafísica com o fim da distinção entre inte-
rior e exterior sobre a base de uma linguagem autêntica, o pen-
samento deleuziano contrapõe uma arte de inventar ladainhas
(conceitos) a parti do caos (fora), isto é, um pensamento que
pela amplificação e o desdobramento do ritmo a-significante das
forças sub-representativas faz estremecer a linguagem para além
das condições transcendentais da sua possibilidade: “Uma
música que não se pode imaginar nem recordar, trautear nem
medir. A música imensa da natureza sonora, da qual a «música
humana» não é mais que uma pequena parte, uma pequena ilha
ou arquipélago de sons bem medidos e «agradáveis»”. Pardo não
só reconhece uma resposta à filosofia heideggeriana, como tam-
bém ao mesmo tempo dá um sentido (produtivo) à equiparação
da arte à música (como conceito filosófico e ideia de arte) que
Rancière sublinhava em «Deleuze e a literatura»: “precisamente
porque a natureza se tornou insensível e inimaginável pode a
filosofia assenhorar-se do problema de como o imenso-
insensível (os ritmos inimagináveis que não se podem medir,
que não se podem ouvir) pode chegar a devir cantilena, de
como o inaudível devém audível, de qual é a mathêsis mediante
à qual a própria Phisis devém sensível e sentida”.
Numa lectura original da História da Loucura de Foucault,
com Blanchot a cruzar os eixos, Peter Pal Pelbart afirma que a
loucura (como por outra parte a produção de minorias, estran-
geiros, etc.) responde à exigência histórica de enclausurar o Fora,
que é assim dobrado numa série de “forças encarceradas em

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero

túmulos tristes (loucos crónicos, peças de museu)”. Peter Pelbart


não faz isso sem sembrar-nos que, para além da produção do
louco nos hospitais (como das minorias em guetos, os estrangei-
ros nas fronteiras, etc.), o fora sobrevive como uma potência do
pensamento (e, acrescentemos, da acção), na figura da «desrazão
insurrecta» que “como neutro, anula o tempo, dissolve a histó-
ria, desbarata a dialéctica e a verdade, abole o sujeito e faz soço-
brar uma ordem”. Esperança numa aliança entre razão e desra-
zão que não desemboque na loucura, na alienação ou no
enclausuramento, e por conta da qual se numera a força capaz
de arruinar qualquer história (logo, as pretensões de totalização
de todo diagrama de poder).
Numa outra abordagem da obra de Foucault que sugestiva-
mente, evita qualquer referência a «O pensamento do fora»,
José Luís Câmara Leme aproxima-se à consideração relativa à
maneira como o fora é produzido por qualquer cultura que
queira afirmar uma identidade. Qualquer cultura, neste sentido,
define o seu interior pelo seu exterior (ao rejeitá-lo), a sua iden-
tidade por diferença (ao negá-la), produzindo assim um vazio no
seu seio, uma exterioridade mais profunda que qualquer inte-
rioridade (que no caso do ocidente poder-se-ia definir-se em
grandes traços pelo sonho, o sexo, a loucura e, principalmente,
o oriente). A exposição desta estrutura estruturante que nos
oferece Câmara Leme, vai, de todas as maneiras, para além da
mera determinação de um caso de produção de um fora enclau-
surado; ao mesmo tempo, de facto, mostra a forma que pode
tomar o pensamento do fora, pensamento que para além da
filosofia, descobre o lugar precário desde o qual é possível rir de
si próprio, isto é, das condições que nos constituem como sujei-
tos de saber e de poder (acrescentando-se assim à série de
determinações análogas que encontramos noutros pensadores
do fora: a inactualidade nietzscheana, o devir-menor deleuziano,
a perspectiva exterior witoldiana).
Por fim, nós mesmos decidimos cavalgar a linha do fora (eu
segui o caminho mais curto), cada um à sua maneira, estabele-
cendo relações de força com outras forças. «Deleuze entre a
Literatura e o Fora» procura explorar, sem trair o estrito princí-
pio de imanência que rege o pensamento deleuziano, a possibi-

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A abóbora que se tornou cosmos

lidade de uma abertura da literatura ao fora, capaz de pôr em


questão o fechamento do texto e a perda da realidade que o
acompanha, mas sem se comprometer por isso numa afirmação
da transcendência do sentido (referencial, subjectiva ou estrutu-
ral). E encontra, se assim se pode dizer, para alem do mundo da
percepção que representaria, como do autor cujos estados de
alma viria a expressar, um mundo de intensidades puras, onde a
língua sai dos seus eixos para começar a balbuciar o imperceptí-
vel, o impensável, como cadência de visões e audições antepredi-
cativas, présubjectivas, asignificantes. Tal é a experiência do fora de
toda a (grande) literatura menor: agenciar (fluxos de desejo, de
matéria, de sentido), para que a percepção perceba o impercep-
tível e a linguagem diga o novo, o inesperado, o marginal, isto é,
para que o pensamento possa ser lançado sobre a dupla mesa
do céu e da terra, dos corpos e dos conceitos, das visibilidades e
dos enunciados.
«De Sartre a Deleuze», ressuscita uma questão até agora
esquecida pela filosofia contemporânea: «a doutrina sartreana
do compromisso literário». Para além de lhe devolver o ar fresco
da época em que a questão surgiu, o ensaio aqui presente volta
a “problematizar o valor político da literatura”, recusando-se a
cingir a sua perspectiva aos territórios da revolução modernista
que reclamava apenas a arte pela arte. A escrita deixa de ser só
um problema da literatura para se tornar num olhar que vê
«desde fora os seus leitores». O escritor assume um compromisso
com os seus leitores. Aprendemos desta forma que foi precisa-
mente Sarte, antes de Deleuze, a abrir o caminho para um
agenciamento colectivo de expressão. Deleuze volta a postular o
compromisso literário fazendo referência ao fora, mas «ao mes-
mo tempo rompe com a ideia de que esta referência tenha que
ver com uma representação crítica da sociedade (o livro como
imagem do mundo)». Longe das utopias marxistas e sem pre-
tender que a literatura faça a revolução, o horizonte que este
texto inaugura é apontar que o escritor se interessa por algo
mais que a sua literatura e a sua vocação é «clamar por um povo
nómada e não por uma cidade modelo».

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero

Para além da interiorização, pela reflexão filosófica, dos dis-


positivos do saber e do poder, eleva-se assim uma nova perspec-
tiva, que Foucault baptizou ruidosamente como «o pensamento
de fora»: “discurso que se apresenta sem conclusão ou sem ima-
gem, sem verdade nem teatro, sem argumento, sem máscara,
sem afirmação, independente de todo centro, isento de pátria e
que constitui o seu próprio espaço como o fora em relação a
quem fala e fora de quem fala.” 6 .
Os discursos não são uma série de estratos mas a interligação
da linguagem com outras camadas da experiência. O que se dá,
como é óbvio, a estas alturas fora do império da mimese. Mace-
donio Fernández tornou visível este duplo movimento que vai,
tal como diz Peter Pal Pelbart, da clausura do fora ao fora da
clausura, num conto que fala de A abóbora que se tornou cosmos.
O rumor desse mundo desmesurado, que irracionalmente nos
lembra o nosso, ainda ecoa transfigurado pela recriação inces-
sante das gerações.
A abóbora estava a crescer solitariamente em terras da Pata-
gónia. Favorecida por uma terra que lhe dava de tudo, a abóbo-
ra foi crescendo em liberdade e sem remédios específicos como
uma verdadeira esperança da vida. Os seus diários íntimos refe-
rem que se ia alimentando darwinianamente de plantas mais
débeis que estavam em seu redor (o que, lamentamos dizê-lo,
era uma maneira um tanto antipática e capitalista de se desen-
volver à custa dos outros). Mas são os seus anais oficiais que nos
interessam para a casuística do fora. A sua história de conquista
só os gauchos a podem contar, vendo-se envoltos na massa abo-
borífera. O medo chega a Buenos Aires e Montevideu. Muito
rapidamente é realizado um Conselho Pan-americano em
Genebra: horas inteiras de negociação, conciliação, propõem-se
soluções. A Organização Green Peace prepara manifestações de
protesto em Washington e em Cabul. Circulam opiniões cientí-
ficas, suspiros das senhoras, propostas (g)astronómicas. Quando
os seus poros atingem dez metros de largura, companhias aéreas
russas organizam voos de lazer para verem a abóbora crescer e
engolir a América toda com a sua casa branca mais falada lá
dentro. Os homens são absorvidos como moscas e muito bre-
vemente os chineses se resignam ao perceber que a sua vez che-

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A abóbora que se tornou cosmos

gou a ser uma questão de horas. Os antropólogos percebem que


se encontram na iminência do Mundo da Abóbora. Diferentes
movimentos de rua protestam em Paris, “por que é que nin-
guém nos avisou?”. E quando apenas falta a Austrália, empresas
imobiliárias apresentam ofertas de como melhor se alojarem
dentro da abóbora. E a fuga parece mudar de sentido: mulheres
e crianças fogem agora para dentro. Quando a abóbora engoliu
o planeta todo, e qual foi a última ilha da Polinésia a entrar no
sistema aboborígeno não se tem notícias. Dizem que agora se
está a preparar para engolir a via láctea... nada se sabe ao certo,
desconhecemos como chegámos a praticar uma Metafísica Cur-
curbitácea. Vivemos neste mundo que todos sabemos, mas ago-
ra dentro de uma casca, com relações somente internas e por
isso sem morte e sem fora, o que para a maioria é visto como
um progresso. Mas algumas pessoas, nos recantos longínquos
do espaço abobórico, onde escasseia a polpa e não se vêem mais
do que descampados onde a sociedade escoa a sua quota diária
de sementes secas, começam a procurar uma saída. A abóbora
pode abranger tudo mas não é tudo, pelos menos não tudo
aquilo que somos. Há algo no nosso corpo, no nosso pensa-
mento que lhe resiste. A claustrofobia é grande m-mmm-m-mas
à-às vez-z-zzz-z-zes nas d-oooo-obras da c-c-c-carne q-q-qre-cremos
vir-vir-ouvir vo-vooo-vozes... dum mundo por vir.

Golgona Anghel
Eduardo Pellejero

Notas

1
Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2000 (PP), p. 150.
2
Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx», em Dits et écrits (vol. I), Galli-
mard, Paris, 1994
3
Cf. ID 161
4
Cf. Deleuze, Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995, Paris,
Minuit, 2003 (DF); p. 146 “En philosophie: la philosophie classique
se donne une espèce de matière rudimentaire de pensée, une sorte de

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Golgona Anghel – Eduardo Pellejero


flux, qu'on essaie de soumettre à des concepts ou à des catégories.
Mais de plus en plus, les philosophes ont cherché à élaborer un maté-
riau de pensée très complexe pour rendre sensibles des forces qui ne
sont pas pensables par elles-mêmes”.
5
Foucault, «La pensée du dehors», em Dits et écrits (vol. I), p. 525.

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O «Fora» de Blanchot:
Escrita, imagem e fascinação
Patricia San Payo

Como falar de um conceito – esse conceito seria o «fora», tal


como surge, por exemplo, na designação deste encontro: “Fora
da Filosofia: as formas de um conceito em Sartre, Blanchot,
Foucault e Deleuze” 1 , a propósito de uma palavra na qual o que
é da ordem do conceptual parece recuar e dar lugar ao que não
é conceito no conceito, algo que, como observou Derrida, seria
da ordem da metáfora, justamente da ordem de uma força que
designa por metaforicidade que o conceito apaga a troco de um
maior grau de abstracção e de uma menor equivocidade nas
modalidades do seu uso 2 . No vocabulário de Blanchot,
«dehors», como aliás «ressassement» ou «desoeuvrement», são
palavras de difícil tradução. Devemos ter em conta que a pala-
vra «dehors» surge em L’Espace Littéraire, associada à experiência
da literatura, uma experiência que Blanchot descreve neste livro
sobretudo a partir de Kafka (dos Diários, mas também de O
Processo, O Castelo e de um conto, O Covil), de Mallarmé (de
«Crise de vers», Igitur, e de «Un coup de dés») e de Rilke (a cor-
respondência e as elegias). Em que consiste tal experiência? Ela
é a experiência do fora que se abre no interior da própria lin-
guagem, um fora de todo o discurso significativo que, no entan-
to, não constitui um limite da linguagem, dado que se trata de
uma abertura que a ilimita do interior. No decurso da experiên-
cia o escritor é subtraído à dimensão do «possível» e arrastado
na direcção do «impossível», reserva do negativo a que nenhuma
positividade corresponde, resíduo inassimilável pelo discurso do
que permanece na sua noite, que é como que uma noite que se
abre na noite, e à qual Blanchot faz corresponder a dicção do
elementar.
Pelo modo oblíquo como se lhe refere, torna-se claro que a
palavra «dehors» deve ser levada a um grau de indeterminação
que é importante para a compreensão do que está em jogo.Com

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Patricia San Payo

frequência o autor caracteriza esse fora por intermédio de


acções indeterminadas que parecem apontar no sentido de
qualquer coisa de elementar, como é o caso das acções expressas
pelo verbo francês «ruisseller» (correr, manar, fluir, jorrar); já a
palavra «ruissellement» (presente numa formulação recorrente
em L’Espace Littéraire, “le ruissellement eternel du dehors”) que
designa simultaneamente o “cambiante das jóias” e “o escoa-
mento rápido da água nas vertentes” 3 , refere uma acção que se
produz sem especificação do agente; com efeito, para o cam-
biante das jóias parecem concorrer vários factores conjugados,
dado que depende de uma propriedade destas, mas também do
olhar do observador, da posição relativa de ambos, do tipo de
iluminação, por exemplo; trata-se em qualquer caso de uma
acção paradoxalmente próxima de uma ausência de acção, de
um agir sem agir 4 própria do neutro, efeito neste caso acentua-
do pela proximidade da palavra «éternel». O segundo exemplo
fornecido pelo dicionário, o escoamento rápido da água nas
vertentes, parece ilustrar um outro processo de funcionamento
do neutro: trata-se, com efeito, de algo que desfaz o que no
entanto prossegue inalterado (de algo como um desfazer subter-
râneo, inaparente). Verbos iterativos como «fluir» ou «escoar»
possuem a particularidade de remeter para acções que se cum-
prem sem que aparentemente isso represente uma progressão
relativamente a um estado anterior.
Com a expressão “ruissellement éternel du dehors”, Blan-
chot aponta para a exigência do neutro na escrita de cada vez
que o escritor aprofunda o movimento que lhe é próprio e que
conduz ao fora de qualquer discurso ou de qualquer enuncia-
ção. O autor parece ter pretendido aumentar a ambiguidade ou
o poder de cintilação do termo quando em L’Espace Littéraire o
coloca sob o signo de Orfeu que erra nas trevas de uma noite
pré-conceptual e pré-ontológica, falhando na missão de trazer
Eurídice para o dia no momento em que se vira para a ver. O
valor emblemático que Orfeu adquire nesta obra deve-se a que
o seu canto se constitui na proximidade de uma origem (inori-
ginária) contra aquilo que o compromete, a violência indistinta
do fora no ponto do espaço literário onde a linguagem se apre-
senta como rumor incessante e incessante proliferação do que

18
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

escapa à inteligibilidade. Por outro lado, por intermédio desta


versão transformada do mito, Blanchot caracterizou o olhar do
poeta -o olhar de Orfeu – um olhar por intermédio do qual o
Outro se dá a conhecer na sua alteridade e exterioridade. Num
texto sobre a imagem e o neutro, Blanchot observa que a ima-
gem não é apenas, como era para Sartre, um acto no qual se
vence, ou nega, o nada, é também o olhar do nada que nos fixa:
a imagem neutra impõe o afastamento ao mesmo tempo que
propõe o contacto. Na imagem que partilha com o cadáver as
características do neutro (ne… uter), qualquer coisa está diante
de nós que não é nem o ser vivo em pessoa, nem uma realidade
qualquer, nem o que era em vida, nem outro, nem outra coisa.
Tal como o cadáver, a presença cadavérica estabelece uma rela-
ção entre aqui e em lado nenhum, entre o único e o qualquer.
A imagem neutra é sempre, por conseguinte, um jogo antro-
pomórfico de semelhanças viscerais e inversamente, nela os
traços do humano dissolvem-se no impessoal 5 .
Devemos ter em consideração que Blanchot não é um filóso-
fo, mas fundamentalmente um escritor e um crítico literário e
que a persistente interrogação que se formula ao longo da sua
obra, incidindo sobre a escrita e o espaço literário, emerge jus-
tamente no ponto de intercepção entre teoria e ficção. Nos seus
textos de crítica ou de ensaio é sempre essa interrogação que
encontramos, como se de uma investigação sem termo assinalá-
vel se tratasse, sobre as propriedades do neutro e a tarefa que
cabe ao escritor de aprofundar o movimento que este desenca-
deia. A investigação do neutro não dá lugar a uma resposta, mas
sim a uma série de afirmações não positivas e incertas. Isto con-
fere à sua obra um carácter suspensivo e mesmo paradoxal. O
constante uso do paradoxo, ou de figuras como a paranomásia,
enfraquece o conceptual e subverte as conexões lógicas do dis-
curso.
Por vezes Blanchot parece adoptar um modo mais «filosófi-
co» de explanação e desenvolvimento das ideias, mas, na reali-
dade, mesmo nesses textos, a coerência em termos lógicos do
discurso é posta em causa por um elemento que o fragmenta,
ainda que de modo inaparente. É certo que em L’Entretien Infini
se evoca a tradição do diálogo filosófico, mas a opção pelo diá-

19
Patricia San Payo

logo corresponde sobretudo a uma estratégia discursiva pela


qual, na proximidade do discurso argumentativo, se vão des-
fiando os poderes da escrita (indeterminação dos aspectos rela-
cionados com a enunciação, o fragmento, o constante recurso
ao paradoxo, bem como a formas de interpolação, citação ou
rasura próprias do neutro). Uma maior liberdade relativamente
às várias convenções discursivas parece à partida assegurada no
discurso ficcional, mas trata-se de prosseguir o trabalho da escri-
ta por desfiguração das suas instâncias e categorias, nomeada-
mente da desarticulação do dispositivo da representação. Fou-
cault referiu-se à conversão da linguagem da reflexão operada
por Blanchot. Em vez da negação, uma afirmação não positiva;
em vez de reconciliação, «ressassement» (processo de regressar
constantemente ao que já foi dito, constante repisar de um
mesmo assunto); em vez da unidade na qual o espírito se afir-
ma, a erosão do fora; Uma conversão simétrica se dá na lingua-
gem da ficção, na qual mais do que de imagens se trata dos
interstícios entre elas, do seu intermediário neutro. Em qual-
quer caso, observa, trata-se de uma palavra do fora: “Como
palavra do fora, acolhendo nestes termos o fora ao qual se diri-
ge, este discurso terá a abertura do comentário: repetição do
que no fora nunca deixou de murmurar. Mas como palavra que
permanece sempre de fora do que diz, este discurso é uma
incursão incessante no sentido daquilo cuja luminosidade, de
uma extrema finura, nunca acedeu à linguagem. Este modo de
ser singular do discurso – regresso ao espaço oco onde se
encontram a origem e o fim – define sem dúvida o lugar
comum aos «romances» e às «narrativas» de Blanchot e à sua
«crítica 6 .
Conduzir a linguagem para o fora de toda a linguagem,
observa ainda, criar das imagens os interstícios e insistir no
vazio que circula entre as palavras, é pronunciar um discurso
sobre o não discurso de todos os usos da linguagem, criar pela
ficção o espaço invisível no qual este último se constitui.
O permanente intercâmbio entre ficção e teoria contribui
para a indeterminação com que se colocam os mais persistentes
temas e motivos de Blanchot. Que se pense, por exemplo, no
modo como a noção de «Il y a» que sustenta algumas das suas

20
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

mais conhecidas páginas sobre a literatura e a experiência literá-


ria - e que foi também um dos assuntos de Lévinas nos seus
primeiros livros – é descrita em Thomas L’Obscur, o seu primei-
ro romance. De modo análogo, a morte e as suas várias declina-
ções (a morte inevitável e impossível, o seu carácter impessoal, a
sua impenetrabilidade a experiência etc), outro leitmotiv dos
seus textos teóricos, é constantemente tematizada nos textos de
ficção. Pense-se ainda em L’Arret de Mort, curta narrativa publi-
cada em 1948,na qual se encontram os temas da finitude e da
comunidade que prossegue em outros lugares da sua obra
(nomeadamente em La communauté inavouable). Mas um outro
tipo de apelo se estabelece entre aquela narrativa e a reflexão
sobre a imagem que prossegue simultaneamente na sua obra
ensaística. O narrador de L’arret de Mort descreve apersonagem
que morreu e regressa à vida. No seu rosto vivo sobrepõe-se o
rosto do cadáver e vice-versa, segundo um princípio de reversibi-
lidade paradoxal a que obedece a narrativa. As circunstâncias
descritas vêm como que dramatizar certas considerações sobre a
imagem e “semelhança cadavérica” em L’Espace Littéraire. Em
outros momentos dessa narrativa coloca-se de outro modo a
questão da semelhança, desta vez, segundo considerações sobre
as condições técnicas da reprodução às quais Blanchot se referi-
rá mais tarde em textos sobre a imagem em L’Entretien Infini ou
L’Amitié. Há nela um momento em que o narrador observa o
molde em gesso das mãos da personagem feminina, J. verifica
então que as linhas nas palmas da mão são no molde mais legí-
veis, do que no original, enquanto que as rugas da parte de fora
desapareceram no que aparenta ser agora uma superfície de
marfim. O processo de duplicação, na medida em que a relação
da cópia e do original é posta em causa, desencadeia o movi-
mento imparável da similitude. No processo aqui ilustrado por
intermédio da modelagem em gesso, intervêm factores que ins-
talam o que é Outro no lugar do semelhante. Uma idêntica
reflexão tem lugar em L’Amitié, num texto que Blanchot consa-
gra a Malraux, no qual se refere ao papel desempenhado pelos
acidentes a que uma obra é submetida no processo de chegar a
nós (nomeadamente os efeitos da erosão nas estátuas ou nas
pinturas) observação que, por sua vez, é dada como exemplo do

21
Patricia San Payo

modo como a uma representação diverge do representado e no


limite, de si mesma, entre outras razões pela acção do tempo
sobre os suportes. Comentando esse texto de Blanchot, Didi
Huberman observa muito justamente que ao contrário da esté-
tica clássica, que “idealiza o instante” e atribui às obras de arte a
propriedade de o eternizar, para Blanchot as imagens partici-
pam do movimento de um devir no qual se fazem e desfazem
interminavelmente. Nesse texto, prolongando as reflexões de
Malraux sobre a arte, o museu e o tempo, Blanchot coloca a
imagem na escansão de uma temporalidade que não é nem o
«intemporal», nem o «absoluto», nem o «eterno». Porque as
coloca no plano de um devir e porque elas se constituem a par-
tir de uma desaparição (na realidade são «aparições»), a imagem
é sempre objecto de uma memória, é uma sobrevivência e
implica a experiência do «ressassement», um tempo que Didi-
Huberman situa entre o tremor de Kierkgaard e o eterno
retorno de Nietzsche 7 .
Ao colocar a experiência do «fora» como a experiência da
arte por excelência, Blanchot persegue várias finalidades.
1) Por um lado, procura atribuir à arte e à literatura um
lugar que não é o da filosofia, embora as respectivas esferas se
interceptem. No entanto, a “missão” atribuída ao artista por
Blanchot é quase diametralmente oposta à missão heróica que
Heidegger atribuía ao poeta. Escreve Blanchot: “O artista e o
poeta têm como missão recordar-nos incessantemente do erro,
virar-nos para esse espaço no qual tudo o que somos, tudo o
que se abre na terra e no céu regressa ao insignificante, onde o
que se aproxima é o não sério e o não verdadeiro, como se daí
brotasse talvez a fonte de toda a autenticidade” 8 .
2) Por outro lado, para desimpedir o caminho de uma refle-
xão sobre a literatura e a arte apoiadas na noção de escrita e de
imagem como manifestações do neutro (a referência a Heideg-
ger aqui continua a ser importante, na medida em que o neutro
em Blanchot se constrói a partir do neutro heideggeriano) A
partir de L’Entretien Infini, com a caracterização das proprieda-
des do neutro, a reflexão sobre a escrita conflui no sentido da
caracterização do sentido como simulacro, ou dito de outro
modo, como se a literatura devesse ser em todo o caso espectral,

22
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

animada pelo que é prévio ao sentido, “velando o sentido


ausente” (no sentido).
No capítulo de L’Espace Littéraire intitulado «Les Deux Ver-
sions de l’Imaginaire», Blanchot consagra dois regimes da ima-
gem. Numa primeira acepção, a imagem consiste na possibili-
dade de apreensão ideal da coisa, na medida em que a nega
enquanto tal ao mesmo tempo que para ela remete; dito de
outro modo, a imagem é a negação vivificante da coisa (em
sentido hegeliano). Mas numa outra acepção – na qual o autor
se deterá em toda a sua reflexão posterior – a imagem remete
não já para a coisa ausente, mas para a ausência como presença
no duplo neutro do objecto no qual a relação de pertença que
mantinha com o mundo se dissipou. Nesta concepção, o que
importa não é que a imagem venha depois da percepção (do
objecto), mas justamente que o objecto seja posto à distância,
porque desta maneira ele se torna inactual, inapreensível. O
«fora» surge relacionado com o desaparecimento das coisas na
imagem, na qual o mundo se retira: deste modo a imagem tor-
na-se elementar, como se o elementar a reclamasse nesse pôr-se
à distância (afastamento) da coisa, movimento pelo qual ela
escapa ao valor de uso e de verdade, bem como à própria signi-
ficação: “Na imagem, o objecto aproxima-se de novo de qual-
quer coisa que tinha dominado para se constituir como objecto.
Qualquer coisa contra a qual ele se tinha edificado e definido,
mas agora que o seu valor e a sua significação se suspenderam,
agora que o mundo o abandonou à inoperância e o põe de
lado, a verdade nele recua e o elementar reivindica-o – empo-
brecimento e ao mesmo tempo enriquecimento que o consagra
como imagem” 9 .
Ao colocar a imagem sob um duplo regime, Blanchot asse-
gura a possibilidade de, pela ficção, se dispor das coisas na
ausência destas, retendo-nos no âmbito do sentido. Mas, mes-
mo tempo, valoriza uma outra possibilidade pela qual, como
vimos, a palavra não falaria já do mundo. No neutro, a seme-
lhança desunifica, cria uma relação de não-unidade entre a coisa
e a sua representação a fim de melhor desarticular os pólos
dessa relação, ou seja, a fim de instaurar a divisão do próprio
ser. Em vez de uma correspondência, encontramos a semelhan-

23
Patricia San Payo

ça espectral, na qual a própria desaparição se tornou, por sua


vez, aparência. É com base nessa semelhança espectral, na qual,
como no rosto do cadáver o reflexo absorveu a vida e a tranferiu
para um plano inusual e neutro, que se dá a afirmação irreal
(não positiva) do poema ou da narrativa que é simultaneamente
uma abertura a um espaço (o espaço literário) no qual reina a
fascinação.
Num texto de L’Entretien Infini, «Vaste comme la nuit», títu-
lo que consiste numa citação de um conhecido verso de «Cor-
respondances», de Baudelaire, referindo-se justamente à noção
de imagem tal como Bachelard a entende, Blanchot dirá que
quando consideramos num texto a dimensão da escrita deixa de
fazer sentido pensar-se em termos de «imagens» poéticas porque
o que nele se dá a escutar/sentir é a evidência da realidade na
afirmação irreal (não positiva) do poema, não o mundo posto
em imagens, ou imagens do mundo, mas a presença (sem ima-
gens) de um contra-mundo. Nesta acepção, a imagem conduz-
nos ao «fora» do seu próprio espaço, afastando-nos num movi-
mento oscilante da esfera do signo e do sentido ao qual perten-
ce também, para se apresentar como “figura do infigurável”,
“forma do informe” 10 .
A linguagem no poema não se desdobra, como pressupõe a
tradição hermenêutica e a tradição da leitura alegórica (na qual
a imagem é suprimida); entre o que nele é figura e um sentido
alegórico que a leitura nele descobre, sentido este que, por se
apoiar numa extensa rede de semelhanças, prolonga horizon-
talmente a figura até ao infinito, pelo comentário que a duplica
ou recobre. Para Blanchot, o próprio Platão, ao ridicularizar o
rapsodo, esteve mais próximo da verdade de Homero do que os
gramáticos que nele procuravam e descobriam a exposição de
todas as certezas físicas, morais e metafísicas. É a tradição alegó-
rica que é expulsa da cidade, não Homero, e isto porque nada
há a explicar num poeta, fechado que este se encontra no seu
mundo de reflexos e superfície. No plano da crítica alegórica,
afastando-se da ideia comummente aceite de que ao crítico
compete a explicação do texto, Shelling desempenhou um papel
importante na desmistificação da ideia de que um poema se
desdobra entre figura e alegoria. Bachelard, por sua vez, terá

24
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

efectuado o mesmo movimento relativamente à psicanálise (na


qual o símbolo surge como uma versão atenuada da alegoria).
Na teoria de Bachelard, nota Blanchot, a imagem é como
que o começo e a origem da linguagem, não o seu fim, não o
ponto em que ela claudica, razão pela qual não se trata de uma
concepção «mística» de imagem (trata-se de saber acolher na
leitura “une ouverture de langage”). Fazendo sua uma distinção,
estabelecida em Poétique de l’espace, no modo de funcionar das
imagens em função de diferentes modos de ler ou de se enten-
der a leitura, Blanchot referir-se-á a uma possibilidade de resso-
nância da imagem, que nesse ressoar reenvia sentimentalmente
para a nossa experiência e a uma possibilidade alternativa de
reverberação que, por sua vez,dá acesso dá acesso ao não- espaço e
ao não-tempo da literatura; nesta última acepção ela é manifes-
tação do fora, reverberação («retentissement») pela qual se pro-
longa e distende o espaço e o tempo que lhe é próprio. Apenas
a esse nível nos é dado aceder à linguagem da poesia: “Só a
reverberação nos coloca no plano do poder da poesia, apelo da
imagem ao que nela sempre recomeça, apelo urgente a sairmos
de nós e a movermo-nos no estremecimento da sua imobilida-
de. A reverberação não tem a ver com a imagem que reverbera
(em mim, leitor, a partir de mim) mas é o próprio espaço da
imagem, a animação que lhe é própria, o ponto de eclosão no
qual, falando de dentro, ela fala já do de fora” 11 .
A estas considerações sobre Poétique de l’Espace,Blanchot
acrescenta algo que nos interessa para chegar a definir o que
entende por «fora». Nada negando das ideias de Bachelard,
acentuando mesmo as suas considerações sobre o duplo efeito
das imagens e o tipo de entendimento (próximo da ideia de
tabula rasa) que pedem, este autor observa, contudo que num
poema não há imagens, a não ser imagens de linguagem. Com
isso pretende sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar que a
noção de imagem que nos dá a retórica em nada nos esclarece
sobre a “abertura da linguagem” que o poema é. No seu lado
neutro a imagem não é quantificável, não pode ser isolada para
fins de classificação retórico-estilística: ela não pode ser tomada
de per si, fora de uma dimensão que incorpora o ritmo e a
medida poéticas ou, como também observou Bachelard, fora da

25
Patricia San Payo

composição propriamente dita (composição aqui no sentido de


um agrupamento de imagens múltiplas). Em segundo lugar, a
imagem de linguagem que o poema é, ou seja, o espaço que
aceita (com algumas reservas) designar por espaço do imaginá-
rio, não encontra correspondência em nenhuma acepção
conhecida da palavra imagem, a qual sugere sempre uma analo-
gia com o perceptual. Mas o visível não encontra no espaço
literário qualquer correspondência, do mesmo modo que as
coordenadas que fazemos derivar da nossa experiência nele se
não aplicam. Citando Michaux, escreve, comentando Bache-
lard: “Que uma tal imagem nos aloje ou desaloje, nos dê o sen-
timento de uma permanência feliz ou infeliz, que nos oprima
ou nos resguarde, nos deporte e nos transporte, não quer dizer
que a imaginação se aproprie das experiências reais ou irreais do
espaço, mas sim que nos aproximamos pela imagem do próprio
espaço da imagem, do fora que é a sua intimidade, «Esse terrível
de dentro de fora no qual consiste o verdadeiro espaço» nas
palavras de Michaux que se tornam inesquecíveis desde o
momento em que as apreendemos” 12 .
Acentuando uma ideia que em Bachelard não terá talvez
um carácter tão radical, Blanchot reafirma que o entendimento
ou acolhimento do que na imagem é reverberação – a sua ten-
são, extensão e a abertura na qual se dá a aparição –, o que é do
domínio da opinião, o que se dá por certo no plano da cultura,
de nada conta, ou representa mesmo um obstáculo. À imagem
neutra, a que corresponde o espaço que a escrita abre na super-
fície do discurso, parece poder aplicar-se o que Mallarmé escre-
veu em Un Coup de Dés, “rien n’aura eu lieu que le lieu”, por-
que o «fora» é também vacilação de um sentido, construído a
partir das antinomias (dentro/fora, presença/ausência, apare-
cimento/desaparecimento, objecto/simulacro, figurado/não
figurado), doravante indisponível. Acolher o neutro (a ser pos-
sível) só se pode dar na condição de nos virarmos para lá, ou
seja, efectuando o seu giro, desencadear, favorecer, propiciar a
reverberação. No verso de Baudelaire “Vaste comme la nuit et
comme la clarté”, a palavra «vaste» dá acesso a um espaço no
qual participam a noite e a claridade, noções que por não se
oporem uma à outra permanecem imóveis face a face, trocando

26
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

entre si as suas cintilações. Fora seria esse espaço, no qual a


noite e a claridade se vão prolongando sem se confundir, sem
dar lugar ao dia por rendição da primeira, nem sequer à noite
como se por um movimento idêntico de sinal contrário a clari-
dade fosse totalmente absorvida. Porque participam do movi-
mento da escrita são conceitos atravessados pela diferença, o
que significa que a fissura se instaura em cada um deles e não
entre eles como no caso dos dois pólos de uma oposição.
Como pensar estas noções – fora, repetição e diferença, ino-
perância – nas quais assenta o pensamento do neutro? Segura-
mente de fora do quadro disciplinar, nomedamente, fora da
filosofia, pois como observou Didi-Huberman, elas relevam,
como as figuras do pensamento em Bataille, de uma heterolo-
gia. Para Foucault, a imagem neutra constitui a face heterodoxa
da dialéctica e Lévinas, por sua vez, referindo-se a uma “ressem-
blance desassemblée” que encontra nos textos de Blanchot,
disse que nestes se dá o desenraizamento das imagens relativa-
mente à ontologia heideggeriana.
O que Hölderlin foi para Heidegger, terá sido Celan para
Blanchot? O que efectua o movimento inverso ao do primeiro?
Não pretendendo trazer as coisas à linguagem por um acto de
nomeação na qual são devolvidas à sua essência, mas, pelo con-
trário, por ser incapaz de nomear, prosseguindo de um modo,
hesitante, absolutamente sem garantias, a reconfiguração do
mundo na escrita? Dir-se-ia que, em Celan, é justamente a partir
desse desenraizamento ontológico, a partir de um nada articu-
lado sobre a perda, que as coisas, associadas de outra maneira,
para lá ou aquém do sentido, se vêm inscrever. Como a erva e a
escrita entrelaçadas na ausência de sentido de tal imagem que
assim inicia o seu giro: “Mas assim como a escrita se lê como a
aparência de uma coisa, de um de fora de coisa condensando-se
numa coisa ou noutra – não para a designar mas para se escre-
ver no movimento de vaga de palavras que não cessam de surgir –,
também o de fora não se lê por sua vez como uma escrita, uma
escrita des-ligada, sempre já exterior a ela mesma: erva escrita fora
uma da outra?” 13 .

27
Patricia San Payo

Notas
1
O encontro em questão reuniu alguns investigadores na Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa em torno de um conceito, o
«fora», na obra de Sartre, Blanchot, Foucault, Deleuze e Derrida.
2
Sobre este assunto cf., por exemplo, Jacques Derrida,«La Mithologie
Blanche», Marges de la Philosophie, 1972.
3
Conforme definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
4
Cf. Derrida, «Pas» , Parages, 1986, onde este autor se refere à “sintaxe
do sem” em Blanchot, ao paradoxal passo sem passo, espécie de recuo
inaparente em qualquer progressão. Um passo assim considerado não
se sucederia a um outro de acordo com as regras de desenvolvimento e
prossecução lógicas de um raciocínio. Para Derrida o modo como os
textos de Blanchot evidenciam a colusão entre análise e paralisia
(“paralyse”) decorre da fascinação enquanto efeito de leitura, do que
neles conduz invariavelmente à aporia, à indecidibilidade.
5
Maurice Blanchot, «La sollitude essentielle», L’Espace Litéraire, onde
lemos, por exemplo, “voir est une sorte de touche (…) un contact à
distance (…) ce qui nous est donné par un contact à distance est
l’image, et la fascination est la passion de l’image”, pp. 28-29.
6
“Comme parole du dehors, accueillant dans ces mots le dehors
auquel il s’adresse, ce discours aura l’ouverture du commentaire: repe-
tition de ce qui au-dehors n’a cessé de murmurer. Mais comme parole
qui demeure toujours au dehors de ce qu’elle dit, ce discours será une
avancée incessante vers ce dont la lumière, absolument fine, n’a jamais
reçu langage. Ce mode d´’être singulier du discours – retour au creux
equivoque du dénouement et de l’origine – définit sans doute le lieu
commun aux “romans” au «récits» de Blanchot et sa «critique» Michel
Foucault, La Pensée du Dehors, pp. 25-26.
7
Cf. «De Ressemblance à ressemblance», Maurice Blanchot – Récits
critiques , Cristhophe Bident & Pierre Vilar (eds).
8
Maurice Blanchot, L’Espace Littéraire, p. 337, n.
9
“Dans l’image, l’objet affleure à nouveau quelque chose qu’il avait
maitrisé pour être objet, contre quoi il s’était édifié et defini, mais à
present que sa valeur, sa signification est suspendue, maintenant que
le monde l’abandonne au désoeuvrement et le met à part, la vérité en
lui recule, l´élementaire le revendique , apauvrissement, enrichisse-
ment qui le consacrent comme image”, Maurice Blanchot, Entretien
Infini, p. 348.
10
Cf. Maurice Blanchot, Entretien Infini, p. 476.
11
“Seul nous met au niveau du pouvoir poétique le retentissement,
appel de l’image à ce qu’il y a d’initial en elle, appel instant à sortir de
nous et à nous mouvoir dans l’ébranlement de son immobilité. Le
“retentissement” n’est donc pas l’image qui retentit (en moi, lecteur, à
partir de moi), il est l’espace même de l’image, l’animation qui lui est
propre, le point de jaillissement où, parlant au-dedans, elle parle dejà
tout au dehors”; Maurice Blanchot , Entretien Infini, p.470.
12
“Que telle image nous loge ou nous déloge, nous donne un senti-
ment du séjour heureux ou malheureux, nous resserre ou nous abrite,
nous deporte et nous transporte, cela ne veut pas seulement dire que

28
O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

l’imagination s’empare des expériences réelles ou irréeles de l’espace,


mais que nous nous approchons, par l’image, de l’espace même de
l’image, de ce dehors qu’est son intimité, «cet horrible en dedans-en
dehors qu’est le vrai espace», selon les termes de Michaux qu’on ne
peut guère oublier, lorsqu’on les a saisis”; Maurice Blanchot, Entretien
Infini, p.475.
13
“Mais de même que l’écriture se lit sous l’espèce d’une chose, d’un
dehors de chose se condensante en telle ou telle chose, non pour la
designer, mais pour s’y écrire dans le mouvement de houle des mots qui
toujours vont, le dehors ne se lit-il pas encore comme une écriture,
écriture sans lien, toujours déjà hors d’elle même: herbe, écrite hors l’une
de l’autre?”; Maurice Blanchot, citando Celan, Une Voix Venue
d’Ailleurs, p.75.

29
Deleuze,
«Fora» da literatura
e com a casa tomada
Golgona Anghel

Experiências literárias do Fora. Num conto de Julio Cortá-


zar, A casa tomada, dois irmãos levam uma vida marcada pelo
estatismo incerto das lembranças e por uma rotina repetida
mecanicamente todos os dias. Essa rotina vê-se consolidada com
uma existência fechada de quase monaquismo anacorético, uma
existência secreta que se restringe ao íntimo da casa. O ritmo
vagaroso das suas existências modificar-se-á progressivamente
cada vez que desde os fundos da casa estejam a surgir ruídos
estranhos. Os ruídos fazem com que alguns quartos da casa
sejam fechados e permaneçam de acesso vedado.
“O som vinha impreciso e surdo, como um voltejar de
cadeira sobre o tapete ou um afogado sussurro de conversação.
Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no
fundo do corredor que vinha daqueles quartos até à porta. Ati-
rei-me contra a porta antes de que fosse demasiado tarde,
fechei-a de repente apoiando o corpo; felizmente a chave estava
metida do nosso lado e para além disso tranquei-a com o grande
ferrolho para mais segurança. (...) Tive que fechar a porta do
corredor. Tomaram a parte do fundo.” 1
A rotina vai alterando o seu ritmo monótono enquanto uma
presença estranha avança progressivamente e se manifesta como
uma inquietação insinuante: de onde vêem esses ruídos?; e os
irmãos, são eles quem vive na casa ou então é a casa que os
habita?; e se há alguém mais dentro da casa, quem é, quem são?
e por que é que avançam?; para quê? A crescente e lenta redu-
ção do espaço da casa aumenta o suspense na medida em que
abre uma zona do impreciso e do desconcertante. O espaço da
casa como unidade fica dividido entre um «aqui» (onde vivem
os irmãos) e um «ali» (aquele dos ruídos), ao mesmo tempo que
outra dualidade entra em jogo: o «nós», dos irmãos que se des-

31
Golgona Anghel

locam para «Fora» sob a suspeita de uma ameaça que não pode
ser confrontada, e «eles» do não-nomeável que avança para
«dentro».
“Como tinha ficado com o relógio, vi que eram as onze da
noite. Cingi com o meu braço a cintura de Irene (eu acho que
ela estava a chorar) e saímos à rua. Antes de nos afastarmos tive
pena, fechei bem a porta da entrada e atirei a chave no canal de
esgoto. Não fosse que a algum pobre diabo lhe passasse pela
cabeça roubar e se metesse na casa, a essa hora e com a casa
tomada.” 2

Obviamente, várias poderiam ser as nossas leituras deste


conto. Uma delas poderia “considerá-lo como se fosse um con-
tinente que remete para um conteúdo, através do qual é preciso
buscar os seus significados e inclusive, se somos ainda mais per-
versos ou mais corruptos, partir à procura do significante. O
livro seguinte será considerado como se contivesse o anterior ou
estivesse contido nele. Haverá comentários, interpretações,
serão pedidas explicações, escrever-se-á o livro do livro, até ao
infinito” 3 .
Agora, é geralmente sabido que na tradição cultural francesa
se tem construído um debate entre duas posições teóricas opos-
tas relativas ao modo de aproximação a um texto literário.
Ora, podemos centrarmo-nos no funcionamento interno do
discurso literário dando primado à sua organização significante,
às formas e à sua estrutura. O sentido, a verdade são sempre um
efeito, um resultado do jogo e da organização significante,
material; é a chamada posição estruturalista que se deu a
conhecer através da corrente Tel Quel (Sollers, Kristeva, Barthes).
Nesta linha, Kristeva, por exemplo, limitaria o conto de Cortá-
zar a um jogo entre o Mesmo e o Outro que se vai construindo
na gramática textual com base nos dois pares dicotómicos: Den-
tro/ Fora, Nós/ Eles.
Ou então, partindo do pressuposto de que a linguagem é
vocacionada para o mundo e que tem como função o facto de
nos dizer alguma coisa, de nos comunicar, a obra literária vai
ser entendida como tendo um sentido ligado a uma referência
(real ou irreal). Dá-se assim prioridade a um sentido que justifi-

32
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

ca a organização material do texto. Trata-se da perspectiva


fenomenológica que faz da literatura a manifestação de um sen-
tido ligado a uma experiência originária vivida, e a expressão de
uma subjectividade, de um autor. E o que é que teria Cortázar
para comunicar, na Casa tomada (1951), com a presença deste
estranho não-dizível que avança implacavelmente e toma posse
da casa? Será este Fora o prenúncio de que alguma coisa de
importante, de subversivo que está prestes a acontecer? Talvez a
revolução? 1951 é o ano de publicação do volume Bestiário que
integra o conto, bem como o ano em que Cortázar deixa Argen-
tina por problemas políticos. Em Setembro do mesmo ano,
uma tentativa de derrubar o sistema totalitário desemboca num
fracasso.
A questão que se põe agora é se há outra possível aproxima-
ção à literatura, que não seja uma narração formal da estrutura
e das categorias internas do texto, nem uma hermenêutica dos
conteúdos na direcção do sentido alegórico. Gilles Deleuze
propõe uma alternativa a estas posições.
Ele vai conservar, é certo, alguns vestígios do estruturalismo,
o essencial, talvez: o princípio da imanência. Mas aquilo que ele
rejeita é o fechamento do texto e a perda da realidade que o
acompanha, o primado do sistema significante e das práticas
formais, ou seja aquilo que ele chama de ditadura do significan-
te à qual este tipo de análise conduz. A palavra de ordem geral,
como elemento constitutivo do pensamento deleuziano e da sua
estética não é a verdade mas o interessante: “A filosofia não
consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas
as categorias como aquela de Interessante, de Notável ou de
Importante que decidem o êxito ou o fracasso” 4 .
Quais serão, então, as consequências que esta liberação do
império da verdade tem? Como conservar esta abertura para o
Fora sem se referir à transcendência do sentido? Como manter
uma análise puramente imanente sem abandonar os direitos do
sentido e da vida? Assim a literatura não fica mais encerrada no
fecho do significante, da língua, é certo, mas o resultado não
parece ele contrário ao desejado? Ou seja, ao querer afirmar o
Fora, Deleuze parece asseverar também a perda do mundo exte-
rior, um pensamento senão fechado em si mesmo, pelos menos

33
Golgona Anghel

destinado a uma esfera encerrada de intelectualidade. Não caí-


mos desta maneira num fechamento ainda pior? O Fora invo-
cado por Deleuze não tem nada a ver, de facto, com um mundo
exterior: “um forma mais longe do que todo mundo exterior” 5 ;
um “Fora não exterior” 6 .
Nesta sua maneira de se aproximar à literatura, e quase
caminhando ao encontro das nossas dúvidas, Deleuze propõe
um outro tipo de leitura: “consideramos o livro como se fosse
uma pequena máquina a-significante; o único problema é «será
que isto funciona?» Como é que isto funciona para vocês ? Se
isto não funciona, se nada acontece, têm então que tomar outro
livro. Esta outra leitura é uma leitura em intensidade: alguma
coisa acontece ou não. Não há nada a explicar, nada a com-
preender, nada a interpretar. É do estilo de ligação eléctrica. (...)
Esta outra maneira de ler opõe-se à precedente porque liga o
livro directamente como o Fora” 7 .
Ou seja, a solução proposta por Deleuze é considerar o livro
como uma máquina a-significante cujo único problema é se
funciona ou não. Não há nada para explicar, nada para inter-
pretar, nada que compreender. É uma espécie de conexão eléc-
trica que relaciona directamente o livro com o Fora. E como é
que o conto funciona para nós, se é que funciona?
O conto poderia funcionar como uma pequena engrenagem
nesta maquinaria exterior, muito mais complexa. Porque quan-
do escrevemos, diz Deleuze, mantemos relações de corrente e
contracorrente com outros fluxos – fluxos de merda, de esper-
ma, de fala, de acção, de erotismo, de moeda, de política, etc.
Tal como refere Bloom: escrever com uma mão na areia e mas-
turbar-se com a outra 8 .
A Casa tomada seria o nosso «dehors», ou pelo menos como
um dos nossos «dehors» na medida em que nos força a pensar,
que nos arrouba o pensamento para aquilo que ele não pensa
ainda, levando-o a pensar diferentemente 9 . O Fora, menos do
que um espaço outro, é essa força não-representável que, por
mais exterior que pareça pela sua violenta estranheza, está aí
dentro da casa, mais próxima que todo mundo interior. Os
irmãos tentam afrontá-la por momentos e as armas que têm

34
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

para conjurar o caos são os rumores domésticos, a voz ou as


canções de embalar:
“De dia eram os rumores domésticos, o roce metálico das
agulhas de tecer, um ruído ao passar as folhas do álbum filatéli-
co. (...) Na cozinha e na casa de banho, que ficavam perto da
parte tomada, púnhamo-nos a falar em voz alta ou a Irene can-
tava canções de embalar. Numa cozinha há demasiados ruídos
de louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito
poucas vezes permitíamos aí o silêncio (...)” 10
A pequena canção é territorial, é como o canto dos pássaros:
um ritornelo que agencia um espaço, que marca assim o seu
território. “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquili-
za-se cantarolando. Anda, pára, ao sabor de sua canção. Perdida,
ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com a sua
canção. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo,
estabilizador e calmante, no seio do caos.” 11 Os próprios modos
gregos, os ritmos hindus são territoriais, provinciais, regionais.
Do caos nasce uma voz que determina momentaneamente um
centro: “Quando a Irene estava a sonhar em voz alta, eu acorda-
va de repente” 12 . Elementos diversos, o ruído das folhas, o roce
das agulhas, a voz, referências e marcas de toda espécie intervêm
para manterem as forças do caos, o território do pesadelo no
exterior tanto quanto possível.

Mircro-Arqueologia do pensamento do Fora. Mas de onde


vem este tema do Fora? Em entrevista com Claire Parnet (1986),
Gilles Deleuze fala numa influência de Maurice Blanchot sobre
Foucault 13 . Esta influência passa por uma «dívida» que Foucault
sempre reconheceu que tinha com Blanchot, e que diz respeito
a três temas: primeiro, “falar não é ver”, ou seja a diferença que
implica que, ao dizer aquilo que não vemos, empurramos a lin-
guagem para o seu limite extremo; segundo, a superioridade da
terceira pessoa sobre as duas primeiras; terceiro, o tema do Fora,
a relação (ou a não-relação) com um Fora mais longínquo que
todo o mundo exterior e por isso mais próximo que todo o
mundo interior 14 .

35
Golgona Anghel

Várias suposições relacionadas com uma possível genealogia


do pensamento do Fora se perfilam também no texto que Fou-
cault escreve sobre Blanchot, «La pensée du dehors», in Critique,
Junho de 1966, nº 229. Segundo ele pode ser que se tenha ori-
ginado nos textos místicos do Pseudo-Dioniso nascidos nas
margens do cristianismo e que tenha sobrevivido assim como
uma teologia negativa. Ou então, menos arriscado ainda seria
admitir que tenha surgido com Sade e Hölderlin para depois
reaparecer na segunda metade do século XIX: em Nietzsche,
Mallarmé, Artaud, Bataille ou Klossowski 15 . E é a través de
Blanchot que Foucault conclui que a literatura não é a lingua-
gem que se identifica consigo mesma, é a linguagem que se afas-
ta o mais possível de si mesma e é a palavra que nos conduz pela
literatura, para esse Fora onde desaparece o sujeito que fala.
Deleuze se inscreve nesta linhagem do pensamento do Fora. A
presença que Blanchot identifica como sendo “a intimidade
enquanto Fora, o exterior tornado intrusão” 16 é o plano de ima-
nência em termos deleuzianos.

O Fora: do poder ao possível. Enquanto «historiador da


filosofia» é bem sabido que Deleuze procurou exercer a arte de
fazer retratos mentais, conceptuais: seria o caso de Espinosa,
Kant, Leibniz, Foucault. Assim como isso acontece em pintura,
a história de filosofia, segundo ele, deve, não recontar o que
disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessaria-
mente, aquilo que ele não dizia e que está entretanto presente
no que ele diz.
Em Foucault (1986), Deleuze recruta experiências do pensa-
mento do Fora e activa problemas fundamentais para o seu
entendimento. Do pensamento de Foucault ele subtrai três
problemáticas fundamentais: o Saber, o Poder e a Subjectivação.
Nesta fissura criada pela subtracção operada no pensamento
foucaultiano – desta maneira deslocado, desprovido das suas
constantes e assim submetido a uma nova confrontação com
outras determinações –, surgem questões que às vezes tornam
indiscerníveis os territórios deleuzianos e os de Foucault: o que
é que podemos saber, ou o que é que podemos ver e dizer em

36
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

certos contextos; quais são os poderes a enfrentar e quais são os


nossos modus vivendi, os nossos processos de subjectivação.
Segundo Deleuze, os primeiros livros de Foucault – As pala-
vras e as coisas, História da Loucura, Isto não é um cachimbo, O
Nascimento da clínica e Vigiar e Punir – problematizam a questão
do saber.
O saber é um plano formal em que tudo se dá conforme um
registo de visibilidade (aquilo que pode ser visto, «o visível») e
um registo de enunciação (o que pode ser dito, «o dizível» ou «o
enunciável»). Cada época histórica organiza-se em função das
constelações que o visível e o enunciável podem constituir. O
ofício do arqueólogo teria como tarefa definitória revelar o que
se pode dizer e ver numa determinada época. Isto é, demarcar
as camadas próprias de cada período com as suas mutações e as
suas constantes. Acontece que, esta tarefa não é tão simples
como possa parecer, visto que as visibiliadades não são directa-
mente observáveis nas coisas nem os enunciados se deixam ler
imediatamente nas palavras. O que não quer dizer que haja
uma espécie de ocultação; tudo é dito e visto em cada estrato
em função das condições de possibilidade do enunciado e do
observável daquela época. Há no entanto que fazer uma rasura
das palavras e das coisas. Ora, segundo Foucault visto por
Deleuze o saber funda-se nos limites do visível e do enunciável.
Esta ideia de que o enunciado nunca poderá conter o visível
e vice-versa perpetua-se também num outro livro de Foucault:
Isto não é um cachimbo. Aprendemos com ele que há em Magritte
uma disjunção permanente entre texto e figura. Na medida em
que nos é impossível não tentar relacionar o texto com a ima-
gem, deparamo-nos simultaneamente com outra impossibilida-
de: aquela de encontrar uma relação associativa entre o signo
verbal e a representação visual. Esta fissura entre o visível e o
enunciado vem estremecer a tradição da mimesis.
É com Vigiar e Punir que as preocupações de Foucault ope-
ram a transição do saber ao poder. Assistimos assim da passa-
gem do Foucault arqueólogo a um Foucault genealogista. Se o
saber é constituído pelas visibilidades e pelos enunciados, o
plano do poder é feito de relações de forças móveis, é informe,
diagramático, não-estratificado. Entre o saber e o poder, há por-

37
Golgona Anghel

tanto uma diferença de natureza, mas há também uma relação,


ou melhor, uma não-relação. As relações de forças virtuais dos
diagramas ganham forma no plano do saber, actualizam-se nos
arquivos, isto é, no visível e no enunciável. Há ainda uma outra
componente que escapa ao complexo saber-poder: a linha do
Fora. Se os diagramas são compostos por relações de força que
se encontram num perpétuo devir, a linha do Fora sai dos limi-
tes do saber e do poder e surge como um espaço anterior, não-
estratificado, uma «nuvem não-histórica», preindividual e
intempestiva. Este domínio do indeterminado e do intempesti-
vo situa o Fora num espaço de virtualidades reais que resistem
duma certa maneira ao poder: “o pensamento do Fora é um
pensamento de resistência” 17 .
Que tipo de linha é esta se a relação que se estabelece com
ela já não é de poder, nem de saber?
A estas perguntas, Deleuze já tentou responder numa entre-
vista com Claire Parnet de 1986:
“É difícil de falar disso. É uma linha que não é abstracta,
embora não tenha nenhum contorno. Não está no pensamento
nem nas coisas, mas ela se encontra em todos os lados onde o
pensamento enfrenta qualquer coisa como a loucura, e a vida,
qualquer coisa como a morte. Miller dizia que a encontramos
numa molécula qualquer, nas fibras nervosas, nos fios da ara-
nha. Pode encontrar-se a terrível linha da baleia, da qual fala
Melville em Moby Dick, que nos pode levar ou estrangular
quando se está a desenrolar. Pode ser a linha da droga de
Michaux (...) pode ser a linha dum pintor, como aquelas de
Kandinsky ou aquelas que levam Van Gogh à morte. Acho que
estamos a cavalgar tais linhas cada vez que pensamos feitos ver-
tigem ou que vivemos no meios destas forças” 18 .
Podemos então afirmar com Deleuze que o próprio poder dá
origem a uma força que resiste ao próprio poder. O Fora
enquanto força de subversão não pára de criar resistências que
encarnam por vezes a cabeça da morte. Seria então preciso
dobrar essa tendência mortal, essa linha mortífera, dando lugar
a uma dobra, a uma vida, um dentro no interior do Fora.
Quando isso acontece, o Fora entra numa relação de força con-

38
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

sigo mesmo, entra num processo de auto-afecção e é isso que


Foucault entende por subjectivação 19 .
Trata-se de uma relação da força consigo (ao passo que o
poder era a relação da força com outras forças), trata-se de uma
«dobra» da força, da constituição de modos de existência.
Em O Nascimento da clínica há uma passagem dedicada a
Bichat em que Foucault analisa a concepção da morte. Bichat
apresenta a morte como violenta, plural e coextensiva da vida.
Em vez de pensar a morte como fizeram os clássicos, como um
ponto, converte-a numa linha que afrontamos continuamente,
que trancamos até ao momento em que se acaba. É disso que se
trata, enfrentar a linha do Fora, dobrá-la como quem fecha a
chave os quartos da casa 20 .
Num outro conto de Cortázar, Carta para una señorita en
París, o protagonista tem a extraordinária capacidade de vomitar
coelhos. O que é estranho não é o facto em si, mas o tom natu-
ral com o qual a personagem explica à dona da casa, ausente de
momento, a presença dos coelhos na casa. Como se experimen-
tar essa linha do Fora já não tivesse nada a ver com a experiên-
cia da angústia dos irmãos que se vêem expulsos da casa.
Aprendemos assim que experimentar a linha do Fora, para além
de levar a uma prova demasiado violenta, demasiado rápida que
nos introduz numa atmosfera irrespirável, de asfixia, pode tam-
bém levar a uma vivência, a uma prática. A personagem de Car-
ta para una señorita en París faz dela, na medida do possível e
durante todo o tempo que lhe é possível uma arte de viver.
Como se estivesse a dobrar a linha do Fora, ele cria uma zona
onde lhe seja possível, residir, respirar, lutar, e assim pensa 21 .
Dobrar a linha do Fora é despregar o processo de subjectiva-
ção. Criar novos modos de existência dobrando a força é fazer
do Fora, quando não uma ars moriendi, uma ars vivendi e, desta
maneira, cravar no interior da resistência ao poder a metástase
do possível.

Conceito, Percepto, Afecto. É óbvio que a existência ou


não de um mundo exterior ao sujeito pensante não está aqui
em jogo e que esta questão não faz sentido na problemática

39
Golgona Anghel

deleuziana. Quando Deleuze fala do «Dehors», esta palavra tem


dois sentidos complementares – salienta François Zourabichvili
num ensaio recente: “1/o não-representável, a saber a exteriori-
dade da representação ; 2/a consistência mesma do não-
representável, a saber a exterioridade das relações, o campo
informal das relações” 22 . Deleuze chama de plano de imanência a
este campo transcendental onde nada é pressuposto que haja a
priori com excepção da exterioridade que rejeita precisamente
qualquer pressuposto: “Poderíamos dizer que O plano de ima-
nência é ao mesmo tempo aquilo que deve ser pensado, e o que
não pode ser pensado. Isto é, o não-pensado do
to” 23 .
A questão que se põe é saber em que condições podemos
entrar em relação com um elemento desconhecido, com o Fora?
Como é que se pode alcançar o Fora? Por que meios? E como é
que “cavalgar a linha do Fora” determina uma mutação do pen-
samento?
Tanto a filosofia como a arte são modalidades do pensamen-
to, e não o são menos porque o elemento próprio do pensa-
mento filosófico seja o conceito e os do pensamento artístico o
afecto e o percepto. A filosofia, enquanto criação de conceitos
só vive da sua confrontação com a arte, a literatura e a ciência,
com o não-filosófico. Deleuze reclama as origens das ideias filo-
sóficas não só destas disciplinas como também da história
interna da filosofia 24 . Porque é a partir da literatura e não do
interior da história da filosofia que se inaugura um novo pen-
samento. A filosofia e a literatura são inseparáveis: “são necessá-
rias as duas (...) como se fossem duas asas ou duas barbatanas” 25 .
Toda a obra de Deleuze é, de facto, atravessada pela literatura:
os livros sobre Proust, Beckett, Carmelo Bene, vários ensaios
dedicados à literatura anglo-americana reunidos na sua última
publicação, Critique et Clinique, falam desta presença. Por que
esta aproximação? Porque, diz ele, tanto a literatura como a filo-
sofia se alimentam da mesma fonte, o pensamento, e as duas
tendem para a mesma finalidade: “inventar novas possibilidades
de vida” 26 , “libertar a vida de todos os sítios onde esteja presa” 27 .
As grandes personagens da literatura são grandes pensadores
e a filosofia não pode prescindir das suas personagens 28 .

40
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

A obra de arte só vale pela sua consistência interna, a sua


autonomia. Ora, a obra não se parece com nada, não imita
nada. A verdade dela é existir por si própria, sem denotar ou
remeter para um mundo Fora dela que reflectisse ou expressas-
se: a obra é um “monumento” 29 , um ser autónomo e suficiente,
um “bloco de sensações” 30 .
A literatura não serve para nomear o mundo, “porque já está
feito” 31 – pela linguagem comum – mas para nomear “uma
espécie de duplo do mundo capaz de recolher a violência e o
excesso” 32 e isto com o fim de relançar as forças de vida e de
devir no seu poder de criação e de invenção. “É aquilo que
Deleuze entende por devir. Escrever é uma questão de devir,
sempre inacabada, sempre em curso de se realizar, e que trans-
borda qualquer matéria vivível ou vivida” 33 . A literatura e a filo-
sofia vêem de uma única e mesma actividade, pensar, e as duas
só têm uma só finalidade: “inventar novas possibilidades de
vida” 34 . Este programa não é somente apropriado à literatura
mas também a todas as formas de pensamento e de vida: contra
a imitação reprodutiva da vida a produção de vida nova. É esta
a meta de qualquer grande escritor ou grande filósofo.

Visões e Audições. A nova língua que nasce no interior da


língua materna não desemboca no nada; não está fechada ou
recolhida sobre si mesma. Ela nos faz ouvir ou ver alguma coisa
através das suas palavras e os seus procedimentos. A literatura,
diz Deleuze, é feita de Visões e de Audições. Mas aquilo com o
qual ela comunica, não é o mundo da percepção que ela repre-
sentaria, nem o autor cujos estados de alma poderia expressar.
Os perceptos, que contêm as visões e as audições, e os afectos,
são diferentes das percepções dos objectos e das afeições do
sujeito que perceve. O que é um percepto? O percepto é uma
visão, uma audição, mas não uma percepção. Pelo contrário, ele
é este bloco de sensações, que na percepção nos faz ver, perce-
ber o imperceptível, aquilo que se encontra no limite do per-
cepcionado, para além de qualquer objecto e das categorias per-
ceptivas que organizam a experiência do mundo, como para
além de qualquer cliché ou estereótipo. Da mesma maneira o

41
Golgona Anghel

afecto é aquilo que nos permite levar as nossas afeições ao limi-


te daquilo que nós sentimos, para nos lançar naquilo que
Deleuze chama de devir, ou seja uma intensidade impessoal,
para além de qualquer sujeito pessoal, de qualquer individuali-
dade. Por outras palavras: “escrever não é contar as nossas lem-
branças, as viagens, os amores e os lutos, os nosso fantasmas” 35
— “Não escrevemos com as nossas neuroses” 36 , porque são con-
sequências do percurso da vida. A literatura é uma enorme
fabulação. Mas, é certo, para Deleuze, fabular não consiste e m
imaginar e projectar o seu eu; “não se trata de uma história pri-
vada” 37 . A literatura não revela o mundo (nem o ser no mundo
na sua experiência originária), nem expressa um sujeito autor.
Ela não tem outro sujeito ou objecto senão estas visões e audi-
ções, os perceptos da vida que fazem desbordar as percepções e
as afeições vividas para caminhar na direcção do limite da lin-
guagem. A fabulação criadora não tem nada a ver com a lem-
brança mesmo que amplificada, nem com um fantasma. De
facto, o artista, e portanto o escritor também, transborda os
estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido. É um
«voyant»: “Viu na vida alguma coisa de muito grande, demasia-
do, intolerável” 38 .
A subversão da linguagem, enquanto meio para chegar a sua
finalidade última, é portanto inseparável duma certa forma de
relação com o mundo que não perde de vista. A literatura como
invenção de novas maneiras de sentir e de pensar partilha esta
finalidade última com a filosofia. Mas qual é o objectivo pró-
prio da literatura? A literatura não pode representar o mundo
também não pode comunicar, transmitir uma mensagem, por-
que para isso temos a linguagem comum, para isso, ao nível
mundial temos o «standard English». Então, para que é que
serve a literatura? Resposta: para criar uma nova linguagem 39 , a
única que pode permitir a criação de novas possibilidades de
vida, de lançar devires. Esta função pressupõe que nos afaste-
mos do nível descritivo e comunicativo da linguagem, desvian-
do-nos das conotações codificadas usuais. O que, em termos
deleuzianos, inventar significa inventar uma nova língua 40 .
Resulta portanto uma operação dupla: a literatura apresenta
dois aspectos, na medida em que opera uma decomposição ou

42
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

uma desconstrução da língua materna, inventa uma nova língua,


pela criação da sintaxe (...). É como se a língua caísse num delí-
rio, que a faz sair dos seus contornos. No entanto, este trabalho
de desconstrução da língua, esta saída dos contornos habituais,
a agramaticalidade e a asintaxe às quais o escritor pode recorrer
não são gratuitas. O papel subversivo e transgressivo, intempes-
tivo, da literatura encontra-se ligado a um poderoso desejo de
liberdade, de libertação de fluxos, de linhas de fuga do desejo.
O que é, enfim, este limite para o qual a obra literária nos
conduz? A obra comunica com o seu Fora, diz Deleuze 41 . As
visões e as audições, que compõem o Fora, o que é que nos
fazem então ver e ouvir? Aquilo que está no limite do visível e
do audível: é por isso que Deleuze diz que o escritor (como o
filósofo, aliás) testemunha uma coisa que demasiadamente
grande para ele. O artista da mesma maneira que o filósofo vol-
tam sempre do país dos mortos 42 . Porque pensar como um
artista ou como um filósofo não é uma coisa inocente. É um
exercício perigoso: “Pensar é sempre seguir uma linha de bruxa-
ria” 43 .
Para bem entender este tema no qual se concentra o essen-
cial do pensamento deleuziano, temos que voltar a uma questão
aparentemente trivial: o que é pensar? É enfrentar o caos.
Como é que se opera este lance no caos do devir que desfaz
qualquer identidade, estabilidade e continuidade? O pensador
leva consigo uma espécie de prancha, como os surfistas em alto
mar, ou então ele esboça um plano que organiza este caos, qua-
se como se estivesse a cortar um pedaço. É neste plano que ele
vai tentar fazer funcionar os seus conceitos, afectos ou perceptos.
É isto pensar: “atirar-se no abismo para tentar iluminá-lo um
segundo. De onde o ar estranho dos pensadores.” 44 As audições
e as visões não se separam portanto da escrita, duma nova lín-
gua, que teremos talhado na língua usual da comunicação.
Assim, as visões e as audições só nos são dadas através da lin-
guagem, graças aos meios literários específicos. Logo Deleuze
não fala de experiências inefáveis, quase místicas, para além das
palavras, para Fora da linguagem. Aquilo que se encontra no
limite da linguagem ainda é linguagem no seu borde interno, e
não remete para aquilo que seria Fora da linguagem, porque

43
Golgona Anghel

sairíamos da literatura, do pensamento. É sempre através das


palavras, entre as palavras, nos seus interstícios, através da sua
organização, composição, ou seja através daquilo que designa-
mos como estilo, que ouvimos e vemos 45 , que produzimos uma
linha de fuga, um devir. Aquilo que nos faz ver e ouvir é o Fora
que se mostra na linguagem, o seu próprio Fora. O Fora não
está Fora da linguagem. As visões e as audições são somente o
avesso da linguagem o qual enquanto avesso ou limite ainda
mantém uma relação com ela. “O limite não está fora da lin-
guagem, ela é o seu fora : ela é feita de visões e audições non
langagière, é certo, mas que só a linguagem as torna possíveis” 46 .
Escrever é portanto levar a linguagem ao seu limite para que
possa captar aquilo que não pertence a nenhuma outra lingua-
gem – silêncio e música – estas visões e audições que são mesmo
a passagem da vida na linguagem 47 .

Estética da subversão: n-1. Deleuze desenvolve uma estética


da linha libertadora em relação com às autoridades sociais que
se servem da língua de comunicação como de um instrumento
privilegiado. A questão estética consiste agora em precisar como
é que, no plano concreto, se pode produzir este lançar de linhas
de fuga. O princípio único assenta no primado dos procedi-
mentos de minoração e subtracção.
Para quê reduplicar a realidade percebida com uma outra
fictícia, narrada? Para se emancipar do sistema dominante e dos
poderes da língua que nos aprisionam. E para isso é preciso
minorar, subtrair ou desfazer as formas canonizadas pela lin-
guagem. A invenção consiste em criar e não em descobrir ou
reencontrar aquilo que precede o mundo perceptível e a lingua-
gem consagrada da língua. Não se trata de nenhuma maneira,
como quer a fenomenologia, de um retorno a qualquer coisa
anterior, dada a um pré-conhecimento, que seja o sentido de ser
ou um dito fundador instaurado pelos presocráticos, como para
Heidegger, ou seja uma experiência primordial do mundo,
antepredicativo, que marca a nossa pertença originária ao mun-
do e que nos permite o habitar.

44
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

O livro também, filosófico ou literário, segundo Deleuze, é


conseguido quando salienta o primado de um acto, de um fazer,
entendido como uma projecção de linhas de fuga ou de dester-
ritorialização, e não ao expressar um sentido, mesmo que pri-
mordial, ao transmitir uma mensagem. A obra literária é sem
sujeito expressado nem objecto representado: “Um livro não
tem objecto nem sujeito” 48 . Então, o que é a obra, o que é que
ela faz? Agencia: “O livro, agenciamento com o fora, contra o
livro imagem do mundo” 49 . Como o Fora não tem imagem, de
significação ou de subjectividade, já não se trata de imitar, mas
de agenciar. Já não o livro imagem (do mundo, duma sociedade,
duma época), não o livro mensagem, o livro código com uma
unidade de sentido secreta.
A obra literária é um agenciamento de fluxos heterogéneos,
ou de linhas de fuga que valem por si mesmas, pelo seu poder
de subversão dos sentidos dominantes e de libertação dos sujei-
tos dominados. Consequência: o sentido está no uso. É o
pragmatismo deleuziano. Um livro tem que ser funcional: “é
uma caixa de ferramentas” 50 . Deve servir como peça de agen-
ciamento libertador.
Resulta assim que qualquer escrita tem uma dimensão
necessariamente política, porque o livro tem como fim conectar-
se com todos os géneros de fluxos, entre os quais os sociais
também. Ao criar um rizoma com o mundo histórico e social, a
escrita cria uma realidade micropolítica no campo social.
Como concretamente subverter, desfazer o poder descritivo
da linguagem narrativa e escapar à doxa que dirige esta função
da linguagem?
Existem alguns procedimentos que podem contribuir para o
efeito entre os quais salientamos os mais importantes:
a) as fórmulas (exemplo de Bartleby: I would prefer not...);
b) “les mots valises” (Lewis Carroll) que condensam e
entrecruzam significados múltiplos para abrir um sentido inde-
terminado, suspenso, a completar. ex: flor santástica = manjeri-
cão;
c) os termos agramaticais como no caso de Louis Wolfson,
«l’étudiant d’idiomes dément», aquilo que ele faz é traduzir
seguindo certas regras: traduzir uma palavra da sua língua

45
Golgona Anghel

materna – inglês – com uma palavra – do francês, alemão, russo


ou hebraico – de sentido semelhante que tenha sons ou fone-
mas comuns (por ex: a palavra Tree – Tere – que através de um
trabalho fonético torna-se Dere – e acaba no russo derevo);
d) as repetições diferenciais e as variações que fazem a lín-
gua gaguejar (cf. Gherasim Luca) sacudindo as suas constâncias
e as suas invariantes (“é a língua inteira que varia para eliminar
um bloco sonoro último, um único sopro ao limite do grito” 51 ).
Deleuze usa a linguística como ferramenta crítica. E para tal
efeito, o procedimento linguístico é imprescindível – afirma
Deleuze no ensaio sobre Louis Wolfson. A linguística em si não
lhe parece, no entanto, essencial. O que interessa é o caracter
activo da língua. Todas as palavras contam uma história de
amor, uma história de vida e de saber, mas essa história não está
designada nem significada pelas palavras, nem traduzida de uma
palavra a outra. Essa história é o que há de impossível na lin-
guagem e por isso lhe pertence ainda mais estreitamente: é o
seu Fora. Deleuze reconhece neste empurrar da língua para o
seu próprio limite, para o seu Fora agramatical, a-significante
uma operação de subtracção, uma minoração de sentido, de
significações, que têm como fim produzir um efeito de inde-
terminação que lhes permite desdobrar uma fuga, uma polivo-
cidade.
A crítica e clínica deleuziana, embora marcadas pelo devir a-
sintáctico, agramatical da língua no seu processo de criar uma
língua estrangeira na própria língua materna, mantêm uma
relação com os fluxos do social, fazem corpo com as forças do
Fora, criam uma micropolítica. Mais do que isso, quando den-
tro de uma língua se cria outra língua, a linguagem na sua tota-
lidade tende para este limite a-sintáctico.
É óbvio que para Deleuze não há uma metalinguagem nem
espécies de linguagem. Há diferentes jogos da língua, isso sim,
como por exemplo o jogo linguístico do quotidiano, o jogo do
discurso judicial, o da literatura, etc. Todos eles têm limites.
Não se podem infringir os códigos da linguagem quotidiana
como também não se podem infringir as regras dum regula-
mento processual. A literatura também tem os seus limites mas
é sobretudo o lugar onde os próprios limites estão em jogo. O

46
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

agenciamento, como já foi referido, é uma maneira de entender


o jogo linguístico duma maneira pragmática. Afinal a teoria da
linguagem deleuziana é uma pragmática ampliada. Porque os
limites do jogo linguístico se referem a componentes de expres-
são mas também a componentes exteriores à expressão. O jogo
linguístico nunca é total, universal. Basta a contaminação com o
«black English» e a mudança de género se produz através do
Fora.
O que é que têm em comum todos estes procedimentos?
Um processo de minoração que desencadeiam um devir, lan-
çam uma linha de fuga. Percebemos então por que o secreto do
múltiplo, a sua fórmula reside em n-1, na subtracção e não na
adição (de unidades prévias). Percebemos também por que
Deleuze fala de «littérature mineure». Porque aquilo que Deleu-
ze entende por isso é sempre uma minoração, uma subversão do
maioritário e do modelo que ele constitui para a maioria (a qual
por natureza é conformista, que precisa de um modelo para
estar conforme). A literatura menor (que não é forçosamente
aquela das minorias étnicas ou doutras) pressupõe uma minora-
ção no sentido quase matemático do termo: é preciso reduzir,
diminuir a importância dos significados estabelecidos, subtrair,
deformar a sintaxe e a gramática da língua para soltar os devires
contra a história gregária e democrática, consensual e maioritá-
ria. Ou seja a obra só é verdadeira na medida em que traça
linhas de fuga e faz corpo rizomático com fluxos sociais.
O Fora funciona como um motor do pensamento deleuzia-
no sobre a literatura. É na articulação do/com o Fora que se
criam os conceitos de literatura menor, devir minoritá-
rio/mulher, percepto, afecto, plano de imanência, ritornello, etc.
E é através da contaminação do Fora que se dá a mutação no
pensamento.
Haverá, sem dúvida, mais dobras desta linha de «sorcière»;
ficamos, no entanto, por aqui, não seja que ao dobrá-la ainda
mais percamos a vertigem do seu contacto, não seja que ao des-
dobrar mais um pli este seja o último e nos encontremos, sem
querer, Fora, na rua e com a casa tomada.

47
Golgona Anghel

Notas
1 Cf. Cortázar, Julio, “Casa tomada” in Bestiario, Madrid, Alfaguara,
1998, pp. 16-17 (Tr. A.): “El sonido venía impreciso y sordo, como un
volcarse de silla sobre la alfombra o un ahogado susurro de conversa-
ción. También lo oí, al mismo tiempo o segundo después, en el fondo
del pasillo que traía desde aquellas piezas hasta la puerta. Me tiré contra
la puerta antes de que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyan-
do el cuerpo; felizmente la llave estaba puesta de nuestro lado y además
corrí el gran cerrojo para más seguridad. (...) Tuve que cerrar la puerta
del pasillo. Han tomado la parte del fondo.
2 Cf. Ibid., pp. 20-21 (Tr. A.): “Como me quedaba el reloj pulsera, vi
que eran las once de la noche. Rodeé con mi brazo la cintura de Irene
(yo creo que ella estaba llorando) y salimos a la calle. Antes de alejarnos
tuve lástima, cerré bien la puerta de entrada y tiré la llave a la alcantarilla.
No fuese que a algún pobre diablo se le ocurriera robar y se metiera en
la casa, a esa hora y con la casa tomada”.
3 Cf. Deleuze, “Lettre à un Critique Sévère”, in Pourparlers, Paris, Minuit,
1990/2000 (PP), p. 17.
4 Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de Minuit,
1991 (QPh); p. 80. Cf. “La philosophie ne consiste pas à savoir, et ce
n’est pas la vérité qui inspire la philosophie, mais des catégories comme
celle d’Intéressant, de Remarquable ou d’Important qui décident de la
réussite ou de l’échec” (QPh 80).
5 Deleuze, Foucault, Paris, Éditions de Minuit, 1986 (F); pp. 92 y 126.
6 QPh 59.
7 Cf. PP 17 : “on considère le livre comme une petite machine a-
signifiante ; le seul problème est «est-ce que ça fonctionne, et comment
ça fonctionne ?» Comment ça fonctionne pour vous ? Si ça ne fonc-
tionne pas, si rien ne passe, prenez donc un autre livre. Cette autre lec-
ture, c’est une lecture en intensité : quelque chose passe ou ne passe pas.
Il n’y a rien à expliquer, rien à comprendre, rien à interpréter. C’est du
type branchement électrique. Corps sans organes, je connais des gens
sans culture qui ont tout de suite compris, grâce à leurs «habitudes» à
eux, grâce à leur manière de s’en faire un. Cette autre manière de lire
s’oppose à la précédente, parce qu’elle rapporte immédiatement un livre
au Dehors”.
8 PP 18, “Un livre c’est un petit rouage dans une machinerie beaucoup
plus complexe extérieure. Écrire c’est un flux parmi d’autres, et qui n’a
aucun privilège par rapport aux autres, et que entre dans des rapports
de courant, de contre-courant, de remous avec d’autres flux, flux de
merde, de sperme, de parole, d’action, d’érotisme, de mannaie, de poli-
tique, etc. Comme Bloom, écrire sur le sable avec une main en se mas-
turbant de l’autre – deux flux dans quel rapport ? Nous, notre dehors à
nous, du moins un de nos dehors, ç’a été une certaine masse de gens
(surtout jeunes) que en ont marre de la psychanalyse”.
9 Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “Las
fuerzas del afuera (...) no son así llamadas apenas porque vienen de
afuera, del exterior, sino porque ponen al pensamiento en estado de
exterioridad, jugándolo en un campo informal donde puntos de vista

48
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

heterogéneos, correspondientes a la heterogeneidad de las fuerzas en


juego, entran en relación de no-relación”. Cf. François Zourabichvili,
Deleuze, une philosphie de l´événement, Paris, PUF, 1994, p. 45.
10 Cf. Cotazar, op. cit., p. 19: “De día eran los rumores domésticos, el
roce metálico de las agujas de tejer, un crujido al pasar las hojas del
álbum filatélico. (...) En la cocina y el baño, que quedaban tocando la
parte tomada, nos poníamos a hablar en voz alta o Irene cantaba can-
ciones de cuna. En una cocina hay demasiado ruido de loza y vidrios
para que otros sonidos irrumpan en ella. Muy pocas veces permitíamos
allí el silencio (...)”.
11 Cf. Deleuze-Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit (MP) ; p. 382.
12 Ibidem, cf. “Cuando Irene soñaba en alta voz, yo me desvelaba en
seguida.”
13 PP 133.
14 Cf. P 150: “Le Dehors, chez Foucault comme chez Blanchot, à qui il
emprunte le mot, c’est ce qui est plus lointain que tout monde extérieur.
Du coup, c’est aussi bien ce qui est plus proche que tout monde inté-
rieur. D’où le renversement perpétuel, du proche et du lointain. La
pensée ne vient pas du dedans, mais elle n’étend pas davantage une
occasion du monde extérieur. Elle vient de ce Dehors, et y retourne,
elle consiste à l’affronter. La ligne du dehors, c’est notre double, avec
toute l’altérité du double”.
15 Foucault, «La pensée du dehors», (publicada pela primeira vez in
Critique, nº 229, Junho de 1966) in Dits et écrits I, Paris, Gallimard, 1994 :
“(...) chez Nietzsche, quand il découvre que toute métaphysique de
l'Occident est liée non seulement à sa grammaire (ce qu'on devinait en
gros depuis Schlegel), mais à ceux qui, tenant le discours, détiennent le
droit à la parole; chez Mallarmé, quand le langage apparaît comme con-
gé donné à ce qu'il nomme, mais plus encore -depuis Igitur15 jusqu'à la
théâtralité autonome et aléatoire du Livre15 -le mouvement dans lequel
disparaît celui qui parle; chez Artaud, lorsque tout langage discursif est
appelé à se dénouer dans la violence du corps et du cri, et que la pensée,
quittant l'intériorité bavarde de la conscience, devient énergie matérielle,
souffrance de la chair, persécution et déchirement du sujet lui-même;
chez Bataille, lorsque la pensée, au lieu d'être discours de la contradic-
tion ou de l'inconscient, devient celui de la limite, de la subjectivité
rompue, de la transgression; chez Klossowski, avec l'expérience du
double, de l'extériorité des simulacres, de la multiplication théâtrale et
démente du Moi”.
16 Cf. Blanchot, L’entretien infini, Gallimard, 1969, p. 65-66 : “l’intimité
comme Dehors, l’extérieur devenu intrusion qui est le renversement de
l’un et de l’autre”.
17 F 96.
18 PP 151: “C’est difficile d’en parler. C’est une ligne qui n’est pas abs-
traite, bien qu’elle ne forme aucun contour. Elle n’est pas plus dans la
pensée que dans les choses, mais elle est partout où la pensée affronte
quelque chose comme la folie, et la vie, quelque chose comme la mort.
Miller disait qu’on la trouvait dans n’importe quelle molécule, dans les
fibres nerveuses, dans les fils de la toile d’araignée. Ce peut être la ter-

49
Golgona Anghel

rible ligne à baleine, dont parle Melville dans Moby Dick, que peut
nous emporter ou nous étrangler quand elle se déroule. Ce peut être la
ligne de drogue de Michaux, (...), ça peut être la ligne d’un peintre,
comme celles de Kandinsky, ou celle dont meurt Van Gogh. Je crois
que nous chevauchons de telles lignes chaque fois que nous pensons
avec assez de vertige ou que nous vivons avec assez de forces”.
19 Não há um sujeito prévio, a subjectividade deve ser produzida.
Dobrar a força é, portanto, dar consistência a novas modalidades de
existência, novas subjectividades.
20 PP 150.
21 Cf. PP 151: “Ployer la ligne pour arriver à vivre sur elle: affaire de vie
ou de mort. La ligne, elle ne cesse de se déplier à des vitesses folles, et
nous, nous essayons de plier la ligne, pour constituer «les êtres lents que
nous sommes» (...)”.
22 Cf. Zourabichvili, “Deleuze. Une philosophie de l’événement”in
AAVV, La philosophie de Deleuze, Paris, PUF, 2004, p. 49 : “1/le non-
représentable, ou le dehors de la représentation; 2/la consistance même
du non-représentable, à savoir l’extériorité des relations, le champ in-
formel des relations”.
23 QPh 59 : “On dirait que LE plan d’immanence est à la fois ce qui
doit être pensé, et ce qui ne peut pas être pensé. Ce serait lui, le non-
pensé dans la pensée. C’est le socle de tous les plans, immanent à
chaque plan pensable qui n’arrive à le penser. Il est le plus intime dans
la pensée, et pourtant le dehors absolu”.
24 Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977 (D), p. 89 : “La
philosophie naît ou est produite du dehors par le peintre, le musicien,
l’écrivain (...). Sortir de la philosophie, faire n’importe quoi, pour pou-
voir la produire du dehors. Les philosophes ont toujours été autre
chose, ils sont nés d’autre chose”.
25 QPh 43.
26 Deleuze, Critique et clinique, Paris, Editions de Minuit, 1993 (CC); p.
15.
27 CC 14
28 Cf. todo o capítulo 3 de Qu’est-ce que la philosophie?, “Les personnages
conceptuels”.
29 QPh 158.
30 QPh 155; cf. QPh 155: “L’artiste crée des blocs de percepts et
d’affects, mais la seule loi de la création, c’est que le composé doit tenir
tout seul” ; cf.: QPh 158 : “Il est vrai que toute oeuvre d’art est un mo-
nument…”.
31 Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch, Paris, Éditions de Minuit, 1967
(PSM); p. 33.
32 PSM 33.
33 CC 15. Cf. CC 19 : “Écrire est une affaire de devenir, toujours ina-
chevé, toujours en train de se faire, et qui déborde toute matière vivable
ou vécue”.
34 CC 14-15; QPh 162.
35 CC 13.
36 CC 13.

50
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

37 CC 9.
38 QPh 161; cf. ss: “Il a vu dans la vie quelque chose de trop grand, de
trop intolérable aussi, et les étreintes de la vie avec ce qui la menace…”.
39 PSM 16.
40 Cf. CC 15 : “le problème d’écrire : l’écrivain, comme dit Proust, in-
vente dans la langue une nouvelle langue, une langue étrangère en
quelque sorte”.
41 CC 9.
42 CC 67.
43 CC 44.
44 CC 71.
45 CC 9.
46 CC 9.
47 CC 16.
48 MP 9.
49 MP 66.
50 MP 72.
51 CC 139.

51
E cantam na planura
José Luis Pardo

1. Mamã, eu quero saber 1

Mille Plateaux está sobre a mesa, aberto na página 382, onde


se conta a história de uma criança que caminha na escuridão
trauteando uma cantilena. Trata-se certamente de uma
cantilena que ouviu em alguma parte (e mesmo que, agora, no
meio da noite, isto não tenha nenhuma importância, ronda
sempre a pergunta sobre a procedência dessa ladainha),
provavelmente nem sequer a reproduz com fidelidade, mas o
caso é que essa cantilena o protege contra o caos, conjura e
exorciza os monstros deformados – ou, melhor, a deformidade
monstruosa na qual se desenham e redesenham
constantemente os rasgos ameaçadores das criaturas da
escuridão – que se entrevêem entre as sombras ocultando-se
nelas, sem chegar nunca a mostrar-se abertamente, porque não
têm figura nem contorno, mas que podem em qualquer
momento impor a destruição absoluta. Para defender-se da
cruel exterioridade, a criança – o vivente – não tem mais que
uma ladainha cuja procedência ignora e que repete insis-
tentemente para opor ao fundo amorfo, no que corre o risco de
afogar-se, o frágil e precário perfil somente esboçado de uma
forma que se repete periodicamente, que retorna sobre si e
envolve o vivente numa espécie de abrigo no qual pode refugiar-
se da intempestiva tempestade, das inclemências do tempo, do
tempo-río que tudo arrasta em direcção à desembocadura no
fundo que dissolve toda a forma.
“Retornar, inverter, reverter o tempo. Se o tempo musical
fosse meramente irreversível, se fosse a pura e simples cadência,
a música anular-se-ia por si só. Necessita da reversibilidade para
existir. O pulsar de uma corda que vibra ou a vibração de uma
coluna de ar são movimentos que revertem sobre si mesmos... A
música é, pois, uma corrente irreversível obstruída, preenchida,

53
José Luis Pardo

saturada por uma reversão... O seu tempo dirige-se do passado


para o futuro, mas é o tempo do retorno. Ritornelo, refrão” 2 . A
cantilena retém por um momento o fluxo, dá-lhe forma, e o
vivente conforma-se ao revestir-se com esse refrão que opera
como recipiente que tenta conter o caos: não se trata de
interromper o caudal – pois essa interrupção não é a vida, senão
a morte nas águas estancadas –, trata-se de achar o modo de “se
inserir numa onda que preexiste”, de “ser acolhido no mo-
vimento de uma grande onda, de uma coluna de ar ascenden-
te” 3 . A arte de inventar cantilenas é tudo o que temos para
levantar uma morada na qual nos proteger contra o caos, na
qual escapar do nada. Se temos refrães é porque os refrães nos
têm, nos sustêm local e momentaneamente, nos fazem um
território e uma casa, fabricam as nossas horas e os nossos luga-
res.

2. De onde são os cantores

Mas, que tem a ver com a filosofia esta cantilena? Porquê


suster, como faz Deleuze, que a filosofia é uma cantilena?
Segundo os pitagóricos, fundadores da ciência e da filosofia
antiga, os números são a razão (ou inclusive a alma) das coisas,
as coisas expressam números. Neste sentido, não podemos
identificar «número» com «dígito» nem com «cifra», senão antes
com «proporção». O que as coisas expressam são antes pro-
porções, relações. E isto põe-se ainda mais de manifesto se
repararmos que o modo usual de representação dos números
entre os pitagóricos são as figuras, frequentemente híbridas de
gnómônes e pontos, e que o seu modelo privilegiado são as
concordâncias entre os intervalos da escala musical. O que sig-
nifica que a mera existência de números (proporções entre os
intervalos) pressupõe uma diferença de tensão, um desnível de
intensidade. O continuum do som é a continuidade infinita
destas variações de intensidade, tanto em termos de tensão (to-
ns altos) como de distensão (tons baixos). A escala – a propor-
ção numérica, a figura – opera um corte neste continuum ao

54
E cantam na planura

introduzir uma «ordem artificial» (a progressão das notas) que


reduz a «desordem natural» ao silêncio (os intervalos entre as
notas são o que não se ouve quando o som devém música), que
impõe ao imenso uma medida, que inventa uma cantilena.

3. Que os encontro muito elegantes

Como se a natureza, contemplada como essa continuidade


sónica de vibrações intensivas, contivesse em si mesma uma cer-
ta força, um certo poder para constituir, no mar ilimitado do
som, pequenas ilhas ou pequenos arquipélagos diferenciados,
limitados, cada um dos quais é uma selecção de figuras e, por
tanto, uma música particular, uma cantilena.
O facto de que cada colectividade construa os seus
instrumentos musicais peculiares tem já, em si mesmo, algo de
revelador: um instrumento musical é a materialização,
empiricamente constituída ao longo do tempo de sedimentação
dos costumes de uma comunidade, de um determinado modo
de ouvir, de um padrão auditivo que comporta essa selecção
sonora à que acabamos de referir-nos; o instrumento encerra a
imensidade do vento numa coluna de ar, a imensidade das
intensidades numa série de cordas ou de peles esticadas de
modo distinto e «afinado», a imensidade do ruído cósmico
numa gama de percussão. O instrumento é, em suma, a
concreção física e sensível de essas figuras que se
«experimentam» sobre as liras ou as cítaras. A figura (razão
numérica ou proporção matemática) está, por assim dizê-lo,
entesourada no instrumento que a materializa. O instrumento
serve aos homens para fazer música, mas serve à natureza para
fazer-se audível aos ouvidos dos homens, e por isso a função
«primitiva» da música foi a comunicação dos viventes com os
deuses, o modo de escutar a voz dos deuses, a maneira de fazer
audível o imenso, o inaudível.

55
José Luis Pardo

4. E quero conhecê-los

Mas nada disto é privilégio dos homens: a religiosidade é «o


que temos em comum com os animais» 4 : tanto a conduta de
luta pela vida como o comportamento religioso dependem do
«factor estético bruto», da Arte – que tampouco é privilégio do
homem – que consiste em inventar ladainhas a partir do caos 5 .
Assim as coisas, a tese pitagórica de que as coisas – todas as
coisas da natureza – expressam números ou, o que é o mesmo, a
tese de que o número ou a figura é a natureza das coisas,
equivale a considerar as coisas, na sua facticidade mais pura,
como instrumentos: não – ou não somente nem em primeiro
lugar – instrumentos ao serviço dos homens ou das
comunicação entre os homens, senão instrumentos, meios,
ferramentas, órgãos da natureza, estratégias mediante as quais a
vida se torna sensível para os viventes e enche com o seu fluxo
os seus recipientes.
A vibração de uma corda, segundo todos os testemunhos,
parece ser o cânone fundamental deste modelo (e inclusive se
atribui a Pitágoras a invenção do kanôn ou monocórdio,
instrumento de uma só corda sobre uma ponte móvel). Mas a
vibração de uma corda mede-se em termos de amplitude e de
frequência ou, como diziam os gregos, de velocidade, estando o
incremento de velocidade relacionado normalmente com o
incremento de altura tonal. Esta relação da intensidade de um
som com a sua velocidade assinala numa direcção que
frequentemente passa inadvertida: os «descobrimentos» relativos
à música, que sempre se supõem relacionados com as proporções
dos intervalos, são descobrimentos rítmicos, pois «ritmo» (e não
medida) é o que significa a «proporção» grega; esse «continuum
do som» com o que as figuras fazem música não pode ser somente
a continuidade intensiva das tonalidades ou graus de tensão,
desde o infinitamente baixo até ao infinitamente alto, senão
também a continuidade infinitamente polirrítmica dos graus de
rapidez ou de lentidão, de aceleração ou de «ralentização», os
graus de movimento e de repouso, Motus et Quies.

56
E cantam na planura

5. Que as suas trovas fascinantes

Agora, isto coincide expressamente com as variações de


Deleuze sobre o tema espinozista «o que pode um corpo»: os
corpos medem-me pelas suas intensidades e pelas suas
velocidades. Aqui, os números (proporções numéricas entre os
intervalos musicais) pressupõem uma diferença de tempo, e a
harmonia, adequação de coisas distintas, não é somente «afi-
nação» ou afinidade de intensidades tonais, senão também
concordância dos tempos ou das durações dos sons: também o
ritmo é proporção numérica, figura que joga com o
incomensurável. A natureza é um repertório de diferentes
espacialidades e temporalidades distintas, uma colecção de
«medidas» incomensuráveis: a temporalidade das flores (o seu
tempo de crescimento e os seus ciclos reprodutores) não é
comensurável com as eras geológicas da Terra ou com a idade
das galáxias, como a espacialidade do caranguejo (as dimensões,
as orientações e os vectores do seu spatium) é incomensurável
com a da vespa ou a do astronauta. O ritmo – que, como a
intensidade, é em rigor uma condição anterior à música mais
que música enquanto tal – é a combinação de espaços e tempos
incomensuráveis, a relação entre coisas desproporcionadas, a
mistura bem medida do imenso. “É bem sabido que o ritmo
não é medida ou cadência, nem sequer irregular... o ritmo é o
Desigual ou o Incomensurável, não actua num espaço-tempo
homogéneo, senão entre blocos heterogéneos..., o ritmo tem
lugar entre dois meios, ou entre dois inter-meios, como entre
duas águas, entre duas horas, entre cão e lobo, Twilight ou
Zweilicht”. O ritmo não é medida, nem cadência, nem
regularidade, nem compasso, o ritmo é intervalo.

6. Eu quero aprende-las

No ano de 1618, René Descartes, fundador da filosofia e da


ciência moderna, escreve um breve tratado de música.
Reconhece desde o princípio duas únicas propriedades ao som:

57
José Luis Pardo

a intensio (a sua condição de agudo ou grave, segundo a tensão


das superfícies que o produzem) e a duratio (ou seja, as partes
nas que se encontra dividido). Neste contexto, Descartes faz
uma observação que não tem deixado de suscitar a perplexidade
dos seus leitores contemporâneos, já que relata a velha anedota
segundo a qual um tambor feito de pele de cordeiro emudece
perante o som de outro confeccionado com pele de lobo.
Gilson manifestava a sua surpresa ante esta citação, na qual
reconhecia o que provavelmente seria o único resíduo que
deixaram na obra do filósofo “aquelas velhas tradições que
povoam a Idade Média e o Renascimento”, as tradições mágico-
misteriosas das simpatias e antipatias cosmológicas. Um resíduo
arcaico nos tambores, pressentimento quiçá de outro mundo,
de outro tempo, de outro ritmo, de outra música que não é,
que já não pode ser a música de Descartes, música de percussão
e não de corda. Os tambores são a excepção.
A natureza soa, com certa intensidade, com certa duração. A
intensidade marca, sem dúvida, umbrais: por cima ou por
debaixo de certa intensidade, a natureza continua a soar, mas
nós já não podemos ouvi-la; por cima de certa tensão, há
materiais que se partem, por debaixo de certa tensão, a vibração
pode ser nula. Mas não se trata de umbrais meramente fisio-
lógicos. Os sons não só se ouvem, senão que se sentem com
certas qualificações afectivas. A natureza soa no ar, mas ressoa
na alma: ao soar, a natureza não só devém sensação, senão
também e imediatamente sentimento. Comunicação das
substâncias. Conexão da alma e do corpo. O fluxo sanguíneo
sofre perturbações, turbulências provocadas pelo seu encontro
com fluxos que provêem do exterior. A circulação do sangue é o
ritmo dessas turbulências, a cantilena que se grava na glândula
pineal construindo uma figura, um refrão, uma ladainha, uma
muleta que, ao ser lida – ao ser ouvida, ao ser cantada ou
repetida – pela alma, se converte numa inclinação mental, num
afecto, num hábito, num habitat.
Desde este ponto de vista, a segunda característica do som, a
duração, requer uma explicação mais detalhada que a
intensidade, pois não diz respeito unicamente ao ouvido, senão
também à imaginação, à memória e ao hábito. “O tempo nos

58
E cantam na planura

sons” – diz Descartes – “deve estar constituído por partes


iguais”. A razão é óbvia: são as mais fáceis de sentir, e Descartes
vem de definir a facilidade sensível pela minimização das
diferenças (percebemos melhor as coisas quantas menos
diferenças comportam); pode haver ritmos ou durações de
partes desiguais, mas se a desigualdade superasse certa
proporção, o ouvido já não poderia distingui-las, a música não se
poderia cantar, não perceberíamos mediante a imaginação a
cantilena como “uma unidade composta por numerosos
membros iguais” porque não conseguiríamos recordar o primei-
ro quando escutamos o último e, em sentido estrito, já não
haveria canção em absoluto. Só há uma excepção a esta regra: “a
força do tempo é tal na Música que pode produzir qualquer
prazer por si mesmo, como é evidente no tambor, instrumento
militar, no qual não cabe considerar outra coisa que a medida.
E esta pode estar formada, segundo estimo, não só de duas ou
três partes, senão, talvez, inclusive de cinco, sete ou mais.
Porque, como neste instrumento o sentido não tem que prestar
atenção a nada excepto ao tempo, nele pode haver uma maior
diversidade, para que cative mais o sentido”. Os tambores são a
excepção.

7. De onde serão? (Ai, Mamã!)

A natureza soa, devém sonora por caminhos ainda misterio-


sos que o físico deve esclarecer, mas não pode soar de qualquer
modo, não todo som é música. Há, por assim dizer, deste
modo, uma espécie de «a priori da sensibilidade»: para que a
natureza chegue a devir música é necessária uma certa intensi-
dade e uma certa duração, um certo tom e um certo ritmo. Se o
som se compõe de muitas diferenças (se comporta muitas «par-
tes desiguais» ou heterogéneas), encontrá-lo-emos arrítmico,
transbordará as capacidades da nossa imaginação: transbordará
a nossa memória porque não poderemos lembrar a primeira
parte quando tenha lugar a última, transbordará os nossos
hábitos porque, ao não poder lembrar o anterior, não po-

59
José Luis Pardo

deremos imaginar o que há-de vir, não poderemos achar a regra


que governa a sucessão, a lei que rege a sequência.
Salvo nos tambores, instrumentos de guerra que admitem
ritmos mais complexos, durações carregadas de diversidade,
porque neles a própria duração torna-se intensiva, porque são
apenas ritmo, ritmo puro, puro tempo. A proporção dobra-se,
redobra-se. Assim, nos limites da imaginação se adivinha uma
espécie de ruptura da harmonia, um limite das consonâncias no
que a natureza sonora, ao complicar os seus ritmos, abandona a
sua estrutura musical para devir caos, som desmedido, imenso,
ruído desordenado, dor e já não prazer dos sentidos, estridência
insuportável ou silêncio exasperante. Como se se tratasse de
uma cantilena composta de silêncios, de intervalos, um refrão
cujas notas fossem exactamente o que não se pode ouvir, o que
está entre uma nota e a seguinte ou a anterior, o rumor
inclemente da tempestade, da grande onda em cuja corrente se
inserem as ladainhas, o fundo amorfo no qual os instrumentos
recortam as formas e as figuras, os espaços e os tempos. A
natureza continua a soar, mas o seu som já não é música senão
ruído; ou, no melhor dos casos, é ritmo, ritmo puro sem
melodia, variedade sónica que, no limite e ainda nos limites do
audível, pode conter infinitas desigualdades temporais.
Do mesmo modo que há na natureza infinitas intensidades,
infinitas vibrações de matérias estiradas que não podemos ouvir
(ou, ao menos, não com claridade e distinção), a repetição
periódica de tais sons constitui um conjunto de ritmos dos qua-
is há muitos (inumeráveis) que a nossa imaginação não pode
medir em termos temporais, que desafiam a potência da nossa
memória e dos nossos hábitos, que constituem no domínio de
um som a-métrico que nós percebemos como arrítmico ainda
que seja perfeitamente (infinitamente) rítmico. Variações que o
ouvido já não pode distinguir (mas que a mão percutindo a pele
tensa do tambor pode continuar a experimentar, repercutindo e
redobrando na sensibilidade total do corpo, para além do
domínio meramente acústico), que já não produzem prazer
(senão acaso temor e tremor, como os tambores rituais ou
bélicos), uma música que já não se pode cantar, mas sim bailar.

60
E cantam na planura

8. Serão da Havana? Serão de Santiago (terra soberana)?

Uma música que não se pode imaginar nem recordar,


trautear nem medir. A música imensa da natureza sonora, da
qual a «música humana» não é mais que uma pequena parte,
uma pequena ilha ou arquipélago de sons bem medidos e
«agradáveis». Precisamente porque a Physis é matemática faz
sentido que a filosofia comece pela música, e não só pela
música como arte destinada ao prazer do ouvido, senão pelos
ritmos puros ou durações a-temporais (amétricas); precisamente
porque a natureza se tornou insensível e inimaginável pode a
filosofia assenhorar-se do problema de como o imenso-
insensível (os ritmos inimagináveis que não se podem medir,
que não se podem ouvir) pode chegar a devir cantilena, de
como o inaudível devém audível, de qual é a mathêsis mediante
à qual a própria Physis devém sensível e sentida.
Mas toda esta cantilena desafina estridentemente com a can-
ção mais aplaudida pelos filósofos do século XX, e acaso com a
própria canção da filosofia desde que se produzisse o que María
Zambrano chamava «a condenação aristotélica dos pitagóricos»,
uma canção cujo refrão fui criado por Heidegger e reza assim: a
linguagem é a casa do ser (deixem-se de músicas, nunca sairão da
linguagem).
Mas qualquer casa tem, se não um piso de cima e um de baixo
(pois a filosofia moderna constata que é impossível distinguir
níveis de linguagem altos ou baixos, nenhuma planta pode ser
mais elevada o mais profunda que outra, todas se estendem
numa superfície inabarcável), ao menos um exterior e um interior,
pois de outro modo nem sequer seria uma casa. O exterior da
casa, aquele que está do outro lado da sua porta, é o nada ou o
caos (e por isso é preciso que a casa do ser não tenha portas
nem janelas, porque todo o sentido e a verdade da linguagem se
escapariam de um só golpe de vento por tais orifícios se se
deixasse penetrar a corrente do não-ser). Fora da linguagem
nada é. De modo que a suposição mais prudente, por muito
aberrante que possa parecer, seria que habitamos uma casa que
não tem exterior, que vivemos confinados num interior sem exterior

61
José Luis Pardo

no qual jamais entrámos e do qual jamais – nem sequer pelo


negro buraco da morte – sairemos.
Mas, então, o que vemos quando olhamos através das
janelas? De onde procedem as imagens, as figuras, as formas? De
onde procedem as canções? De onde são os cantores? Só
podemos supor que as figuras foram gravadas nas paredes por
outros habitantes que nos precederam nesta – humana, dema-
siado humana – morada, outros que usaram a casa antes que
nós. E só abusivamente poderíamos pensar que tais representa-
ções são o modo em que imaginamos aquilo que não podemos ver, o
modo em que representamos o que não existe (o exterior), o
modo em que inventamos a ilusão de um Fora. Haveria antes
que reconhecer que se trata do mesmo modo que habitamos a
casa (habitar a casa consiste em povoa-la de imagens, de fan-
tasmas, de ícones ou cópias que não têm modelo algum). Feroz anti-
platonismo: ao menos, a caverna platónica apresentava uma a-
bertura de onde se projectavam as sombras. Mas agora, nesta
casa sombria nos seus sótãos, luminosa nas alturas, claro-escura
rente ao chão, as sombras não procedem de nenhuma parte. Fim da
metafísica, sem dúvida, se metafísica é a distinção entre o
exterior e o interior, entre o adentro e o fora. Nem sequer
podemos aceitar a ideia de que exista algo que não podemos ver,
pois existir é ser e o ser está dentro da casa, não fora.

9. Som da Loma.

Mas qualquer casa tem um exterior ainda noutro sentido: já


não aquele que está «do outro lado da porta», para além do
dintel, senão o outro lado da porta enquanto tal, ou seja, a
fachada da casa, o seu rosto, a sua pele (que há-de existir, dado
que as figuras pintadas no interior da casa têm espessura, volu-
me, dado que as formas soam). Esta fachada não se pode ver
(nem sequer mediante uma ilusão óptica) quando se olha, de
dentro, para o exterior. Parece elementar: para ver este Fora da
casa haveria que sair dela. E, se a linguagem fosse a casa do ser,
isso significaria tanto como instalar-se em cheio no nada,

62
E cantam na planura

significaria tanto como não ser. E, como seria possível ver sem
ser, sem poder dizer o que se vê? Só poderia ver a fachada alguém
que não habitasse a casa, alguém cujo ser não estivesse domi-
ciliado na linguagem. As bestas, os deuses, as plantas, as pedras,
os idiotas. Mas não, em todo o caso, na medida em que todos e-
les são, ou seja, não na medida em que os vemos da nossa casa,
falamos deles e compreendemo-los ou usamo-los, senão, ao
contrário, na medida em que eles não são nada (para nós), na
medida em que nos vêm de fora, com um olhar que nos resulta
ao mesmo tempo invisível e incompreensível; a verdade do que
dizemos só reside no silêncio que eles (todos os que não somos
nós, os que não são como nós) guardam acerca de nós (e que nos
resulta inaudível e ininteligível).
O que acontece é que uma casa sem fachada, sem pele, não é
uma casa sem ser ao mesmo tempo (mas não no mesmo sentido) a
intempérie do nada, o inclemente não ser. Como podemos
sequer dizer que temos uma morada? Porque um interior sem
exterior não é em absoluto um interior, não é cavidade sem ser
superfície ou protuberância, não é morada protectora sem ser
ao mesmo tempo a mais despida das intempéries, não é interior
sem ser ao mesmo tempo exterior. Ali onde não há pontos de
referência externos nem sequer tem sentido distinguir entre
profundidade poética, altura científica e vulgar mediania da
linguagem ordinária, nem sequer pode dizer-se que a casa tenha
pisos, assoalhadas diferentes, lugares discerníveis, porque o ser
não tem casa, (não) estamos presos em nenhuma parte.
Descobrimos assim uma saída da prisão da linguagem, mas só
para nos encontrarmos de novo no meio da noite, perdido o
caminho, cantando uma miserável ladainha de origem
desconhecida.

10. E cantam na planura.

A nossa morada está feita de músicas, refrães, a nossa casa é


uma deformação do nada, uma prega do caos, uma turbulência
do tempo ou um remoinho do espaço, um repertório de formas

63
José Luis Pardo

e figuras, de ritmos e posturas. A canção não descreve nem


narra, não se refere à realidade senão que a verte e se (di)-verte
com ela, e por isso é inteiramente verso; é uma língua que não
conta (o que se passa) senão que o canta e se decanta nele, é
música que baila os ritmos das estações, que faz com o seu
corpo as figuras e imagens dos lugares, língua sem olhos para
contemplar aquilo do que goza, sem mãos para utilizá-lo. Nem
prosa seca nem relato, a música constitui o Fora da linguagem:
tem toda a roupagem externa da palavra (ritmos, imagens, tons,
acentos, sensações) sem o seu conteúdo «lógico» ou «narrativo»:
é cantilena. A subjectividade que se constitui como canção da
natureza mediante essa individuação pelo gozo é, portanto, uma
subjectividade-recipiente, passional ainda que não passiva (já
que «receber» é também uma acção). O sujeito é um canto
(rodado). Um cântaro (quebrado).
A criança salva-se do caos com a sua ladainha, constrói a sua
morada à força de sintonias que dão à sua casa uma aparência
sólida, faz-se adulto, acumula propriedades, distribui sintonias e
cartazes para marcar e defender o seu território. Mas eis aqui
que continua a estar fora, no «fora do seu casa», fora da
linguagem, senão justamente no Fora da linguagem, nas
imediações do sentido, nos limites da palavra e da história, no
limite das formas, das figuras e dos ritmos que, ao mesmo
tempo que o protegem contra a deformidade, o situam
novamente no meio da noite, dessa grande onda na qual
conseguiu instalar-se, no ponto de contacto entre o interior e o
exterior, entre o caos e o ritmo. E então o problema consiste em
determinar em que condições é possível cantar o que não se
pode cantar, desconjuntar o corpo para poder continuar a
dançar 6 , que atletismo afectivo 7 , que alianças com que forças
cósmicas são precisas para que o movimento continue, para
desbloquear os fluxos sem se afundar no caos.
Isto é, finalmente, o que essa cantilena deleuziana tem a ver
com a filosofia, pois tal é o problema próprio da filosofia:
pensar as figuras, os ritmos, os intervalos, encontrar o conceito
que «corresponde» a tal ou tal cantilena, elevar o pensamento a
certo grau de tensão, submete-lo a tal ou tal velocidade, pensar
o intervalo da representação, pensar nos interstícios da

64
E cantam na planura

representação, na interrupção – no reverso, na reversão – do


próprio pensamento.

Traduzido do castelhano por Susana Guerra

Notas
1
O título da secção, como os das seguintes secções deste artigo, repro-
duzem os versos da famosa canção cubana de Miguel Matamoros
(1897-1971), Son de la loma (o Mamá, son de la loma, como fora intitu-
lada originalmente pelo próprio Matamoros): “Mamá, yo quiero
saber/de dónde son los cantantes,/que los encuentro galantes/y los
quiero conocer,/con sus trovas fascinantes/que me las quiero apren-
der./¿De dónde serán?/ ¿Serán de la Habana?/¿Serán de Santia-
go,/tierra soberana?/Son de la loma/y cantan en llano./Mamá, ellos
son de la loma./Mamá, ellos cantan en llano./Mamá, ellos son de la
loma./Mamá, ellos cantan en llano./Son de la loma/y cantan en lla-
no.” (Nota da tradutora).
2
M. Serres, Le Naissance das Phesique, París, Ed. de Minuit, 1977, p. 187
(trad. cast. Ed. Pre-textos, no prelo).
3
Deleuze, "Les intercesseurs", en Pourparlers, París, Ed. de Minuit, París,
1990, p. 165.
4
Mille Plateaux, Ed. de Minuit, París, 1980, pp. 395-396 (trad. cast. J.
Vázquez e U. Larraceleta, Mil Mesetas, Ed. Pre-textos, Valencia, 1988, p.
327)
5
Ibíd.
6
O que Artaud chamava «crueldade» era então uma técnica para refazer
o homem “fazendo-o passar, uma vez mais, a última, pela mesa da
autópsia para refazer a sua anatomia... O homem está enfermo porque
está mal construído... Que me atem se quiserem, mas não existe nada
mais inútil que um órgão. Quando lhe dermos um corpo sem órgãos,
então libertá-lo-emos de todos os seus automatismos e devolvido a sua
verdadeira liberdade. Então voltaremos a ensinar-lhe a dançar ao
contrário, como no delírio dos bailes populares, e esse revés será o seu
verdadeiro direito... Façam com que a anatomia humana dance por
fim” (Artaud, "El teatro das crueldad", trad. cast. R. Font, en Van Gogh,
el suicidado das sociedad e Para acabar de uma vez con el juicio de Dios, Ed.
Fundamentos, Madrid, 1977). É quase inevitável pensar nos
"tormentos" aos que tanto aludem os místicos: a mortificação do corpo
não pode ter nunca mais que um sentido preparatório ou metafórico.
Baste um só exemplo: na Introdução a uma obra posterior à Guía
Espiritual, a Defensa da Contemplación, Miguel de Molinos apoia-se em
São Jerónimo para defender a necessidade de se fabricar um corpo novo
-que chama "interior"- cujo sentido é "o sentido da vida", e cuja
construção exige a purga dos cinco sentidos para por de pé outros cinco
sentidos –digamo-lo assim- "espirituais": está a fabricar-se um monstro,

65
José Luis Pardo

um ser que não é humano. O envelhecimento que Molinos pede à alma


assim guiada não é um envelhecimento humano senão sobre-humano
(ou melhor, infra-humano), o nada na qual a convida a submergir-se
não é um nada human senão infra-humano, inclusive mais vil que a
animalidade (que nunca pode ser de todo miserável neste sentido), mais
baixa que a vegetalidade e que a mineralidade: blasfémia, luxúria,
maldição, desolação, cólera, mar de obscenidade no qual exploram as
paixões desatadas quando carecem justamente de aquilo que tanto no
oratório jesuítico como no pensamento racionalista pode refreá-las (o
entendimento e a vontade), oceano de ansiedade sem limites, de
angústia sem termo que se confunde com o inferno, presença do
demoníaco. Mas esse envelhecimento é o modo que a alma tem de
"dançar" uma música que desborda por todas as partes o seu recipiente,
o único modo no qual a alma pode cantar uma música que já não se
pode ouvir, imaginar nem recordar.
7
“Um Atletismo que não é orgânico ou muscular, um «atletismo
afectivo» que seria o dobro inorgânico daquele, um atletismo do devir
que unicamente revela umas forças que não são as suas, «espectro
plástico»” (Qu'est-ce que la philosophie?, Ed. de Minuit, París, 1991, p. 163,
trad. cast. Th. Kauf, Ed. Anagrama, Barcelona, 1993).

66
De Sartre a Deleuze
Onde é que pára o compromisso literário?
Eduardo Pellejero

Muitas vezes o pó levantado pela polémica que suscita uma


obra acaba por enterrá-la. Foi o que passou com a formulação
sartreana do compromisso literário. As coisas aconteceram de
tal maneira que nos perguntamos hoje se continua a ter algum
sentido continuar a ler O que é a literatura?
Tê-lo-á, em todo o caso (e esta é uma hipótese de trabalho),
se conseguirmos sobrepor-nos à ideia de que Sartre é o fim de
uma época, ou o começo de outra. Tê-lo-á se conseguimos dei-
xar de ver nele um modelo, para recuperar a corrente de ar
fresco que representou para muitos em seu momento. Tê-lo-á,
por fim, ainda que não seja mais que por isto: Se as teorias da
arte pela arte, ao pôr fim à necessidade de subordinar a arte a
qualquer outro valor para fundamentar a sua existência, abrem
o espaço necessário para que comece a questionar-se sobre si
mesma, a doutrina sartreana do compromisso literário, por sua
parte, ao recusar taxativamente a ideia de que a escrita não se
tem mais que a si mesma como objecto, abre o espaço para uma
problematização do valor político da literatura que vai muito
para além das respostas concretas que possa aportar-nos na sua
própria obra.
Quero dizer: depois de Sartre, a problematização do com-
promisso literário torna-se de uma urgência antes desconhecida;
depois de Sartre o problema do compromisso passa a ser um
problema literário incontornável. Independentemente da ideia
que façamos sobre a literatura, já não nos é possível pensar que
o escritor escreva apenas para se mesmo. E isto é Sartre quem o
formula para nós quase de um modo fundacional. Podemos
estar em desacordo em muitas coisas com Sartre, mas temos que
concordar nisto, que é essencial: “só há arte por e para os
demais” 1 .

67
Eduardo Pellejero

A partir daqui, o problema da literatura deixa de ser o da


distância que vai do formalismo puro ao realismo crítico, para
passar a ser o da natureza do leitor ao qual se dirige uma obra e
do agenciamento dos leitores num público associado: Para
quem se escreve? Para quem, se não para todos? E enquanto
que sujeitos constituídos ou por constituir? Enquanto que for-
mam parte de grupos já agenciados em etnias, nações e classes?
Ou enquanto que singularidades dispersas, à procura de uma
identidade, de uma comunidade, de um povo?

A primeira resposta que nos oferece Sartre a estas perguntas


constitui uma determinação negativa, mas crítica, na medida
em que rompe com o preconceito humanista e moderno de um
sujeito neutro e universal (cito Sartre): “À primeira vista, não há
dúvida: escreve-se para o leitor universal e temos visto, com
efeito, que a exigência do escritor se dirige em princípio a todos
os homens. Mas as descrições que precedem são ideais. Na ver-
dade, não há liberdade dada; há que conquistar-se sobre as pai-
xões, a raça, a classe e a nação e consigo aos demais homens. O
que importa é a figura singular do obstáculo que há que superar,
da resistência que há que vencer; é isto o que, em cada circuns-
tância, dá a sua figura à liberdade” 2 .
Isto é, a liberdade, como apelo ou como responsabilidade,
não é um universal, senão que sempre deve ser pensada em
situação, isto é, em vista dos obstáculos e às resistências que nos
separam da mesma; e, nessa mesma medida, a relação do escri-
tor com o leitor está associada a essas resistências e esses obstá-
culos comuns, às situações singulares nas que se vêm compro-
metidos como homens livres.
A escrita aparece assim associada a uma certa necessidade. O
escritor encontra o seu leitor numa ratoeira, rodeado de muros,
sem saídas, e, penetrado pela urgência destes problemas, procu-
ra propor soluções na unidade criadora da sua obra, ou seja, na
indistinção de um movimento de livre criação. Ante um dilema,
ante um beco sem saída, ante uma série de impossibilidades, o
escritor faz aparecer de pronto um terceiro termo, até então
invisível 3 .

68
De Sartre a Deleuze

É neste sentido que a liberdade, para Sartre, não é nunca


um dado, senão um acto de invenção: “Uma saída inventa-se. E
cada um, inventando a sua própria saída, inventa-se a si mesmo.
O homem está por inventar cada dia. A acção histórica não se
reduz jamais a uma eleição entre coisas dadas, senão que se
caracteriza sempre pela invenção de soluções novas a partir de
uma solução definida” 4 .

Mais concretamente, falando do escritor afro-americano


Richard Wright 5 , Sartre sugere que desde esta perspectiva a
posição do escritor comprometido, a respeito da sociedade na
que escreve, é ou deve ser a de uma certa exterioridade; o escri-
tor comprometido escreve desde fora [du dehors]: “se um negro
dos Estados Unidos descobre uma vocação de escritor, descobre
ao mesmo tempo o seu tema: é o homem que vê os brancos
desde fora, que se assimila à cultura branca desde fora, e todos
os seus livros mostrarão a alienação da raça negra no seio da
sociedade norte-americana” 6 .
Esta referência do escritor ao fora passa por uma tomada de
consciência -por parte do escritor- da contradição existente
entre ele e o seu público (conflito); o segredo do escritor com-
prometido não é superar a distância que o separa do seu públi-
co, senão explorar essa distância de um modo crítico: o escritor
vem “desde fora aos seus leitores”, considera-os “com assombro”,
ou, melhor ainda, sente o peso de “um olhar assombrado, de
consciências estranhas (minorias étnicas, classes oprimidas,
etc.)” 7 , olhar que o leva a escrever o que escreve. Isto é, o escri-
tor alcança uma perspectiva impessoal, onde reencontra o olhar
dos excluídos de uma sociedade, dos que ocupam as suas mar-
gens, dos que, virtualmente, constituem o seu fora.
De alguma maneira, podemos dizer que assim o escritor vê a
sociedade desde o seu lado maior (classe opressora, à qual per-
tence, enquanto elite intelectual) e desde o seu lado menor
(oprimidos entre os quais, inclusive no encontrando leitores,
tem o seu público virtual), para logo fazer jogar essa distância
criticamente.

69
Eduardo Pellejero

Esta conexão com o fora é vital para o escritor, que assim


ganha uma potência expressiva que o excede como sujeito, mas
é também vital para a gente que habita essa exterioridade, na
medida em que “uma classe não pode adquirir a sua consciên-
cia de classe senão vendo-se ao mesmo tempo desde o interior e
desde o fora; dito de outra maneira, se beneficia de colabora-
ções exteriores: é para isto que servem os intelectuais, eternos
desclassados” 8 .
O segredo da relação crítica do escritor com a sua época
radica, portanto, nesta capacidade para saber-se conectar com o
que fica do lado de fora da sociedade na que escreve. Trata-se
de uma condição de possibilidade para a sua escrita, mas não
deve esquecer-se que se trata de uma condição histórica; as
ratoeiras são sempre singulares, constituem uma situação, uma
espécie de campo empírico transcendental. O fora, neste senti-
do, não é nem pode ser pensado como um absoluto, ao menos
se se quer preservar a efectividade da literatura. Tanto estando
desconectado do fora como pensando o fora como um para
além de toda a sociedade, o escritor acaba por encerrar-se a si
mesmo numa ratoeira, abdicando, nessa mesma medida, das
possibilidades de invenção e de resistência das que é capaz.
Exemplo do primeiro é o artista de finais do século XIX que,
afundado no seu meio não chega a julgar desde fora a sociedade
na que vive, tomando a burguesia como uma espécie natural e
não pela classe opressora 9 . Exemplo do segundo, o escritor
realista, que neutraliza os acontecimentos do universo, pondo-
os entre parêntesis, como se nem ele nem o seu público fossem
de este mundo, esforçando-se por alcançar o ponto de vista de
Deus, ou, se se prefere, do vazio absoluto 10 .

Pelo contrário, quando o escritor é capaz de situar-se no seu


tempo, mas contra o seu tempo, em favor de um tempo por vir,
como dizia Nietzsche, conectando as suas capacidades actuais,
as armas da sua época, com as potências virtuais daqueles que
habitam as margens da sociedade na que escreve, quando é
capaz de aliar a sua erudição a esses saberes menores, como
dizia Foucault, então escrever pode ser uma força efectiva para

70
De Sartre a Deleuze

além da cultura e do mundo das letras, e começar a operar


sobre o dividual 11 , o político, o social.
Habitando esta distância constitutiva de toda a sociedade,
conectando-se com o que deixa fora, o escritor encontra então a
potência, a perspectiva para fazer uma literatura verdadeiramen-
te revolucionária, para criticar uma classe e inclusive abrir o
espaço para o surgimento de outra. E se trata talvez da potência
maior da literatura: abrir novos espaços de possíveis para a
constituição de novas formas de subjectividade (individuais e
colectivas).

Então, voltando a Sartre, se Richard Wright não se dirige ao


homem universal, enquanto que constitui uma abstracção des-
mobilizante, na medida em que não está comprometido em
nenhuma época determinada, a quem poderá dirigir-se? Não
aos racistas brancos de Virginia ou Carolina, certamente, que já
tomaram partido e não abriram livros assim. Tampouco aos
camponeses negros do sul do Louisiana, gente que não sabe ler.
Por fim, ao menos por princípio, não a uma certa elite europeia,
que está longe e pouco se preocupa pela condição da sua gente.
Sartre diz: “Richard Wright dirige-se aos negros cultos do norte
e aos norte-americanos brancos de boa vontade (intelectuais,
democratas de esquerda, radicais, operários, etc.)” 12 .
Neste sentido, Wright encontra leitores, mas não um públi-
co. Há gente que o lê, mas falta isto que dá a uma obra um
sujeito próprio, um sujeito da opressão e da indignação, do
sofrimento e da revolta que anima a sua obra (o povo é o que
falta, dirá Deleuze). Existe uma ruptura muito pronunciada no
seio desse público de facto 13 . A gente está aí, mas falta algo que
a una, que os agencie como comunidade, como colectividade
ou como classe.
Sartre parecera entrever o que a filosofia posterior abraçará
como um imperativo para o pensamento: procurar um modo de
agenciar a multidão sem trair as diferenças que a constituem
como tal. Assim, de Wright poderá dizer que, “ao escrever para
um público fragmentado, soube manter e superar a fragmenta-
ção, fazendo dela o pretexto para uma obra de arte” 14 .

71
Eduardo Pellejero

É sobre este espaço fragmentado (o situacionismo é um plu-


ralismo), que não pressupõe como dadas as alternativas possí-
veis a uma situação crítica (é uma ratoeira) nem o sujeito da
liberdade criadora capaz de abrir uma brecha (o homem está
por inventar), onde, estritamente, o compromisso deve come-
çar 15 .
O apelo da literatura não é aos partidos, às nações ou às
classes, nem sequer aos homens enquanto sujeitos constituídos,
senão à potencial liberdade dos seus leitores. Sartre vê isto per-
feitamente quando procura situar-se sobre o horizonte da guerra
(da guerra futura que se perfila sobre as ruínas da guerra termi-
nada): por um lado, negando-se a eleger entre perspectivas que
não conduzem mais que a esta (ratoeira), e, por outro, procu-
rando traçar uma linha de fuga em conexão com o fora (deser-
to) 16 , na esperança de que na fuga da primeira surjam novas
formas de agenciamento das liberdades individuais para habitar
o segundo (um povo).

A espera de que o novo, a mudança ou a liberdade adve-


nham ao pensamento desde fora, isto é, a partir do que excede
os padrões das representações políticas e intelectuais, assim
como a assimilação deste fora às minorias e aos loucos, aos revo-
lucionários e aos artistas, tem sido um sonho recorrente desde
que Sartre nos deu a que é talvez a sua primeira formulação 17 .
Quero dizer, cada vez que a sensação de encerro, e de falta de
alternativas existenciais, culturais e políticas, se faz notar, a ape-
lação ao fora volta a reluzir.
A esquerda contemporânea mais lúcida que conheço, tam-
bém a mais desesperançada, devo dizer, já não consegue susten-
tar este sonho. No Brasil, Peter Pal Pelbart, retomando as análi-
ses de Michál Hardt e Toni Negri, nota que a nossa situação
parecera ter mudado por completo: “A claustrofobia política
contemporânea parece ser só um indício, entre muitos outros,
de uma situação para a qual parecemos desarmados, a saber: a
de um pensamento sem fora num mundo sem exterioridade” 18 .
Ao mesmo tempo, o pensamento contemporâneo continua
a renovar um discurso que afirma taxativamente a impossibili-

72
De Sartre a Deleuze

dade de qualquer totalização do real pela representação 19 . Ante


a situação actual, então, do que se trataria seria menos de baixar
os braços que de avaliar até que ponto a referência ao fora con-
tinua a ser vital para o pensamento e pode ainda permitir à
literatura romper com as totalizações da realidade pelas mais
diversas formas da representação, arrancando-nos à existência
quotidiana, à nossa alienação como sujeitos de uma história
que não conta com o que nos torna singulares, abrindo-nos um
espaço para a resistência ou uma linha de abertura ao futuro.
Digo que se tornou necessário repensar esta referência ao
fora, para além de qualquer intento de fazer um absoluto de
uma determinação qualquer da mesma; pensar o fora não como
o que Blanchot chamava «a parte do fogo», isto é, como aquilo
com o que a cultura não pode conviver e reduz a cinzas sistema-
ticamente, senão como «campo informal de relações não repre-
sentáveis». «Fora da representação», então, que por debaixo da
sua homogeneização e fixação nas malhas do saber e do poder
pode vir a relançar a expressão para além das suas determina-
ções históricas 20 .

Analisemos, então, à luz destas críticas, a forma que a ques-


tão assume na obra de Deleuze. Deste Deleuze que via justa-
mente em Sartre o Fora [Dehors] da sua geração 21 . Deste Deleu-
ze que recupera o essencial da problematização sartreana da
literatura na hora de levantar as principais questões da sua pró-
pria perspectiva 22 . Mas também a este Deleuze que retoma
todas essas coisas para leva-las para além do círculo dialéctico
em que pareciam encontrar-se encerradas em Sartre.
O que encontramos então é que Deleuze não só restitui toda
a sua potência à arte comprometida, senão que ao mesmo tem-
po o libera dos compromissos assumidos com as filosofias da
história (compromissos que assombravam ainda a filosofia de
Sartre).

Deleuze permite-nos compreender melhor que Sartre que as


minorias não constituíam o novo sujeito da literatura, ou da

73
Eduardo Pellejero

história, senão apenas uma manifestação privilegiada da perma-


nente variação do real, que continuamente vem romper com
todas as totalizações que a conta do saber ou do poder incautam
o movimento da gente, instrumentalizando esta energia não
ligada em representações mais ou menos homogeneizantes,
mais ou menos opressivas e desmobilizantes.
Desde este ponto de vista, “o fora designa menos um outro
espaço que uma força de arrebatamento (...) Concerne às forças
heterogéneas que afectam o pensamento, que o forçam a pensar
(...) aquilo que não pensa ainda” 23 .
O fora não são as minorias, que podem sempre vir a ganhar
um espaço no horizonte da representação (alienando assim o
movimento que as constitui como multidão), senão o que nas
minorias escapa a toda a representação, esta potência de varia-
ção, esta multiplicidade intrínseca, esta fuga que as mantém (ou
as condena) a permanecer a um lado, e que põe em questão o
equilíbrio do sistema 24 . As minorias, em si, como os negros do
sul aos que se dirigia Wright, tendem a ser facilmente integra-
das subsidiariamente nas representações maioritárias (dá-se-lhes
um lugar, ainda que não se trate mais que de um lugar inaceitá-
vel, na parte traseira dos autocarros, por exemplo), mas isto não
nega que por debaixo dessas representações subsista latente
uma agitação, que oportunamente desatada pelo trabalho da
expressão possa chegar a pôr tudo em causa (penso nessa jovem
negra que, um dia de Dezembro de 1955 em Montgomere,
Alabama, decide no autocarro permanecer no seu lugar, que
não era o seu).

Para Deleuze, o fora continua a ter como figuras privilegia-


das estes “mecanismos locais de bandos, margens, minorias, que
continuam a afirmar os direitos de sociedades segmentárias
contra os órgãos de poder do Estado” 25 , mas já não se trata de
idealizar as minorias, de pô-las fora de uma história que conti-
nuamente joga a instrumentalizá-las (e renovar assim, de alguma
forma, o mito do bom selvagem). Do que se trata é de retomar
por conta da expressão essa variação que tem lugar por debaixo
das representações das que se socorrem ou lhes são impostas. As

74
De Sartre a Deleuze

minorias invocadas pela literatura na sua procura do fora esca-


pam assim às filosofias da história, “não porque se contenta-
riam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regi-
das por uma estrutura fixa, senão porque são sociedades de
devir” 26 .
Com efeito, mesmo os ricos e os pobres, por exemplo, per-
tencem a um mesmo sistema de poder e de dominação, que os
reparte, sobre o horizonte de uma representação conflituosa e
institucionalizada, em «escravos pobres» e «escravos ricos»,
quando do que se trata é de fazer valer o trabalho subterrâneo
de uma variação livre que se introduza entre as malhas da escra-
vidão e desborde o conjunto 27 .
Então, enquanto que a maioria, ou inclusive as minorias
mais ou menos integradas na maioria, reenviam a um modelo
do poder, histórico ou estrutural, todo o mundo é potencial-
mente minoritário, na medida em que se desvia constantemente
desse modelo.
E correlativamente o fora, como a menoridade, comportará
dois sentidos: designará, por um lado, um estado de facto, a
situação de um grupo que ora é excluído da maioria, ora é
incluído como fracção subordinada a um padrão de medida que
dita a lei e fixa a maioria (e então dir-se-á que as mulheres, os
negros, o sul, o terceiro mundo são minorias, por muito nume-
rosos que sejam); mas, por outro lado, designará uma variação
em torno à unidade despótica, uma variação que escapa ao
sistema, um devir no qual se está comprometido e não já um
estado de facto (e então diremos que cada quem tem o seu sul e
o seu terceiro mundo). O fora tem por correlato este segundo
sentido do menor: “menoridade [que] designa a potência de um
devir, enquanto a maioria designa o poder ou a impotência de
um estado, de uma situação” 28 .

O escritor comprometido, portanto, procurará menos às


minorias que este devir-menor, esta linha de transformação que,
estando geralmente associada às mais diversas minorias, con-
cerne potencialmente a todos e concerne-lhe a si mesmo. Estra-
nha simbiose involutiva que faz dizer a tantos escritores: “Eu

75
Eduardo Pellejero

não sou dos vossos, eu sou o fora e o desterritorializado, «eu sou


de raça inferior (...) eu sou uma besta, um negro»” 29 .
As minorias tendem a normalizar-se quando se fecham sobre
30
si , pelo que o escritor procura com todos os seus meios extrair
das mesmas a linha de transformação em torno às quais se cons-
tituem. O escritor procura agenciar, pela conjunção da exterio-
ridade que as minorias personificam com respeito a uma repre-
sentação estabelecida e a interioridade que o constitui a si
mesmo, um plano de variação, onde já não há nem exteriorida-
de nem interioridade, senão apenas um agenciamento colectivo
de enunciação como dobra da linha do fora, isto é, da linha que
passa entre as representações que o saber e o poder propõe das
minorias (não menos que entre as representações que a gente
faz do escritor e das representações que o escritor faz de si mes-
mo) 31 .
Deleuze chama literatura menor a esta forma de compreen-
der ou postular as condições da literatura comprometida 32 .
Condições nas quais nem a subjectividade do autor nem a da
comunidade com a que entra em relação tem valor em si, senão
apenas como elementos de um agenciamento colectivo 33 : “Não
há sujeito, não há mais que agenciamentos colectivos de enun-
ciação –e a literatura expressa estes agenciamentos, em condi-
ções que não estão dadas exteriormente, e onde existem apenas
como potências diabólicas por vir ou como forças revolucioná-
rias por construir” 34 .
Relação não representativa entre multiplicidades, portanto,
entre uma comunidade que não deixa de explodir em minorias,
e o povo dos átomos do escritor 35 .
Tal é o compromisso da literatura a respeito de uma situação
de opressão qualquer. Devir-menor, na escrita, como (junto a)
uma tribo que devém-nómada no deserto, como (junto a) um
campesinato que devém-guerrilheiro na selva: “Artaud dizia:
escrever para os analfabetos, falar para os afásicos, pensar para
os acéfalos. Mas que significa «para»? Não é «dirigido a...», nem
sequer «em lugar de...». É «ante». Trata-se de uma questão de
devir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas
devém-no. Devém índio, não acaba de devi-lo, talvez «para que»

76
De Sartre a Deleuze

o índio que é índio devenha ele mesmo algo mais e se libere da


sua agonia” 36 .

Já não é possível separar a arte da luta contra a cultura, da


confrontação das raças, da superação dos umbrais históricos 37 .
Correlativamente, o escritor deixa de ser um autor para pas-
sar a ser um operador, isto é, agente de um movimento de sub-
tracção ou de amputação dos elementos que tendem a homo-
geneizar e estabilizar a realidade social, movimento que vê
dobrado por outro movimento que pode chegar a fazer nascer e
proliferar algo inesperado 38 . Em outras palavras: Escreve-se
sempre para dar vida, para liberar a vida ali onde está presa,
para traçar linhas de fuga, para fazer ver e pensar algo que havia
permanecido na sombra, obscurecido pelas representações do
saber e do poder, entidades cuja existência nem se suspeitava.
O presente como estado de facto que de jure pretende-se pon-
tual, homogéneo e monolítico, não se combate pela referência à
sua fundação na história sobre uma injustiça, uma imoralidade
ou uma estupidez, senão pela sua desmultiplicação numa actua-
lidade multifacetada, heterogénea, trabalhada pela latência do
que a excede, do que é deixado de lado pela linguagem e as
instituições, isto é, do diferido, do divergente, do menor, do
lateral.

Do mesmo modo que Sartre, Deleuze volta a postular o


compromisso literário através de uma referência ao fora, mas ao
mesmo tempo rompe com a ideia de que esta referência tenha
que ver com uma representação crítica da sociedade (o livro
como imagem do mundo). O agenciamento com o fora deve,
pelo contrário, arrebatar o escritor de toda a representação
estabelecida (tanto da sua arte como da sua sociedade), abrindo-
o a um futuro incerto e improvável, que não se segue das con-
dições de possibilidade que o determinam como escritor ou
como homem 39 : “a potência do pensamento dá lugar, então, a
um impensado no pensamento, a um irracional próprio ao

77
Eduardo Pellejero

pensamento, ponto do fora para além do mundo exterior, mas


capaz de devolver-nos a fé no mundo” 40 .
Neste último sentido, a literatura nunca se fará suficiente-
mente em nome de um fora, para além das representações tota-
lizadoras e totalitárias, das imagens, dos significantes, das estru-
turas e dos sujeitos constituídos de um momento histórico dado.

A questão é: Que caminhos haverá de seguir a literatura para


alcançar essa força do fora que a leve a agenciar no heterogéneo
em lugar de reproduzir o mundo? 41 Como agenciará o escritor
esta reserva de possíveis 42 , para não se afogar e ser para a gente
uma corrente de ar fresco?

Evidentemente, a literatura não muda o mundo e não faz a


revolução 43 , mas nem por isso deixa de ter uma função que,
apesar de modesta, pode chegar a ser eficaz: “Esta função anti-
representativa seria a de traçar, a de constituir de alguma
maneira uma figura da consciência minoritária, que se dirigiria
às potências de devir, que são de outro domínio que o Poder e a
representação-padrão”, opondo “a autoridade de uma variação
perpétua ao poder ou ao despotismo do invariante” 44 .
Consciência minoritária que nada tem já que ver com a
tomada de consciência marxista por parte de um sujeito consti-
tuído (o proletariado) 45 , ainda que talvez não esteja tão longe da
afirmação sartreana de que o homem está por inventar ante as
situações de opressão que sitiam continuamente o escritor e o
seu povo.
A literatura, evidentemente, no faz a revolução, mas Deleuze
esperava ainda muitas coisas desta produção de subjectividades
menores por um trabalho comprometido da expressão (cito):
“Quanto mais se espera desta forma de consciência de menori-
dade, menos nos sentimos sós (...) E, sob a ambição das fórmu-
las, está mais modesta apreciação do que poderia ser uma [lite-
ratura] revolucionária, uma simples potencialidade amorosa,

78
De Sartre a Deleuze

um elemento para um novo devir da consciência” 46 .


Para além das utopias ilustradas ou socialistas, o escritor des-
cobre que o seu objecto é clamar por um povo nómada e não
por uma cidade modelo 47 .
Descobrirá também, é certo, que apesar dessa redução de
horizontes nem sempre alcançará o que persegue, e que é tudo,
que não é possível fazer mais 48 .

O compromisso literário continua a ser, como sempre, de


difícil formulação, mas não é por isso menos urgente para os
que procuramos no pensamento as armas para que, em nós e na
gente, não degenere o labor necessariamente paciente que dá
forma à impaciência da liberdade 49 . O mesmo na época de Sar-
tre que na nossa, o escritor, apesar do seu radical desclassamen-
to, encontra-se sempre preocupado por algo mais que a sua
literatura. Deleuze gostava de recordar que a quem lhe pergun-
tava em que consistia escrever, Virginia Woolf respondia:
Quem é que fala de escrever? 50

Traduzido do castelhano por Susana Guerra

Notas
1
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 50 e 49.
2
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 75 (modificado).
3
Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 290, 293 e 292. Lição da
qual aprenderá Deleuze, quem numa entrevista de 1985 dizia: “Se um
criador não é tomado no gargalo de garrafa de uma série de impossibi-
lidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria as suas pró-
prias impossibilidades ao mesmo tempo que cria o possível. Como
MacEnroe, é batendo com a cabeça que se encontrará a saída. Há que
bater contra a parede porque, se não se tem um conjunto de impossi-
bilidades, não se terá linha de fuga, essa saída que constitui a criação”
(Deleuze, Pourparlers 1972-1990, Paris, Éditions de Minuit, 1990; p.
183).
4
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, pp. 290-291 (modificado).
5
Richard Wright (1908-1960): Escritor afro-americano, autor de Nati-
ve Son e Black Boe, foi membro do partido comunista (com o qual
rompeu em 1944) e amigo de Sartre durante a sua estância em Paris

79
Eduardo Pellejero

(1946-1947). Foi um dos primeiros autores negros que conquistou


certa fama (e dinheiro) com uma obra literária.
6
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 85.
7
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 98.
8
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 108.
9
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 130: “imerso no seu meio, não
pode julgar do fora (...) não se dá conta de que inclusive a burguesia é
classe opressora; na verdade, não a toma por classe, senão por uma
espécie natural”
10
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 135: “os acontecimentos do
universo são neutralizados e, por assim dizer, postos entre parêntesis
(...) Nem o autor, enquanto que escreve, nem o leitor, enquanto que
lê, são deste mundo (...) consideram o homem do fora, esforçam-se
por alcançar sobre ele o ponto de vista de Deus, ou, se se quiser, do
vazio absoluto”
11
Consciência individuante que aparece já insinuada em Sartre, que
retornará o Foucault de Há que defender a la sociedad, e que encontrará
a sua formulação mais apurada na obra de Deleuze.
12
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 86 (modificado).
13
Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 87.
14
Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 88 (modificado); cf. ss.: “Para os
brancos, as palavras que Wright traça sobre o papel não têm o mesmo
significado que para os negros; há que elegê-las ao acaso, pois Wright
ignora as ressonâncias que terão nessas consciências estrangeiras. E,
quando fala para os brancos, o escritor tem que mudar até de objecti-
vo; trata-se de comprometê-los e de fazer-lhes compreender as suas
responsabilidades; faz falta indigná-los e envergonhá-los. Assim, cada
obra de Wright contém o que Baudelaire teria chamado "uma dupla
postulação simultânea"; cada palavra remete a dois contextos; aplicam-
se por sua vez a cada frase duas forças e isto é o que determina a ten-
são incomparável do relato”.
15
Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 98.
16
Cf. Sartre, Qu’est-ce que la litterature?, p. 264: “Como a nossa pers-
pectiva histórica é a guerra, como nos obriga a eleger entre o bloco
anglo-saxónico e o bloco soviético, e nós nos negamos a prepará-la
tanto com um como com o outro, caímos fora da História e falamos
no deserto”.
17
Como diz Peter Pal Pelbart: «a palavra do fora é um sonho que não
deixa de retornar» (Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à
imanência», in Conceito, nº2 (no prelo).
18
Cf. Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»:
“Michál Hardt e Toni Negri tentaram mostrar, recentemente, que o
capitalismo mundial integrado assumiu a forma do Império, ao abolir
toda exterioridade, devorando as suas fronteiras mais longínquas,
englobando a totalidade do planeta, mas também os seus enclaves até
há pouco invioláveis, acrescentaria Jameson, como a Natureza e o
próprio Inconsciente (...) É o mundo sem fora, é o capitalismo sem
exterior, é o pensamento sem exterioridade”.

80
De Sartre a Deleuze

19
Princípio da filosofia deleuziana: Não há agenciamento, nem lin-
guístico nem de nenhuma outra classe, que seja total, universal. Cf.
Golgona Anghel, «A literatura e o seu fora: uma leitura deleuziana».
20
Cf. “Deleuze. Une philosophie de l’événement”, in AAVV, La philo-
sophie de Deleuze, Paris, PUF, 2004, p. 49 : “1/le non-représentable, ou
le dehors de la représentation; 2/la consistance même du non-
représentable, à savoir l’extériorité des relations, le champ informel
des relations”. Cf. Anghel, «Deleuze, Fora da Filosofia e com a casa
tomada».
21
Deleuze faz questão de assinalar a dívida que sente para com Sartre.
E, assim, conhecemos este artigo que Deleuze lhe dedica na altura da
sua morte (“Ele foi o meu maestro”), ou inclusive as referências oca-
sionais como as dos Dialogues. Deleuze dizia: “Felizmente estava Sar-
tre. Sartre era o nosso Fora [Dehors] (...) um pouco de ar puro (...) um
intelectual que mudava singularmente a situação do intelectual”
(Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977; p. 18).
22
Neste sentido, reencontramos o mesmo Kafka das situações sem
saída e das soluções criativas que encontrávamos em Sartre, como
reencontramos o problema da conexão da literatura com o Fora, ou
inclusive a posição anomal – ou de radical desclassamento – do escri-
tor.
23
Pelbart, «Literatura e loucura: da exterioridade à imanência»: “As
forças do fora (...) não são assim chamadas apenas porque vêm de fora,
do exterior, senão porque põem o pensamento em estado de exterio-
ridade, jogando-o num campo informal onde pontos de vista hetero-
géneos, correspondentes à heterogeneidade das forças em jogo,
entram em relação de não-relação”. Cf. François Zourabichvili, Deleuze,
une philosphie de l´événement, Paris, PUF, 1994, p. 45.
24
Nisto descobrimos sobretudo a influência de Nietzsche. Porque se
bem Deleuze põe de lado a possibilidade de um fora absoluto, de um
fora para além de tudo, e com isto o papel das minorias como «parte
do fogo», também põe de lado a ideia de totalidade, de totalização:
“Nada existe fora do todo. Mas «não há tudo»: «faz falta desfazer o
universo, perder o respeito do todo. A inocência é a verdade do múl-
tiplo»” (NPh 26). Cf. ID 356: “Nietzsche fonde la pensée, l'écriture,
sur une relation immédiate avec le dehors”. Cf. Pelbart, «Literatura e
loucura: da exterioridade à imanência»: “Deleuze deu do Fora uma
caracterização mais acentuadamente nietzschiana: menos referida à
literatura do que quis Blanchot na sua formulação explícita, menos
referida ao ser da linguagem do que quis Foucault num primeiro
momento, é como se Deleuze ressaltasse sua dimensão agonística. Daí
o privilégio absoluto das forças, «descoberta», aliás, que ele atribui
generosamente a Foucault. As consequências dessa perspectiva são
diversas: 1) O desafio do pensamento é liberar as forças que vêm de
fora; 2) o fora é sempre abertura de um futuro 3) o pensamento do
fora é um pensamento da resistência (a um estado de coisas) 4) a força
do fora é a Vida. Assim, não só a vida é definida como essa “capacida-
de de resistir da força”, mas o desafio é atingir a vida como potência
do fora”.

81
Eduardo Pellejero

25
MP #1. Cf. MP #1: “O que vale é que tudo o que aconteceu de
importante, tudo o que acontece de importante, procede por rizoma
americano: beatnik, underground, subterrâneos, bandos e gangues,
empuxos laterais sucessivos em conexão imediata com um fora”. A
outra grande figura do fora que Deleuze identifica nas sociedades
contemporâneas são estas “grandes máquinas mundiais, ramificadas
sobretudo o ecúmeno num momento dado, e que gozam de uma
ampla autonomia em relação aos Estados (por exemplo, organizações
comerciais do tipo «grandes companhias», ou então complexos indus-
triais, ou inclusive formações religiosas como o cristianismo, o isla-
mismo, certos movimentos de profetismo ou de messianismo, etc.)”
(MP #12).
26
MP #10.
27
S 126: “La frontière, c'est-à-dire la ligne de variation, ne passe pas
entre les maitres et les esclaves, ni entre les riches et les pauvres. Car,
des uns aux autres, se tisse tout un régime de relations et d'opposi-
tions qui font du maitre un esclave riche, de l'esclave un maitre pauvre,
au sein dl un même sestème majoritaire”.
28
Cf. S 129. Cf. S 129-130: “Minorité désigne d'abord un état de fait,
c'est-à-dire la situation d'un groupe qui, quel que soit son nombre, est
exclu de la majorité, ou bien inclu, mais comme une fraction subor-
donnée par rapport à un étalon de mesure qui fait la loi et fixe la
majorité. On peut dire en ce sens que les femmes, les enfants, le Sud,
le tiers monde, etc., sont encore des minorités, si nombreux soient-ils.
(...) Il e a tout de suite un second sens: minorité ne désignera plus un
état de fait, mais un devenir dans lequel on s'engage. Devenir-
minoritaire, c'est un but, et un but qui concerne tout le monde, puis-
que tout le monde entre dans ce but et dans ce devenir, pour autant
que chacun construit sa variation autour de l'unité de mesure despo-
tique, et échappe, d'un côté ou de l'autre, au sestème de pouvoir qui
en faisait une partie de majorité. D'après ce second sens, il est évident
que la minorité est beaucoup plus nombreuse que la majorité. Par
exemple, d'après le premier sens, les femmes sont une minorité; mais,
d'après le second sens, il e a un devenir-femme de tout le monde, un
devenir-femme qui est comme la potentialité de tout le monde, et les
femmes n'ont pas moins à devenir-femme qui les hommes eux-mêmes.
Un devenir-minoritaire universel”. E também: “Os judeus, os ciganos,
etc., podem formar minorias em tais ou tais condições; mas isso não é
suficiente para convertê-los em devires. Se reterritorializa, ou se deixa
reterritorializar numa minoria como estado; mas se desterritorializa
num devir. Inclusive os negros, diziam os Black Panthers, têm que devir
negro. Inclusive as mulheres têm que devir-mulher. Incluso os judeus
têm que devir-judeu (claro está, não basta com um estado). Mas se isto
é assim, o devir-judeu afecta necessariamente tanto o não judeu como
o judeu, etc. O devir-mulher afecta necessariamente tanto os homem
como as mulheres. Em certo sentido, o sujeito de um devir sempre é
«homem»; mas só é sujeito se entra num devir-minoritário que o
arranca da sua identidade maior. Como na novela de Arthur Miller,
Focus” MP 351. Cf. ABC, «G comme Gauche». Cf. MP 588: “O pró-

82
De Sartre a Deleuze

prio da minoria é exercer a potência do não-numerável, inclusive


quando está composta de membro apenas. Essa é a fórmula das mul-
tiplicidades. Minoria como figura universal, ou devir todo o mundo.
Mulher, todos temos que devir-lo, quer sejamos masculinos ou femi-
ninos. Não-brancos, todos temos que devir-lo, quer sejamos brancos,
amarelos ou negros”.
29
AE 121. Para além dos casos de Rimbaud e de Nietzsche, que são
referidos pelo próprio Deleuze, eu recordaria aqui o de Carson
McCullers, que em The Heart is a Lonely Hunter, punha na voz de um
dos personagens principais, esse mesmo grito: “Eu também tenho
sangue negro!”. Tenho sangue negro e italiano e cigano e chinês.
Tudo junto. (...) E sou holandês e turco e japonês e americano. (...) Eu
sou um dos que já sabem! Um estranho em terra estranha!”. O pró-
prio Deleuze reconhece num certo grupo marginal da sua época a
linha do Fora: “Quanto a nós, o nosso Fora (ou ao menos um dos
nossos foras) é uma certa massa de gentes (sobretudo jovens) que estão
fartos da psicanálise. (...) A existência desta corrente fez possível O
Anti-Édipo”.
30
Cf. S 128: “une minorité commence déjà à se normaliser quand on
la ferme sur soi”.
31
Cf. S 128: “Ce qu'il extrait [Bene] des Pouilles, c'est une ligne de
variation”.
32
Cf. K 33: “Autant dire que “mineur” ne qualifie plus certaines litté-
ratures, mais les conditions révolutionnaires de toute littérature au
sein de celle qu'on appelle grande (ou établie)”.
33
Cf. K 150: “Pas plus que le Célibataire n'est un sujet, la collectivité
n'est un sujet, ni d'énonciation ni d'énoncé. Mais le célibataire actuel
et la commumauté virtuelle -tous les deux réels -sont les pièces d'un
agencement collectif”.
34
Cf. K 149-150: “Or, quand un énoncé est produit par un Célibatai-
re ou une singularité artiste, il ne l'est qu'en fonction d'une commu-
mauté nationale, politique et sociale, même si les conditions objecti-
ves de cette commumauté ne sont pas encore données pour le
moment en dehors de l'énonciation littéraire. D'où les deux thèses
principales de Kafka: la littérature comme montre qui avance, et
comme affaire du peuple. L'énonciation littéraire la plus individuelle
est un cas particulier d'énonciation collective. C'est même une défini-
tion: un énoncé est littéraire lorsqu'il est “assumé» par un Célibataire
qui devance les conditions collectives de l'énonciation”.
35
IT 287. Cf. IT 287: “Les artères du peuple auquel j'appartiens, ou le
peuple de mes artères...”. O compromisso literário continua a passar
para Deleuze por uma relação com o fora; a mudança e a produção do
novo continuam a depender dessa relação que já apontava Sartre em
1947. Mas o fora deixou de «ser já aí», e está agora sempre para ser
agenciado, subtraindo às minorias os elementos significantes que as
tendem a integrar aos sistemas de poder e de saber, ao mesmo tempo
que se procura subtrair na literatura os elementos significantes que
tendem a constitui-la como imagem do mundo. Cf. MP #1: “Um livro
existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma

83
Eduardo Pellejero

pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina
literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de
amor, uma máquina revolucionária, etc.”.
36
Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de
Minuit, 1991 ; p. 105.
37
Cf. AE 102-103. Politização da literatura, que leva Deleuze à fre-
quentação das minorias, onde o delírio histórico-mundial aparece
associado implicitamente a um devir-menor (“sou todos os pogroms
da história” (AE 104)). Devir-mulher, devir-besta, devir-negro de Rim-
baud, mas também devir-polaco de Nietzsche. Plano de variação con-
tinua ou linha de transformação onde os nomes da história já não dão
conta de uma identificação sobre o teatro da representação, senão da
frequentação de zonas de intensidade como «efectuação de um sistema
de signos» (forças e singularidades que, em condições de menoridade,
carecem de representação). Cf. AE 102: “Nunca se trata, não obstante,
de identificar-se com determinados personagens, como quando equi-
vocadamente se diz de um louco que «acreditava que era...». Trata-se
de algo distinto: identificar as raças, as culturas e os deuses, com cam-
pos de intensidade sobre o corpo sem órgãos, identificar os persona-
gens com estados que enchem estes campos, com efeitos que fulguram
e atravessam estes campos. Daí o papel dos nomes, na sua magia pró-
pria: não há um eu que se identifica com raças, povos, pessoas, sobre
uma cena da representação, senão nomes próprios que identificam
raças, povos e pessoas com umbrais, regiões ou efeitos numa produção
de quantidades intensivas. A teoria dos nomes próprios não deve
conceber-se em termos de representação, senão que remete à classe
dos «efeitos»: estes não são uma simples dependência de causas, senão
o preenchimento de um campo, a efectuação de um sistema de sig-
nos”.
38
Cf. S 89: “par opération, il faut entendre le mouvement de la sous-
traction, de l'amputation, mais déjà recouvert par l'autre mouvement,
qui fait naître et proliférer quelque chose d'inattendu”.
39
Cf. MP #11: “Agora, enfim, entreabrimos o círculo, nós o abrimos,
deixamos alguém entrar, chamamos alguém, ou então nós mesmos
vamos para fora, nos lançamos. Não abrimos o círculo do lado onde
vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região,
criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a
abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga.
E dessa vez é para ir ao encontro de forças do futuro, forças cósmicas.
Lançamo-nos, arriscamos uma improvisação. Mas improvisar é ir ao
encontro do Mundo, ou confundir-se com ele”.
40
IT 237.
41
Cf. MP #1: “encontrará o livro um fora suficiente com a qual ele
possa agenciar no heterogéneo, em vez de reproduzir um mundo?”.
42
Cf. AE 344: “peu de relation avec le dehors”.
43
Cf. S 120.
44
Cf. S 125: “Cette fonction anti-représentative, ce serait de tracer, de
constituer en quelque sorte une figure de la conscience minoritaire,
comme potentialité de chacun. (...) en dressant la forme d'une cons-

84
De Sartre a Deleuze

cience minoritaire, il s'adresserait à des puissances de devenir, qui sont


d'un autre domaine que celui du Pouvoir et de la représentation-
étalon. (...) Le [literatura] surgira comme ce qui ne représente rien,
mais ce qui présente et constitue une conscience de minorité, en tant
que devenir-universel, opérant des alliances ici ou là suivant le cas”;
“l'autorité d'une variation perpétuelle au pouvoir ou au despotisme de
l'invariant”.
45
Cf. S 130: “La conscience, la prise de conscience est une grande
puissance, mais n'est pas faite pour les solutions, ni pour les interpré-
tations. C'est quand la conscience a abandonné les solutions et les
interprétations qu'elle conquiert alors sa lumière, ses gestes et ses sons,
sa transformation décisive”.
46
S 131.
47
Cf. MP #12: “um povo ambulante de revezadores, e não por uma
cidade modelo”.
48
Cf. MP #12: “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma
flecha; ela não mira, mas confia que a flecha ficará cravada em algum
lugar. Ao fazê-lo, ela se engana uma infinidade de vezes e se desaponta.
(...) Eles jamais atingem mais do que uma minoria, quando deveriam
atingir todo mundo, e a maneira pela qual essa minoria é atingida não
responde à força que colocam os filósofos e os artistas em atirar sua
artilharia”. Neste sentido, numa entrevista de 1990, onde o tom sar-
treano me parece inconfundível, Deleuze comentava: “o artista não
pode mais que fazer apelo a um povo, tem esta necessidade no mais
profundo da sua empresa, [mas] não tem que criá-lo, não pode” (PP
235). Retomava assim uma afirmação de Paul Klee, que na sua Teoría
del arte moderno escrevia: “Achamos as partes, mas não ainda o conjun-
to. Falta-nos esta última força. Falta-nos um povo que nos proteja.
Procuramos esse sustém popular: na Bauhaus, começamos com uma
comunidade à que damos tudo o que temos. Não podemos fazer
mais” (Klee, Théorie de l’art moderne, p. 33 (citado em Deleuze, Cinéma-
2: L'Image-temps, p. 283)).
49
Cf. Foucault, «Qu'est-ce que les Lumières?» (1984)», em Dits et écrits
(vol. IV), Gallimard, Paris, 1994.
50
Cf. CC 17.

85
A clausura do fora
Peter Pál Pelbart

A pista essencial deste trabalho nos veio na forma de uma


observação das mais sóbrias e penetrantes escritas por Maurice
Blanchot. A existência da loucura, diz ele, responde à exigência
histórica de enclausurar o Fora, constituindo-o como “interio-
ridade de espera ou excepção” 1 . Paradoxo da loucura: ao ser
exposição descampada ao Fora nas suas diversas modalidades
históricas (caos do mundo, fúria da morte, fim dos tempos,
bestialidade do homem, inumanidade, força do desejo, sagrado
dos elementos, fascínio das miragens, violência do desmesurado,
ameaça do nada, e todas as outras forças, sejam quais forem,
determinadas ou indeterminadas, e que podem «constituir» o
Fora), é ao mesmo tempo cercada numa exclusão, numa reclu-
são, num tipo social, numa doença. A Loucura não seria então
só exposição pura ao Fora como postuláramos noutro lugar 2 ,
mas clausura desse Fora numa personagem exilada. Como se
um círculo de giz traçado na circulação de forças (cósmicas,
inumanas, trágicas) do Fora reservasse ao louco esse espaço
como morada única. Não é à toa que nos loucos se conjuga de
modo tão surpreendente um lugar extremamente exíguo (lugar
familiar, lugar social, lugar mítico, circuito de circulação urbana
restrito) e a mais desarticulada transversalidade. Espantosa
combinação de paralisia e aceleração, sufoco e vertigem. Puxado
e empurrado por todos os ventos e confinado, não obstante, a
um percurso milimétrico, como um trapezista sobre um único
fio, equilibrando-se em meio à tormenta e por cima do abismo.
Às vezes não se sabe bem se o fio limita ou sustenta (enlouque-
cer pode ser uma forma de obter um fio, por mínimo que seja,
para interromper a queda: por exemplo, o status de louco; filo-
sofar caminhando sobre o fio da Razão pode ser outra).
Michel Serres chamou a atenção para a problemática espa-
cial na questão da loucura, e acertou ao observar que Michel

87
Peter Pál Pelbart

Foucault precisou escrever sua História da Loucura na língua da


geometria, distinguindo o espaço único, estruturado de forma
caótica – exemplo do espaço marítimo onde vaga a nau dos
insensatos (vizinhança imediata de todos os pontos possíveis) –
e a insularidade da reclusão. Mas o que Serres vê como uma
sequência histórica (erráncia marítima x fortaleza terrestre),
barca e hospital, é preciso ver também como uma oposição
constitutiva da loucura. A ilha da loucura é cristalização e
fechamento do mar aberto 3 , do Fora.
Presa no Aberto do Fora, a Loucura é o que – por pavor e
confinamento – acaba subtraindo-se a ele. De tão exposta à
indeterminação das forças, já lhes fica alheia: impermeável
permeabilidade. O ponto em que a Desrazão vira Loucura é o
mesmo em que o absolutamente Fora torna-se o absolutamente
Dentro do Fora. A Loucura não é Dobra do Fora (isso é a sub-
jectividade) mas Dentro do Fora, mónada do Fora, sem curva-
tura de forças, viabilização de formas, passagem. Entre o Dentro
e a Dobra, há a mesma oposição que reina entre a Subjectivi-
dade e a Loucura.
Se é possível afirmar que Loucura é o escancaramento da
Dobra 4 , se trata duma afirmação que cabe completar. É quando
essa Dobra (que é a subjectividade) se escancara e ao mesmo
tempo vira um Dentro – aí, na maior das aberturas e no reba-
timento dela sobre o menor dos territórios, estamos em plena
Loucura. Se noutra parte insistimos sobre o carácter de abertura
para entender a loucura como esgarçar para Fora, contraria-
mente à subjectividade, onde há um encurvamento do Fora,
agora insistiremos sobre o carácter paradoxalmente insular des-
sa abertura, em que o louco é objecto confinado a lugares res-
tritos, tanto a nível imaginário (para a mãe, a família, a socie-
dade) como efectivamente (clínicas, hospitais, menoridade jurí-
dica, inimputabilidade, etc.).
E a partir daí, nesse espaço mínimo maximamente atraves-
sado, o louco torna-se a tela de projecção intensíssima do Fora
total. Passam por ele todas as forças, seus combates, os diagra-
mas de poder, os estratos, os saberes, as palavras, as coisas, os
sons, as personagens da História, os elementos, as cores. A per-
da do corpo é isso: tudo cravando a carne, perfurando a pele,

88
A clausura do fora

atravessando-o, desmembrando-o, projectando sobre ele ima-


gens materializadas, explodindo-o, incendiando-o, engolindo-o.
Esse é o corpo despedaçado, corpo-coador, corpo-tela, cinema
vivido nas vísceras, superfície feita profundidade. Se há profun-
didade no louco, é nesse sentido, do Fora penetrando o cor-
po-tela.
Rectifiquemos então a afirmação que identifica a profundi-
dade com o Fora: ela só é válida para certas modalidades de
relação com o Fora (nomeadamente, as figuras da desrazão
contemporânea 5 ), mas não para a loucura, pois esta, como aca-
bamos de ver, é Clausura do Fora num Dentro absoluto, e por
isso profundidade absoluta. Que na loucura todo Fora vira
Dentro significa também que toda superfície submerge numa
profundidade.
Precipitemo-nos um pouco nessa distinção sugerida acima
entre relação com o Fora e loucura, e digamos, prestes a escla-
recê-lo mais tarde, que a relação com o Fora se refere à desrazão.
Assim, na questão da profundidade que ora nos ocupa é preciso
dizer, quase, que a loucura é o contrário da desrazão. Se nesta a
profundidade leva à exterioridade e ao Fora (pois elas se equi-
valem), como no referido conto de Kafka, na loucura a superfí-
cie e o Fora desabam num Dentro, confirmando a linda análise
que Deleuze fez a respeito da profundidade psicótica. Sempre é
ténue a fronteira entre um caso e outro, e como uma luva revi-
rada, a profundidade – superfície desabada – pode tornar-se o
Fora novamente, como em Nietzsche ou Artaud, que diz clara-
mente: “E a terra entreaberta em todo o lado e a mostrar segre-
dos áridos. Segredos como superfícies”. Um pouco mais adiante
no mesmo texto, cujo título sugestivo fala por si mesmo –
«Onde se malham as forças» –, Artaud mostra uma vez mais o
sofrimento da profundidade, a esperança do Fora e a oscilação
especular, sem definição, entre ambos: “Ó cães, que acabastes
de rolar na minha alma as vossas pedras. Eu. Eu. Voltai a pági-
na dos escombros. Também ando à espera do celeste saibro e da
página já sem margens. Este fogo precisa de começar em mim.
Que os blocos de gelo venham naufragar-me nos dentes. Sou de
crânio rude mas alma lisa, como um coração de matéria nau-
fragada. Tenho ausência de meteoros, ausência de injúrias

89
Peter Pál Pelbart

inflamadas. Na minha garganta procuro nomes e como que o


cílio vibrátil das coisas. O cheiro do nada, um relento de
absurdo, a estrumeira da morte total... O leve e rarefeito humor.
Eu próprio já só espero o vento. E chame-se amor ou miséria,
não vai naufragar-me em nenhum lado que não seja uma praia
de ossos” 6 .
Cavernas de gestação ou leveza do humor celeste, em Artaud
sempre paira, num misto de terror e apelo irrecusável, a imi-
nência do naufrágio ou sua efectuação. É sempre um quase que
transforma um desarrazoado (aquele que tem relação com o
Fora) em insano (aquele que está dentro do Fora), um artista
num delirante ou um delirante num pensador do Fora. É da
passagem de um para o outro que devemos tratar, discrimi-
nando-os, se quisermos responder à pergunta maior já referida
na introdução e que atravessa todas as demais em diagonal:
como é possível a relação com o Fora sem que dela advenha a
loucura? E a outra, correlata ou anterior a esta, tal como Michel
Foucault a formulou: o que condenaria à loucura aqueles que
uma vez tentaram a experiência da desrazão?

Ausência de obra

A loucura é ruptura absoluta de obra, diz Michel Foucault 7 .


À primeira vista tudo parece claro. Por obra entendemos traba-
lho, construção, consistência, produto, comunicação, estrutura
– tudo aquilo de que são incapazes os nossos loucos, impotentes
e desmilinguidos. Obra é materialização de trabalho, forma,
inserção do homem no espaço e inauguração de história. Os
que não produzem, não formam, não comunicam, não têm
lugar – a esses nós chamamos de loucos. A conclusão se impõe:
ausência da obra vale como critério-limite para discriminar o
produtor do improdutivo, o estruturado do desmanchado, o
existente do desistente, o são do insensato.
A essa evidência se contrapõem duas séries de objecções. A
primeira: 1) Não se vê por todos os lados grandes obras de
grandes loucos? Não estão aí Hölderlin, Nerval, Artaud, Lau-
tréamont e Van Gogh para atestá-lo? 2) Não vemos com fre-

90
A clausura do fora

quência cada vez maior exposições feitas por instituições mani-


comiais que testemunham a vitalidade e criatividade até de
pacientes cronificados por anos de hospitalização? Veja-se o belo
filme de Hugo Denisart sobre o Bispo, paciente que recriou um
universo inteiro em miniatura na Colónia Juliano Moreira, com
os mais diversos materiais. Ou o Museu do Inconsciente, seu
acervo, exposições, publicações, ou ainda a exposição realizada
em 1987 em São Paulo, intitulada Arte e Loucura, ou a mostra
de arte «outsider» na galeria Paulo Figueiredo, em 1988, na
mesma cidade, intitulada Olhar Selvagem, sem falar da arte bruta
e de todo o aproveitamento dada e surrealista da arte dos loucos.
3) Quem conhece de perto o quotidiano das clínicas psiquiátri-
cas e o trabalho de certos profissionais da área (principalmente
os terapeutas ocupacionais) sabe perfeitamente que as afirma-
ções sobre a improdutividade da loucura não têm fundamento.
A segunda série de objecções resume-se no seguinte: hoje em
dia basta visitar uma Bienal qualquer para se certificar de que
grande parte das obras parecem sugerir uma desmontagem da
estrutura, da forma, da comunicação, de seu carácter de produ-
to finalizado; atentando contra a consistência, essas obras lem-
bram mais a ruína do que propriamente um movimento de
construção. Nada similar à noção vulgar de obra. A elas melhor
se aplicaria o termo feliz de Blanchot – desobramento. Se há ali
trabalho, visa a demolição da própria noção de trabalho, de
obra, de linguagem, de palavra, do enquadre, da inteligibilidade
etc.
Enfim, se os loucos produzem (como querem as três primei-
ras objecções) e a arte rói (conforme a última), nada do que foi
dito acima se sustenta e somos obrigados a retomar o problema
de um outro ângulo a fim de entender porque, segundo Fou-
cault, onde há loucura não há obra.
Depois de historiar o nascimento do asilo, Michel Foucault
se pergunta o que sobreveio à desrazão com a medicalização da
loucura operada pela nascente psiquiatria. O desatino clássico,
diz ele, que era silêncio e nada diante da Razão, foi transfor-
mado no final do século XVIII, através de Goya e Sade, em
grito e furor. O não-ser da desrazão tornou-se com eles poder de
aniquilação, violência, possibilidade de abolição do homem e

91
Peter Pál Pelbart

do mundo. O nada e a noite da desrazão adquiriram direito de


expressão na forma de obra, mas apenas na medida em que
essas obras que o expressassem fossem mortíferas e lancinantes,
capazes, na sua força, de contestarem o mundo, a razão e a dia-
léctica que as ligavam.
Essas vozes do desatino foram ouvidas, mais tarde um pouco,
por Nietzsche e Artaud, que as levaram ao paroxismo. Nietzsche,
por exemplo, transformou em raio o desabamento de seu pen-
sar, e é através dele que ainda somos nietzscheanos. Artaud,
com a virulência e sofrimento que o marcaram, fez de sua obra
uma obra que diz sua destruição, de suas palavras fez palavras
que dizem a ausência de linguagem, fez da obra um “escarpa-
mento sobre o abismo da ausência de obra”. Pela loucura, con-
clui Foucault, essas obras abrem um silêncio, um vazio e uma
dilaceração que obrigam o mundo, que as repele e acolhe, a
interrogar-se.
Paradoxo: enquanto loucura e obra se excluem mutuamente
(segundo a fórmula foucaultiana: loucura é ausência de obra), a
forma maior de expressão da loucura, numa época em que ela
foi sequestrada por inteiro pela «ciência» psiquiátrica, é preci-
samente a obra – que ela, no entanto, rói. Por que a loucura,
para expressar a ruína, precisaria justamente da obra, que é seu
contrário? Por que a loucura, que implica a ausência de obra,
necessita da obra para manifestar-se? Mero jogo de contrastes?
Toda essa questão se esclarece se a retomamos à luz da
hipótese desenvolvida anteriormente, segundo a qual a História
da Loucura seria uma arqueologia articulada em dois planos
distintos, o da desrazão e o da loucura. Para isso basta relacio-
nar as últimas páginas do livro, em que Foucault «define» lou-
cura como ausência de obra, com a problemática da dupla
arqueologia. É no meio do capítulo «O Círculo Antropológico» 8
que há uma referência àqueles que, “perdendo o caminho,
desejam perdê-lo para sempre”. Trata-se do destino da desrazão
que abordamos acima, que na época clássica era silêncio e que
no século XVIII recompôs-se, como vimos, num “silêncio sul-
cado de gritos... silêncio da interdição, da vigília e da desforra”.
No comentário sobre os quadros de Goya, que ilustram esse
silêncio da desforra, em que a loucura é a “possibilidade de

92
A clausura do fora

abolir o homem e o mundo”, vemos que Foucault, apesar de


falar das formas de manifestação da desrazão (a pergunta dizia
respeito ao destino sobrevindo à desrazão), utiliza o termo lou-
cura. Não penso que isso se deva a um mero deslize de lingua-
gem, mas ao deslocamento histórico ao qual aludimos no prin-
cípio desse estudo.
O pensador da arqueologia mostrou, ao longo desse livro,
como o hiato entre desrazão e loucura foi se diluindo ao longo
do tempo, desaguando numa coincidência à qual ainda estamos
submetidos. Se a desrazão foi «capturada» pela loucura, não é de
surpreender que a única forma de manifestação da desrazão seja
a loucura, uma loucura que será, então, marcada pelo índice do
grito, da vigília e da desforra. A desrazão «enclausurada» não
pode «romper o cerco» a não ser pela exacerbação e violência. A
loucura será a máscara já colada ao rosto da qual a desrazão
quer livrar-se, o que só é possível desfigurando-a, no exagero das
caretas e dos clamores. Usar a máscara para arrebentá-la, assim
como é preciso desfigurar as palavras para deixar aparecer os
sons.
A desrazão insurrecta, já o sabemos, não é a loucura funda-
mental e originária, mas aponta para o Fora (no mesmo texto
de Blanchot que citávamos ao principio, e do qual extraímos a
idéia-mestra deste trabalho, está implícita essa equivalência
entre Fora e Desrazão), o Fora enclausurado na loucura, cuja
irrupção só é possível – numa época em que se confinou o Fora
na loucura e na doença mental – através da própria loucura.
Isso responde à questão de por que os que experimentaram a
desrazão sucumbiram na loucura. É porque, pela configuração
histórica (práticas e saberes de exclusão, medicalização, etc.) ao
Fora foi reservado (quase que apenas) o espaço dessa linguagem,
e é dessa linguagem, a da loucura (com sua fúria, sintomas, etc.),
que a relação com o Fora precisou lançar mão para se libertar
justamente dele – esse espaço confinado – ainda que o elevando
ao seu extremo.
O mesmo valerá para a obra. Como diz Maurice Blanchot, a
loucura tem a mesma função que a obra, “pois permite à socie-
dade, como a obra permite à literatura, manter – inofensiva,
inocente, indiferente – a ausência de obra entre os firmes limi-

93
Peter Pál Pelbart

tes de um espaço fechado” 9 . A ausência de obra, fechada no


asilo, está emparedada também na obra. E tal como a desrazão
usa a loucura para expressar-se, a ausência de obra usa a obra, às
vezes até sua possibilidade extrema (isto é, arruinando-a), para
manifestar-se.
Fechemos o círculo e designemos a ausência de obra pelo
seu lugar de origem – o Fora. É o Fora que, confinado à obra, a
utiliza para «vir à luz», e ao fazê-lo a rói, sem nunca conseguir
destruí-la. É assim que a obra existe como um movimento que
de algum modo a anula sempre, levando-a de volta à ausência
de obra, mas nunca definitivamente. Oscilação inacabada, eis a
obra da modernidade: desobramento. O desobramento é o que,
como o neutro, anula o tempo, dissolve a história, desbarata a
dialéctica e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem.
Se quisermos ver aí um «trabalho» da desrazão, no sentido de
uma demolição, nada mais justo.
Violentemos agora o postulado de Foucault (loucura é
ausência de obra) e entendamos o termo «loucura» no sentido
de desrazão – é aliás o que o início do texto que tomamos por
referência sugere, ao se perguntar sobre o destino da desrazão 10 .
Feita a substituição que sugerimos, obtemos, ao invés de «lou-
cura, ausência de obra», «desrazão, ausência de obra». Desrazão
e ausência de obra, estão, sob o signo do Fora, e numa época
em que o Fora está confinado quer à loucura, quer à obra, des-
razão e ausência de obra só podem expressar-se na forma que os
aprisiona: como obra louca. Os poetas loucos não realizam a
síntese entre um género literário e outro psiquiátrico, mas
expressam a desrazão com as máscaras que esse século e outros
talvez lhes reservaram: a arte e a loucura.
Por trás das máscaras não há nada, desde Nietzsche já o
sabemos. Mas o nada de Nietzsche é um Fora, as forças na sua
indeterminação, no seu jogo do Acaso, nas suas diferenças
intensivas. É a essas forças que se expõe a obra, assim como a
loucura, e são essas forcas que ambas enclausuram; essas forças
ora as submergem, devastando-as, ora são encarceradas por elas
em túmulos tristes (loucos crónicos, peças de museu).
Às vezes entre a obra e a loucura, de um lado, e as forças do
Fora, de outro, ocorre um jogo, um diálogo, uma troca. Quan-

94
A clausura do fora

do Foucault afirma que a psicanálise restituiu a possibilidade de


um frente a frente entre loucura e desrazão, é desse diálogo que
se trata, malgrado a terminologia estranha a Freud: entre as
forças do Fora e a clausura do Fora (loucura). Diálogo inter-
rompido na época clássica quando a clausura foi elevada ao
estatuto de natureza – e com mais razão um século depois, com
o advento da psiquiatria. Foucault diz com todas as letras: não é
mais de psicologia que se trata na psicanálise, mas dessa expe-
riência da desrazão que a psicologia moderna mascarou. E
Blanchot completa: os psicanalistas frequentemente o esquecem,
sobretudo quando eles “hesitam em abandonar algumas das
exigências do conhecimento dito científico, que quer situar a
loucura de uma maneira cada vez mais precisa na solidez de
uma natureza e num enquadre temporal, histórico e social” 11 .
O Fora com o qual a psicologia, no seu trato com a loucura,
recusou entrar em contacto, é o contrário de uma ciência: é a
não-origem, a ausência de tempo, o inumano, o anónimo –
tudo o que, aliás, a psicanálise abrigou sob o nome de Incons-
ciente. Se uma crítica deve ser feita à psicanálise, é a de ter
remetido sua descoberta do Fora a uma interioridade personaló-
gica – individualizando-a e humanizando-a –, ao dispositivo
familiar – edipianizando-a –, a um teatro imaginário – jogan-
do-a do lado da representação – e, por último, a de ter privile-
giado na loucura, em decorrência dessas inflexões, seu fecha-
mento (o narcisismo), em detrimento da dimensão do Fora do
qual a loucura é apenas um recorte. Mas talvez fosse exigir da
psicanálise o que não cabe a ela promover – afinal, não é a isso
que ela se propõe.
A desrazão confinada na loucura ou na obra exigiria, quem
sabe, não psiquiatras, nem críticos de arte, mas algo que por
falta de expressão mais adequada chamarei por ora de pensado-
res do Fora. O pensamento do Fora pode ocupar-se do Fora
embutido na loucura e na arte, na filosofia ou na política. Pou-
co importam, aqui, os territórios. O essencial é que se trate de
um pensamento que pratique, como diz Blanchot em outro
contexto, o alea entre raison et déraison. Talvez o pensamento do
Fora permita um contacto com a desrazão que não desemboque
na loucura.

95
Peter Pál Pelbart

Resumindo: a Desrazão remete ao Fora, a Loucura à Clau-


sura desse Fora num Dentro absoluto, e o Pensamento do Fora
à relação da Dobra subjectiva com esse mesmo Fora (o pensador
do Fora é aquele que tem relação com o Fora, isto é, com a
Desrazão; pode ser dito um desarrazoado, embora não seja um
louco). Por vezes nos terá ocorrido assimilar Pensamento do
Fora e Desrazão – é quando preferimos ficar na terminologia do
Foucault historiador, a fim de melhor ressaltar o sentido do
contraste Desrazão/Loucura presente em sua obra). Ao longo
de uma história da loucura sempre estarão em questão as dife-
rentes modalidades de relação com o Fora (confinamento,
exposição a, troca) segundo os diagramas de poder, os estratos
de saber e os modos de subjectivação sucessivos. Loucura e
Pensamento do Fora (por essa expressão entendo agora o bloco
de «experiências», tanto artísticas, quotidianas, místicas como
propriamente pensantes, em que uma certa turbulência é
expressão de um tipo de relação com o Fora ou a Desrazão) são
duas formas de se relacionar com o Fora, vizinhas mas antitéti-
cas, donde a insistência em tratá-las lado a lado ao longo deste
estudo. São vizinhas porque estão sob o signo do Fora, e antité-
ticas porque, enquanto a Loucura transforma o Fora em Dentro
numa adesão surda, o Pensamento do Fora é capaz de estabele-
cer com ele um jogo e uma troca.
Mas voltemos à questão deste capítulo. Agora talvez se
entenda porque a história da loucura será sempre, ao mesmo
tempo, a história da desrazão: a Clausura do Fora só pode ser
entendida no horizonte das demais manifestações do Fora do
qual ela é às vezes apenas uma parte, às vezes a depositária
exclusiva. Em outros termos: assim como em certos momentos
uma sociedade pode confinar o acesso ao Fora apenas à loucura
(obrigando com isso poetas, artistas e pensadores do Fora a
enlouquecerem), em outros momentos outros espaços podem
estar abertos a uma relação com o Fora (espaços proféticos,
xamánicos, místicos, políticos, poéticos, literários, etc.) 12 . Que
fique claro: o Fora não é uma invariante histórica nem uma
entidade metafísica. Ele é, como já dissemos anteriormente, o
Jogo selvagem das forças, ao qual os homens têm acesso sempre
em função da fissura subjectiva que reparte Ver e Falar segundo

96
A clausura do fora

os diagramas de poder. Trata-se sempre de um acesso histórico


àquilo que rói qualquer história. Esse é o paradoxo da relação
com o Fora: o modo de relação com o Fora sempre é historica-
mente determinado, ainda que nessa relação fale a ruína do
tempo, do sujeito e da memória.
Enfim, se hoje a loucura ainda é um dos modos privilegiados
de exposição ao Fora (na forma da clausura), nem de longe é o
único. Por isso talvez a aura da loucura esteja cedendo lenta-
mente, em favor da disseminação do Pensamento do Fora. Se
essa hipótese for correcta, estaríamos assistindo não mais à
liberação do louco – já em andamento – mas à da desrazão, isto
é, a uma modificação profunda nas modalidades de relação com
o Fora.

Notas

1 Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 292.
2 Cf. Peter Pal Pelbart, Da clausura do fora ao fora da clausura. Loucura e
desrazão, São Paulo, Editora Brasiliense, 1989, pp. 21-121.
3 Serres, Hermes ou la communication, Paris, Minuit, 1968; pp. 171-2.
4 Cf. Peter Pal Pelbart, op. cit., pp. 163.
5 Cf. Idem, pp. 75-128.
6 Artaud, «Onde se Malham as Forças», in A Arte e a Morte, trad. Aníbal
Fernandes, Lisboa, Livreiros Editores e Distribuidores Ltda., 1987, pp.
31 e 33, respectivamente.
7 Foucault, História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 1978 (1961); p.
529.
8 Idem, p. 523.
9 Blanchot, op. cit., p. 617.
10 Foucault, op. cit., p. 513.
11 Blanchot, op . cit., p. 298.
12 Roger Bastide nota, por exemplo, a relação existente entre o pro-
cesso de secularização cultural e da medicalização (e somatização) da
loucura. Com o declínio dos rituais mágicos e sagrados aumenta a inci-
dência da loucura, de onde ele conclui que “a loucura é uma doença do
sagrado”. Nietzsche teria expressado a mesma ideia ao dizer: outrora,
refugiava-se em um convento, hoje não nos resta senão a loucura. Cf.
Roger Bastide, Sociologie dês maladies mentales, Paris, Flammarion, 1965, p.
299.

97
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente
(ou como rir das nossas verdades)
José Luís Câmara Leme

«…on est toujours à l'intérieur. La marge est un


mythe. La parole du dehors est un rêve qu'on ne
cesse de reconduire» 1

Um dos traços inconfundíveis das obras de Foucault é a pre-


sença de pequenas ficções, que condensam, ilustram ou suge-
rem o tema que ele se propõe estudar. A presença dessas fic-
ções, a justaposição de discursos, assim como de diálogos em
que ele se questiona, evidenciam a necessidade sentida de reno-
var as formas discursivas da filosofia, uma vez que estas são cor-
relativas a novas formas de problematização. Importa neste sen-
tido estar atento a essas ficções, já que não são apenas um
interstício que, no meio de uma exposição teórica, lhe com-
prometem toda a resolubilidade, elas começam por ser expe-
riências do pensar. É por esta razão que uma filosofia atravessa-
da por ficções é avessa à doutrina: elas obrigam a um recomeçar
incessante. Vejamos assim quando é que Foucault as introduz, e
qual é o jogo que se estabelece entre elas.
Entre essas ficções, há três que têm um estatuto particular: é
o caso da enciclopédia chinesa, da anedota japonesa, e da fábula
árabe. Não é difícil de ver que o seu denominador comum é o
facto de as três remeterem para o Oriente. Poder-se-ia explicar
essa coincidência em função da venerável tradição do Persa em
França; ou seja, de um modo quase convencional Foucault
também teria recorrido a esse procedimento retórico. Os argu-
mentos a favor desta leitura não são desprezíveis, pois não se
reveste de qualquer dificuldade a tentativa de mostrar que a
dialéctica do reconhecimento e do estranhamento não repugna
a uma leitura relativista do filósofo. Com efeito, se se aceitar
que o seu propósito era desnaturalizar a experiência ocidental,

99
José Luís Câmara Leme

então é plausível que também ele tivesse convocado o Oriente


para melhor perceber o que é próprio da sua cultura.
A minha hipótese é outra. Não creio que este Oriente seja
apenas um recurso retórico; o que está em causa é muito mais
profundo, já que tem a ver com a ideia de uma exterioridade a
partir da qual se pode pensar o Ocidente. Atente-se no entanto
que, deste ponto de vista, a referência ao Oriente em Foucault
parece corroborar o pior dos orientalismos, já que também ele
aparentemente menosprezaria o putativo Oriente real e o teria
substituído por uma invenção ocidental. Em que medida é
então este Oriente imaginado necessário à sua filosofia, é a
questão que me move.
Comecemos por recordar que é com um intervalo aproxi-
mado de meia década que estas três ficções aparecem na sua
obra. A primeira é de 1966, com As Palavras e as Coisas 2 ; a
segunda de 1971, com A Ordem do Discurso 3 ; e a terceira de
1976, com A Vontade de Saber 4 . É assim que a enciclopédia chi-
nesa nos confronta com a experiência de pensar os limites do
pensar, a história de William Adams com a correlação do poder
com o saber, e o anel mágico do príncipe Mangogul com a
injunção de perguntar ao sexo o que somos. São, portanto, três
ficções que anunciam novos domínios de análise: o saber, o
poder e o ethos. Mas se é indubitável que estas três ficções assi-
nalam novos horizontes de problematização, fica no entanto
por explicar por que razão o Oriente é sempre convocado.
A hipótese que sustento é a de que estas três ficções orientais
têm também uma dimensão mítica: são o lugar de “escolhas
essenciais” 5 . Três “escolhas originais” 6 que configuram, para o
Ocidente, os três eixos das experiências que nos constituem: a
esfera ideal do saber, por oposição às peripécias históricas do
poder; a soberania do sujeito, por oposição à materialidade do
discurso; o desejo, por oposição ao prazer. Três rejeições, três
escolhas, enfim, três dilacerações, que urdem miticamente a
nossa história.

No prefácio original à História da Loucura, Foucault interro-


ga-se sobre a originalidade da cultura ocidental e sobre a possi-

100
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

bilidade de a pensar 7 . A tese que ele defende é a de que as


dimensões dessa originalidade devem ser procuradas num con-
fronto subjacente à linguagem da razão. Esta é desdobrada por
Foucault em duas vertentes principais: por um lado, como his-
tória do conhecimento; por outro, como História tout court,
quer dizer, a história comandada pela teleologia da verdade ou
pelo encadeamento racional das causas. Portanto, não é através
destas duas formas de história que podemos apreender e pensar
a originalidade da cultura ocidental. O argumento que ele pro-
põe é o seguinte: se se procurar essa originalidade através do
devir horizontal da razão, ou seja, se se a procurar através das
duas vertentes da linguagem da razão, a história do conheci-
mento ou o encadeamento racional das causas, o que se
apreende é o que já está previamente dado, uma vez que se con-
fronta a cultura ocidental consigo mesma: a história do conhe-
cimento mostra-nos como o domínio do saber se estendeu e se
aprofundou, ou seja, a história teleológica da verdade mostra-
nos como a ciência actual e as verdades que enuncia não são
arbitrárias ou contingentes, a história do encadeamento causal
mostra-nos como um acontecimento releva necessariamente de
outros acontecimentos anteriores. Por outras palavras, e sem
prejuízo para a celebração das várias vertentes da identidade
ocidental, sejam elas quais forem, a verdade é que essa aborda-
gem perde o essencial da sua originalidade porque celebra uma
petição, isto é, reconhece na origem a identidade de um presen-
te e não a ruptura que possibilita a sua emergência.
Por conseguinte, uma coisa é elevar a identidade de uma cul-
tura, outra é saber quais são as condições através das quais
podemos pensar a sua originalidade. Assim, para evitar essa
falácia, Foucault sustenta que é preciso confrontar a cultura
ocidental com aquilo que ela não é. Mas este confronto não se
confunde com um simples comparativismo, não se trata de pro-
curar compreendê-la por oposição a qualquer outra cultura. O
seu propósito não é culturalista. Trata-se antes de a confrontar
com aquilo que ela própria rejeita. Neste sentido, Foucault
opõe a identidade aos limites.
Foucault explicita metaforicamente esta oposição opondo a
verticalidade à horizontalidade. Celebrar a identidade de uma

101
José Luís Câmara Leme

cultura é reconhecer os valores que a atravessam ao longo da


sua história, ou seja, o que ela herda e transmite na sua conti-
nuidade, quer dizer, a sua horizontalidade. Já a verticalidade
prende-se com o que ela rejeita. Temos então uma tese forte:
para se pensar a originalidade de uma cultura, mormente a
Ocidental, é preciso dirigirmo-nos a essa região subjacente à
razão em que “uma cultura rejeita qualquer coisa que será para
ela o Exterior” 8 .
Atente-se no entanto que essa exterioridade não é prévia a
essa cultura, é antes e fundamentalmente criada por ela própria.
Foucault emprega uma imagem muito explícita: ele diz-nos que
essa exterioridade é um vazio escavado 9 no interior de uma cul-
tura. O acto de rejeitar que define a originalidade de uma cul-
tura é o vazio que essa mesma cultura escava dentro de si, na
sua verticalidade.
Mas esta oposição entre a verticalidade e a horizontalidade
encerra um paradoxo que é preciso desde já esclarecer. Definir
uma cultura a partir do que ela rejeita, a partir dos seus limites,
não será tornar-se refém de uma suposição que compromete o
alcance da tese, a saber, afirmar que a cultura ocidental é fun-
damentalmente uma cultura reactiva? Em suma, o desafio con-
siste em saber em que medida uma história dos limites não é
uma história reactiva. Em que medida encerra ela uma dimen-
são activa?
Como é evidente, a dificuldade desta dimensão activa tem
justamente a ver com o facto de ela se confundir facilmente
com uma rejeição. Porém, como sublinhei atrás, essa rejeição é
entendida por Foucault como um escavar um vazio. No
momento mesmo em que esse vazio se escava, uma cultura cria
as condições da sua história. O problema é então perceber
como é que essa rejeição, esse escavar um vazio dentro de si,
pode corresponder a uma dimensão activa.
Na minha leitura, essa dimensão activa é dada pelo conceito
decisivo de “escolha essencial”. A exterioridade de uma cultura
é a região onde ela exerce as suas escolhas essenciais. Temos
assim dois conceitos correlativos, a exterioridade e a escolha
essencial. Para que as escolhas essenciais possam ser exercidas é
preciso escavar esse vazio, criar as condições de uma exteriori-

102
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

dade. É patente que as duas são concomitantes, mas devem ser


distinguidas, uma vez que a primeira tem a ver com o lugar, a
segunda com os efeitos.
São duas as determinações que Foucault descobre para este
conceito de escolha essencial: por um lado ela é a divisão que
dá a face à positividade de uma cultura, por outro é aí que “se
encontra a espessura originária na qual ela se forma” 10 . Esta
correlação entre a positividade das suas manifestações e a espes-
sura originária é explicitada por Foucault através da ideia de
dilaceramento. O nascimento da história decorre desse dilace-
ramento, dessa divisão originária. É este o sentido do jogo
metafórico que opõe a horizontalidade dos valores à verticali-
dade do confronto com o que se rejeita. A espessura originária
de uma cultura é então justamente essa rejeição que lhe é subja-
cente e que possibilita a positividade das suas manifestações
históricas.
Foucault reitera e reformula esta ideia opondo a análise dia-
léctica, ou seja, análise histórica e horizontal, à estrutura trágica,
que releva dos confins da história. Se a originalidade de uma
cultura releva das suas escolhas essenciais, escolhas exercidas
nessa exterioridade que uma cultura escava dentro de si, os
valores e a continuidade histórica dessa mesma cultura, a positi-
vidade da sua face, são portanto o efeito dessas mesmas escolhas
essenciais em que uma cultura se inventa a si mesma no interior
daquilo que rejeita. O exterior de uma cultura não é assim o
outro absolutamente estranho, é o vazio que ela escava dentro
de si mesma e que é a condição da sua história e da sua vitali-
dade.
Podemos assim concluir dizendo que a história dos limites,
história vertical como vimos atrás, é a história das escolhas
essenciais, e que estas são a condição de possibilidade dos valo-
res, da positividade de uma cultura. As escolhas essenciais de
uma cultura são gestos de dilaceramento que escapam à história
mas que a tornam possível.
Para Foucault, a experiência-limite é justamente a experiên-
cia do dilaceramento, o lugar do nascimento da história de uma
cultura. No já citado prefácio à História da Loucura, ele apresen-
ta quatro divisões originárias, quatro experiências-limite: o

103
José Luís Câmara Leme

Oriente, o sonho, o sexo e a loucura. Estas experiências-limite


são correlativas a uma exterioridade que o Ocidente escavou
dentro de si, exterioridades a partir das quais a positividade dos
valores ocidentais se constituiu. Se é certo que estas quatro
experiências não esgotam a originalidade da cultura ocidental,
elas configuram no entanto o horizonte a partir do qual a ver-
dade foi pensada. Porém, estas quatro experiências têm um
alcance diferente. Se a verdade foi pensada por oposição à irrea-
lidade do sonho, na suspeição de que o sexo lhe escapava e
através da exclusão da loucura, o Oriente foi o vazio escavado a
partir do qual o Ocidente se escolheu a si mesmo, isto é, esco-
lheu a verdade como o limite intransponível de todas as suas
experiências 11 .
Vejamos então como é que Foucault relaciona a escolha da
verdade, o Ocidente e a filosofia. Vou recorrer a duas citações
que me permitem entrar directamente na questão que me
move. A primeira é de 1970. Trata-se de uma conferência profe-
rida no Japão com o título «Loucura, literatura, Sociedade»:
“para responder sumariamente à questão «o que é a filosofia»,
direi que se trata do lugar de uma escolha original, que se
encontra na base de toda uma cultura.” 12 A segunda é de 1984,
portanto o ano em que morreu. Encontra-se numa entrevista
que tem por título «A ética do cuidado de si como prática da
liberdade»: “Este é efectivamente um problema: afinal, porquê a
verdade?… Penso que tocamos aí numa questão fundamental e
que é… a questão do Ocidente: o que é que fez com que toda a
cultura ocidental passasse a girar em torno dessa obrigação de
verdade, que assumiu várias formas diferentes?” 13
Se articularmos entre si as duas citações, percebemos clara-
mente que a questão da filosofia é a questão da verdade, e que
esta é por sua vez a questão do Ocidente, e que estas três ques-
tões relevam por sua vez de uma mesma escolha original.
Há ainda outros dois momentos que são cruciais para se
perceber o entendimento que Foucault tinha da filosofia. O
primeiro é de 1978, no curso proferido no Colégio de França,
Segurança, Território e População, quando afirma que a filosofia é
a política da verdade 14 . Que a filosofia tenha a ver com a verda-
de, que procure pensá-la, nada de mais pacífico. Já a noção de

104
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

política da verdade não é clara. A meu ver, esta ideia de uma


política da verdade tem a melhor explicitação num segundo
momento, na primeira aula do seu último curso no Colégio de
França em 1984, A Coragem da Verdade, quando ele sustenta
que a filosofia comporta uma estrutura de apelo que a diferen-
cia de todos os outros discursos 15 .
O seu argumento é o seguinte. Se se aceitar que são três as
questões cruciais que estruturam as nossas experiências – a
questão da verdade, a questão do poder e a questão do ethos (e
recorde-se que são estes os temas que as três ficções orientais
citadas articulam) – e que estas três questões têm discursos pró-
prios – o poder no discurso político, a verdade no discurso
científico e o ethos no discurso ético ou moral – , então o que
define a filosofia, desde os gregos até aos nossos dias, é o facto
de ela ser sustentada por um lado pela irredutibilidade essencial
destes três pólos e por outro pelas relações necessárias e mútuas
que descobre entre eles. É esta estrutura de apelo entre os três
pólos que faz com que, ao colocar a questão do ethos, a filosofia
não seja “simplesmente um puro discurso moral que prescreve
princípios e normas de conduta”, pois ela não pode deixar de
colocar simultaneamente a questão do poder e da verdade. Por
outras palavras, o que faz com que a filosofia não seja redutível
a um discurso científico, a um discurso político ou um discurso
moral, é que nenhum destes discursos comporta essa estrutura
de apelo; ao invés, quando a filosofia coloca o problema da ver-
dade, simultaneamente coloca o problema do poder e do ethos,
ou quando coloca o problema do poder não pode deixar de
levantar o problema da verdade e do ethos. Em suma, o que
define a filosofia é justamente essa estrutura de apelo entre esses
três eixos da experiência, o saber, o poder e o ethos.
Das três ficções orientais já referidas, aquela que melhor
explicita essa estrutura de apelo, essa política da verdade, é a
anedota de William Adams. Em A Ordem do Discurso, Foucault
introduz essa pequena ficção sob o pretexto de que ela reduz a
uma só figura os vários sistemas de exclusão do discurso por ele
analisados nessa obra 16 .
Trata-se da história do primeiro inglês a visitar o Japão, no
início do século XVII, e que foi conselheiro do shogun Toku-

105
José Luís Câmara Leme

gawa Leyasu. Há uma série de dados históricos incontestados,


como o facto de ele ter impressionado o shogun com os seus
conhecimentos de navegação e comércio, de ter sido impedido
de sair do país e de ter constituído uma segunda família com
uma mulher japonesa. O fascínio desta história, e a anedota
que ela encerra, são resumidos por Foucault nestes termos:
“No início do século XVII, o shogun ouvira dizer que a
superioridade dos europeus – em termos de navegação, comér-
cio, política, arte militar – era devida aos seus conhecimentos
de matemática. Desejou apoderar-se de um saber tão precioso.
Como lhe haviam falado de um marinheiro inglês que possuía
o segredo desses discursos maravilhosos, ele fê-lo vir ao seu
palácio e aí o reteve. A sós com ele, recebeu lições. Aprendeu
matemática. E, com efeito, conservou o poder e teve uma longa
velhice. Foi só no século XIX que houve matemáticos japoneses.
Mas a anedota não termina aí: ela tem a vertente europeia. A
história conta que aquele marinheiro inglês, Will Adams, fora
um autodidacta: um carpinteiro que, por ter trabalhado num
estaleiro naval, aprendera a geometria.” 17
Nesta pequena história encontramos dois mitos da cultura
europeia: o mito da transparência e o mito da esfera ideal do
saber. Na realidade trata-se de um mesmo mito, mas por razões
de exposição é conveniente separá-los.
Vejamos como esta ficção ilustra o mito da transparência.
Nesta história temos, segundo Foucault, a oposição entre o
saber monopolizado e secreto da tirania oriental e a comunica-
ção universal e livre do conhecimento no Ocidente. Estamos
perante o mito da transparência, porque a imagem que o Oci-
dente tem de si mesmo é precisamente a dessa ausência de
princípios de rarefacção que supostamente impediriam a circu-
lação dos discursos. Ora, a análise do discurso mostra que é
precisamente do contrário que se trata: “a troca e a comunica-
ção são figuras positivas que actuam no interior de sistemas
complexos de restrição; e não poderiam funcionar sem estes” 18 .
Por outro lado, esta mesma transparência aparece como a razão
de ser de uma superioridade científica, económica, bélica e
moral. Atente-se assim que William Adams é mais do que um
autodidacta, é alguém que singrou na vida graças à livre circula-

106
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

ção do conhecimento: primeiro quando se empenhou em


adquiri-lo, e depois quando o partilhou com o shogun. Em
oposição a estes valores temos a imagem do tirano, que mantém
o país subjugado através do monopólio do saber e da ignorância
dos seus súbditos. Podemos então dizer que este mito começa
por opor o elemento da transparência, onde as verdades se
erguem uma a uma, às trevas geradas por um saber não parti-
lhado; ou, de uma forma sucinta, a ilustração ocidental por
oposição à tirania oriental.
Mas esta ficção comporta também um segundo mito, que
decorre naturalmente do primeiro, e que se prende com essa
grande escolha original do Ocidente: a escolha da verdade.
Com a divisão entre o verdadeiro e o falso que, com Platão,
cindiu o discurso eficaz dos mestres da verdade – e assim
enformou originariamente a nossa vontade de saber – não
temos apenas a veracidade de um saber que não cessa de
aumentar, temos também o nascimento do grande mito ociden-
tal da antinomia entre saber e poder. Para Foucault, este mito
comprometeu desde então o modo como se pensa filosofica-
mente a verdade. Como essa escolha original consistiu na des-
locação da verdade da enunciação para o enunciado, a conse-
quência imediata dessa deslocação foi a elisão do discurso, e o
descuramento dos princípios que o estruturam. Uma atenção
filosófica ao discurso seria então uma forma de trair essa esco-
lha original; em lugar da enunciação, que é sempre realizada
dentro de uma comunidade, temos a interiorização da via de
acesso à verdade através da ideia de memória. Mas outras con-
sequências são também visíveis: a decadência da retórica, o afas-
tamento dos seus mestres, os sofistas, e a emergência dessa
“grande ameaça civilizacional” que ainda hoje serve de espanta-
lho para não se estudar a enunciação da verdade, o relativismo.
Deste modo, os temas filosóficos que então ganharam dignida-
de circunscrevem-se a uma analítica da verdade: temos, assim,
em primeiro lugar, a verdade ideal como lei do discurso, depois
a racionalidade imanente como princípio do seu desenvolvi-
mento e, finalmente, a renúncia ao poder como a ética do
conhecimento. Repare-se que temos aqui, não por acaso, os três
eixos da experiência: a verdade é exclusiva àqueles que renun-

107
José Luís Câmara Leme

ciam ao poder (o ethos); o progresso da ciência é independente


das peripécias da história (o poder); o saber tem um reino pró-
prio que não é o da sociedade onde ele é gerado (o saber). É por
esta razão que, segundo Foucault, grande parte da filosofia des-
de Platão consistiu em estabelecer o máximo de distância possí-
vel entre o saber e o poder.
Resta considerar um último aspecto deste mito. Com a enci-
clopédia chinesa, deparámo-nos com a impossibilidade de pen-
sar um outro pensamento: a moral da história não é tanto a
existência de outros sistemas de pensamento, mas o confronto
com os limites do nosso. Agora, com a história do shogun, a
situação inverte-se: é o Oriente que nos percebe melhor do que
nós próprios. Aquilo que para nós aparece como uma divisão
incontornável, a separação entre o poder e o saber, descobre-se
aos olhos do shogun como uma união indivisível, de que é pre-
ciso tirar partido, o que ele aliás provou com a sua longevidade.

No primeiro prefácio à História da Loucura, Foucault afirma


que, subjacente à “universalidade” da razão ocidental, e conse-
quentemente à possibilidade de esta colonizar o Oriente – que a
anedota de William Adams, aliás, sintetiza bem –, encontra-se
uma divisão originária entre o Ocidente e o Oriente. Por conse-
guinte, se o Oriente é aquilo que o Ocidente rejeitou, mas tam-
bém a sua origem, então a filosofia como o lugar em que o Oci-
dente se pensa a si mesmo tem no Oriente uma exterioridade a
partir do qual ela pode pensar as suas escolhas originais. Mas
atente-se que esse Oriente é aquele que o Ocidente sem cessar
reinventa a partir de uma erosão interna: a China de J. L. Bor-
ges, o Japão de William Adams e o reino de Mangogul, são os
nomes que damos a esse vazio que é escavado na nossa cultura.
Posto isto, não é difícil compreender que sempre que Fou-
cault procurou pensar a estrutura de apelo dos três eixos da
experiência ocidental, o saber, o poder e o ethos, ele não só a
pensou a partir de experiências-limite, o que é pacífico, mas
socorreu-se de uma exterioridade para a pensar. Ao fazê-lo,
porém, ele não só inscreveu a sua filosofia numa escolha essen-
cial, como levou ao extremo essa mesma destinação mítica.

108
Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente

A conclusão que proponho é então a seguinte: ao alojar a


sua filosofia nessa exterioridade, nesse vazio escavado em que a
cultura ocidental realiza as suas escolhas essenciais, Foucault foi
mais do que um filósofo ocidental, foi também alguém que
redescobriu o lugar a partir do qual podia rir. Com efeito, se
compararmos mais uma vez entre si as três ficções orientais,
verificamos que há um derradeiro denominador comum, o
fazer-nos rir. A propósito do texto de J. L. Borges, Foucault diz-
nos que esse riso sacode as familiaridades do pensamento; é
também o caso da história do marinheiro inglês no Japão, que é
uma “anedota que é tão bela que trememos só de a imaginar
verdadeira” 19 , e é ainda o dessa fábula libertina de Diderot, de
um anel feérico que punha os sexos a falarem de si mesmos. São
portanto três ficções avessas a um pathos: são antes a oportuni-
dade para rirmos de nós mesmos e das nossas verdades, do
modo como as procuramos no sexo, do modo como abjuramos
o poder para acedermos a elas, e do modo como entronizamos
o sujeito para as possuirmos.

Notas
1
Michel Foucault, Dits et écrits, vol.3, Gallimard, Paris, 1994, p. 77.
2
Michel Foucault, Les mots et les choses, Gallimard, Paris, 1966, p. 7.
3
Michel Foucault, L’ordre du discours, Gallimard, Paris, 1971, pp. 39-
40.
4
Michel Foucault, La volonté de savoir, Gallimard, Paris, 1976, p. 101.
5
“choix essentiels”; cf. Michel Foucault, Dits et écrits, vol. 1, Galli-
mard, Paris, 1994, p. 161.
6
“Par choix originel, je n'entends pas seulement un choix spéculatif,
dans le domaine des idées pures. Mais un choix qui délimiterait tout
un ensemble constitué par le savoir humain, les activités humaines, la
perception et la sensibilité. Le choix originel dans la culture grecque,
c'est Parménide, c'est Platon, c'est Aristote.” Dits et écrits, vol. 2, Galli-
mard, Paris, 1994, p.106.
7
Michel Foucault, Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, pp.160-
162.
8
“…une culture rejette quelque chose qui sera pour elle l'Extérieur.”
Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, p.161.
9
“vide creusé”, Dits et écrits, vol. 1, Gallimard, Paris, 1994, p.161.
10
“l'épaisseur originaire où elle se forme”, Idem, p.161.
11
“On échappait donc à une domination de vérité, non pas en jouant
un jeu totalement étranger au jeu de la vérité, mais en le jouant

109
José Luís Câmara Leme

autrement ou en jouant un autre jeu, une autre partie, d'autres atouts


dans le jeu de vérité.” Dits et écrits, vol. 4, Gallimard, Paris, 1994,
p.724.
12
“pour répondre sommairement à la question «Qu'est-ce que la phi-
losophie?», je dirai qu'il s'agit du lieu d'un choix originel, qui se trouve
à la base de toute une culture” Dits et écrits, vol. 2, Gallimard, Paris,
1994, p.105.
13
“C'est en effet un problème: après tout, pourquoi la vérité? Et pour-
quoi est-ce qu'on se soucie de la vérité, et plus que de soi, d'ailleurs? Et
pourquoi est-ce qu'on se soucie de soi seulement à travers le souci de
vérité? Je pense qu'on touche là à une question qui est fondamentale
et qui est, je dirais, la question de l'Occident: qu'est-ce qui a fait que
toute la culture occidentale s'est mise à tourner autour de cette obliga-
tion de vérité, qui a pris tout un tas de formes différentes?” Dits et
écrits, vol. 4, Gallimard, Paris, 1994, p.723.
14
“Mais après tout, ce que je fais, je ne dis pas ce pour quoi je suis fait,
parce que je n’en sais rien, mais enfin ce que je fais, ce n’est, après
tout, ni de l’histoire, ni de la sociologie, ni de l’économie. Mais c’est
bien quelque chose qui, d’une manière ou d’une autre, et pour rai-
sons simplement de fait, a à voir avec la philosophie, c’est-à-dire avec
la politique de la vérité, car je ne vois pas beaucoup d’autres défini-
tions du mot «philosophie» sinon celle-là. Il s’agit de la politique de la
vérité.” Sécurité, Territoire, Population, Cours au Collège de France, 1977-
1978, Gallimard / Seuil, Paris, 2004, pp. 4-5.
15
Aula de 1 de Fevereiro de 1984. Os cursos de Foucault no Colégio
de França podem ser consultados no arquivo que se encontra no
IMEC, em Paris.
16
Michel Foucault, L’ordre du discours, Gallimard, Paris, 1971,pp. 38-
39.
17
Michel Foucault, A Ordem do Discurso, Relógio D’Água, Lisboa,
1997, pp. 29-30.
18
Idem, p. 30.
19
Idem, p. 29.

110
Índice

5 Golgona Anghel – Eduardo Pellejero


A abóbora que se tornou cosmos.
A exposição do pensamento ao fora da filosofia

17 Patricia San Payo


O «Fora» de Blanchot: Escrita, imagem e fascinação

31 Golgona Anghel
Deleuze, «Fora» da literatura e com a casa tomada

53 José Luis Pardo


E cantam na planura

67 Eduardo Pellejero
De Sartre a Deleuze.
Onde é que pára o compromisso literário?

87 Peter Pál Pelbart


A clausura do fora

99 José Luís Câmara Leme


Michel Foucault: Pensar de fora o Ocidente
(ou como rir das nossas verdades)

111

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