You are on page 1of 16

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp.

29 - 43, 2009

O QUE É CRÍTICA.
OU: QUAL É A CRÍTICA DA GEOGRAFIA CRÍTICA?

José William Vesentini*

RESUMO
Este texto procura problematizar o que é crítica. Para isso realiza um breve histórico do vocábulo
desde a Grécia antiga, onde surgiu, até Kant, pensador que redefiniu essa atitude. De fato, a partir de
Kant – inclusive em autores como Hegel, Marx, Adorno, Habermas e outros – crítica passou a ser vista
como superação com subsunção e como engajamento num projeto de autonomia. Além disso, este
ensaio procura verificar como o termo crítica tem sido entendido na geografia crítica, mostrando que
esta é uma questão e um importante debate em andamento nos dias de hoje.
PALAVRAS CHAVE: crítica, autonomia, geografia crítica, pós-modernidade.

ABSTRACT
This text has tried to understand critical as an intellectual issue. Thereby, a brief history of the word is
produced: since the Ancient Greece, where the word was created, until Kant, thinker who redefined
this expression and attitude. Indeed, from Kant – include authors like Hegel, Marx, Adorno, Habermas
and others – critical means an overcome with subsume and at the same time a commitment in an
autonomy project. Moreover, this essay has tried to verify how the word critical has been understood
in the critical geography, showing that this is an important question and argument that has gone on
nowadays.
KEY WORDS: critics, autonomy, critical geography, postmodernism.

G e ogra f i a ou g e ogra f i a s cr í t i cas. A com as muda nças na r eali dade social, em


bibliografia da/sobre essa vertente geográfica especial com a crise terminal do antigo mundo
já é bastante significativa. Entretanto, uma socialista e com a relativização das noções
dúvida se impõe: o que é crítica? Em que sentido políticas de esquerda e direita, que para muitos
esse verbete v em sendo e mpregado na(s) não têm mais sentido na realidade atual. Como
g e o g ra f i a ( s) cr í t i ca ( s) ? Q ua l é , a f i na l , o iremos esquadrinhar logo adiante, a noção de
significado do adjetivo crítico, frequentemente crítica (especialmente a crítica social) a partir
ut i l i z a d o, a l g um a s v e ze s c om d i f e r e nt e s da Revolução Francesa e principalmente no
sentidos, em várias áreas do conhecimento? transcorrer do século XIX viu-se associada à
(Basta lembrarmos das ideias de reflexão crítica, ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles
atitude crítica, teoria crítica, pensamento crítico, que propugnavam uma mudança radical na
ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo
sociedade com vistas a uma maior igualdade e
crítico e inúmeras outras).
liberdade. Por isso tornou-se muito comum a
Esta preocupação, longe de ser diletante idenfificação das noções de crítica e de radical,
ou superficial, é algo que se impõe fortemente que também iremos problematizar.
* Professor Livre Docente do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. E-mail: jwilliam@uol.com.br
30 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

Para início de conversa, a verdade é que de direitos – e igualdade (embora nunca total),
ninguém mais sabe ao certo o que é esquerda e falam em ir “além da esquerda e da direita”
direita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracasso (LEFORT, 1983; GIDDENS, 1995), enquanto que
de todas as experiências autodenominadas alguns poucos outros despendem os maiores
socialistas, fundamentadas bem ou mal no esfor ços no sent ido d e conservar, e mbora
marxismo e tendo se apresentado como “críticas” redefinindo, essas categorias políticas (BOBBIO,
ao capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pela 1995; FAUSTO, 2007).
crescente complexização da sociedade moderna,
A manutenção desses rótulos – algo que
em especial com o declínio das lutas trabalhistas
que tanto marcaram o século XIX e a primeira no Brasil e na América Latina em geral é um
metade do XX, lutas essas sempre identificadas esforço quase exclusivo da autodenominada
com a esquerda e com todas as vertentes “esquerda”, sendo que nos Estados Unidos, ao
libertárias ou socialistas. Pelo advento de novos inverso, é mais identificado com os conservadores
sujeitos e frentes de lutas no plural – feministas, – não deixa de pagar um elevado preço teórico.
ecológicas, étnicas, de orientação sexual, de De fato, trata-se mais de um apego a uma
moradia, imigrantes de regiões pobres em áreas identidade vista como “positiva” (esquerda na
mais desenvolvidas, etc. –, que por vezes são América Latina e direita nos Estados Unidos), que
até antagônicos. Pela expansão e o enorme no fundo faz parte da autodefinição de certas
pode rio da m ídia, que junta mente com as pessoas e grupos, uma tentativa de se manter
pesquisas de opinião faz com que praticamente fiel a um certo passado (ou a determinadas
todos os partidos políticos reformulem os seus tradições), e no extremo – no caso de alguns
discursos em função do que o público quer neste partidos – é algo que visa angariar simpatias e
ou naquele momento independentemente de sua votos.
posição ideológica (se é que isso ainda existe). Sem dúvida que existem teóricos sérios e
Por tudo isso, reiteramos, as noções de esquerda bem intencionados que procuram manter esses
e direita tornaram-se problemáticas para definir rótulos políticos. Não estamos nos referindo a
todo um espectro de posições políticas no mundo autores panfletários com visíveis insuficiencias
atual. Existe ainda uma perda de referências. A t eóri ca s, q ue nã o conseg uem i r al ém d o
grande bandeira de luta da velha e heroica marxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel, Emir
esquerda, aquela do século XIX e da primeira Sader, Robert Kurz e outros, que escrevem como
metade do século XX, a de uma sociedade se ainda vivéssemos no século XIX, que se
utópica1 que garantisse concomitante o máximo recusam a analisar seriamente – e aprender com
de liberdade e de igualdade, foi completamente – a experiência dos totalitarismos (nazismo,
destroçada por inúmeros acontecimentos e fascismo e comunismo), que menosprezam as
estudos científicos: pela triste realidade de todos conquistas democráticas. Pensamos em teóricos
os socialismos reais, em primeiro lugar, e também do calibre de Norberto BOBBIO (1995) e Ruy
por pesquisas e reflexões lógico-matemáticas, tais FAUSTO (2007), entre alguns poucos outros.
como, por exemplo, aquelas do prêmio Nobel de Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerda
economia Amartya SEN (2001), nas quais se hoje define-se fundamentalmente pela busca de
demonstra cabalmente que é impossível existir uma maior igualdade social, enquanto que a
um máximo de i gualda de se m sacrifica r a defesa da liberdade seria mais um atributo da
liberdade e vice-versa.
direita. E Fausto pensa que uma esquerda nos
Nesses termos, alguns autores que se dias atuais deve ser defensora intransigente da
consideram progressistas e apregoam um mundo democracia – por sinal, Bobbio também advoga
melhor, com maior justiça – entendida como essa posição, embora identificando democracia
garantias para as liberdades democráticas, que com o liberalismo, algo que Fausto repudia – e ir
não são algo eterno e acabado e sim partes de além do marxismo (posição também defendida
um processo de constante criação e reinvenção pelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 31

uma “ditadura do proletariado” (ou de qualquer pessoas e os grupos são desiguais nas suas
outro tipo de ditadura) e mesmo a de uma potencialidades, nas suas necessidades, no seu
economia planificada sem a propriedade privada val or d e ba rg a nha pa ra a soci ed ad e, na
nos moldes genericamente apontados por Marx, criatividade ou nas formas de luta, etc. E tentar
recuperando o ideal anarquista e socialista utópico impor uma igualdade total através da única forma
de autogestão, de cooperativas de pequenos possível, qual seja, pela força através de um
produtores ou trabalhadores, etc. regime não democrático – um partido único no
p od er ( ou um l íd er ca ri sm át ico) que di z
Essas proposições, contud o, embora
representar os trabalhadores ou o povo –, como
sejam as mais palatáveis (sem dúvida que as mais
foi demonstrado ad nauseam, é algo que sempre
democráticas) entre os que se autointitulam de
resulta em privilégios abusivos para alguns, que
esquerda, nos parecem em certa medida frágeis.
mandam e desmandam de forma arbitrária, que
Primeiro, no caso de Bobbio, significaria deixar
usam em seu proveito pessoal os bens tidos como
de lado os reclames por liberdades (contra as
públicos. Quanto à posição de Fausto, acredito
prisões arbitrárias e a tortura, contra a violação
que de fato seja interessante investir esforços na
dos direitos humanos, pela ampliação dos direitos
busca de alternativas libertárias do tipo economia
das mulheres, dos homossexuais, das etnias
com base em cooperativas, autogestão em
minoritárias, dos idosos, etc.) para a direita, algo
empresas e outras instituições, etc. O problema
evidentemente absurdo e oposto a toda tradição
é q ue m ui t as v ezes essa s ex p er iê ncia s
progressista da esquerda. É certo que Bobbio
cooperativas ou autogestionárias resultam na
assinalou que a liberdade que a direita mais
ditadura de uma pessoa ou um grupo. Ou então
defende é a do mercado, mas mesmo assim
na promoção de interesses corporativos – ou de
insistiu que a bandeira de luta da esquerda é
grupelhos específicos – que são opostos aos
basicamente a igualdade e não as liberdades. E
interesses maiores da sociedade. [Não podemos
mesmo a liberdade do mercado – algo que nos
continuar a ser ingênuos hoje, depois de tantas
dias atuais inclui a proteção dos consumidores,
experiências de manipulação de assembleias –
o combate aos cartéis e monopólios, inclusive
basta lembrar, sem a menor pretensão em
àqueles estatais, etc. – é fundamental para
denegar, de inúmeras instrumentalizações da
qualquer democracia moderna na medida em que
“ vont ad e popul ar ” em a lg uns orçam entos
ainda não foi encontrado um substituto aceitável.
participativos – a respeito do assembleismo. Via
D urante a l gum te mp o p ensou-se que a
d e re gra ex ist em p ar ti dos ou gr up el hos
estatização e a planificação da economia fossem
organizados que conseguem impor os seus pontos
m el hor que o m er ca d o, m as i sso j á foi
de vista apriorísticos nas resoluções, seja pelo
completamente descartado ao ponto de alguns
cansaço da maioria seja pela manipulação dos
autores da new left, inclusive economistas que
votos, etc.]. E ao contrário de Bobbio, Fausto não
participaram de planos quinquenais na Hungria e
enfrenta o dilema da igualdade versus a liberdade;
na China na época em que vigorava a economia
ele continua – tal como no século XIX – a escrever
planificada, terem afirmado que se houver um
como se essa antinomia não existisse. Parodiando
novo socialismo no século XXI sem dúvida que
o título do seu livro, podemos dizer que de fato é
ele terá por base a economia de mercado (cf.
difícil ser [inequivocamente] de esquerda – e
NOVE, 1989). Depois, existe o fato óbvio de que
também de direita – no século XXI.
somente a vigência da democracia, logo das
liberdades e da participação, é que pode garantir Essa polêmica evidentemente já chegou
um mínimo de igualdade – mas nunca total, pois na geografia crítica. Desde a última década do
isso é um sonho utópico no sentido literal da século XX, logo depois do debacle do socialismo
palavra [isto é, “que não existe em lugar algum”], real no Leste europeu e na ex-União Soviética,
tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na surgiram várias listas de discussão – ou fóruns,
prática, a própria vigência das liberdades conduz como se denominam – na Internet a respeito do
a uma certa desigualdade na medida em que as que seria uma geografia crítica hoje2. Dando uma
32 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

rápida espiada em algumas dessas mensagens – de uma “geografia radical” foi sendo substituída
pois é praticamente impossível ler todas (são pela de “geografia crítica” (BLOMLEY, 2006).
milhares), algo que provavelmente nem mesmo Considero pertinente este último ponto de vista,
o mediador de cada um desses grupos faz –, pois na verdade a ideia de uma geografia crítica
logo se percebe que não existe sequer um mínimo nasceu primeiramente na França, em 1976, com
consenso entre os participantes a respeito do que Yves Lacoste e outros participantes da revista
é ou deveria ser uma geografia crítica: para alguns Hérodote, que desde o início se mostraram
é sinônimo (ou no mínimo complementar) do r et icente s e m re la ção a o m ar xi sm o e
adjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista incorporaram ideias de pensadores anarquistas
(embora nunca fique claro que tipo de socialismo), ( Ré cl us) e pr i ncip al me nt e p ós-m od er nos
para outros simplesmente de denúncia de grupos (Foucault) 3. Esse geógrafo francês chegou a
neonazistas, de alguma forma de desigualdades afirmar que o marxismo negligenciou o espaço
ou injustiças, ou de agressões à natureza em em prol de uma supervalorização do tempo
qualquer parte do mundo, e assim por diante. (LACOSTE, 1988: 139-51).
Também em livros e artigos acadêmicos M as, pr osseg ui ndo com o se u
esse debate se encontra em andamento. Dois pensamento, o mencionado geógrafo norte-
geógrafos britânicos, apesar de admitirem haver americano questiona sobre o que seria de fato
“ inúm eras d esa ve nças sob r e o que se ri a uma atitude crítica e coloca a seguinte dúvida:
esquerda”, concluiram o seu artigo de forma será que todos nós, que dizemos praticar uma
extremamente otimista, afirmando que ela hoje geografia crítica, somos realmente críticos?
“representa o futuro” (THRIFT e AMIN, 2005). (BLOMLEY, 2006: 87). Ele ainda se pergunta, com
Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto que base num questionamento de um colega seu da
já é considerado o ensaio mais citado entre todos universidade [cujo nome não mencionou], se o
os que já foram publicados nessa revista – ad jeti vo crí tico na ve rdad e não se t ornou
Antipode –, que em 1969 inaugurou a “geografia redundante; e afirma que a tradição crítica nas
radical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número da ciências sociais teria começado com Marx, que
revista existe um diálogo com esse texto, por num trecho célebre decretou que: “Entretanto os
parte de um autor marxista que censura a ênfase filosófos somente têm interpretado, de várias
no pluralismo em Thrift e Amin e os chama – de mane iras, o mundo. A questão princip al é
forma depreciativa, pois acredita por um motivo transformá-lo” (MARX apud BLOMLEY, 2006). A
obscuro qualquer [não explicitado] que há meu ver, o autor acertou em cheio ao questionar
semelhanças entre o pluralismo científico e a o significado de crítica [ou mesmo de radical, num
“conversão ao neoliberalismo” da esquerda outr o pla no] nos d ia s de hoje . Mas e rr ou
trabalhista britânica (Tony Blair e outros) – de completamente ao identificar o conceito de crítica
neocríticos (SMITH, 2005). Logo no ano seguinte com esse chamado ao engajamento que Marx
veio uma intervenção de uma geógrafa norte- proclamou em 1845 nas suas Teses contra
americana, que estranhou tanto otimismo – ou Feuerbach. Como iremos mostrar a seguir, esse
tanta ingenuidade – por parte daqueles dois é um tremendo desacerto, típico da geografia
autores num momento em que inegavelmente a anglo-saxônica em geral que, via de regra, não
esquerda se encontra em crise (WILLS, 2006). conseguiu discernir os significados (diferentes)
Um outro autor norte-americano, nesse mesmo de crítica e de radical e tampouco esquadrinhar o
ano, assinalou – para horror de autores como longo percurso, que começou muito antes de
Smith – que a partir do final dos anos 1980 nos Marx, da crítica na vida social e política.
Estados Unidos, por influência do pensamento
pós-moderno em ascensão, que gradativamente Ipso facto, este nosso ensaio constitui uma
p assou a subst it ui r o ne oma rx ismo com o modesta tentativa de contribuição através de uma
referência teórica nos círculos engajados da releitura dos significados de crítica, em primeiro
geografia acadêmica, pouco a pouco a bandeira lugar, e também dos adjetivos radical e esquerda.
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 33

Uma releitura que vai até as origens e procura Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou que
mostrar as mudanças que a noção de crítica sofreu no Ocidente, com o advento da modernidade,
em alguns momentos históricos cruciais. E especialmente entre os séculos XV e XVI, a
principalmente tentaremos polemizar o que palavra crítica começa a denotar um tipo de
significa uma atitude crítica hoje e se essa posição política, uma oposição ao ato de governar,
adjetivação ainda é necessária na geografia do que, convém recordar, naquele momento se
século XXI. i de nt if ica va com a na scente mona rq ui a
absolutista. Na interpretação desse autor:
Vamos iniciar pela semântica. No senso
comum a palavra crítica normalmente é vista sob “E eu proporia então, como uma primeira
um viés negativo, enquanto uma censura ou definição da crítica, esta caracterização geral:
conde na ção, como um j ulg ame nto semp re a arte de não ser de tal forma governado. Não
desfavorável. Criticar, no entendimento comum querer ser governado assim, não é não mais
amiúde encontrável na mídia, em filmes, em querer aceitar essas leis porque elas são
discursos políticos e mesmo em assembleias injustas, porque, sob sua antiguidade ou sob o
populares ou trabalhistas, significa basicamente seu brilho mais ou menos ameaçador que lhes
“falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, de dá a soberania de hoje, elas escondem uma
a lg um p roje to ou d e al gum a pr op osição 4 . ilegitimidade essencial. A crítica é então, desse
Entretanto, essa não é a acepção filosófica e ponto de vista, em face do governo e à
cie nt if i ca d o conce it o. Na f il osofi a, na obe di ênci a q ue e le e x ig e, opor d ir ei tos
epistemologia e nas ciências humanas em geral universais e imprescritíveis, aos quais todo
o significado de crítica é o de um procedimento gov erno, qual seja e le, q ue se trate do
que implica em discernimento, critério, apreciação monarca, do magistrado, do educador, do pai
minuciosa e julgamento que não precisa ser, de família, deverá se submeter. À questão
necessariamente, negativo. Mais ainda: é um ‘como não se r g over nad o?, re sponde- se
procedimento tido como necessário e até mesmo dizendo: ‘quais são os limites do direito de
imprescindível para o aprimoramento e o avanço governar’?” (FOUCAULT, 1990 : 35-63).
do conhecimento5.
Mas foi com Kant, no século XVIII, que a
Etimologicamente, a palavra crítica vem crítica assumiu o seu significado moderno,
do grego kritikòs, que significa o ato de examinar praticamente o mesmo posteriormente retomado
ou julgar alguma coisa. Essa palavra é um por Hegel, por Marx e pelos tantos outros filósofos
derivativo do vocábulo grego krinò, que pode ser ou cientistas sociais que se utilizaram desse
entendido como a capacidade de distinguir, de conceito para definir alguma teoria ou corrente
estabelecer uma distinção (cf. SIERRA, 1999; e de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua
CARROLI, 2006). Com os gregos da antiguidade, teoria crítica, Karl Popper com o seu racionalismo
portanto, os criadores do vocábulo, a crítica crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre outros, com
implicava numa reflexão, num ato reflexivo no a proposta de uma pedagogia crítica, etc. Tanto
qual se avaliava ou examinava alguma coisa: uma que a filosofia kantiana também é conhecida pelo
ideia, uma teoria, um comportamento, uma peça nome de criticismo (LEGRAND, 1986:103-4). Sua
de teatro, uma obra literária, etc. Uma avaliação monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma
t anto d os aspe ct os p osi ti vos q ua nt o dos te nt ati va de e xam ina r minuciosam ent e as
negativos, um julgamento, digamos assim, da
propriedades da razão pura, aquela desligada da
“qualidade” dessa coisa, de sua validade ou
experiência, estabelecendo os seus limites. Não
veracidade (total ou parcial) e de seus erros ou
se trata, porém, de uma radical negação da razão
equívocos (idem).
e sim uma autocrítica desta, uma espécie de
Michel Foucault procurou datar o momento continuação do projeto iluminista de, utilizando
em que a crítica passa a ter um significado político. a razão com base na ciência moderna, combater
Numa conferência pronunciada em 1978 na todas as formas de escuridão (ignorância por
34 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

crenças e superstições, dogmatismo religioso, incapacidade na qual a humanidade estaria


autoritarismo no conhecimento e na vida política). retida, incapacidade de se servir de seu próprio
Nas suas palavras: entendimento sem alguma coisa que fosse
justamente a direção de um outro (...) Em
“O obj eti vo d est a Cr íti ca da r azã o pura
terceiro lugar, creio que é característico que
especulativa reside na tentativa de mudar o
Kant tenha definido essa incapacidade por uma
procedimento tradicional da Metafísica e
certa correlação entre uma autoridade que se
promover assim uma completa revolução nela
exerce e que mantém a humanidade nesse
seg undo o e xe mp lo dos ge ôm et ra s e
estado de menoridade, correlação entre este
investigadores da natureza. (...) Com base num
excesso de autoridade e, de outra parte, algo
lance superficial de olhos sobre esta obra,
que ele considera, que ele chama uma falta de
poder-se-á pensar que a sua utilidade seja
d ecisão e d e cor ag em . (...) Enf im , é
somente negativa, ou seja, de não ousarmos
característico que, nesse texto Kant dá como
jamais elevar-nos com a razão especulativa
exemplos de retenção da menoridade da
acima dos limites da experiência(...) Ela se
tornará , por ém , i me dia ta mente posi ti va hum anid ad e, e por conseq üênci a, com o
quando nos dermos conta de que os princípios, exemplos, pontos sobre os quais a Aufklärung
com cujo apoio a razão especulativa ultrapassa deve erguer esse estado de menoridade e
os seus limites, na verdade têm como resultado m ai or id ad e e m, cer t o ti po, os home ns,
inevitável , se o observarmos mais de perto, p re ci sa me nt e a r el ig iã o, o di re it o e o
não uma ampliação mas uma restrição do uso conhecimento. O que Kant descrevia como a
da nossa razão(...) Contestar a utilidade Aufklärung, é o que eu tentei até agora
positiva deste serviço prestado pela Crítica descrever como a crítica, como essa atitude
equivaleria a dizer que a polícia não possui crítica que se vê aparecer como atitude
nenhuma utilidade positiva por ser a sua específica no Ocidente a partir, creio, do que
principal ocupação fechar a porta à violência.” foi historicamente o grande processo de
(KANT, 1974: 14-5). governa mentalização da sociedad e. Com
relação a essa Aufklärung (cujo emblema,
A crítica, nesses termos, não é somente vocês bem o sabem e Kant lembra, é ‘sapere
negativa – o “falar mal” de algo ou mesmo aude’ [atreva a conhecer, a pensar por conta
som ente a p onta r la cunas, p robl em as, própria], praticamente um contraponto a uma
insuficiências, contradições –, mas também outra voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘que
positiva na medida em que auxilia no avanço ou eles raciocinem tanto quanto querem contanto
no aprimoramento do objeto criticado, promove que obedeçam’). Como Kant vai definir a
enfim uma revolução no sentido de propor novas crítica? Eu diria que a crítica será aos olhos de
alternativas ou perspectivas. Mas o criticismo Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem
kantiano ainda vai além. Prosseguindo com a até onde pode saber? Raciocina tanto quanto
interpretação de Foucault, temos que a crítica queira, mas você sabe bem até onde pode
kantiana vincula-se à de esclarecimento, isto é, raciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma,
da conquista da maioridade pelo ser humano: que está menos no que nós empreendemos,
“A definição que Kant dava de crítica não é com mais ou menos coragem, do que na idéia
distante de como ela entendia a Aufklärung que nós fazemos do nosso conhecimento e dos
[esclarecimento, ilustração]. É característico, seus limites, que aí vai a nossa liberdade, e
com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre o que, por conseqüência, ao invés de deixar dizer
que é a Aufklärung, ele a definiu em relação a por um outro “obedeça”, é nesse momento,
um certo estado de menoridade no qual estaria q ua nd o se te rá f ei t o do se u pr óp ri o
ma nt ida , e m ant ida a utorit ar iam ent e, a conhecimento uma idéia justa, que se poderá
hum anid ad e. Em se g undo l ug ar , el e descobrir o princípio da autonomia e que não
caracterizou essa menoridade por uma certa se terá mais que escutar o obedeça; ou antes
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 35

q ue o obe de ça esta rá f und ad o sobr e a uma superação com subsunção e, mais ainda, é
autonomia mesma.” (FOUCAULT, 1990: 40). um procedimento revolucionário que aponta para
um a li be rt ação do ser huma no, pa ra uma
Nesses termos, a crítica para Kant implica
completa autonomia no futuro. Procurando
num projeto de autonomia, de libertação da razão
estabelecer os limites da economia política
das amarras do autoritarismo, do tradicionalismo
clássica (de Adam Smith, David Ricardo e outros)
e das crendices. É uma contribuição para a
– que seria antes de tudo uma economia burguesa
revolução democrática no sentido de maior
ou justificadora do sistema capitalista –, Marx
autonomia da humanidade e dos indivíduos ou
acreditou ter encontrado a sua superação com a
cidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável,
análise das contradições do capitalismo, o qual
de ra ci ocina rm os p or cont a pr óp ri a
inexoravelmente cederia lugar a um novo modo
independentemente dos dogmas e das proibições. de produção sem a propriedade privada dos meios
Ou seja, um convite a “mudar o mundo” no de produção. Ao contrário do que pensam alguns,
sentido de construir uma sociedade com maior a crítica de Marx ao capitalismo e à economia
just iça e ig ua ld ad e, com m ai or p rogr esso política não significou uma “crítica negativa” no
ci entí fico, com escla re ci mento e nfi m. N ão sentido de apenas apontar erros, problemas,
podemos negligenciar que em grande parte a obra mistificações ou contradições. Como mostrou com
de Kant representa uma certa continuação do propriedade BERMAN (1987: 85-125), é na obra
iluminismo e ao mesmo tempo reflete uma de Marx – muito mais do que na de Ricardo, de
admiração pela Revolução Francesa. Hegel Smith, de Keynes ou de qualquer outro autor tido
retomou essa ideia de crítica, mesmo procurando como ideólogo da economia de mercado – que
à sua maneira superar o criticismo kantiano. podemos encontrar os mais rasgados elogios ao
Sabemos que ele valorizou a História – com H capitalismo, em especial ao imenso “progresso”
maiúsculo, vista como a realização paulatina da que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, à
razão através de etapas ou avatares, num criação de um mercado mundial integrado. O
processo teleológico com um final pré-definido. sentido que Marx dava ao termo crítica, convém
A dialética para ele, longe de ser apenas um repetir, era o de um procedimento kantiano de
procedimento de oposição (tese e antítese) que entender profundamente algo, inclusive nos seus
gera uma síntese, como em Kant, assume uma aspectos positivos, assinalando a sua importância
dimensão ontológica que aparece sob a forma dos histórica e ao mesmo tempo apontando os seus
processos históricos. A dialética hegeliana não limites ou as suas insuficiências (ou as suas
pretende ser apenas uma forma de lógica, mas “ cont ra di çõe s”, nos t er mos da di al ét ica
também uma ontologia; ela se apresenta como o hegeliana).
movimento da História.
Sabemos que a partir do final do século
Marx prosseguiu com essa ideia hegeliana XIX – e até o final do século XX – a ideia de crítica
da dialética como a realização da História, sendo esteve identificada basicamente com o marxismo,
esta uma dinâmica complexa que atravessaria como se fosse um atributo somente da “esquerda”
várias fases e afinal desembocaria na completa (vista como os adeptos do socialismo) e tendo o
libertação do ser humano. Afirmando ter colocado capitalismo como objeto privilegiado, o alvo por
Hegel em posição invertida, com os pés no chão, excelência das críticas. No entanto, ao contrário
ele substituiu a razão ou o espírito pelas condições do procedimento crítico adotado por Marx, o
materiais e a luta de classes, que também num marxismo posterior, com raras exceções, somente
processo teleológico, por etapas, conduziriam ao viu aspectos “negativ os” e inaceitáveis no
socialismo e, após um período de transição, ao capitalismo (e mesmo na democracia!), como se
comuni smo, a Hi stóri a enf im r ea lizad a ou este fosse um sistema que de forma inelutável
acabada. Sua principal obra, O Capital, tem como amplia as desigualdades e entrava o “progresso”,
subtítulo Crítica da Economia Política, numa isto é, o desenvolvimento das forças produtivas.
inegável inspiração kantiana no qual a crítica é É evidente que, hoje, essa leitura precisa ser
36 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

reexaminada e superada. Precisa ser criticada Em primeiro lugar, ao contrário do que


enfim. Não é mais possível levar a sério a p ensa m al guns, não se tra ta d e de ne ga r
concepção de dialéti ca como portadora do completamente a geografia clássica ou tradicional,
segredo da história, ou como o “método científico” substituindo-a pelo materialismo histórico com os
por excelência; e muito menos a existência de seus conceitos fundamentais (modo de produção,
um suje it o q ua lq ue r ( o pr ol et a ri ad o, os formação econômico-social, classes sociais
trabalhadores, o espírito, as massas, a multidão, alicerçadas na produção, a teoria marxista do
os movimentos sociais, as ONG’s ou qualquer valor, o socialismo como etapa que substituirá o
out ro a ge nte ) que ser ia o r e de nt or d a capitalismo, etc.). Com tal procedimento, mesmo
humanidade. E não apenas o capitalismo, mas quando existe a tentativa de enriquecer ou
também o socialismo real, assim como qualquer completar o marxismo com a incorporação do
outro projeto de sociedade que repudie o espaço geográfico – a formação econômico-social
mercado e a democracia (por exemplo, aqueles transforma-se em formação socioespacial, a luta
alicerçados em valores religiosos; ou o populismo de classes passa a abarcar os conflitos ambientais
autoritário “de esquerda” da América Latina), e territoriais, o materialismo histórico passa a ser
deve igualmente ser objeto de profundas críticas. chamado de materialismo histórico-geográfico
(HARVEY, 2001: passim), etc. –, não existe uma
Malgrado os equívocos e as insuficiências verdadeira crítica da tradição geográfica. Não há
de Marx e de Hegel – em especial a tentativa uma superação com subsunção e tampouco um
de teleologizar a história e a pretensão de projeto de libertação realista e coerente com a
identificar um agente portador do futuro e do nossa época. O que existe nesse procedimento é
segredo da história (a razão ou o proletariado) apenas a substituição da tradição geográfica por
–, não podemos perder de vista o que há de uma teoria do século XIX (mesmo que esta seja
com um e nt re e le s e Ka nt . Ou, em out ra s lida a partir de algum autor posterior: Lukács,
palavras, o entendimento da crítica não como Althusser ou mesmo Léfebvre...) que imaginou
falar mal ou desancar um pensamento, mas sim ter superado o capitalismo pela análise de suas
co m o c om p r e e nsã o m i nuci osa d o s se us contradições e limites, que pretensamente
fundamentos e limites, como superação na qual conduziriam ao socialismo. Sem dúvida que
se incorpora o que foi superado como parte de naquele momento de ascensão dos movimentos
uma síntese ou teoria superior. E ao mesmo operários essa construção teórica era crítica. Mas
tempo crítica como um projeto de autonomia nos dias de hoje ela se encontra envelhecida, até
da humanidade, de crescimento do ser humano m esmo cad uca , al ém de com p le ta me nt e
no se nt i d o d e l i b e r t a çã o d a s a m a r ra s d o deslocada dos verdadeiros projetos de libertação,
tradicionalismo, das crendices, da exploração que não se identificam mais com esse agente
social e do autoritarismo. idealizado por Marx, o proletariado, o qual,
Ac r e d i t a m os q ue e st a d e va se r a se ja mos f rancos, seq ue r e xi ste no m undo
concepção reproduzida pela geografia crítica – empírico6. Insistir nessa via sem levar em conta
ou pelo menos por grande parte dela, que afinal a experiência dos totalitarismos do século XX –
é plural. Crítica como superação com subsunção que em boa parte nela se alicerçaram – e as
e ao mesmo tempo como um engajamento em mudanças na vida social e econômica, com o
algum projeto de libertação que amplie o espaço advento de novos sujeitos e campos de luta, nada
mais é que, consciente ou inconscientemente,
da democracia, que combata todas as formas
partilhar um projeto de ascensão ao poder por
de dogmatismo e de autoritarismo. Todavia,
uma camada de burocratas que fala em nome
existe hoje um grande dilema: a ideia de projeto
dos trabalhadores, dos excluídos ou da História7.
d e l i b e r t a çã o t o r nou - se e x t r e m a m e n t e
p robl em át ica, em bora d e m anei ra a lg um a Destarte, a história do século XX – e em
dispensá vel. Mas a profunda com preensão especial a crise do mundo socialista, a emersão
desse fato requer algumas explicações. de novos sujeitos e formas de luta social, a par
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 37

das profundas mudanças ocorridas no capitalismo, fundamentalista, adepta do criacionismo, crítica


que não pode mais ser entendido pelas análises seria uma compreensão dos fundamentos e
marxistas clássicas – , evidencia que a crítica da limites da ciência – neste caso, do neodarwinismo
economia política também deve ser criticada, que – procurando superá-la com o ato de a incorporar
ela também possui os seus limites e insuficiências, como parte de uma teoria que mantivesse os
cada vez mais evidentes. Assumir o materialismo dogmas da religião e ao mesmo tempo admitisse
histórico como “a” teoria na qual a geografia deve certas mudanças temporais na natureza e no
ser diluída é um procedimento acrítico, que não advento dos seres vivos. (E também existiria um
realiza, sequer minimamente, uma análise crítica projeto de autonomia ou libertação nesse caso,
da geografia, tal como aquela de Kant frente à mesmo que em outra vida). O mesmo poderíamos
razão pura, ou mesmo a de Marx frente ao admitir para os fundamentalistas islâmicos, para
capitalismo. Apenas se incorpora, de forma os hinduístas, para os adeptos da supremacia
m ecânica e sem g ra nde cri a ti vi da de , branca, etc.
d et er mi na dos conce it os ou p re ocup açõe s
Cairíamos então num relativismo segundo
espaciais a um corpo teórico já constituido, este
o qual todos os pontos de vista se equivalem e,
sim nascido de uma tradição crítica, embora
assim sendo, qualquer discurso que procurasse
datada e integrada a outros tempos, outras
compreender uma teoria e incorporá-la num
circunstâncias. Pouco se avança no conhecimento
projeto qualquer de “libertação” seria considerado
da realidade; em geral tão somente velhos
crítico? É evidente que não. Então, como sair
chavões ou estereótipos são regurgitados.
desse empasse?
Devemos então indagar sobre o que seria
Em primeiro lugar, temos que lembrar que
um procedimento crítico nos dias de hoje. Nesta
para Kant existe um vínculo indissociável entre
época de pós-modernidade com múltiplos sujeitos
crítica e democracia, sendo esta um processo que
e verdades, com visões de mundo alternativas e
implica na crescente libertação da humanidade
igualmente aceitáveis, cada uma dentro de seu
em relação às crendices, ao autoritarismo, às
ponto de vista, continuar propagando a ideia de
tradições que reproduziam ou reproduzem uma
crítica como a realização do sentido da história é
socie dade rig idamente estrati ficada e com
algo completamente extemporâneo. Ninguém
privilégios para alguns. Crítica, nessa concepção
mais tem o direito de falar em nome da história e
kantiana e moderna, deve ser algo que contribui
nenhum sujeito ou agente social é o detentor da
para a liberdade e a igualdade dos seres humanos,
verdade entendida como algo unívoco. Um outro
e nunca algo que justifique ou legitime qualquer
problema é que não temos mais aquele otimismo
ti po d e dit adura, de autorit ari smo ou de
dos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidade
totalitarismo, de privilégios, de racismo ou de
da humanidade. Poucos acreditam hoje num
preconceitos. Não vivemos mais uma batalha
projeto de libertação que inclua todas as culturas
entr e dir ei ta e esquer da, t am pouco e nt re
e civilizações, todos os povos num único modelo
capitalismo e socialismo. Um intelectual que
societário para o futuro. Cada vez mais se
enxergou muito bem um dos principais conflitos
valorizam as diferenças e as alteridades, a
neste novo século foi o escritor Francis Wheen,
q ue st ão d os Outr os, com sua s d if er ente s
que afirmou que: “A nova batalha será entre o
concepções a respeito do ideal de uma sociedade
melhor do legado do Iluminismo (racionalismo,
no futuro.
empirismo científico, separação da Igreja e do
Isso p osto, cabe uma int errogaçã o: Estado) por um lado e, do outro, várias formas
qualquer discurso que critique outro(s) no sentido de obscurantismo e relativismo destituído de
de incorp orá-l o numa nova sínte se, e que v al or es, fr eq üente me nt e m asca ra do com o
contenha um projeto qualquer de autonomia, ‘antiimperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar
pode ser considerado crítico? Exemplificando: se um ve rniz at ra ente ra di ca l a a ti tude s
p ensa rm os num a pe r sp ecti va cri st ã profundamente reacionárias” (WHEEN, 2007).
38 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

Assim sendo, não tem sentido adotar cientificismo, que advoga uma absurda atitude
aquela posição comodista que considera críticas arrogante e imperialista frente às demais formas
determinadas ideias que servem de propaganda de conhecimento – desde o artístico ao filosófico,
para fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo passando pelos diversos sensos comuns, pela
que elas sejam extremamente ácidas em relação experiência de vida das comunidades tradicionais
ao capitalismo, que é exorcizado como o demônio e dos povos ditos selvagens, etc.. Mesmo assim,
do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que os cânones do conhecimento científico continuam
estão mais para o “falar mal” de algo e nunca sendo a melhor maneira de superar o relativismo
para a análise de seus fundamentos e limites; puro e simples e avançar nessa problemática do
que no fundo constituem tão somente impropérios que é uma atitude crítica hoje.
a respeito do capitalismo, da globalização e até Um dos grandes méritos da ciência ou das
mesmo da democracia. ciências é admitir que suas verdades, embora
Em segundo lugar, temos que levar em frequentemente úteis e eficazes, são sempre
conta que a geografia é ou pretende ser uma provisórias e sujeitas a correções ou superações.
ciência. O que Kant almejava com a sua crítica O conhecimento científico não procura nem aceita
com o pr ol ong am ento d o il umi ni sm o era o Absoluto. Ele relativiza os conceitos e teorias,
exatamente libertar a humanidade das amarras embora não no sentido do relativismo ingênuo,
dos dogmatismos e dos autoritarismos, da ou puro e simples, na qual tudo é igual e portanto
escuridão enfim; e que essa iluminação através não existe qualquer hierarquia e tampouco
da razão era comandada pela ciência moderna. nenhuma forma de aprimoramento ou avanço
O escopo da ciência – ou melhor, das ciências, gradativo do conhecimento. A ciência relativiza
no plural, para evitarmos o mito de um método os conceitos e teorias – e até mesmo os objetos
único para todos os aspectos do re al – é – ao considerá-los como verdades provisórias e
desenvolver ou dilatar o conhecimento humano sempre sujeitas a testes, a confrontos com a
sobre a realidade em todas as suas dimensões. realidade e com outras explicações, mas cujo
Um conhecimento que, não raro, serve para senti do, me smo hav endo encont ros e
ampliar nosso controle sobre a natureza, tanto a desencontros, avanços e possíveis recuos, sem
interna (nosso corpo e mente) como a externa dúvida que tem um norte, que é um crescente
(através da redução das distâncias, da ampliação acúmulo de informações cada vez mais eficazes
da oferta de alimentos, ou mesmo de novas no sentido de compreender (e agir sobre) o
substâncias, da produção de máquinas e até de mundo, o real em todos os seus aspectos.
armamentos, etc). É justamente aqui que encontramos a via
Sem dúvida que esse controle hoje, ao que nos permitirá reconhecer a criticidade numa
contrário dos séculos XVIII e XIX, é tido como teoria, num discurso: a sua relatividade em
problemático. Sabemos que muitas vezes ele gera termos de contextualização e significado para o
conse quência s noci va s p ara de t er mi na dos universo do qual faz parte. Não existem ideias ou
ecossistemas e grupos humanos ou, em alguns teorias críticas em si. Elas só o são em função do
casos, até mesmo para a biosfera e para a papel que desempenham no seu contexto, razão
humanidade como um todo. Contudo, bem ou pela qual podem ser críticas numa época, num
momento e num lugar determinados – por
mal, ele sempre foi e continua sendo o motor que
exemplo, o marxismo na Europa Ocidental do
impulsiona o chamado desenvolvimento, inclusive
século XIX – e também podem ser completamente
nas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmo
acríticas em outra época ou lugar, tal como ocorre,
que critiquemos o conhecimento científico – algo
como já mencionamos, com o marxismo em
que, como vimos, faz parte do seu próprio modo
praticamente todo o mundo nos dias de hoje.
de ser, no qual a crítica é necessária para suas
correções e rearranjos. Mesmo que deneguemos Voltando agora para a seara da geografia,
e ssa ex cr ecência d a ci ência m od er na , o podemos seguir com a inquietação de Blomley.
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 39

Sem dúvida que existe uma certa verdade na imp eria lism o nor te-a meri cano, que alm eja
a fi rm ação que há d i fe re nt es ve rt ente s derrubar aqueles regimes revolucionários, etc.
autodenominadas críticas na geografia (como na Para esta vertente o pluralismo é um mal, o
ciência social e na filosofia em geral) e que talvez marxismo [entendido como se fosse algo unívoco]
o melhor seja deixar de lado esse adjetivo, pois é o único “método” científico válido, as citações
afinal de contas, já não teria ele cumprido o seu de algum autor (seja do próprio Marx ou, mais
papel? (Que foi o de servir de bandeira de luta frequentemente, de algum marxista posterior)
contra a geografia tradicional, que praticamente substituem as análises ou até mesmo o raciocínio,
não existe mais ou pelo menos já não conta com não e xi sti ri a ne nhum asp ecto p osi ti vo na
teóricos que a defendam). globalização e nas novas tecnologias, mas tão
som ente um a consta nte a mp l ia çã o da s
Mas, por outro lado, cabe uma indagação.
desigualdades sociais e espaciais, e por aí afora.
Como os geógrafos ditos críticos vêm enfrentando
esse problema da crítica? Uma parte deles, Contudo, sem dúvida que existem sérias
felizmente minoritária (talvez não na América tentativas de renovar dentro das geografias
Latina), continua a agir e escrever como se nada críticas, que não são meramente panfletárias e
de importante tivesse ocorrido nos últimos anos comodistas, que procuram enfrentar os desafios
e décadas, como se vivéssemos ainda uma luta de uma nova realidade, inclusive aquele da crise
entre “esquerda” (os adeptos do socialismo e do marxismo e da absoluta incapacidade de
críticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos do g ra nd e pa rt e d as g eograf i as crí ti ca s e
cap it al ism o, q ue se ri am p or de fi ni çã o principalmente das radicais de incorporar essa
conservadores e inimigos do pensamento crítico). questão até os primórdios dos anos 1990. Nem
Crítica aqui é entendida como “falar mal” dos todos os geógrafos ditos críticos são dogmáticos
de môni os do nosso te mp o: o capi ta li sm o, e meramente reproduzem estereótipos. Existe
naturalmente, junto com a globalização vista uma vertente crítica na boa acepção do termo,
como neoliberal, a democracia “burguesa” e a que procura realizar uma análise crítica tanto do
imprensa livre (principalmente quando esta capitalismo como também – ou talvez mais ainda
desanca regimes autoritários e populistas “de – do socialismo real, que buscou e busca subsídios
esquerda”, quando denuncia os abusos dos não apenas no marxismo (embora também
direitos humanos em Cuba, etc.). São produzidos cri ti ca do pe lo r ed uci onismo e conôm ico e
panfletos – ou estudos pouco fundamentados, principalmente pela valorização do tempo em
onde o objeto criticado sequer é compreendido detrimento do espaço), mas notadamente nos
de fato – nos quais via de regra existe uma a na rq ui sm os ( e sp ecia lm ent e de Reclus e
interpretação paranoica ou conspiracionista da Kropotkin), em Foucault e na pós-modernidade.
história: foi a CIA quem promoveu os atentados Mencionando apenas um exemplo entre muitos,
de 11 de setembro de 2001 com vistas a obter uma e xp re ssi va p ar te d os ge óg ra fos
apoio para as invasões do Afeganistão e do Iraque, autointitulados críticos, ao constatar as radicais
as cobranças de organizações internacionais, mudanças no capitalismo e o final do socialismo
especialmente o Banco Mundial, com a qualidade real, vem procurando nos últimos anos renovar
do sistema escolar é apenas parte de um projeto as suas teorias com o uso de conceitos ou ideias
neoliberal com vistas a privatizar o nosso ensino da teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt,
público, as preocupações com os desmatamentos em especial as de Habermas. Um dos expoentes
na Amazônia são meramente uma faceta do dessa vertente, ao procurar superar a “geografia
imperialismo que objetiva internacionalizar aquela radical” e construir uma “geografia crítica”, assim
região (o que significaria deixá-la aos cuidados se expressou:
dos países ricos, principalmente dos Estados
Unidos), as denúncias de presos políticos em Cuba “As correntes radicais da geografia, em todas
ou da pobreza e do autoritarismo na Coreia do as suas variantes, não apenas procuraram
Norte ou na Venezuela no fundo fazem o jogo do elaborar uma crítica do positivismo lógico, como
40 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

também efetuar mudanças sociais e políticas. ser defendido com convicção até mesmo por
Em face do visível êxito do capitalismo nos anos neonazistas, maoistas, bolivaristas e vários outros
1980 e da queda dos regimes comunistas da tipos político-ideológicos com viés autoritário).
Europa durante os anos 90, a geografia radical Assim , os t er mos ra di cal e crí ti ca não se
fracassou retumbantemente nos seus objetivos identificam completamente. Eles podem se
práticos. No exame das razões desse fracasso, sobrepor em algumas ocasiões, mas em geral
devemos reexaminar as cinco características apontam para atitudes diferentes. Voltando à
chaves da teoria crítica de Habermas: as proposta de Unwin, observamos que nela o papel
relações entre teoria e prática, a teoria dos do geógrafo crítico não é o de meramente ser um
i nt er esse s cog nosci ti vos, a te or ia d a terrorista intelectual ou um incendiário – isto é,
competência comunicativa, o interesse pela um engajado de forma radical – e sim um
emancipação e a prática da autoreflexão. (...) “psicanalista” que detecta problemas e ao mesmo
O trabalho da geografia crítica consiste em tempo potenciais. Como se sabe, o psicanalista
exprimir as desigualdades e convencer as não destrói a personalidade que analisa e sim a
p essoas d o p od er sobr e suas pr ov áv ei s reconstrói, a ajuda no seu encontro, na superação
repercussões, além de participar ativamente dos seus problemas e fobias. [Alguns diriam,
na criação de novas formas de organização citando Gramsci, que para o novo nascer o velho
social e econômicas. Em poucas palavras, tem que morrer. Talvez sim, mas somente num
devemos reconhecer o mal estar de nossa sentido metafórico. Pois o novo sempre significa
sociedade, adotar uma postura autoreflexiva um certo prolongamento, com determinadas
frente a ela e atuar como psicanalistas da nuanças, do velho. Não se trata do nascimento
situação da qual fazemos parte.” (UNWIN, de um indivíduo que vai – depois de várias
1991: 250-3). décadas – substituir um outro que envelhece e
N ot am os um g ra nd e ava nço ne ssa morre. Essa visão organicista é equivocada na
proposta que, como havia assinalado Blomley, medida em que é a mesma sociedade, embora
significa a passagem de uma geografia radical transformada, que perdura. Ela pode mudar sua
para uma geografia crítica. Pois crítica não se estrutura produtiva, revolucionar seus valores,
identifica com – embora pressuponha– um mero melhorar substancialmente a qualidade de vida
engajamento. O engajamento com os problemas de seus membros. Mas sempre haverá uma certa
sociais e territoriais, inclusive os ambientais, foi continuidade, uma herança que permanece. O
a grande bandeira de luta dos radicais anglo- velho, portanto, nunca morre totalmente. É por
saxônicos contra a geografia que predominava isso que ainda hoje somos herdeiros dos egípcios,
na sua realidade até o final dos anos 1960: a dos gregos e dos romanos da antiguidade9, dos
geografia pragmática ou quantitativa, voltada iluministas do século XVIII ou dos socialistas [no
para planejamentos e aparentemente “técnica” plural] do século XIX. Ademais, a filiação desse
ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo. Mas o g eógraf o à t eori a cr í ti ca na sua v er sã o
mundo mudou, os problemas se modificaram – hab er ma ni a na p re ssupõe um a a ve rsão a o
alguns se ampliaram, outros se contraíram, outros tradicional dogmatismo do marxismo-leninismo
nov os sur giram e out ros ai nda a dquiri ram e principalmente uma aceitação da democracia,
distintas facetas – e o simples engajamento, q ue a o invé s d e se r comb a ti da d ev e se r
embora necessário, se tornou problemático. preservada e inclusive expandida. Mesmo sem
Engajamento, por sinal, que de forma visível hoje concordarmos inteiramente com a posição de
p od e de not ar uma a ti t ud e intra nsig ente , Unwin [deixando de lado, por ora, o porquê disso],
antidemocrática ou até terrorista. Principalmente não podemos deixar de elogiar o avanço teórico
q ua nd o t id o com o “ra di ca l” 8 . N ão e xi st e e político contido na sua proposta [como também
engajamento apenas por um “outro mundo” ou na de Blomley e outros] de uma transição da
um “mundo melhor” (e, afinal de contas, o que geografia radical para uma geografia crítica pós-
quer dizer “melhor”?, sem dúvida algo que pode marxista aberta e plural.
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 41

Notas

1 Na verdade, estamos generalizando de forma Habermas) e até mesmo pós-modernos (como


pr opo sit al para e vita r d isc orr er sob re as Foucault, Guattari, Giddens e outros).
controvérsias a respeito da utopia no pensamento
4 Até mesmo alguns poucos cientistas sociais
crítico (que nunca foi nem é apenas marxista), na
incorporaram esse viés equivocado. Um autor
qual há autores que a a exorcizam e outros que a
brasileiro bastante citado e tido como especialista
assumem. Por exemplo: Marx e Engels, em
em metodologia científica, por exemplo, asseverou
primeiro lugar, além de grande parte dos marxistas
que: “Do ponto de vista metodológico, critica é
do início do século XX (Lénin, Trotsky, Rosa
sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é outra coisa,
Luxemburgo, Kautsky...) nunca foram adeptos da
quer dizer, é elogio.” (DEMO: 2002:30).
utopia e, pelo contrário, desancaram os socialistas
utópicos acreditando firmemente que o socialismo 5 “A postura crítica torna-se, assim, um instrumento
não era uma idéia utópica e sim “científica”, um de pesquisa: a crítica é um instrumento de
resultado de “leis” inexoráveis da História (assim progresso [científico]; é a crítica que distingue a
mesmo, com H maiúsculo). A respeito da aversão postura científica da experiência pré-científica,
do pensamento marxiano pela utopia remeto às onde se fazem erros e se espera até que se esteja
análises de FAUSTO (2007: 31-50). Em todo o caso arruinado com eles(...) Quando se tem postura
não há dúvida que, durante o transcorrer do século crítica, explora-se os erros de forma positivamente
XX, o projeto socialista passou a ser visto como crítica, aprendendo-se conscientemente a partir
utópico e essa defasagem entre ciência e utopia deles.” (POPPER, 1994:51).
se estreitou sensivelmente.
6 Claude LEFORT (1979: 249) foi um dos primeiros a
2 Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit- perceber isso, tendo sugerido que o proletariado
geog-forum.html, fórum de geografia crítica foi mais uma invenção da “fértil imaginação de
existente desde março de 1996. Marx”.

3 É bem verdade que com a expansão da geografia 7 Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS
crítica para a Itália, Espanha, Brasil e outros países (1982: 82-5), o marxismo no século XX pouco a
da América Latina, um certo marxismo-leninismo pouco degenerou numa ideologia da burocracia,
com fortes influências de Althusser e discípulos num discurso legitimador de um partido ou um
passou a ocupar o lugar do pensamento pós- grupo de burocratas que pretende alcançar o poder
moderno, pelo menos em grande parte, conforme e/ou que já o exerce de forma totalitária, isto é,
já havíamos assinalado em dois textos dos anos sempre reprimindo violentamente as críticas e
80 (VESENTINI, 1984 e 1985). Basta lembrar, por oposições, que são taxadas de “burguesas” e
exemplo, do livro extremamente dogmático do antirrevolucionárias, e sempre falando em nome
geografo italiano Massimo QUAINI (1979), que de uma pretensa comunidade dos trabalhadores,
conseguiu enxergar nos escritos de Marx e de do povo ou do proletariado.
Engels toda uma análise e até mesmo a “solução” 8 O termo radical, ao contrário de crítica, não possui
para os problemas ambientais e territoriais uma rica tradição filosófica e epistemológica. Na
hodiernos! Em todo o caso, mesmo continuando a verdade ele veio do latim [radic = raiz] e, deixando
existir uma forte presença de marxistas ortodoxos de lado o seu uso na matemática, na química, na
nesta geografia [aqueles que têm por base teórica linguística, etc., ele tem dois significados principais.
e filosófica os escritos de Lénin, Althusser e Primeiro, denota uma atitude intransigente,
discípulos como Martha Harnecker (com a sua inflexível, sem um verdadeiro diálogo com os
leitura estruturalista e empobrecida da obra de outros. Segundo, e de acordo com a sua origem
Marx), o velho Lukács ou Trotsky], não há dúvidas etimológica, significa ir às origens ou à raiz das
de que ela avançou no sentido de incorporar coisas. É amplamente conhecida a frase tautológica
autores marxistas heterodoxos ou neomarxistas de Marx segundo a qual “a raiz do Homem é o
(como Léfebvre), autores pós-marxistas (como próprio Homem”, ou melhor, as suas relações no
42 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, 2009 VESENTINI, J.W.

mundo do trabalho. O problema é que os dois sociedade está nos seus mitos e valores, para os
significados frequentemente se misturam – ecologistas está nas relações com a natureza, e
inclusive em Marx, famoso pela sua arrogante assim por diante.
intransigência frente a qualquer ideia que não as
su as [in clu siv e d os s ocialista s u tóp ico s, 9 FREUD (1997), por exemplo, analisou com argúcia
anarquistas, etc.] – e, ademais, a “raiz” das coisas, como o egípcio Moisés propagou uma religião
exceto das árvores, é algo extremamente monoteísta cujos mitos até hoje influenciam uma
problemático: para os geneticistas a raiz de um grande parte do mundo. Quanto à importância da
indivíduo está na sua herança genética, para filosofia – e das artes – grega ou do direito romano
determinados antropólogos e também num outro para a nossa vida atual, creio que é desnecessário
plano, para os psicanalistas, a raíz de uma insistir nesse item.

Referências Bibliográficas

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical
no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Geography. New York, Routledge, 2001.
Companhia das Letras, 1987.
LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro
BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? lugar, para fazer a guerra. Campinas, Papirus,
In :  Progress in Human Geography. Vol.30, n.1, 1988.
2006, pp.87-94.
LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa,
BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Edições 70, 1986.
Unesp, 1995.
LEFORT, Claude. As formas da História. São Paulo,
CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, Brasiliense, 1979.
di sp onív el i n htt p: / /w ww .sk e pd ic.com/ ,
consultado em julho de 2007. ______. A invenção democrática. São Paulo,
Brasiliense, 1983.
CASTORIADIS, C. – A instituição imaginária
da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, NOVE, Alec. A economia do socialismo possível.
1982. São Paulo, Ática, 1989.

DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política.
Cortez, 2002. Brasília, Editora da UNB, 1994.
FAUSTO, Ruy. A esquerda difícil. São Paulo, QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro,
Perspectiva, 2007. Paz e Terra, 1979.
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique? Critique SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio
et Aufklärung. In : Bulletin de la Société Française de Janeiro, Record, 2001.
de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, pp.
35-63. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico.
Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo, 1999.
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. São Paulo,
Imago, 1997. SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography,
or the flat pluralist world of business class. In:
GIDDENS, A. Para além da Esquerda e da Direita. Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37,
São Paulo, Unesp, 1995. Issue 5, november 2005, pp.887-889.
O que é crítica. Ou: qual é a crítica da geografia crítica?, pp. 29 - 43 43

THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just Revista do Departamento de Geografia 4. São
the Future. In : Antipode. A Radical Journal of Paulo, USP, 1985, pp.7-13.
Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005,
pp.220-238. WHEEN, F. Answer to the question: Left and
right defined the 20th century. What’s next?,
UNWIN, Tim. The place of Geography. London,
in Pr osp ect, march 2007, ht tp: //
Longman Group, 1992.
www.prospect-magazine.co.uk/
VESENTINI, J.W. Percalços da geografia crítica:
article_details.php?id=8342 , capturado em
ent re a cri se d o ma rxismo e o mito do
março de 2007.
conhecimento científico. In: Anais do 4º.
Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis
AGB, 1984, Livro 2, Vol.2, pp.423-32. and rehabilitation. In: Antipode. A Radical
______. Geografia e discurso crítico (da J o u r n a l o f G e o g r a p h y . Vo l . 3 8 , I s s u e 5 ,
epistemologia à crítica do conhecimento). In: November 2006, pp.907-15.

Trabalho enviado em fevereiro de 2009

Trabalho aceito em setembro de 2009

You might also like