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FEMINILIDADES E GÊNERO: RE-LENDO CLÁUDIA

E NOVA

AUXILIADÔRA APARECIDA DE MATOS


Departamento de Economia Doméstica
Universidade Federal de Viçosa

RESUMO

O objetivo deste trabalho é discutir o processo de construção da feminilidade pelas revistas


femininas Cláudia e Nova, utilizando o conceito de gênero como referencial teórico. Assim,
procura-se contextualizar a construção histórica do conceito no Brasil, pontuando suas
possibilidades para o estudo da construção de masculinidades e feminilidades nessas publicações.

PALAVRAS-CHAVE: conceito de gênero; revistas femininas; feminilidades e masculinidades

INTRODUÇÃO possamos perceber a construção das


diferenças sexuais, histórica e culturalmente
Em meados da década de 80, o determinada, desnaturalizando, portanto, as
conceito de gênero começou a ser utilizado representações cristalizadas no imaginário
por várias estudiosas feministas no Brasil, social.
disputando espaços com os “Estudos de Entendendo que o gênero refere-se à
Mulheres”, que eram tributários dos construção social do masculino e do
movimentos sociais dos anos 60 e 70, sendo feminino, as mulheres deixam de ser o centro
uma resultante da mobilização feminista. das análises em detrimento dos estudos dos
Dentre as várias intelectuais feministas, processos de formação da feminilidade e da
muitas foram, então, as precursoras desses masculinidade.
trabalhos de reflexão e produção acadêmica. Atentando para o aspecto relacional
Compreendido como uma forma de do conceito e partindo do preceito de que o
entender, visualizar e referir-se à organização gênero abrange homens e mulheres indo além
social da relação entre os sexos, o conceito de dos sujeitos concretos, o que ressalta-se são
gênero constituiu-se inicialmente como uma as relações estabelecidas e as atribuições de
forma de resistência ao determinismo masculino e feminino.
biológico presente no uso de termos como Ao considerar o aspecto relacional do
sexo ou diferença sexual. Buscava-se, assim, gênero, este estudo buscou discutir o
enfatizar o caráter fundamentalmente social processo de construção da feminilidade pelas
das distinções baseadas no sexo. revistas femininas Cláudia e Nova,
Constituindo-se também na utilizando-se de estudos anteriores (uma vez
ampliação de nosso vocabulário, o gênero que essas revistas já foram amplamente
possibilitou a expressão da multiplicidade das pesquisadas), sem desprezar a construção da
masculinidade, pois entende-se que essas
dimensões constitutivas das práticas sociais e
construções são intrínsecas e encontram-se
individuais, incorporando a dimensão sexual
permanentemente imbricadas. Sendo assim, o
como categoria de análise. É importante que
foco de interesse na análise dos estudos
constituiu-se na discussão dos modelos de incluindo as relações sociais e, mais
feminilidade veiculados por essas revistas e, particularmente, as relações entre homens e
como desdobramento dessa questão, indagou- mulheres.
se também qual o modelo de masculinidade Portanto, a expressão relações de
abordado pelas mesmas, ou seja, em relação a gênero designa, primordialmente, a
qual “homem” convergem essas concepções perspectiva culturalista em que as categorias
de feminilidade. diferenciais de sexo não implicam o
reconhecimento de uma essência masculina
REVISÃO DE LITERATURA ou feminina, de caráter abstrato e universal,
mas, diferentemente, apontam para a ordem
GÊNERO cultural como modeladora de mulheres e
homens.
O conceito de gênero começou a ser Outra interferência acarretada pelo
utilizado no Brasil entre as décadas de 1980 e conceito de gênero como categoria de análise
1990, em decorrência do impacto político do foi a permissão de uma certa despolitização
feminismo. Os até então denominados dos estudos feministas na academia latino-
“Estudos de Mulheres”, que analisavam a americana. Segundo Costa (1998a), os
condição, a situação e a posição das termos “feminismo” e “teorias feministas”
mulheres, não pareciam ser capazes de estavam associados a posturas radicais e
responder aos desafios feministas, pois pouco sérias em termos científicos, assim
tendiam a se tornar descritivos e reiterativos, muitas estudiosas da área adotaram a rubrica
reificando a situação das mulheres. De outro “estudos de gênero”, conquistando um espaço
lado, também não respondiam aos anseios e seguro dentro da academia em vez de desafiá-
desafios de um pensamento analítico e la. Falar de gênero em vez de mulher também
teórico. proporcionava mais status e revelava maior
Sendo um conceito importado, o sofisticação por parte da pesquisadora, a qual,
gênero trouxe, a princípio, uma série de mal- então, saía definitivamente do gueto dos
entendidos, a começar pelas questões estudos da mulher.
semânticas, abordadas por Moraes (1998), Dessa forma, podia-se estudar a
pois, enquanto em inglês, gender é um opressão da mulher e as relações desiguais de
substantivo que designa exatamente a poder entre mulheres e homens sem
condição física e/ou social do masculino e do necessariamente assumir um projeto
feminino, a palavra gênero, em português, é feminista. Simplesmente houve a substituição
um substantivo masculino que designa uma de um termo (mulher) para outro (gênero).
classe que se divide em outras, que são No entanto, talvez uma das maiores
chamadas espécies. Existe, portanto, uma dificuldades e hesitações em incorporar o
dificuldade semântica que obriga a uma conceito de gênero foi por parte das
constante necessidade em definir o que seja feministas ortodoxas, que relutavam em
gênero, sempre que utilizamos tal categoria aceitar a reviravolta epistemológica em curso,
em português. por deslocar o foco do “sujeito mulher” para
Uma das definições mais conhecidas a análise das relações de gênero, e
é a da historiadora norte-americana Scott questionavam, assim, o embaralhamento das
(1990) que concebe o gênero como sendo um identidades sexuais, apontando para a
“elemento constitutivo de relações sociais importância de preservar a identidade
fundadas sobre as diferenças percebidas entre feminina como forma de reforçar a agenda
os sexos” (p. 14). pública feminista e encaminhar as lutas
O gênero é, então, uma categoria políticas atuais.
teórica referida a um conjunto de significados Expressando claramente essas
e símbolos construídos sobre a base da preocupações, Costa (1998a) afirma que além
percepção da diferença sexual, utilizado na dos mal-entendidos que o gênero acarretou,
compreensão de todo o universo observado, as “nefastas conseqüências para o
feminismo” já se delineavam no início dos teóricas, como as/os estudiosas/os marxistas,
anos 90. pós-estruturalistas, lacanianas/os, feministas
Por ser um termo relacional (isto é, radicais, etc. E, talvez, exatamente por essas
entedia que o feminino só existe diferentes apropriações, o conceito tem sido
enquanto em relação ao masculino), constantemente debatido: “de uma forma
a ênfase no gênero colocou nas provocativa, concluo minha reflexão
pesquisadoras um fardo maior. Para sugerindo um retorno à categoria mulher”,
estudar a mulher, tinham também afirma (COSTA, 1998a, p. 137).
que estudar o homem. (...) O gênero Esta autora faz uma crítica a algumas
ficava, por assim dizer, entre o correntes feministas pós-estruturalistas,
homem e a mulher, e não nas avessas a essencialismos, a binarismos e a
relações de poder que estruturam lógicas identitárias, pois assim, proibiu-se
sistemas de desigualdade e opressão referência à categoria mulher. Diante desse
(p.135). cenário de “g(i)nocídio” feminista, Costa
Cabe ressaltar uma observação (1998a) cita Linda Alcoff que se interroga da
realizada por Costa (1998b) sobre as teorias seguinte forma:
de gênero se desenvolverem no sentido de O que podemos exigir em nome das
criticar o caráter identitário que permeou mulheres se ‘mulheres’ não existem e
muitos dos trabalhos realizados sobre se demandas em seus nomes
mulheres. Essa crítica revela que o caráter simplesmente reforçam o mito de que
identitário dessas abordagens resultou na elas existem? Como podemos falar
constituição de teorias parciais e de fundo contra o sexismo...quando a
essencialista.
categoria mulher é uma ficção?
Enfatizar o caráter relacional do
Como podemos requerer a
gênero não é afirmar que os estudos
legalização do aborto, creches, ou
de gênero devam ser sempre e
salários iguais para tarefas iguais
necessariamente com homens e
sem invocar o conceito de ‘mulher’?
mulheres simultaneamente, pois isso
(p. 137).
seria reforçar uma perspectiva
Diante deste impasse conceitual,
identitária (p. 186-187).
Reafirmando esta concepção, Kofes algumas estudiosas ampliaram o espectro do
(1993), diz que, quando se fala em gênero, conceito de gênero a fim de conciliar as
mulher é uma categoria, entre outras, reivindicações do sujeito mulher sem, no
formulada pela distinção de gênero: entanto, cair na armadilha do essencialismo.
As categorias ‘mulher’ ou ‘homem’ Assim, Judith Butler apud Costa
recobrem, no meu entender, um (1998b) oferece uma definição mais
campo de referência mais restrito abrangente ao considerar o gênero como
que as categorias masculino e relacional, situacional e posicional, se opondo
feminino, e as primeiras poderiam a mecanismos de fixação, cristalização e
ser consideradas como partes das essencialização trazidos por abordagens de
segundas. Desta forma, gênero seria caráter identitário. Para enfatizar a noção de
um instrumento que mapeia um identidades não-fixas e não-totalizadas, a
campo específico de distinções, autora concebe o conceito de coalizão, que
aquele cujos referentes falam da sugere que identidades podem ser
distinção sexual. Quer onde estão constituídas quando há um propósito comum.
sujeitos concretos, substantivos, Através do conceito de coalizão,
homens e mulheres, quer onde nem Butler não nega que identidades
mesmo encontramos estes sujeitos (p. possam ser afirmadas, inclusive para
28-29). causas políticas, mas enfatiza que
são identidades instituídas e
O conceito de gênero tem sido
abandonadas conforme os
utilizado por várias e diversas correntes
propósitos, as relações, as situações, Trata-se das categorizações de
as posições (p. 190). pessoas, artefatos, eventos e
Marilyn Strathern, apud Costa seqüências baseadas no imaginário
(1998b), enfatiza que ser homem ou mulher sexual e é claro que não se trata
surge como um estado unitário e total apenas apenas de pensamentos. (...) O
em circunstâncias particulares; sendo que gênero é pensado como categoria
esse estado contém dentro dele uma ‘empírica’, como um operador de
identidade composta, que está suprimida diferenças não preestabelecidas que
naquele momento. E que este estado unitário marcam e que só podem ser
só surge através de uma ação, isto é, através compreendidas contextualmente (p.
de uma “performance” de apresentação. 60).
Retomando a turbulência que o Portanto, a importância destas
conceito de gênero provocou, Piscitelli categorizações na vida social reside em que
(1997) cita Donna Haraway que aponta um as relações sociais são construídas através
problema central considerado por ela inerente delas.
ao próprio conceito, pois, a partir da Diante do que já foi abordado, as
insistência no caráter de construção social do interpretações e concepções do que consiste
gênero, o sexo e a natureza não foram ou não o conceito de gênero, são amplas e
historiados e, com isso, ficaram intactas diversificadas. E, como diz Louro (1996), os
idéias perigosas relacionadas com identidades constantes debates referentes à esta categoria
essenciais, tais como “mulheres” ou acabam por caracterizar um fator de
“homens”. instabilidade - uma vez que as/os
No entanto, Piscitelli (op. cit.) estudiosas/os da área encontram-se em um
mostra, em seu trabalho, diversas estudiosas espaço não fixo, constantemente contestado
dentro do espaço disciplinar da Antropologia e, também de vitalidade – pois estimula e
que conseguem transpor vários desses limites, propicia um constante questionamento e auto-
orientadas por princípios associados à crítica.
categoria de gênero. Dentre essas estudiosas, Concordando com as reflexões de
a autora destaca Marilyn Strathern que, 2
Butler, Kofes e Strathern , acredita-se que
diferentemente de outras intelectuais romper com os estudos da substancialidade
feministas contemporâneas que pensam o do que é a mulher e do que é o homem e com
gênero como uma categoria analítica, propõe a determinação do biológico sobre o sexo,
pensá-lo, simplesmente como um tipo de parece ser fundamental para uma
diferenciação categórica que assume compreensão não essencialista e identitária,
conteúdos específicos em contextos enfatizando e explorando mais o aspecto
particulares. relacional do conceito de gênero.
Referindo-se a Strathern1 , Piscitelli O conceito de gênero que será
(op. cit.) esclarece: adotado neste trabalho refere-se à construção
social do masculino e do feminino.

1 STRATHERN, M. The Gender of the Gift. Problems with 2 Ver também: ALMEIDA, M. V. Gênero, masculinidade e

women and problems with society in Melanesia. Berkeley, poder: revendo um caso do sul de Portugal. Anuário
University of California Press, 1988. Antropológico/95. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
Assim, não se trata mais de focalizar Ao realizar um estudo sobre
apenas as mulheres como objeto de estudo, masculinidade através do viés do conceito de
mas sim os processos de formação da gênero e, baseado nos conceitos de Marilyn
feminilidade e da masculinidade, ou os Strathern, Almeida (1996) elabora
sujeitos femininos e masculinos (sem considerações que desfazem a associação
referência à mulheres e homens, homem-masculino. Segundo o autor,
respectivamente). O aspecto relacional do masculinidade e feminilidade não são
conceito aponta para a consideração do sobreponíveis respectivamente a homens e
masculino e feminino (e/ou suas percepções) mulheres, mas são metáforas de poder e de
como dependentes e constitutivos um do capacidade de ação e, como tal, acessíveis a
outro, ou seja, os sujeitos se produzem em homens e mulheres.
relação e na relação. Portanto, é preciso ressaltar que a
relação comumente estabelecida entre
MASCULINIDADES E masculinidade, homens e poder tem um
FEMINILIDADES caráter móvel. Isso não quer dizer, entretanto,
que não exista uma “masculinidade dos
Partindo do pressuposto de que o homens”, siginifca que essa expressão não é
gênero engloba homens e mulheres, indo óbvia.
além dos sujeitos concretos, o que está em Nesse sentido, o autor considera a
jogo são as relações que são estabelecidas e masculinidade hegemônica (baseado em
as atribuições de masculino e feminino CONNELL, 1995), como um modelo cultural
elaboradas através dessas relações. ideal que, não sendo atingida por nenhum
Ressalta-se, então, que estudos sobre homem, exerce poder controlador sobre
homens ou mulheres sem referência ao homens e mulheres. Indo mais além, Almeida
gênero desconsideram que a masculinidade e (1996) afirma que a masculinidade não pode
a feminilidade são constituídas nas relações ser vista como a mera formulação cultural de
estabelecidas entre homens e mulheres, entre um dado natural, uma vez que ela é marcada
homens e homens, e entre mulheres e por assimetrias (como heterossexual/
mulheres. homossexual) e hierarquias (de mais a menos
Connell3 (1995) apud Costa (1998b) “masculino”).
considera que a masculinidade faz parte de Seguindo este raciocínio, o autor faz
um processo e não é uma categoria estática e uma crítica a trabalhos que se embasam na
universal que possa ser definida de uma vez posição construcionista (construção social da
por todas. As masculinidades são masculinidade/feminilidade), pois, segundo
configurações das práticas das relações de ele, a diferença biológica é, ela mesma,
gênero, da mesma forma como estão histórica e culturalmente relativa. Dentre os
perpassadas pelas relações de raça e classe vários problemas que esta posição apresenta,
social. cabe ressaltar: não aborda como o sexo é
construído; encara as relações entre homens
e mulheres como entidades polarizadas
e fixas; impede uma visão da dinâmica
polifacetada das masculinidades e
feminilidades e o uso desses termos como
3 Ver BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de operadores metafóricos para o poder e a
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999 (tradução Maria Helena diferenciação mesmo a níveis que não são os
Kühner) e LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero de sexo e gênero.
dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 Esse interesse pela abordagem
(tradução Vera Whately). realizada por Almeida (1998) sobre
masculinidades se explica quando o autor CLÁUDIA E NOVA: ALGUMAS
questiona4 : “(...) se eu falo – a partir de CONSIDERAÇÕES
Connell – de masculinidades hegemônica e
subalterna, será que há feminilidade No Brasil, de acordo com Severo
hegemônica e feminilidades subalternas? (1995), os referenciais de imprensa para as
Porque disso ninguém fala....” (p. 212). mulheres são as revistas Cláudia e Nova.
Continuando sua reflexão, o autor Cláudia foi a primeira revista de texto para
mesmo conclui: mulheres, sendo lançada em junho de 1961.
(...) provavelmente a hegemonia não Possui um público-alvo de classe média e alta
é um sistema dicotômico, ou seja, e se dirige a mulheres cronologicamente mais
não há hegemonia masculina e maduras, geralmente casadas, mães e que se
hegemonia feminina, mas sim dedicam ao lar. Já a revista Nova pretende
hegemonia masculina e todo o resto, representar a voz de um tipo de mulher das
que inclui as feminilidades e as mesmas classes sociais, porém mais jovem,
masculinidades subalternas, que geralmente solteira ou divorciada, e que
podem ser várias, basta a orientação trabalha fora de casa. Cláudia e Nova são
sexual para introduzir diferença (p. publicadas pela Editora Abril e foram
212). baseadas nas revistas norte-americanas Good
Perante a improbabilidade colocada Housekeeping e Cosmopolitan,
por esse autor de se falar em hegemonia respectivamente.
feminina, indaga-se se realmente não existe Ao realizar uma crítica ao artigo de
um “modelo cultural ideal” de feminilidade, e Severo, Pires (1996) ressalta, entre outros
se este não exerce poder controlador sobre pontos, que as distinções entre as leitoras de
homens e mulheres. Cláudia e Nova não foram ilustradas com
dados pertinentes. Ao disponibilizar alguns
DISCUSSÃO dados de 1990 (último ano do universo de
pesquisa de Severo), este autor observa que,
na verdade, as distinções anteriormente
colocadas perdem o sentido.
Tabela 1 - Idade das leitoras

Leitoras 15 – 19 anos 20 – 29 anos 30 – 39 anos


Cláudia 18% 36% 22%
Nova 23% 42% 19%
Fonte: XXII Estudos Marplan/90 – 9 mercados

Tabela 2 - Atividades das leitoras

Revistas Mulheres que trabalham Donas de casa Donas de casa que trabalham
Cláudia 50% 49% 22%
Nova 57% 35% 17%
Fonte: XXII Estudos Marplan/90 – 9 mercados

Como pode ser observado, os dados


4 Transcrição da conversa com Miguel Vale de Almeida, acima mostram que o perfil de Cláudia e
Adriana Piscitelli e Mariza Corrêa, realizada na UNICAMP em Nova não é tão diverso quanto o pressuposto
30 de setembro de 1998 e publicada no Cadernos Pagu (11), por Severo. Primeiro, a leitora de Cláudia
1998. (tabela 1) não é tão mais velha em relação a
de Nova (54% possui entre os 15 e 29 anos). seios, sendo seu comportamento e sua
Segundo, o total de mulheres leitoras, das aparência as chaves que vão lhe abrir todas as
duas revistas, que trabalham fora do lar portas.
(tabela 2) também não é tão diferente: E, nessa tarefa cada vez maior de
Cláudia – 50% e Nova – 57%). agradar aos homens, tais revistas incluíram
Portanto, considerando esses dados e em seu repertório o sexo como sendo um
a possibilidade de sua transformação ao longo “(...) instrumento da afirmação feminina, e a
dos anos, concorda-se com Pires (1996), comprovação da feminilidade, que se dá pelo
quando ele argumenta que as diferenças entre seu poder de sedução” (SARTI; MORAES,
os perfis de leitoras deve ser buscado no 1980, p. 42).
conteúdo abordado nessas revistas. De acordo com essas autoras, a
Ambas as revistas, segundo Mascaro afirmação da sexualidade feminina reduz-se
(1982), apresentam uma proposta renovadora ao uso do poder de sedução como a “arma
semelhante: de moldar uma “nova mulher”,
essencialmente feminina”.
apoiada nos padrões pós-movimento
Conseqüentemente, o sucesso da mulher no
feminista. Seus artigos suscitam vários
campo sexual identifica-se com o seu poder
questionamentos, como, por exemplo, que as
de atração (“o bumbum” que você pediu a
mulheres saiam do universo
predominantemente doméstico e se Deus5 ) e o fato dela ser desejada.
modernizem, mas o teor desses textos
apontam uma pseudo-emancipação, numa CONCLUSÃO
leitura superficial.
Assim, Nova, ao ser lançada em Assim, embora constituídas e
1973, tinha em vista “(...) a mulher que está destinadas a públicos específicos, ambas as
revistas recomendam como ponto de partida
descobrindo que sua vida pode ser melhor do
para a resolução de qualquer problema a
que é, que ela pode ser levada mais a sério,
paciência e a tenacidade aliadas a um
que pode ter opinião, que pode se impor, se
comportamento sempre feminino (um sorriso
fazer respeitar” (SARTI; MORAES, 1980, p.
pode fazer milagres...) e, finalmente, à
26-27).
aparência física (que, indiscutivelmente, é o
De acordo com estas autoras, a grande centro das preocupações da mulher, se
revista é apresentada no editorial do primeiro considerarmos a sua marcante presença nas
número com uma proposta que “(...) nasceu revistas femininas).
da necessidade de oferecer à mulher brasileira Diante do exposto, considera-se que o
uma companheira útil e atualizada para ponto central dessas revistas refere-se à
permitir-lhe o ingresso no fechadíssimo clube construção/veiculação/(re)afirmação de uma
das cabeças que pensam, julgam e decidem. feminilidade que passa, necessariamente, pelo
Hoje, com Nova, estamos pretendendo viés da sedução feminina, podendo-se sugerir
fornecer-lhe as chaves deste clube. Coragem: que as preocupações com o corpo, a moda, a
abra a porta e entre. O mundo é seu” (SARTI; postura e as suas relações com o sexo oposto
MORAES, 1980, p. 26). são decorrentes deste viés, sendo amplamente
No entanto, ao vender a proposta de explorado por essas revistas.
igualdade entre os sexos, a revista, em seu
conteúdo, parte do pressuposto de que é a
partir da afirmação da sexualidade feminina
que um perfil do que seria a mulher moderna
se desenha: uma mulher sedutora e portadora
5 Cláudia, n. 432 ano 36, setembro/1997 n.09.
de longos decotes que deixam entrever os
Relembrando Almeida (1996), no que study of the masculinities and femininities
concerne o conceito de hegemonia por ele construction in these publications.
utilizado, indaga-se se esta pressupõe
necessariamente um sistema dicotômico, KEY WORDS: gender concept; feminine
pois, ao referir-se a um “modelo cultural magazines; femininities and masculinities
ideal” de masculinidade, este também nos
informa intrinsecamente sobre um “modelo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cultural ideal” de feminilidade, pelo qual este
é referenciado. É nesse sentido que os estudos ALMEIDA, M. V. Gênero, masculinidade e
das revistas femininas Cláudia e Nova podem poder: revendo um caso do sul de Portugal.
nos informar também, sobre o modelo de Anuário Antropológico/95. Rio de Janeiro:
masculinidade e seus entrelaçamentos com Tempo Brasileiro, 1996.
um modo de ser feminino.
Concluindo, ao adotar o gênero como COSTA, C. L. O tráfico do gênero. Cadernos
conceito chave para interpretar uma dada Pagu. São Paulo: UNICAMP, v. 11, 1998.
realidade, o aspecto relacional é sua
COSTA, R. G. De clonagens e de
característica fundamental, pois permite
paternidades: as encruzilhadas do gênero.
superar a dicotomia masculino/feminino ao
Cadernos Pagu. São Paulo: UNICAMP, v.
nos dizer que, mesmo os estudos sobre
11, 1998.
sujeitos concretos considerados isoladamente
(homens ou mulheres), devem levar em KOFES, S. Categorias analítica e empírica:
consideração as percepções sobre as gênero e mulher: disjunções, conjunções e
concepções de masculino e feminino como mediações. Cadernos Pagu. São Paulo:
interdependentes e interconstituintes. UNICAMP, v. 1, 1993.
Ao abrir novos espaços para a
emergência de temas não pensados, de LOURO, G. L. Nas redes do conceito de
campos não problematizados, de novas gênero. In: LOPES, M. J; MEYER, D. E.;
formas de construção das relações sociais, a WALDOW, V. R. Gênero e Saúde. Porto
pluralização possibilitada pela negociação Alegre: Artes Médicas,
entre os gêneros é fundamental para a 1996.
construção de um ser humano menos
fragmentado entre um lado supostamente MASCARO, S. de. A Revista Feminina:
masculino, ativo e racional e outro feminino, Imagem de mulher. 1982, 190 f. Dissertação.
passivo e emocional. A superação da lógica (Mestrado em Comunicação)-Faculdade de
binária contida na proposta da análise Comunicação, Universidade de São Paulo,
relacional do gênero, nessa direção, é São Paulo.
fundamental para que se construa um novo
olhar aberto às diferenças. MORAES, M. L. de. Usos e limites da
categoria gênero. Cadernos Pagu. São Paulo:
ABSTRACT UNICAMP, v. 11, 1998.

The objective of this paper is to discuss the PIRES, A Ressonâncias – As ciladas da


construction process of the femininity by the
imprensa: sobre o artigo de Marta Severo: a
feminine magazines Cláudia and Nova, using
the gender concept as theoretical referencial. imagem da mulher em revistas femininas.
Therefore, it is intended to context the Psicologia: Ciência e Profissão. CFP, ano
historical construction of this concept in 16, 1996.
Brazil, punctuating its possibilities for the
PISCITELLI, A Ambivalência sobre os SEVERO, M. A imagem da mulher em
conceitos de sexo e gênero na produção de revistas femininas. Psicologia: ciência e
algumas teóricas feministas. In: AGUIAR, N. profissão. Brasília: CFP, ano 15, 1995.
(Org.) Gênero e ciências humanas: desafio às
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de
ciências desde a perspectiva das mulheres. análise histórica. Educação e Realidade.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997 Porto Alegre. v. 16, n. 2, jul./dez., 1990.
(Coleção Gênero, v. 5).

SARTI, C.; MORAES, M.Q. Aí a porca


torce o rabo. In: BRUSCHINI, C.;
ROSEMBERG, F. (Orgs.) Vivência: história, Auxiliadôra Aparecida de Matos é
sexualidade e imagens femininas. São Paulo: Mestranda em Economia Doméstica pela
Brasiliense, FCC, 1980. Universidade Federal de Viçosa

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