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CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS
Ocupando cerca de 650 mil Km quadrados, situado entre as estepes da Ásia Central, o vale
do Indo e o planalto persa, o Afeganistão sempre foi um importante ponto de passagem para
os inúmeros povos e civilizações que se movimentaram entre as regiões adjacentes. Esta
estratégica localização, aliada a um relevo particularmente difícil, potenciou a fragmentação
étnica que caracteriza o actual Afeganistão, resultado directo da sucessiva ocupação da
região por diversos povos, nomeadamente Arianos, Persas, Gregos, Turcos, Árabes e
Mongóis. Alexandre, o Grande e Genghis Khan comandaram alguns dos exércitos mais
poderosos que passaram por uma região que, não só era atravessada por importantes rotas
comerciais, com especial destaque para a Rota da Seda, como se transformou num ponto
de passagem e difusão de religiões como o Zoroastrismo, o Budismo, o Hinduísmo e o
Islamismo.
O Afeganistão alberga mais de uma dúzia de grupos étnicos e, muito embora seja difícil
efectuar estimativas exactas sobre a actual composição étnica do país, os Pastun, com
cerca de 40% da população, continuam a ser o grupo mais representativo. Os Tajiques, com
25%, e os Hazaras, com 18%, também constituem importantes comunidades, enquanto os
Usbeques e os Turcomanos representam, respectivamente, 6,5% e 2,5%. Os restantes 8%
encontram-se divididos por várias etnias1 que, isoladamente, não abarcam mais de 1% da
@ jl_alves@hotmail.com
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Mapa 1
GRUPOS ETNOLINGUÍSTICOS NO AFEGANISTÃO
Fonte: Globalsecurity.org
1
Destes, podem ser destacados os Aimaq, os Árabes, os Baluch, os Brahui, os Farsiwan, os Nuristani, os
Quirguizes, os Qizilbash e os Wakhi.
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Os Hazaras, descendentes dos Mongóis que ocuparam a região após a invasão liderada
por Genghis Khan, são o único grupo étnico maioritariamente Xiita presente no Afeganistão.
Devido às suas características físicas e opções religiosas, os Hazaras foram muitas vezes
marginalizados, ocupando tradicionalmente um escalão inferior na sociedade afegã. Com
uma identidade cultural muito vincada, foram vítimas de diversos massacres durante o
século XIX, desenvolvendo desde aí um relacionamento complexo com a maioria Pastun.
2
O “Pushtunvali” é um rigoroso código legal e moral que, seguindo os valores tradicionais, determina o
ordenamento social e as responsabilidades individuais.
3
Principais tribos Pastun: Ghilzay (14%), Durrani (12%), Wardak, Jaji, Tani, Jadran, Mangal, Khugiani, Safi,
Mohmand e Shinwari.
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Informação Internacional
Durante o século XIX, o extenso território controlado pelas tribos Pastun começou a ser
confrontado com o crescente apetite e influência dos Impérios Europeus, transformando o
Afeganistão no tabuleiro de um “grande jogo” entre uma potência continental e uma potência
marítima. Enquanto os Britânicos se mostraram determinados em travar o avanço Russo,
procurando impedir qualquer ameaça à jóia da Coroa, o Império dos Czares tentou
consolidar as conquistas mais recentes e prosseguir a expansão para Sul, de forma a
assegurar o acesso aos estratégicos portos dos mares quentes. Os diversos movimentos
dos jogadores, procurando influenciar ou impor os sucessivos governantes, conduziram a
uma progressiva redução das regiões sobre controlo afegão e a uma delimitação artificial
das suas fronteiras, ilustrada pela atribuição ao Afeganistão do Corredor de Wakkan,
evitando o contacto directo entre Russos e Britânicos, ou pela ocupação do Baluchistão,
transformando o Afeganistão num país sem acesso ao mar. Mas se a constante
confrontação entre Londres e Moscovo limitou as fronteiras do tabuleiro Afegão, também
gerou a necessidade de criar um equilíbrio regional entre os dois principais jogadores,
garantindo a progressiva afirmação de um Afeganistão independente e neutral, funcionando
como Estado tampão entre os dois poderosos Impérios. Esta independência, que só seria
plenamente concretizada em pleno século XX, continuou a afirmar-se dentro das regras de
influência ditadas durante o “grande jogo” mesmo após a substituição dos Czares pelos
Sovietes, mas não poderia resistir, pelo menos na sua plenitude, ao fim da presença
Britânica na Índia.
Figura 1
SHER ALI ENTRE OS IMPÉRIOS RUSSO E BRITÂNICO
De Império a Estado-Tampão
A primeira grande manifestação da autonomia afegã de base Pashtun foi protagonizada pelo
líder da tribo Ghilzay Mir Wais Khan, que em 1709 conseguiu dominar toda a região de
Kandahar, aproveitando a confrontação entre os impérios Persa e Mogol. O domínio Persa
voltaria a ser restaurado, mas as bases para uma afirmação consistente dos Pastun no
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
território do actual Afeganistão foram estabelecidas com a eleição de Ahmad Shah Abdalli
(que governou entre 1747 e 1772) por um conselho tribal. Partindo de Kandahar, Ahmad
Shah, que mudaria o nome para Ahmad Shah Durrani, estendeu o domínio Pastun do Mar
da Arábia ao rio Amu Darya e de Mashad a Caxemira, controlando praticamente quase todo
o território do actual Paquistão e chegando mesmo a atacar Deli. Sucessivas insurreições
internas obrigaram o filho, Timur Shah (1772-1793), a mudar a capital para Cabul, até aí
uma cidade maioritariamente Tajique, só assim garantindo que o seu sucessor, Zaman Shah
(1793-1801), herdava um império suficientemente vasto para constituir uma ameaça para os
interesses Britânicos na Índia.
4
Um interessante relato das causas e desenvolvimentos da primeira guerra anglo-afegã pode ser consultado em
http://www.geocities.com/Broadway/Alley/5443/afopen.htm.
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Mapa 2
EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS DO AFEGANISTÃO
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Ghilzay para regiões mais a norte e pela frenética perseguição que dirigiu contra
determinadas minorias étnicas, nomeadamente os Hazaras e os Nuristani. Entretanto,
evitando o confronto directo, Russos e Britânicos continuavam a redesenhar o mapa do
Afeganistão até o limitar às suas actuais fronteiras. Se o Império Britânico traçou a linha
Durand (1893), dividindo as tribos Pastun pelos dois lados da nova fronteira, o Império
Russo reconheceu a influência Britânica no Afeganistão, mas aproveitou para conquistar
novos territórios e intensificar o seu domínio a Norte.
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Figura 2
REIS E TRIBOS (DURRANI) DO AFEGANISTÃO
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
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Reunião dos chefes tribais, tradicionalmente o principal órgão legislativo do país
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Informação Internacional
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
não possibilitavam uma acção comum contra o poder instituído, as confrontações entre eles,
nomeadamente os violentos tumultos estudantis, contribuíram para deteriorar a situação
política e criar um clima intimidatório entre as elites afegãs. Quando o descontentamento
nas forças armadas já era evidente, pois a formação quase exclusiva na URSS possibilitara
uma crescente influência Parcham, um período de dois anos consecutivos de seca, no início
dos anos setenta, provocaram o alastrar da fome e conduziram a um verdadeiro descalabro
económico.
Decidido a evitar a repetição dos erros do passado, Daud imprimiu uma nova dinâmica à
política externa afegã. Apesar de não excluir um relacionamento privilegiado com a URSS,
tentou fortalecer os laços com a Índia, procurando assegurar treino militar compatível com o
armamento fornecido por Moscovo, mas evitando a propagação ideológica associada à
formação fornecida na URSS. O desenvolvimento das relações com o Irão, tentando
incrementar novas rotas comerciais e assegurar o auxílio económico indispensável para
promover uma nova vaga de modernização, que foi progressivamente alargado a outros
países muçulmanos da região, conduziria a um surpreendente normalizar das relações com
o Paquistão, patrocinado conjuntamente pelo Irão e pelos EUA em 1977. As escolhas de
Daud, especialmente a nova orientação da política externa afegã, não coincidiram com as
expectativas geradas nos dirigentes soviéticos que, animados pela participação parcham no
governo provisório, esperavam que o “Príncipe Vermelho” reavivasse a aliança preferencial
com Moscovo. Procurando manter alguma capacidade para influenciar a política afegã, a
URSS continuou a assegurar a maior parte do apoio externo recebido por Cabul, não só a
nível económico como militar, mesmo quando as opções de Daud desagradavam
profundamente aos líderes soviéticos. Apesar do mal-estar se ter acentuado após o
agendamento para meados de 1978 de uma visita de Daud a Washington, não é possível
provar a participação directa da URSS na revolução Saur. Mas se Moscovo, não promoveu
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Informação Internacional
Numa altura em que as relações entre os EUA e a URSS começavam a esfriar, após um
período de desanuviamento, o emergir da questão afegã preparava-se para ocupar um
papel central nesse relacionamento. A instauração da República Democrática do
Afeganistão aumentou o apetite das superpotências que, mais do que pelos recursos
naturais próprios, nomeadamente o urânio, foram atraídos pela valorização geo-estratégica
do país num período de grande instabilidade regional. A incorporação do Afeganistão na
zona de influência da URSS, facilitada pela proximidade geográfica, conduziu à progressiva
assimilação de uma excessiva valorização da sua importância pelos governantes soviéticos,
e Moscovo procurou aproveitar os laços ideológicos e a fraqueza dos novos líderes afegãos
para maximizar um investimento de muitos anos. Os EUA, que durante muitos anos
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
prestaram algum apoio económico ao Afeganistão, não tinham sido tentados a alterar esse
posicionamento após o derrube Zahir Shah, pois a “já considerável influência de Moscovo
apenas poderia aumentar marginalmente com o golpe de Daud”6. Como a política externa
do Afeganistão durante a República incentivou as expectativas de manter a estabilidade
regional e assegurar a independência afegã, principais ambições dos governantes norte-
americanos, foi maior o choque provocado pela instauração de um regime claramente pró-
soviético e que colidia frontalmente com os objectivos dos EUA. O interesse norte-
americano pela evolução dos acontecimentos aumentou dramaticamente quando deixou de
contar com o Irão como aliado, assumindo o Afeganistão um papel central na definição da
política externa dos EUA para a região. Contando com o Afeganistão como aliado, a URSS
aproximava-se perigosamente dos estratégicos portos dos mares quentes e das importantes
rotas do petróleo do Golfo Pérsico, fornecendo a motivação necessária a um maior
empenhamento norte-americano, que a posterior ocupação soviética só poderia incentivar.
6
Memorando dirigido a Henry Kissinger após o golpe de Daud por Harold H. Saunders e Henry R. Appelbaum,
do National Security Council, disponível em http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB59/zahir15.pdf.
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Informação Internacional
Mapa 3
O MUNDO VISTO DA URSS
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
revolução Saur rapidamente começaram a provocar atritos na liderança afegã, com Taraki,
que procurava impor uma linha mais radical, a enfrentar a oposição dos moderados
Parcham. Karmal, colocado como embaixador na Checoslováquia na sequência da breve
luta entre as duas facções, foi posteriormente acusado de liderar uma conspiração contra
Taraki, sendo obrigado a permanecer no exterior até à invasão soviética. Enquanto Amin
começou a aproveitar as constantes hesitações de Taraki para reforçar o poder que detinha,
controlando uma importante parte dos meios repressivos do Estado, os dirigentes Parcham,
transformados nos principais alvos das intermináveis purgas internas no PDPA, ocupavam
os poucos lugares livres nas prisões afegãs.
As revoltas atingiram um ponto crítico em Março de 1979 quando, indignados com a reforma
educativa e inspirados pelo exemplo da revolução religiosa que se desenvolvia no vizinho
Irão, os rebeldes tomaram temporariamente Herat, assegurando o apoio de parte do
exército afegão estacionado na região para perseguir e eliminar muitos dos dirigentes
comunistas e dos conselheiros soviéticos. O alarme provocado por esta acção contribuiu
para aumentar o clima de desconfiança no interior do PDPA, incentivando as purgas
internas. A incapacidade das forças governamentais para controlar a situação estaria na
origem de sucessivos pedidos a Moscovo para aumentar o apoio militar, com Taraki e Amin
a solicitarem repetidamente aos líderes do Kremlin o envio de tropas do Exército Vermelho
para esmagar a rebelião7. Argumentando que a utilização de militares da URSS seria
contraproducente a nível interno, pois desacreditaria os governantes afegãos perante o
próprio povo, mas também externamente, porque seria aproveitada por outros países para
justificar o apoio às forças anticomunistas afegãs, esta pretensão seria sempre negada
pelos mesmos líderes soviéticos que a colocariam em prática nove meses mais tarde.
7
Uma interessante série de documentos relacionados com a invasão soviética do Afeganistão pode ser
consultada em http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.
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Informação Internacional
A Invasão Soviética
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
perder tudo o que fora conseguido com imensa dificuldade, particularmente a détente...”
(Gromyko)8, algo terá mudado até ao final desse ano para justificar a invasão de Dezembro.
A afirmação de Hafizullah Amin como líder máximo do país foi, a nível interno, a principal
alteração que justificou a acção militar da URSS. Moscovo temia as consequências do
excessivo radicalismo dos dirigentes locais e, em vez de promover a implementação rápida
do comunismo, procurava assegurar uma influência duradoura no Afeganistão, opção
definitivamente posta em causa com a ascensão da Amin. Apesar de importantes
responsáveis militares soviéticos terem começado a estudar as possibilidades de colocar o
Exército Vermelho no terreno logo após a rebelião em Herat, uma intervenção militar só
começa a ganhar forma quando, a 1 de Setembro de 1979, a KGB elabora um memorando9
responsabilizando Amin pela evolução dos acontecimentos no Afeganistão. As acções
enumeradas no relatório, sugeridas por Breznev a Taraki durante o derradeiro encontro
entre ambos, transformaram-se nos principais objectivos imediatos da política afegã da
URSS e, constatada a incapacidade da KGB para promover a eliminação de Amin, estão na
origem da invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas.
Apesar de parecer hoje claro que a KGB transmitiu à liderança soviética uma visão
exagerada dos perigos de uma possível alteração radical na orientação da política afegã,
ainda não é possível confirmar se existiu alguma ligação entre Amin e a CIA, ou se essas
alegações resultaram apenas do trabalho da KGB para justificar a invasão. Ao contrário de
quase todos outros dirigentes do PDPA, incluindo Taraki, que já era informador no tempo da
NKVD, Amin nunca terá sido um colaborador directo da KGB e, tendo estudado nos EUA,
desenvolvera por diversas vezes contactos com importantes sectores não comunistas. O
maquiavélico comportamento de Amin após o golpe de Setembro, aparentemente ditado
pelas enormes ambições pessoais, só contribuiu para aumentar as suspeitas dos dirigentes
soviéticos sobre as suas verdadeiras intenções. Ao mesmo tempo que difundia a ideia de
que o afastamento de Taraki contava com o apoio dos líderes soviéticos, comprometendo
internamente a URSS com o seu regime, Amin acusava o embaixador soviético de colaborar
com Taraki numa tentativa para o assassinar, obrigando Puzanov a deixar o país, em
Novembro de 1979, após ter sido considerado persona non grata. Amin, acreditando ainda
8
“Meeting of the Politburo of the CC of CSPU, March 17, 1979”; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War
International History Project, http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.
9
Referido por Vasily Mitrokin, célebre arquivista da KGB refugiado no Ocidente, em ”The KGB in Afghanistan”,
pag. 52, ( http://cwihp.si.edu/pdf/wp40.pdf ) o memorando sugere:
“1-Deve ser encontrado um meio para remover Amin da liderança, pois ele é culpado de seguir uma má política
interna. Deverá ser responsabilizado pessoalmente pelas exageradas medidas punitivas e pelo falhanço das
políticas internas.
2-Taraki deverá ser persuadido de que o estabelecimento de um governo de coligação democrática é essencial,
cabendo a liderança ao PDPA, incluindo os Parcham. Representantes religiosos e tribais de inclinação patriótica
e membros das minorias nacionais e das elites intelectuais deverão ser integrados no governo.
3-Os prisioneiros políticos ilegalmente presos, em especial os Parcham, deverão ser libertados e reintegrados.
4-Deverá ser promovido um encontro não oficial com Babrak Karmal para discutir a política interna no
Afeganistão....”.
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Informação Internacional
A ideia de enviar tropas soviéticas para o Afeganistão ganhou apoiantes no Kremlin devido à
acção de Yuri Andropov, ao tempo responsável pela KGB. Numa nota pessoal10 que enviou
a Breznev nos primeiros dias de Dezembro, Andropov salientava a ameaça que Amin
representava para a manutenção da influência soviética no Afeganistão, sugerindo o apoio a
uma nova reunificação do PDPA, liderada por Karmal e Sarwari, e a utilização de todos os
meios ao dispor da URSS, incluindo a utilização das forças armadas, de forma a garantir o
afastamento de Amin. A proposta, que contou com o decisivo apoio de Dimitri Ustinov,
Ministro da Defesa, salientava, entre outros, o perigo que resultaria de uma possível
instalação de mísseis Pershing no Afeganistão, ameaçando todo o Sul da União Soviética e
o centro espacial de Baikonur ou as consequências do apoio norte-americano à constituição
de um novo Império Otomano, que poderia vir a incluir parte da URSS11. Apesar da
oposição generalizada dos comandos militares12, justificada pela tradicional resistência
afegã à ocupação estrangeira e pela desastrosa experiência dos norte-americanos no
Vietname, mas também pelo enfraquecimento que tal movimento implicaria para as forças
soviéticas estacionadas na Europa e na fronteira com a China, as desvantagens de tal
acção para a política externa soviética foram negligenciadas. Prevaleceu a visão do
Afeganistão a fugir ao controlo soviético transmitida pela KGB, uma catástrofe que teria de
ser impedida pela participação dos militares soviéticos na substituição de Amin por Karmal,
acção que viria a ser aprovada por unanimidade numa reunião restrita do Politburo, a 12 de
Dezembro, em que participaram apenas Breznev, Suslov, Andropov, Ustinov e Gromyko.
10
“Personal memorandum, Andropov to Breznev”; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International
History Project (n.d.), http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/r7.pdf.
11
Lyakhovsky, Alexander; The Tragedy and Valor of Afghan, GPI Iskon, Moscow, 1995, pp.109-112.
12
Kornienko, Georgy M.; The Cold War: Testimony of a Participant, Moscow, Mezhdunarodnye otnosheniya,
1994, pp. 193-195.
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
O domínio regional dos EUA, baseado no relacionamento privilegiado com o Irão, a Arábia
Saudita e o Paquistão, não foi posto em causa com a chegada dos comunistas ao poder no
Afeganistão. Apesar de instalar no poder um governo claramente pró-soviético, a revolução
Saur não provocou uma alteração imediata na definição da política norte-americana para a
região, que continuou focada na evolução da situação política no Paquistão e no Irão. A
inquietação gerada pelas reformas radicais introduzidas por Taraki só começou a preocupar
os EUA em Fevereiro de 1979, quando o embaixador Adolph Dubs foi morto durante um
ataque da polícia afegã para o resgatar ao grupo de maoistas xiitas que o raptara. Este
grave incidente criou um clima de tensão que afectou decisivamente as relações entre os
EUA e o Afeganistão, levando o Congresso a ameaçar cortar toda a ajuda económica que
ainda prestava a Cabul.
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Informação Internacional
Julho de 1979 a primeira directiva que autorizava a assistência clandestina aos rebeldes,
ciente de que tal acção aumentava a probabilidade de uma intervenção militar da URSS no
Afeganistão13. Logo que esta se concretizou, Brzezinski enviou uma nota ao Presidente
Carter, que a seguir se transcreve, traçando o cenário que presidiria à abordagem da
questão afegã pelos norte-americanos enquanto se manteve a presença soviética.
Factores compensatórios
Existirão, por certo, alguns factores favoráveis:
A – A opinião pública mundial poderá sentir-se ultrajada com a intervenção soviética. Os países
muçulmanos ficarão preocupados e poderemos estar em posição para explorar isso;
13
Ver entrevista com Zbigniew Brzezinski em Le Nouvel Observateur nº 1732, 15 a 21 Janeiro de 1998, p. 76,
disponível em http://archives.nouvelobs.com/ .
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
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Informação Internacional
capaz de pôr fim às constantes disputas no interior do partido e abrir o regime à participação
das correntes políticas e religiosas não comunistas. Karmal, no entanto, cedeu ao tradicional
desejo de vingança afegão, e o ajuste de contas com os Khalq, responsabilizados pelos
erros do passado recente, rapidamente se transformou no principal objectivo do seu regime.
Tal postura inviabilizou uma vez mais a criação de uma frente comum contra a oposição
islâmica radical, deixando para os militares soviéticos todo o esforço de guerra contra
diversos grupos armados em ascensão. Com uma base de apoio extremamente reduzida,
dominando apenas os principais aglomerados populacionais e as vias de comunicação entre
eles, o governo de Karmal nunca teve capacidade para controlar efectivamente todo o
território, e nem a forte presença militar soviética teve capacidade para impedir a actuação
de grupos de guerrilheiros apoiados do exterior e contando com um apoio considerável entre
a população.
Em vez de contribuir para estabilizar a situação, a presença das tropas soviéticas reacendeu
a tradicional resistência afegã à ocupação estrangeira e despertou o apoio externo aos
rebeldes. Mal equipados e pouco preparados para enfrentar uma guerra de guerrilha, os
militares enviados por Moscovo não só eram alvo de constantes emboscadas, sofrendo
pesadas baixas, como inspiravam o recrutamento de voluntários, que chegavam de todo o
mundo islâmico, dispostos a combater na jihad contra os invasores infiéis um pouco por todo
o mundo islâmico. Com o Afeganistão a ocupar uma posição central no reacender da Guerra
Fria, a oposição islâmica refugiada no exterior passou a receber um crescente fornecimento
de armamento norte-americano que, conjugado com o apoio logístico do Paquistão e o
poderoso impulso financeiro da Arábia Saudita, possibilitou a progressiva transformação de
grupos mal organizados e mal armados em temíveis combatentes mujahidin. Este apoio,
desenvolvido em grande parte pela acção dos serviços secretos, nomeadamente pela
colaboração entre a CIA e o ISI14, foi canalizado exclusivamente através do Paquistão,
contribuindo decisivamente para o crescimento de complexas redes de contrabando e
corrupção com importantes ramificações em círculos do Estado e das Forças Armadas.
Dotado de um poder discricionário na distribuição do apoio, o regime liderado por Zia-ul-Haq
favoreceu os grupos Pastun mais radicais, especialmente a facção do Hisb-i-Islami (Partido
Islâmico) dirigida por Gulbuddin Hekmatyar, que o ISI se apressara a pôr em contacto com a
CIA ainda antes da invasão soviética, e que se transformou num aliado incontornável para
Islamabad.
14
Inter-Services Intelligence, que sempre desempenharam um importante papel na execução da política externa
de Islamabad para o Afeganistão.
15
Serviços de Informação do Estado, polícia política dirigida por Najibullah, que se transformou no organismo
mais eficaz do regime de Cabul.
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Se Moscovo não podia esperar uma resolução do conflito pela via militar, uma solução
política favorável aos seus objectivos cedo se revelou improvável. Logo após a invasão, com
o boicote aos jogos olímpicos de Moscovo e as primeiras sanções económicas, a pressão
internacional afectou o relacionamento da URSS com o exterior, em especial com os países
islâmicos, procurando levar os soviéticos a reavaliar os custos e benefícios da aventura
afegã. O exacerbar de posições no Afeganistão só enfraquecia a posição de Moscovo,
sugerindo que a única alternativa ao regime comunista seria um governo islâmico
profundamente anti-soviético que, conjugado com a exposição dos soldados soviéticos ao
fundamentalismo islâmico, aumentava os riscos de “contaminação” religiosa às repúblicas
asiáticas da URSS. Acompanhados pelo desenvolvimento de importantes redes de
contrabando, os constantes casos de consumo excessivo de álcool e de drogas contribuíam
para uma crescente desmoralização entre os militares que, regressando da guerra,
agudizavam os problemas sociais e económicos com que se debatia a URSS, elevando o
tom das críticas até o tornar audível numa sociedade tão fechada como a soviética.
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Mapa 4
RELEVO DO AFEGANISTÃO
Fonte: Globalsecurity.org
16
“The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International History Project, Meeting of CC CSPU Politburo,
13 November 1986”. http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.
17
Najibullah ocupou a liderança do PDPA em Maio de 1986. Karmal renunciou à Presidência do Afeganistão em
Novembro, cargo que seria ocupado durante um ano por Hadj Muhammad Chamkani, um islâmico moderado.
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Se os princípios do “grande jogo” não foram alterados pela retirada das tropas soviéticas do
Afeganistão, o colapso da URSS modificou decisivamente o equilíbrio geo-estratégico na
região. O nascimento de novas repúblicas na Ásia Central alterou as prioridades de
Moscovo, criando uma barreira física à projecção da Rússia num período em que as
convulsões internas e os antecedentes históricos limitavam consideravelmente a sua
capacidade de influência na região. Sem o incentivo da ameaça soviética, os EUA começam
a desviar a atenção para outras zonas do globo, e o súbito desaparecimento de cena das
superpotências abriu caminho à continuação da guerra, que foi acompanhada por um
crescente envolvimento das potências regionais.
18
“Afghanistan: The Making of US Policy, 1973-1990, Steve Galster, The National Security Archive”
http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/essay.html.
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Informação Internacional
Com o Paquistão, a Arábia Saudita e o Irão na linha da frente, vários Estados procuraram
apoiar os grupos ou facções que melhor defendessem os respectivos interesses ou
impedissem os objectivos dos rivais, desenvolvendo complexas redes de influência com
diversos grupos locais. Para o Paquistão, sedento de assegurar a ligação aos novos
mercados da Ásia Central e garantir profundidade estratégica no seu embate com a Índia, a
tentação de aumentar a participação na guerra civil afegã era ainda agravada pela
necessidade vital de manter a fronteira norte na linha Durand. Conhecedores da realidade
local e decididos a impor a sua influência, os Paquistaneses apostaram na maioria Pastun,
procurando utilizar os Talibãs para atingir os seus objectivos. Interessados em assegurar a
independência dos novos Estado e subtrair os seus recursos ao controlo Russo, os EUA,
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
que mantêm o isolamento do Irão como importante objectivo, não encontram razões para se
opor ao crescente envolvimento do Paquistão. Mas este apetite já era seguido com
apreensão por outros países da região, especialmente o Irão e a Rússia, que viam na
influência paquistanesa uma ameaça aos seus interesses económicos. Enquanto a Índia, a
China e a Turquia mantinham um envolvimento discreto no conflito, as repúblicas criadas
após a dissolução da URSS eram inevitavelmente afectadas pela insegurança regional.
Preocupados essencialmente em consolidar o poder pessoal e afirmar a viabilidade dos
novos Estados, os seus líderes sentiam que o agravar da guerra civil afegã e a ascensão
dos Talibãs era uma ameaça directa à sua segurança, temendo a importação do islamismo
para os seus territórios. Interessados em diversificar as exportações sem o controlo da
Rússia e vendo na exploração dos recursos energéticos a solução para a estagnação
económica, os Estados da Ásia Central, especialmente o Turcomenistão, estavam
impacientes por assegurar a estabilidade no Afeganistão.
Contrariando as expectativas, a anunciada vitória dos mujahidin teria de ser adiada até que
a derrocada da URSS pusesse fim ao apoio externo recebido por Cabul, e a retirada
soviética contribuiu mais para acentuar as divergências entre os rebeldes do que para a
queda imediata de Najibullah. Na ausência de tropas infiéis para mobilizar a acção conjunta,
a resistência foi incapaz de encontrar a união necessária para tomar o poder, e as
divergências políticas rapidamente ganharam contornos inultrapassáveis. As diferenças de
pontos de vista entre as diversas forças que comandavam a luta armada no interior do
Afeganistão e os grupos que coordenavam a oposição no exílio, agravadas por um
crescente clima de intimidação e terror que fustigou essencialmente os sectores mais
moderados, minaram decisivamente as possibilidades de entendimento e conduziram a uma
prolongada guerra civil. Fundamentada na fragmentação étnica e na interferência externa, a
guerra civil foi caracterizada por um constante fazer e desfazer de alianças que, impedindo a
consolidação de um poder central estável e contribuindo para a total destruição do país,
transformou o Afeganistão num conjunto de feudos medievais em permanente conflito.
Apesar de controlar uma zona cada vez menor, o regime de Najibullah só foi derrubado
quando deixou de contar com o apoio financeiro de Moscovo e, incapaz de satisfazer os
tradicionais pagamentos ao líderes locais, foi confrontado com a deserção do General
Rashid Dostum, comandante das forças Usbeques. Agrupando o Jumbesh-e-Milli-Islami
(Movimento Nacional Islâmico) de Dostum, os Hazaras do Hezb-e-Wahdat (Partido de
Unidade Islâmica), chefiado por Abdul Ali Mazari, e os Tajiques do Jamiat-e-islamic,
liderados por Burhanuddin Rabani e comandados por Ahmad Shah Massud, a Aliança do
Norte conseguiu dominar Cabul em Abril de 1992. Embora contando inicialmente com a
colaboração de alguns grupos Pastun, como o Jabha-e-Nejat-e-Milli Afghanistan (Frente
Nacional para a Libertação do Afeganistão), um grupo moderado liderado por Pir
Sibghatullah Mojaddedi, o Estado Islâmico do Afeganistão, com Rabbani (1992-1996) na
presidência, cedo enfrentou os problemas resultantes da escassa representação da maioria
Pastun no novo governo.
229
Informação Internacional
230
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Quadro 1
PRINCIPAIS FIGURAS E PARTIDOS DA GUERRA CIVIL
231
Informação Internacional
19
Jabha-yi Muttahid-i Islami-yi Milli bara-yi Nijat-i Afghanistan ou Frente Islâmica Nacional Unida para a Salvação
do Afeganistão, muitas vezes referida pelas iniciais inglesas (UNIFSA) ou por Aliança do Norte.
232
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Pastun, que pertenciam maioritariamente a alguns dos grupos mais radicais da jihad, como
a facção do Hezb-e-Islami comandada por Yunus Khalis ou o Harakat-e-Inquilab-e-Islami
(Movimento Revolucionário Islâmico) de Mohammad Nabi Mohammadi, os Talibãs são
“estudantes de teologia” que frequentavam as madrassas de tradição deobandista e com
ligações ao Jammiat Ulama-i-Islam paquistanês. O rápido crescimento do movimento atraiu
apoiantes em diversos sectores, inclusive entre os ex-Khalq, mas a sua base de
sustentação encontrava-se nos refugiados que viviam no Paquistão e nas ”escolas
corânicas”. Estas madrassas, que recebiam um considerável apoio Saudita graças à
simpatia pelo uabismo, representavam a única forma dos refugiados terem acesso a algum
tipo de educação, proporcionando também alimentação, alojamento e treino militar em
meios extremamente desfavorecidos. Provenientes dos meios rurais e mais iletrados, os
Talibãs escolheram Muhammad Omar Mujahid para os chefiar, um líder religioso local de
origens modestas dotado, como os outros maulás, de um saber rudimentar quando
comparado com o conhecimento mais erudito dos ulemas. Explorando até ao limite a visão
deobandista do Islão, nomeadamente no que diz respeito ao papel das mulheres, os Talibãs
promoveram uma interpretação da Xaria profundamente restritiva, muito influenciada pelo
Pastunvali, mas a que um contínuo recurso ao conceito jihad transmitia uma dinâmica
especial.
O Ascendente do Paquistão
“Os Talibãs eram pessoas boas e honestas ligadas às madrassas em Queta e Peshawar, e
eram meus amigos da jihad contra os soviéticos. Vieram até mim em Maio de 1994 dizendo:
Hamed, temos de fazer algo sobre a situação em Kandahar. É intolerável. Não tive reservas
em ajudá-los. Tinha muito dinheiro e armas da jihad. Também os ajudei com a legitimidade
política. Foi apenas em Setembro de 1994 que outros começaram a comparecer nas
reuniões – silenciosos que eu não reconheci, pessoas que controlaram o movimento Talibã.
Era a mão escondida dos serviços secretos paquistaneses.20” As palavras de Hamed Karzai,
que quando as proferiu estava longe de imaginar que viria a chefiar um governo interino
afegão, sugerem uma profunda participação do Paquistão na ascensão dos Talibãs. Na
verdade, a vitória de Benazir Bhutto nas eleições de 1993 alterou o eixo orientador da
política paquistanesa para o Afeganistão. Afastado o Jammat-e-Islami, que sempre apoiara
Hekmatyar, Butho e o seu Ministro do Interior, o Pastun Naseerulah Babar, procuraram
aproveitar o apoio dos deobandistas do Jammiat Ulama-i-Islam para encontrar uma força
capaz de dar corpo às novas intenções de Islamabad. Além das tradicionais preocupações
paquistanesas sobre a evolução da questão afegã, Babar compreendera a importância de
estabelecer uma ligação directa com os novos Estados da Ásia Central através do
Afeganistão, e estava decidido a utilizar o ISI para assegurar o êxito da iniciativa.
O apoio do Paquistão cedo se revelou essencial para o rápido avanço dos Talibãs. A partir
de Outubro de 1994, contando já com o apoio do ISI, começaram por se apoderar de
importantes depósitos de armamento até aí na posse das forças de Hekmatyar. A pedido do
20
Kaplan, Robert D.; The Atlantic Montly; September 2000; The Lawless Frontier – 00.09 (Part Three); Volume
286, nº. 3, page 66-80.
233
Informação Internacional
234
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Mapa 6
A ESTRATÉGICA LOCALIZAÇÃO DO AFEGANISTÃO
Os Talibãs no Poder
235
Informação Internacional
Na incessante busca de um retorno ao glorioso período dos Califados, o país mudou o nome
para Emirado Islâmico do Afeganistão e o maulá Omar, procurando assegurar a legitimação
religiosa, assume o título de amir-ul momineen. Omar, que concentrou o poder terreno e a
legitimação divina, não surge só como uma figura mítica, dispõe também do poder de
decisão e administra sem restrições os elevados proveitos que os Talibãs conseguem
arrecadar. Como os novos governantes preferem participar nos combates, demonstrando
total incapacidade para exercer cargos administrativos, a ausência de uma estrutura
governativa funcional faz com que o orçamento seja utilizado quase exclusivamente para
olear a máquina de guerra. Provenientes da ajuda externa, mas também dos impostos
cobrados aos produtores de ópio e às caravanas de camiões que atravessam o país, estes
fundos nunca foram utilizados em acções para desenvolver projectos ou infra-estruturas que
contribuíssem para melhorar as difíceis condições de vida da população.
A afirmação dos Talibãs contribuiu decisivamente para uma crescente instabilidade regional.
Os periódicos fluxos de refugiados, provocados pela continuação da guerra civil,
aumentavam os problemas sociais nos países limítrofes, favorecendo a penetração de
grupos islâmicos radicais e o crescimento das máfias ligadas ao tráfico de armas e de droga
que operavam com a conivência dos Talibãs. Preocupados essencialmente com a situação
da etnia Pastun, pouco identificados com o passado histórico e com os problemas do
Afeganistão, os Talibãs não se identificavam com o nacionalismo afegão, vendo no avanço
para as zonas não-pastun uma forma de difundir e impor o seu modelo religioso. Esta
tendência, aliada a um completo alheamento face ao tradicional papel dos Estados nas
relações internacionais, atraiu os Talibãs para um espécie de internacionalismo de cariz
islâmico, legitimando o apoio a grupos de guerrilheiros fundamentalistas dispostos a
236
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
espalhar a revolução noutras paragens, uma acção que se tornou particularmente visível
após Ussama bin Laden ter passado a integrar o restrito círculo que rodeava o maulá Omar.
Servindo também as forças que, do interior do Paquistão, procuravam treinar grupos de
terroristas para actuar em Caxemira, o apoio dos Talibãs aos campos de guerrilheiros
proporcionou a formação militar a muitos grupos fundamentalistas, treinando centenas de
militantes islâmicos prontos a combater pelo seu ideal em qualquer parte do globo.
A guerra civil que decorreu no Tajiquistão entre 1993 e 1997 e as acções armadas do
Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU) no vale de Fergana, contribuíram para aumentar
os receios de uma possível exportação do fundamentalismo para a Ásia Central,
acentuando as reservas dos dirigentes destes países em relação aos Talibãs. A participação
no conflito da Chechénia de muitos guerrilheiros treinados no Afeganistão, seguido do
reconhecimento pelos Talibãs do governo rebelde da região, levou Moscovo a conceder um
apoio discreto à Frente Unida enquanto ambas as partes procuravam ultrapassar os
traumas da ainda recente intervenção soviética. A Índia e a China, a braços com problemas
em Caxemira e Xinjiang, também partilhavam as preocupações russas, mas mantinham um
envolvimento moderado em comparação com o Irão, onde o sentimento de protecção aos
xiitas potenciava o apoio aos Hazaras. Aproveitando as afinidades étnicas com os Tajiques,
Teerão procurou aumentar a influência na região, ao mesmo tempo que se afirmava como
alternativa para o acesso à Ásia Central.
Filho de um respeitado milionário ligado ao sector da construção, Ussama bin Laden, que
nasceu em Riade por volta de 1957, conheceu o seu mentor espiritual quando estudava na
Universidade de Jeda nos finais dos anos setenta. Influenciado pelos ensinamentos do
Sheik Abbdullah Azzam, um professor palestiniano que apoiava o fundamentalismo islâmico,
bin Laden respondeu ao apelo da jihad contra os soviéticos e partiu para Peshawar, onde
colaborou com Azzam na organização e financiamento dos mujahidin. Responsável pela
237
Informação Internacional
Regressando ao seu país como um herói, bin Laden não reconheceu no regime Saudita as
qualidades que gostaria de ver num verdadeiro Estado islâmico. Iniciou discretos contactos
com a oposição enquanto dirigia os negócios familiares, mas o tom das críticas à família real
aumentou quando os EUA estacionaram tropas nas bases militares da península arábica e
as utilizaram para atacar o Iraque. Indignado com a possibilidade dos norte-americanos
defenderem Israel a partir dessas bases, convicto de que as acções dos EUA apenas
procuravam salvaguardar os seus interesses petrolíferos na região, bin Laden considerou
ultrajante a permanência de militares estrangeiros no solo saudita, acusando o Rei de não
cumprir o seu dever de protecção dos lugares sagrados do Islão. Como o tom das críticas foi
demasiado audível, para o intolerante regime saudita, foi colocado em prisão domiciliária
durante um curto período e, após diversas pressões, partiu para o Sudão em Abril de 1991,
acompanhado pelas mulheres e pelos vários filhos.
238
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Figura 4
21
MAPA DA ARÁBIA EM LIVRO DE BIN LADEN
À medida que se iam tornando visíveis as actividades de bin Laden, os EUA e a Arábia
Saudita começaram a preocupar-se com as acções do antigo aliado. Em 1996, após forte
pressão dos EUA e do Egipto (que suspeitava do seu envolvimento numa tentativa para
assassinar o presidente Mubarak), o governo sudanês decide expulsar bin Laden do país.
Segundo alguns rumores que carecem de confirmação, terá tentado entregá-lo às
autoridades sauditas que, no entanto, terão declinado a oferta. Sem muitas alternativas, bin
Laden aproveita os contactos afegãos para se refugiar em Jalalabad, sob a protecção de
Haji Qadir e da Xura que governava a cidade. É já no Afeganistão que define os seus
objectivos, emitindo uma fátua intitulada “Declaração de guerra contra os americanos que
ocupam a Terra dos dois Lugares Sagrados”, assumindo que “...hoje começamos o trabalho,
conversamos e discutimos as formas de corrigir o que aconteceu ao mundo islâmico em
geral e à Terra dos dois Lugares Sagrados em particular. Queremos estudar o caminho que
devemos seguir para que a situação regresse à normalidade”22. Em Fevereiro de 1998,
21
‘‘Anúncio da jihad contra os americanos que ocupam a Terra dos Lugares Sagrados’’, pelo Sheik Ussama bin
Laden.
22
Texto completo disponível em http://dossiers.publico.pt/atentado_estados_unidos/pistas_web/decwar3.htm.
239
Informação Internacional
diversos líderes de grupos extremistas23 publicaram uma nova fátua proclamando a “Jihad
contra os Judeus e os Cruzados” na qual consideravam que Israel e os EUA estavam a
tentar enfraquecer os Estados muçulmanos para garantir o domínio do Médio Oriente e que
a guerra já tinha sido declarada com a ocupação dos lugares sagrados. Por isso, apelavam
à libertação de todo o mundo islâmico, proclamando como um dever de todo o muçulmano o
ataque aos interesses dos norte-americanos e dos seus aliados, não fazendo qualquer
distinção entre alvos civis ou militares. A 7 de Agosto, exactamente oito anos após as tropas
do EUA terem chegado à Arábia Saudita, dois camiões explodem junto às embaixadas
norte-americanas em Dar es Salaam e Nairobi, provocando centenas de mortos e de feridos
e uma grande destruição nos edifícios. Apesar de bin Laden negar inicialmente qualquer
envolvimento no atentado, todas as características da operação apontavam em sentido
contrário.
Ussama bin Laden, que só entrou em contacto com os Talibãs após a conquista de
Jalalabad, começou a desenvolver um relacionamento privilegiado com o maulá Omar após
se mudar para Kandahar em 1997. Os pontos de vista comuns ajudaram essa aproximação,
mas bin Laden e os Talibãs também tinham interesses complementares. Combatentes
experientes, os “árabes afegãos” que acompanhavam bin Laden passaram a apoiar as
campanhas militares dos Talibãs, constituindo unidades autónomas que desempenhavam
um papel importante no campo de batalha, e a Al-Qáida, que voltava a controlar alguns dos
campos de treino existentes no Afeganistão, passava a estar disponível para realizar
atentados e eliminar opositores ao movimento. Mas a crescente influência de bin Laden
também contribuiu para a alterar a política externa dos Talibãs. Seduzidos pelo pan-
islamismo, um ideal distante quando começaram a controlar Kandahar e a cintura Pastun,
os Talibãs passaram a demonstrar um claro sentimento anti-ocidental e uma nova
intransigência religiosa, baseada na retórica contra os cristãos e os judeus, típica do
pensamento de bin Laden. Detentora do poder e de um novo estatuto económico e social, a
liderança Talibã passou a confundir as vitórias militares com o dever de espalhar o
fundamentalismo islâmico, não sendo de estranhar surgisse a vontade de estender o seu
domínio aos 15% da população paquistanesa de etnia Pastun e, com o apoio dos seus
tradicionais aliados nos meios radicais paquistaneses, aproveitar a crónica instabilidade do
país para promover o surgimento de um novo regime. O Paquistão, único país muçulmano a
possuir armamento nuclear, poderia ser uma peça importante na afirmação do pan-
islamismo, mas o principal objectivo de bin Laden continuava a ser a libertação dos lugares
sagrados e da Arábia Saudita, que seria a base de um processo de difusão religiosa e
social semelhante aos dos primórdios do Islão.
23
O documento, disponível em http://www.fas.org/irp/world/para/docs/980223-fatwa.htm, é assinado por Ayman
al-Zawahiri, emir da Jihad Egipcia, Abu-Yasir Taha, do Grupo Islãmico Egípcio, Mir Hamzah, secretário do
Jamiat-ul-Ulema-e-Pakistan e Fazlur Rahman, emir da Jihad no Bangladesh e por Ussama bin Laden.
240
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Mapa 7
PRESENÇA DA AL-QÁIDA NO MUNDO
Fonte: Público
Mais do que um aliado e um mentor, Ussama bin Laden foi-se transformando num forte
entrave à afirmação dos Talibãs, contribuindo para aumentar a pressão internacional sobre
o maulá Omar e os seus seguidores. Os EUA, que bombardearam algumas bases
terroristas no Afeganistão na sequência dos atentados contra as embaixadas africanas,
passaram a liderar uma campanha solicitando a entrega de bin Laden, conseguindo isolar
os Talibãs com a aprovação da Resolução 1267/99 pelo Conselho de Segurança da ONU.
Indiferente, bin Laden pode continuar a apoiar a formação de guerrilheiros islâmicos,
passando a organizar acções cada vez mais arrojadas. O êxito alcançado no violento ataque
contra o USS. Cole no Iémen, que custou a vida a vários marinheiros norte-americanos e
quase provocou o colapso do navio, comprovou as altas taxas de sucesso alcançadas pelas
tácticas suicidas, incentivando bin Laden a preparar um ataque sem precedentes aos
centros de poder do inimigo.
O novo mapa político regional potenciou o valor estratégico do Afeganistão que, apesar do
afastamento das superpotências, podia recuperar o lugar privilegiado que perdera quando o
nascimento da União Soviética criou uma barreira às tradicionais relações com a Ásia
241
Informação Internacional
A batalha das condutas, que Ahmed Rashid descreve na terceira parte do livro “Os Talibãs
O Islão o Petróleo e o Novo Grande Jogo Na Ásia Central”, levou diversas companhias
petrolíferas a estabelecer contactos com os Talibãs e com as restantes facções do conflito
afegão, contribuindo decisivamente para acentuar a guerra civil afegã e aumentar o
interesse dos Estados envolvidos. Incentivados pelo Paquistão que, cada vez mais
interessado numa rápida resolução do conflito, procurava explorar o tradicional alinhamento
com os EUA e a Arábia Saudita, os Talibãs acentuaram as campanhas militares para
controlar todo o território, na esperança de garantir o reconhecimento internacional e
assegurar uma nova fonte de receitas. Os EUA, que tardavam em definir uma política
24
Formado pela Unocal (46,5%), a Delta Oil (Arábia Saudita, 15%), o Governo do Turcomenistão (7%), a
Indonesia Petroleum (6,5%), a ITOCHU Oil (Japão, 6,5%), a Hyundai (Coreia do Sul, 5%) e The Crescent Group
(Paquistão, 3,5%). Os restantes 10% ficavam reservados para a adesão dos russos da RAO Gazpro, que nunca
se chegou a concretizar.
25
“Unocal Statement: Suspension of activities related to proposed natural gas pipeline across Afghanistan”
disponível em http://www.unocal.com/uclnews/98news/082198.htm.
242
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
coerente para a região, acreditaram que os Talibãs podiam garantir a estabilidade da rota e
apoiaram mais uma vez a interferência paquistanesa no Afeganistão. Marcados pela lógica
da Guerra Fria, pretendiam viabilizar o acesso às reservas energéticas da Ásia Central, para
promover a afirmação das novas repúblicas e conter a influência da Rússia na região, mas
sem esquecer a tradicional intransigência face ao Irão. Esta opção também se integrava
numa estratégia mais vasta de diversificação da oferta de petróleo, procurando diminuir a
dependência do Golfo Pérsico, onde o espaço de manobra dos EUA estava limitado pela
tentativa de isolar o Iraque e a incapacidade de pôr fim ao conflito Israelo-Palestiniano.
Mapa 8
OLEODUTOS E GASODUTOS NA ÁSIA CENTRAL
Fonte: . Worldpress.org
243
Informação Internacional
participação nos projectos e, para tentar travar a ameaça de uma alternativa ao seu
monopólio, foi-se aproximando do Irão. Enquanto os Estados da Ásia Central desesperavam
por novos canais para escoar as suas exportações, partilhavam com a China, a Índia e a
Turquia, embora a níveis diferentes, as preocupações com a difusão do fundamentalismo
islâmico na região. O radicalismo demonstrado pelos Talibãs, especialmente a identificação
com o extremismo pan-islâmico, incentivou o apoio da maioria destes Estados à Frente
Unida, levando-os a uma aproximação aos interesses da Rússia e do Irão que impediu a
estabilidade necessária para viabilizar a rota pelo Afeganistão.
Nos EUA, onde as campanhas contra as práticas dos Talibãs subiam de tom, especialmente
entre o tradicional eleitorado feminino de Bill Clinton, a persistente recusa em entregar bin
Laden contribuía para uma progressiva mudança no posicionamento dos norte-americanos.
Os EUA compreenderam que, com o extremismo que implementavam, os Talibãs não
podiam assegurar um clima de estabilidade, condição fundamental para atrair os avultados
investimentos necessários à viabilização das novas rotas, e que essa estabilidade só
poderia ser conseguida após terminar a guerra civil afegã. Os norte-americanos também
não tinham conseguido impedir um acordo de longo prazo para a exportação de gás
iraniano para a Turquia, o primeiro do género conseguido por Teerão após a revolução, e
que ameaçava ligar os gasodutos dos dois países, tornado o Irão a alternativa mais viável
para assegurar o acesso à Ásia Central. Assinado em Agosto de 1996 e válido por 25 anos,
o acordo esteve rodeado de diversas polémicas que impediram a sua execução imediata26,
não sendo de estranhar que grande parte delas tenham origem na pressão dos norte-
americanos. Reféns das políticas dos seus aliados regionais, especialmente do Paquistão,
pois a Arábia Saudita já se afastava dos Talibãs em consequência da ameaça que bin
Laden representava, os EUA procuravam encontrar alternativas, apoiando, nomeadamente
a proposta para a construção um oleoduto sob o Mar Cáspio. Esta rota, evitando a Rússia e
o Irão, possibilitava o acesso à Ásia Central, ligando directamente o Azerbeijão e o
Turcomenistão, mas dependia da estabilidade na Geórgia e de um acordo sobre a utilização
do Mar Cáspio, onde a Rússia e o Irão eram fundamentais para atingir qualquer
entendimento. Quando os altos custos ameaçaram transformar o projecto numa miragem,
aumentando a impaciência dos restantes actores, os EUA pareciam cada vez mais longe de
atingir os seus objectivos na Ásia Central. Mas, o interesse dos norte-americanos pelas
reservas da Ásia Central voltou a crescer com o rápido aumento do preço do petróleo e
com a eleição de George W. Bush, que, naturalmente, veio favorecer as pretensões do
sector petrolífero. A conjugação destes factores originou a definição de uma nova política
energética que, reconhendo a dependência do exterior, deu ainda mais ênfase às tentativas
de diversificar a origem dos fornecimentos. A Ásia Central, no entanto, ainda parecia um
lugar demasiado longínquo e inacessível para motivar um envolvimento tão dispendioso,
mas, em breve, os EUA receberiam um impulso decisivo para aumentar a sua preocupação
sobre a evolução dos acontecimentos na região, particularmente no Afeganistão.
26
Apesar das pressões norte-americanas, as entregas de gás iraniano à Turquia começaram em 2002. Ver
Shamshiri, Mohsen; “Gas Export from Iran to Turkey Within the Next 25 Years”, Mardom-Salari, Jan 27, 2002,
Vol. 1, No. 30, disponível em http://www.netiran.com/weeklyjournal.html.
244
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
27
Ver entrevista com Zbigniew Brzezinski em Le Nouvel Observateur nº 1732, 15 a 21 Janeiro de 1998, p. 76,
disponível em http://archives.nouvelobs.com/
28
“A Message to the People of the United States of America” Ahmad Shah Massud 8 de Outubro de 1998,
disponível em http://www.ciriello.com/site/pw/46massud.html#anchor
245
Informação Internacional
Atacados no coração do seu próprio território, os EUA não podiam mais ignorar bin Laden e
a evolução da situação no Afeganistão. Perante a já esperada recusa dos Talibãs em
entregar bin Laden, os EUA realizaram uma poderosa ofensiva diplomática para assegurar
os apoios diplomáticos necessários à longa luta contra o terrorismo anunciada por George
W. Bush, de que a intervenção militar no Afeganistão seria apenas o primeiro capítulo. Foi
possível isolar os Talibãs e, sem grande surpresas, recolher o apoio ou evitar a oposição
dos principais Estados com interesses na região. No Paquistão, o caso mais complicado, o
General Pervez Musharraf foi confrontado com o fantasma do apoio aos Talibãs, e a
submissão aos interesses norte-americanos provocou a agitação dos sectores mais radicais.
A Rússia, a China e o Irão, condenaram veementemente os atentados terroristas, mas não
reagiram da mesma forma ao ataque aos Talibãs. A Rússia surgia na primeira linha do apoio
aos EUA, com Vladimir Putin a incitar os países da Ásia Central a apoiar os norte-
americanos, aproveitando para realçar as semelhanças e as ligações entre os Talibãs, bin
Laden e os guerrilheiros chechenos, enquanto Irão e China, embora de forma mais ou
menos moderada, criticaram a intervenção ou o excessivo sofrimento que causou. Um
pouco mais surpreendente, embora de forma alguma inexplicável, foi a recusa Saudita em
ceder bases militares para ataques directos contra os Talibãs e bin Laden, dificultando a
logística das operações norte-americanas e pondo em causa e estensão dos ataques a
outros países.
246
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
Mapa 9
SITUAÇÃO HUMANITÁRIA NO AFEGANISTÃO
247
Informação Internacional
não poderá esquecer diversos sectores essenciais para evitar a perpetuação da actual
situação. Ultrapassar a total destruição das infra-estruturas e a inexistência dos mais
elementares sistemas de saúde e de educação, satisfazendo as necessidades mais básicas
da população nestes campos, não será possível sem a criação de meios de comunicação
adequados para transmitir mensagens a uma população maioritariamente analfabeta. Um
maior respeito pelos direitos humanos, acompanhado por uma intervenção decidida em
matérias de capital importância para assegurar a segurança, como o tráfico de drogas e o
contrabando de armas, são fundamentais para assegurar a estabilidade, mas vão provocar
inevitáveis reacções dos atingidos. A luta entre os diversos grupos para assegurar a maior
representatividade possível na Loya Jirga, e as tensões que resultarão das suas decisões,
são uma ameaça constante à manutenção da unidade afegã, mas o agravar da
fragmentação étnica só poderá conduzir à divisão do país, criando um precedente perigoso
que pode alastrar a toda a região. Evitar este cenário deverá ser, por certo, um dos
principais objectivos de todos os actores envolvidos, mas só um forte e continuado empenho
poderá assegurar o seu afastamento definitivo.
A eliminação da ameaça que os Talibãs representavam foi recebida com alívio na região,
mas o regresso aos países de origem de alguns voluntários que combatiam no Afeganistão
contribuiu, no imediato, para aumentar a tensão em diversas zonas. Se Caxemira, o
Curdistão Iraquiano e o Uzbequistão foram algumas das regiões mais afectadas, a situação
parece particularmente grave no Paquistão. Mas, se a normalização no Afeganistão não
pode ser obtida à custa da degradação da situação no Paquistão, já que a estabilidade
neste país é essencial para atingir tal objectivo, o estatuto nuclear e o perigo de escalada na
tradicional disputa com a Índia, tantas vezes manobrada para garantir a coesão nacional,
podem transformar o Paquistão na maior ameaça à estabilidade regional.
CONCLUSÃO
O Afeganistão manteve intacto o seu valor estratégico após a II Guerra Mundial, mas a
situação alterou-se substancialmente quando a afirmação dos EUA como potência marítima
dominante se conjugou com a saída dos Britânicos da Índia, provocando o aparecimento de
novos Estados e novas dinâmicas regionais. Os EUA tentaram assumir o papel até aí
atribuído aos Britânicos mas, com a tensão entre Índia e Paquistão a dominar a formação
das alianças regionais, o problema da delimitação de fronteiras herdado do século XIX foi
determinante na definição no posicionamento do Afeganistão durante a Guerra Fria. Apesar
do interesse dos EUA em apoiar a independência e neutralidade do Afeganistão, as alianças
248
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
com o Irão e com o Paquistão asseguraram os seus objectivos regionais, e esta opção
impossibilitava uma real aproximação ao Afeganistão. Fracassadas todas as tentativas de
entendimento, os líderes afegãos desenvolvem relações privilegiadas com a URSS que,
lentamente, evoluiriam para uma situação de crescente dependência económica e militar.
Assegurando uma progressiva influência na sociedade afegã, a URSS veria esse esforço
recompensado quando a Revolução Saur instaurou um regime comunista claramente pró-
soviético.
Se o novo regime afegão podia pôr em causa o equilíbrio regional, a transformação do Irão
numa República Islâmica comandada por Khomeini provocou um verdadeiro terramoto na
estabilidade regional, numa época em que se esfumavam os efeitos da détente. Os EUA,
vendo o principal aliado na região transformar-se num feroz opositor, passaram a dedicar
uma maior atenção ao Afeganistão que, especialmente após a invasão soviética, iria ocupar
um papel fulcral no reacender da disputa entre as superpotências. A presença das tropas da
URSS no Afeganistão justificaria o crescente apoio dos EUA a diversos grupos de mujahidin
que combatiam o regime comunista. Desenvolvido através do Paquistão com um forte apoio
logístico e financeiro da Arábia Saudita, o envolvimento norte-americano foi fundamental
para impedir a consolidação da ocupação soviética, contribuindo decisivamente para a
retirada do Exército Vermelho e para a posterior derrocada da URSS.
249
Informação Internacional
Afeganistão, antes pode ser encontrada em todos os Estados da Ásia Central. No centro
deste mosaico étnico, que pode vir a estalar com facilidade, existem enormes reservas de
gás e petróleo. Não perdendo de vista os seus interesses estratégicos, os EUA alargaram a
cooperação com os Estados da Ásia Central, com quem partilham o desejo de tornar viável
a exploração desses recursos. Se a estratégia dos EUA no acesso a esses recursos se
baseou até agora na exclusão da Rússia e do Irão, os acontecimentos de 11 de Setembro e
a evolução que se seguiu, podem ou não conduzir a uma alteração no posicionamento
norte-americano.
Uma retirada do Afeganistão sem atingir os objectivos ou um sucesso limitado, isto é, sem
garantir a estabilidade necessária para transformar o país num acesso privilegiado à Ásia
Central, poderia obrigar os EUA a rever a sua política nesta matéria. Como Irão e a Rússia
continuam com capacidade para inviabilizar qualquer uma das rotas alternativas, seria entre
eles que os EUA poderiam encontrar a parceria ideal. Como, em Washington, as chagas da
Guerra Fria parecem já ter sarado mais do que as da Revolução Iraniana, a Rússia surge
como óbvio aliado preferencial, e com a vantagem de um vasto relacionamento com as
Repúblicas da Ásia Central. O Irão, no entanto, não deve ser completamente excluído, pois
já possui parte das infra-estruturas e do conhecimento necessário, e poderá ser tentado a
desenvolver uma solução alternativa de acesso ao Sul e ao mercado paquistanês. Não
assegurando essa ligação, as Repúblicas da Ásia Central poderiam tentar recuperar a
desvantagem económica no relacionamento com China, mas a maioria das suas actividades
seriam seriamente prejudicadas. O Paquistão seria, provavelmente, o principal perdedor,
ficando dependente do gás iraniano e sem nenhum novo impulso para fortalecer a
economia, e o seu crescimento, tal como o do Afeganistão, poderia ser muito mais lento.
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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central
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