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Questões Geopolíticas Centrais

O AFEGANISTÃO − NO EPICENTRO DO CONFLITO OU DA ESTABILIDADE NA


ÁSIA CENTRAL

José Luís Alves

CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS

Ocupando cerca de 650 mil Km quadrados, situado entre as estepes da Ásia Central, o vale
do Indo e o planalto persa, o Afeganistão sempre foi um importante ponto de passagem para
os inúmeros povos e civilizações que se movimentaram entre as regiões adjacentes. Esta
estratégica localização, aliada a um relevo particularmente difícil, potenciou a fragmentação
étnica que caracteriza o actual Afeganistão, resultado directo da sucessiva ocupação da
região por diversos povos, nomeadamente Arianos, Persas, Gregos, Turcos, Árabes e
Mongóis. Alexandre, o Grande e Genghis Khan comandaram alguns dos exércitos mais
poderosos que passaram por uma região que, não só era atravessada por importantes rotas
comerciais, com especial destaque para a Rota da Seda, como se transformou num ponto
de passagem e difusão de religiões como o Zoroastrismo, o Budismo, o Hinduísmo e o
Islamismo.

Apesar do Afeganistão se ter tornado o centro de importantes impérios, os povos da região


foram divididos pelas fronteiras arbitrariamente traçadas pelo colonialismo Europeu durante
o século XIX. Relativamente isolados e pouco sensíveis a estas linhas artificiais, estes
povos continuaram presos ao tradicional relacionamento entre si, e as divisões étnicas
tornaram difícil o desenvolvimento de um genuíno sentimento nacional. Num contexto em
que os laços tribais se sobrepunham muitas vezes à fidelidade a um qualquer poder central,
poucos foram os líderes afegãos que não foram depostos pela força, pagando geralmente
com a vida os excessos ou as fraquezas das políticas que pretendiam implementar.

Principais Grupos Étnicos

O Afeganistão alberga mais de uma dúzia de grupos étnicos e, muito embora seja difícil
efectuar estimativas exactas sobre a actual composição étnica do país, os Pastun, com
cerca de 40% da população, continuam a ser o grupo mais representativo. Os Tajiques, com
25%, e os Hazaras, com 18%, também constituem importantes comunidades, enquanto os
Usbeques e os Turcomanos representam, respectivamente, 6,5% e 2,5%. Os restantes 8%
encontram-se divididos por várias etnias1 que, isoladamente, não abarcam mais de 1% da

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população, entre as quais pequenas comunidades não islâmicas, especialmente Hindus e


Sikhs. Existiam também alguns Judeus que, por motivos óbvios, foram abandonando a
região durante as últimas décadas. Dotadas de línguas e costumes próprios, as diversas
etnias pouco mais têm em comum do que a religião islâmica, com uma forte implantação
Sunita a ser mesclada por cerca de 20% de Xiitas.

Mapa 1
GRUPOS ETNOLINGUÍSTICOS NO AFEGANISTÃO

Fonte: Globalsecurity.org

A etnia Pashtun sempre desempenhou um importante papel de liderança política, ocupando


o topo da sociedade afegã. Na sua esmagadora maioria Sunitas e predominantemente
agricultores, os Pashtun tornaram-se os principais detentores das propriedades rurais,
dominando grande parte do sistema produtivo. Presentes em grande número no Paquistão,
em especial na região semi-autónoma da Província Fronteira do Noroeste, e agrupando um
considerável grupo de nómadas, os Pastun sempre contribuíram para desenvolver o
comércio e o tráfico entre os dois lados de uma fronteira que não reconhecem. Longe de

1
Destes, podem ser destacados os Aimaq, os Árabes, os Baluch, os Brahui, os Farsiwan, os Nuristani, os
Quirguizes, os Qizilbash e os Wakhi.

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constituir um grupo homogéneo, encontram-se profundamente divididos por um forte


sentimento tribal, apenas ultrapassado pela lealdade ao clã. Demonstrando uma enorme
aversão à modernização e à centralização do poder, com cada aldeia a orientar a acção
segundo os próprios desígnios, só a manutenção de generosos pagamentos aos líderes
tribais podia evitar um constante clima de rebelião. Guiados por um rigoroso código de
conduta2 que, baseado na superioridade masculina, valoriza a bravura e a honra, que deve
ser defendida com a vida, as tribos Pastun desenvolveram enormes rivalidades entre si,
constantemente agravadas por uma particular obrigação de vingança. A difícil convivência
entre os Durrani e os Ghilzay, que representam as maiores tribos Pastun3, ilustra os
problemas de relacionamento que sempre caracterizaram a sociedade afegã; enquanto os
Durrani dominaram o poder afegão de Ahmad Shah até à Revolução Saur, os Ghilzay
estiveram quase sempre presentes nos principais movimentos para os derrubar.

Os Tajiques, predominantemente Sunitas mas de matriz cultural e linguística persa, são o


segundo maior grupo étnico presente no Afeganistão. Dotados de um forte sentimento de
lealdade à comunidade a que pertencem, mas sem o espírito tribal que caracteriza os
Pastun, desenvolveram com estes um relacionamento menos conflituoso do que as outras
etnias afegãs. Essencialmente originários das regiões montanhosas, onde se dedicavam
maioritariamente à agricultura e ao artesanato, os Tajiques também constituíram
importantes comunidades urbanas. Ocupando tradicionalmente posições intermédias na
sociedade, tornaram-se uma parte importante da elite educada afegã, sendo geralmente
conotados com os sectores mais moderados e abertos à modernização.

Os Hazaras, descendentes dos Mongóis que ocuparam a região após a invasão liderada
por Genghis Khan, são o único grupo étnico maioritariamente Xiita presente no Afeganistão.
Devido às suas características físicas e opções religiosas, os Hazaras foram muitas vezes
marginalizados, ocupando tradicionalmente um escalão inferior na sociedade afegã. Com
uma identidade cultural muito vincada, foram vítimas de diversos massacres durante o
século XIX, desenvolvendo desde aí um relacionamento complexo com a maioria Pastun.

Os Usbeques, muçulmanos sunitas, constituem a maior etnia de matriz turca. Presentes de


forma consistente no Afeganistão desde do início do século XVI, o seu número aumentou
consideravelmente durante os anos vinte devido ao fluxo de refugiados provocado pela
instauração do regime soviético. Apesar do difícil relacionamento com os Pastun, os
Usbeques não desenvolveram animosidades especiais em relação a outros grupos étnicos,
vivendo tradicionalmente em harmonia com os Tajiques, embora em zonas distintas das
mesmas povoações. Com uma sociedade estritamente patriarcal que atribui um poder
autoritário aos líderes, os Usbeques distribuem-se entre os campos e as cidades,
dedicando-se maioritariamente à agricultura, ao pequeno comércio e ao artesanato.

2
O “Pushtunvali” é um rigoroso código legal e moral que, seguindo os valores tradicionais, determina o
ordenamento social e as responsabilidades individuais.
3
Principais tribos Pastun: Ghilzay (14%), Durrani (12%), Wardak, Jaji, Tani, Jadran, Mangal, Khugiani, Safi,
Mohmand e Shinwari.

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UMA INDEPENDÊNCIA DIFÍCIL

Durante o século XIX, o extenso território controlado pelas tribos Pastun começou a ser
confrontado com o crescente apetite e influência dos Impérios Europeus, transformando o
Afeganistão no tabuleiro de um “grande jogo” entre uma potência continental e uma potência
marítima. Enquanto os Britânicos se mostraram determinados em travar o avanço Russo,
procurando impedir qualquer ameaça à jóia da Coroa, o Império dos Czares tentou
consolidar as conquistas mais recentes e prosseguir a expansão para Sul, de forma a
assegurar o acesso aos estratégicos portos dos mares quentes. Os diversos movimentos
dos jogadores, procurando influenciar ou impor os sucessivos governantes, conduziram a
uma progressiva redução das regiões sobre controlo afegão e a uma delimitação artificial
das suas fronteiras, ilustrada pela atribuição ao Afeganistão do Corredor de Wakkan,
evitando o contacto directo entre Russos e Britânicos, ou pela ocupação do Baluchistão,
transformando o Afeganistão num país sem acesso ao mar. Mas se a constante
confrontação entre Londres e Moscovo limitou as fronteiras do tabuleiro Afegão, também
gerou a necessidade de criar um equilíbrio regional entre os dois principais jogadores,
garantindo a progressiva afirmação de um Afeganistão independente e neutral, funcionando
como Estado tampão entre os dois poderosos Impérios. Esta independência, que só seria
plenamente concretizada em pleno século XX, continuou a afirmar-se dentro das regras de
influência ditadas durante o “grande jogo” mesmo após a substituição dos Czares pelos
Sovietes, mas não poderia resistir, pelo menos na sua plenitude, ao fim da presença
Britânica na Índia.
Figura 1
SHER ALI ENTRE OS IMPÉRIOS RUSSO E BRITÂNICO

Fonte: Lemar-Aftaab (Original de 1878)

De Império a Estado-Tampão

A primeira grande manifestação da autonomia afegã de base Pashtun foi protagonizada pelo
líder da tribo Ghilzay Mir Wais Khan, que em 1709 conseguiu dominar toda a região de
Kandahar, aproveitando a confrontação entre os impérios Persa e Mogol. O domínio Persa
voltaria a ser restaurado, mas as bases para uma afirmação consistente dos Pastun no

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território do actual Afeganistão foram estabelecidas com a eleição de Ahmad Shah Abdalli
(que governou entre 1747 e 1772) por um conselho tribal. Partindo de Kandahar, Ahmad
Shah, que mudaria o nome para Ahmad Shah Durrani, estendeu o domínio Pastun do Mar
da Arábia ao rio Amu Darya e de Mashad a Caxemira, controlando praticamente quase todo
o território do actual Paquistão e chegando mesmo a atacar Deli. Sucessivas insurreições
internas obrigaram o filho, Timur Shah (1772-1793), a mudar a capital para Cabul, até aí
uma cidade maioritariamente Tajique, só assim garantindo que o seu sucessor, Zaman Shah
(1793-1801), herdava um império suficientemente vasto para constituir uma ameaça para os
interesses Britânicos na Índia.

As constantes lutas pela liderança, em especial as crises de sucessão, produziram sempre


importantes fragmentações e mudanças no poder Afegão. Após a morte de Zaman Shah e
um início de século particularmente tumultuoso, Dost Mohammad (1826-1839 e 1842-1863)
conseguiu reunificar toda a região, proclamando-se amir-ul momineen ou comandante dos
fiéis. Mas, nesta altura, já se fazia sentir o crescente apetite de Russos e Britânicos,
comprovado pela estadia em Cabul dos respectivos enviados, Vitkevitch e Burnes. A
aparente vantagem britânica no relacionamento com Dost Mohammad foi anulada pelas
precipitadas exigências do Governador de Calcutá, Lord Auckland que, alarmado com o
apoio Russo a um avanço Persa sobre Herat, procurou impor um acordo extremamente
desfavorável e inaceitável pelo líder afegão. Quando Dost Mohammad se recusou a ceder,
expulsando Burnes e iniciando negociações com os Russos, os Britânicos decidiram invadir
o Afeganistão e reinstalar no poder um dos anteriores pretendentes, Shuja Shah (1803-1809
e 1839-1842), argumentando estar a ajudar um governo legítimo em luta contra a rebelião
interna e a interferência externa. Apesar do sucesso inicial, que conduziu à rendição de Dost
Mohammad, rapidamente tornou-se claro que o novo poder só podia sobreviver com o apoio
financeiro e militar dos Britânicos e, diminuída a ajuda financeira, foi impossível controlar as
sucessivas revoltas lideradas pelos chefes tribais. As dificuldades aumentaram com o
acumular de erros militares, culminando com uma trágica tentativa de retirada em que o
contingente Britânico foi completamente aniquilado. Após o assassinato de Shuja Shah, e
apesar de disporem de capacidade militar para voltar a ocupar Cabul, os Britânicos optaram
por terminar a primeira guerra anglo-afegã (1839-1842)4, desistindo da ocupação. Mas se o
regresso de Dost Mohammad garantiu alguma estabilidade interna, não pode evitar um
progressivo desmembramento do Império Afegão, marcado pelo avanço Britânico no
Baluchistão (1859) e agravado com os tradicionais problemas de sucessão.

4
Um interessante relato das causas e desenvolvimentos da primeira guerra anglo-afegã pode ser consultado em
http://www.geocities.com/Broadway/Alley/5443/afopen.htm.

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Mapa 2
EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS DO AFEGANISTÃO

Fonte: Afghanistan Country Study

O insucesso Britânico na primeira guerra anglo-afegã incentivou a expansão do Império


Czarista na Ásia Central e, passando pelas estepes do Cazaquistão, os Russos dominaram
Taskent e Samarkand (1874). Quando Sher Ali (1863-1866 e 1868-1879), após ter acordado
o traçado da fronteira Norte, pareceu escolher o Império Russo como aliado, os Britânicos,
deram início à segunda guerra anglo-afegã (1878-1880) e invadiram de novo o Afeganistão.
Não repetindo os erros anteriores, procuraram controlar apenas as relações externas do
Afeganistão, o que conseguiriam pelo Tratado de Gandamak (1879), garantindo ainda
alguns territórios estratégicos para a defesa da Índia, nomeadamente o desfiladeiro de
Khyber. Abdicando da política externa, Abdur Rahman (1880-1901) tentou reunificar de novo
as tribos Pastun, destacando-se pela deslocação mais ou menos forçada de parte dos

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Ghilzay para regiões mais a norte e pela frenética perseguição que dirigiu contra
determinadas minorias étnicas, nomeadamente os Hazaras e os Nuristani. Entretanto,
evitando o confronto directo, Russos e Britânicos continuavam a redesenhar o mapa do
Afeganistão até o limitar às suas actuais fronteiras. Se o Império Britânico traçou a linha
Durand (1893), dividindo as tribos Pastun pelos dois lados da nova fronteira, o Império
Russo reconheceu a influência Britânica no Afeganistão, mas aproveitou para conquistar
novos territórios e intensificar o seu domínio a Norte.

A Independência e a Resistência à Modernização

O assassinato de Habibullah (1901-1919), seguido dos tradicionais problemas de sucessão,


possibilitou a ascensão ao poder de Amanullah Shah (1919-1929). Após uma rápida terceira
guerra anglo-afegã, que terminou com a assinatura do Tratado de Rawalpindi, em 19 de
Agosto de 1919, o Afeganistão aproveitou o final da I Guerra Mundial para garantir uma
independência plena, e, embora subsistissem divergências com os Britânicos sobre as
fronteiras criadas pela linha Durand, passaram a controlar a sua política externa. O mútuo
reconhecimento entre Afeganistão e URSS, que conduziu ao rápido desenvolvimento de
relações privilegiadas entre ambos, resultou da necessidade de afirmação dos dois Estados
na cena internacional. Alimentada pelo interesse comum em fazer frente aos Britânicos, a
aliança era reforçada pela necessidade soviética de seduzir as populações islâmicas,
evitando o desenvolvimento no seu território de movimentos contra-revolucionários ou a
actuação destes grupos a partir do exterior. Este relacionamento privilegiado foi de pronto
formalizado por um primeiro Tratado de Cooperação e Amizade, percursor de outros
tratados semelhantes, assinado em Maio de 1921.

Amanullah, inspirado no modelo de Kemal Ataturk, protagonizou também a primeira grande


tentativa de modernizar o Afeganistão, mas as profundas reformas internas que procurou
implementar encontraram forte resistência. O crescente descontentamento entre os líderes
tribais fomentou a rebelião e, na guerra civil que se seguiu, o rebelde Tajique Habibullah
Kalakani, conhecido depreciativamente como Bacha-i Saqao, contou com o apoio Ghilzai
para controlar Cabul, obrigando Amanullah a resignar e a partir para o exílio em Itália. A
liderança Pastun foi restabelecida nove meses depois por Nadir Shah (1929-1933), que
abandonou as reformas e instituiu um governo conservador, dando início a um progressivo
arrefecimento dos laços com a URSS e à normalização das relações com a Grã-Bretanha.
Esta tendência foi mantida durante os primeiros anos do reinado de Zahir Shah (1933-1973),
num período em que, devido à juventude do monarca, a política afegã foi comandada pela
família real e pelo primeiro-ministro, cargo desempenhado inicialmente por Hashim Khan
(1933-1946), tio de Zahir Shah. Hashim procurou afirmar internacionalmente o Afeganistão,
e após uma aproximação à Alemanha, que quase colocou em risco a neutralidade afegã
durante a II Guerra Mundial, estabeleceu relações diplomáticas com a China e os Estados
Unidos.

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Figura 2
REIS E TRIBOS (DURRANI) DO AFEGANISTÃO

Fonte: Adaptado de um original do Afghanmagazine.com

JOGOS ANTIGOS NUMA NOVA ORDEM INTERNACIONAL

O ordenamento entre as potências resultante da II Guerra Mundial alterou profundamente as


bases em que se desenvolvia o “grande jogo”. Se o vazio criado pela retirada Britânica da
região dificilmente poderia ser preenchido durante as décadas seguintes, a independência
da Índia e do Paquistão não se limitou a criar novos jogadores prontos a movimentar as
suas peças no tabuleiro afegão. Estes Estados, na persecução dos seus próprios
interesses, seriam fundamentais para a definição do papel do Afeganistão nas alianças
bipolarizadas que caracterizaram a Guerra Fria. Com a presença das tribos Pastun e Baluch
dos dois lados da fronteira a fomentar a discórdia, a disputa entre Paquistão e Afeganistão
sobre os arbitrários traçados fronteiriços herdados do Império Britânico rapidamente se
transformou num enorme foco de tensão entre os dois Estados. Paralelamente, a Índia
atribuía um importante papel estratégico ao Afeganistão, procurando utilizá-lo como
contrapeso para conter o Paquistão durante os frequentes conflitos entre ambos. O relativo
desinteresse dos EUA, que não atribuíam um valor estratégico especial ao Afeganistão,
impediu o completo restabelecimento do “grande jogo”. Desejosos de conservar o

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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

relacionamento privilegiado que mantinham com o Paquistão e receando que a questão


Pastun se transformasse numa nova Caxemira, os EUA não se opuseram a uma
progressiva integração do Afeganistão na órbita soviética, num processo que se
desenvolveu lentamente a partir dos laços estabelecidos nos anos cinquenta. Iniciada com
acções de charme e propaganda concorrentes com o ajuda norte-americana, a capacidade
da URSS para influenciar o poder afegão foi aumentando progressivamente até assegurar a
dependência económica e militar do Afeganistão em relação ao poderoso vizinho do Norte.

As Opções do “Príncipe Vermelho”

Empenhado em fomentar uma nova série de reformas políticas e sociais, o primeiro-ministro


Mahmoud Khan (1946-1953) foi confrontado com a nova realidade regional e internacional
que caracterizou o pós-guerra mas, apesar de algum auxílio económico recebido do
Ocidente, não conseguiu sensibilizar os EUA a ocupar o lugar dos Britânicos. A resistência
às reformas e o agravar da questão Pastun, em especial após a Loya Jirga5 ter decidido
apoiar a autodeterminação dos Pastun do Paquistão, conduziriam à ascensão ao cargo de
primeiro-ministro de Muhammad Daud (1953-1963), primo do Rei, que rapidamente se
tornaria uma figura incontornável da política afegã. Daud, que representou a ascensão ao
poder de uma nova geração com educação ocidental e favorável à modernização, procurou
fomentar uma nova aproximação aos EUA para garantir o apoio económico e militar
indispensável para atingir os seus objectivos. Mas como os norte-americanos, preocupados
com as consequências da questão Pastun, condicionaram o fornecimento de armas à
adesão do Afeganistão ao Pacto de Bagdade, a que já pertencia o Paquistão, foi impossível
o entendimento com os EUA. Daud, que necessitava desesperadamente de meios militares,
ficava assim dependente da boa vontade soviética e, ao mesmo tempo que aceitava a ajuda
económica dos EUA, investia no desenvolvimento de relações privilegiadas com a URSS em
busca de apoio militar e económico. Seguindo os princípios do “grande jogo”, transformou o
Afeganistão num dos mais importantes pontos de contacto directo entre Leste e Oeste no
final dos anos cinquenta, dando corpo à peculiar política de Daud, que se “sentia mais feliz
quando acendia cigarros norte-americanos com fósforos soviéticos”. Este jogo de influência
seria abalado pelo progressivo deteriorar das relações com o Paquistão, consequência do
agravar da tensão sobre a questão Pastun, que, no início dos anos sessenta, evoluiu até ao
corte de relações diplomáticas e quase conduziu à guerra os dois países. O consequente
encerramento das fronteiras provocou uma crescente dependência do Afeganistão em
relação à URSS, diminuindo a colaboração com o Ocidente e dificultando o escoamento dos
produtos afegãos. A inflação e a inevitável crise económica que se seguiu, o impasse na
resolução da questão Pastun e a habitual reacção interna às reformas modernizadoras,
conjugadas com alguma oposição à aproximação à URSS, estiveram na origem do
afastamento de Daud, levando Zahir Shah a assumir pela primeira vez um papel importante
na governação do país.

5
Reunião dos chefes tribais, tradicionalmente o principal órgão legislativo do país

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Uma Monarquia Quase Constitucional

A afirmação de Zahir Shah é caracterizada pela tentativa de impor uma monarquia


constitucional que limitaria os poderes reais e alargaria a participação na vida política. A
nova Constituição, reconhecendo o papel do Islão e atribuindo à Xaria um papel residual, foi
aprovada por uma Loya Jirga em 1964, mas nunca seria completamente implementada.
Apesar de criar um sistema com duas Câmaras parcialmente eleitas, a nova Constituição
garantiu ao Rei grande parte do poder, vedando aos outros membros da família real a
participação na vida política e no governo. Muito embora a criação de partidos políticos
estivesse prevista na Constituição, o Rei, que nunca pareceu empenhado em abdicar de
qualquer dos poderes que detinha, não procedeu à promulgação da respectiva lei, o que
não impediu uma crescente agitação política provocada pela organização dos oposicionistas
em grupos mais ou menos clandestinos.

Entre os principais grupos oposicionistas que se desenvolveram durante os anos sessenta,


e que viriam a desempenhar um papel decisivo durante as décadas seguintes, o mais
importante foi o Hezb-e-Democratic-e-Khalq ou Partido Democrático do Povo (PDPA),
fundado em Janeiro de 1965. Agrupando inicialmente diversos sectores da esquerda afegã,
que assim conseguiram assegurar representação parlamentar, rapidamente se fragmentou
em diversas facções, profundamente divididas por desavenças pessoais e ideológicas,
nomeadamente pelo afastamento entre a URSS e a China. Estas facções passaram a ser
conhecidas pelos nomes dos jornais que criaram e que, apesar de rapidamente proibidos
pela monarquia, contribuíram para divulgar as opiniões comunistas. O Parcham (bandeira) e
o Khalq (povo ou massas), de inspiração soviética, liderados respectivamente por Karmal e
Taraki, partilhavam a mesma base ideológica e diversos pontos de vista comuns, mas
divergiam nos meios a utilizar para implementar a revolução. Sem um traço étnico vincado
mas com uma proeminente presença das elites Pastun, o que possibilitou uma progressiva
influência entre os oficiais do exército afegão, o grupo de Karmal era mais moderado e
essencialmente urbano, sendo relativamente tolerado pelo regime monárquico. Não
gozando desta complacência e com uma menor capacidade de sedução nos meios urbanos,
o Khalq reunia uma facção mais radical e decidida a implementar a revolução popular no
Afeganistão. Enquanto procuravam assegurar o apoio das populações mais desfavorecidas
das diferentes minorias étnicas, desenvolviam uma verdadeira agitação popular que originou
muitas vezes reacções violentas nos meios mais tradicionalistas. O sholai-jaweid (chama
eterna), porta-voz da ideologia Maoista, inspirava diversos grupos ainda mais radicais,
implantados especialmente nos meios universitários e entre os Hazaras. Sem que uma
organização comum fosse criada, os grupos maoistas rapidamente se tornaram o alvo
preferencial dos partidários de um Estado Islâmico, conhecidos por Ikhwanis, que,
inspirados pelos princípios da organização egípcia Muslim Brotherhood, se começavam a
organizar na Universidade de Cabul para formar a Jamiat-e-Islami ou Associação Islâmica.

Apesar das eleições de 1965 e 1969, o Parlamento nunca desempenhou um papel


importante no desenvolvimento de um novo sistema político, e a acção de Zahir Shah que,
incapaz de fazer frente ao aumento da corrupção e à degradação da situação económica, se
limitava a mudar consecutivamente de primeiro-ministro, não conseguia evitar o progressivo
enfraquecimento do regime. Se as difíceis relações entre os diversos grupos oposicionistas

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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

não possibilitavam uma acção comum contra o poder instituído, as confrontações entre eles,
nomeadamente os violentos tumultos estudantis, contribuíram para deteriorar a situação
política e criar um clima intimidatório entre as elites afegãs. Quando o descontentamento
nas forças armadas já era evidente, pois a formação quase exclusiva na URSS possibilitara
uma crescente influência Parcham, um período de dois anos consecutivos de seca, no início
dos anos setenta, provocaram o alastrar da fome e conduziram a um verdadeiro descalabro
económico.

A República Nacionalista de Daud

O crescente descontentamento criou as condições ideais para um regresso de Muhammad


Daud (1973-1978) à cena política afegã. Dando corpo a uma ambição congelada pela
proibição constitucional de 1964, o General Daud apelou ao imenso prestígio que mantinha
entre as Forças Armadas, aproveitando uma viagem de Zahir Shah ao estrangeiro para
derrubar a monarquia. Daud liderou golpe de Estado de 17 de Julho de 1973, executado por
um grupo de oficiais maioritariamente Parcham, cujo apoio fora assegurado graças ao
relacionamento privilegiado que mantinha com Karmal, filho de um dos seus colaboradores
mais próximos. Após o golpe, Daud passou a chefiar o governo provisório e o conselho da
revolução, preparando a aprovação por uma Loya Jirga de uma Constituição que,
estabelecendo uma república nacionalista e de partido único, lhe garantia um poder quase
absoluto. Quando a nova Constituição foi aprovada, em Janeiro de 1977, já Daud, obcecado
em consolidar a sua posição, tinha excluído da esfera do poder todos os que via como
potenciais ameaças, tarefa iniciada com o afastamento dos Parcham que o tinham ajudado
a conquistar o poder.

Decidido a evitar a repetição dos erros do passado, Daud imprimiu uma nova dinâmica à
política externa afegã. Apesar de não excluir um relacionamento privilegiado com a URSS,
tentou fortalecer os laços com a Índia, procurando assegurar treino militar compatível com o
armamento fornecido por Moscovo, mas evitando a propagação ideológica associada à
formação fornecida na URSS. O desenvolvimento das relações com o Irão, tentando
incrementar novas rotas comerciais e assegurar o auxílio económico indispensável para
promover uma nova vaga de modernização, que foi progressivamente alargado a outros
países muçulmanos da região, conduziria a um surpreendente normalizar das relações com
o Paquistão, patrocinado conjuntamente pelo Irão e pelos EUA em 1977. As escolhas de
Daud, especialmente a nova orientação da política externa afegã, não coincidiram com as
expectativas geradas nos dirigentes soviéticos que, animados pela participação parcham no
governo provisório, esperavam que o “Príncipe Vermelho” reavivasse a aliança preferencial
com Moscovo. Procurando manter alguma capacidade para influenciar a política afegã, a
URSS continuou a assegurar a maior parte do apoio externo recebido por Cabul, não só a
nível económico como militar, mesmo quando as opções de Daud desagradavam
profundamente aos líderes soviéticos. Apesar do mal-estar se ter acentuado após o
agendamento para meados de 1978 de uma visita de Daud a Washington, não é possível
provar a participação directa da URSS na revolução Saur. Mas se Moscovo, não promoveu

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nem participou activamente na queda de Daud, desempenhou um importante papel no


desenrolar dos acontecimentos, já que patrocinara, em 1977, a reunificação do PDPA, sob a
liderança de Taraki.

A incapacidade para impulsionar decisivamente a economia Afegã contribuiu para o


deteriorar da situação interna, mas a instauração de um regime autoritário e obcecado pela
consolidação no poder, de que o afastamento dos Parcham fora o primeiro indício,
desempenhou um papel fundamental na progressiva erosão da base de apoio de Daud. Um
crescente movimento repressivo, que se revelou especialmente feroz contra os movimentos
islâmicos, vistos como a principal ameaça ao regime, enviou para as prisões grande parte
dos opositores. Obrigados a desenvolver a oposição a partir do exílio, os activistas que se
refugiaram no Paquistão durante este período, nomeadamente Burhanuddin Rabbanni,
Gulbuddin Hekmatyar e Ahmad Shah Massud, foram recebendo um apoio moderado de
Islamabad, que os considerava um importante trunfo para o possível reacender da questão
da autodeterminação Pastun.

A situação política degradou-se muito rapidamente após o assassinato do ideólogo parcham


Mir Akbar Khyber, em Abril de 1978, que nunca viria a ser devidamente esclarecido. Os
dirigentes do PDPA, convencidos que ordem para a eliminação de Khyber partira dos
serviços secretos afegãos, transformaram o seu funeral numa grande manifestação contra o
poder instituído, agravando a tensão social em Cabul. Daud, alarmado com uma ameaça
comunista que até aí minimizara, ordenou de imediato a prisão dos principais líderes do
PDPA e tentou iniciar uma nova purga nas forças armadas. Esta nova onda repressiva
incentivou o General Abdul Qadir, um influente parcham, a liderar o golpe militar que
consumou a Revolução Saur e que, segundo versão oficial posteriormente difundida pelo
PDPA, teria sido dirigido por Hafizullah Amin a partir do local onde se encontrava em prisão
domiciliária. A morte de Daud, eliminado juntamente com grande parte da família e alguns
dos colaboradores mais próximos, representou o fim do longo domínio dos Durrani,
possibilitando a instauração de um regime comunista controlado pelo PDPA e colocando o
Afeganistão na completa dependência da União Soviética.

REGRESSO AO GRANDE JOGO NA ÓRBITA DA UNIÃO SOVIÉTICA

Numa altura em que as relações entre os EUA e a URSS começavam a esfriar, após um
período de desanuviamento, o emergir da questão afegã preparava-se para ocupar um
papel central nesse relacionamento. A instauração da República Democrática do
Afeganistão aumentou o apetite das superpotências que, mais do que pelos recursos
naturais próprios, nomeadamente o urânio, foram atraídos pela valorização geo-estratégica
do país num período de grande instabilidade regional. A incorporação do Afeganistão na
zona de influência da URSS, facilitada pela proximidade geográfica, conduziu à progressiva
assimilação de uma excessiva valorização da sua importância pelos governantes soviéticos,
e Moscovo procurou aproveitar os laços ideológicos e a fraqueza dos novos líderes afegãos
para maximizar um investimento de muitos anos. Os EUA, que durante muitos anos

214
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

prestaram algum apoio económico ao Afeganistão, não tinham sido tentados a alterar esse
posicionamento após o derrube Zahir Shah, pois a “já considerável influência de Moscovo
apenas poderia aumentar marginalmente com o golpe de Daud”6. Como a política externa
do Afeganistão durante a República incentivou as expectativas de manter a estabilidade
regional e assegurar a independência afegã, principais ambições dos governantes norte-
americanos, foi maior o choque provocado pela instauração de um regime claramente pró-
soviético e que colidia frontalmente com os objectivos dos EUA. O interesse norte-
americano pela evolução dos acontecimentos aumentou dramaticamente quando deixou de
contar com o Irão como aliado, assumindo o Afeganistão um papel central na definição da
política externa dos EUA para a região. Contando com o Afeganistão como aliado, a URSS
aproximava-se perigosamente dos estratégicos portos dos mares quentes e das importantes
rotas do petróleo do Golfo Pérsico, fornecendo a motivação necessária a um maior
empenhamento norte-americano, que a posterior ocupação soviética só poderia incentivar.

O tabuleiro afegão também atraía outros jogadores, em especial os que se sentiam


ameaçados com a desestabilização da região. O crescente clima de instabilidade no Irão,
onde as forças islâmicas comandadas pelo Ayatollah Khomeini conseguiam assegurar o
poder no início de Fevereiro de 1979, desempenharia um papel fundamental para o
desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão. Criando um clima de incerteza e
ameaçando contagiar toda região com um enorme fervor religioso, a revolução iraniana não
só inspirou as primeiras revoltas populares contra o regime comunista afegão, como
condicionou o comportamento de todos os outros actores, regionais ou globais. O novo
regime de Teerão condenou a invasão soviética e apoiou empenhadamente os movimentos
que combatiam o regime de Cabul, em especial os grupos xiitas, contribuindo para aumentar
o interesse pela questão afegã de uma Arábia Saudita preocupada com a possível
exportação da revolução iraniana. Para o Paquistão, considerando as relações preferenciais
tradicionalmente existentes entre a Índia e a URSS, a instauração de um regime comunista
no Afeganistão era inaceitável, pois não só impedia a concretização da recente aproximação
entre os dois países, como o colocava entre duas frentes que, se conjugadas, podiam
constituir uma séria ameaça à independência paquistanesa. Aproveitando os laços tribais e
o crescente número de refugiados que chegavam ao seu território, o Paquistão procurou
incentivar a resistência afegã, apoiando activamente os opositores ao novo regime, papel
que seria reforçado à medida que aumentava o interesse norte-americano. Vendo na
invasão do Afeganistão uma ameaça à estabilidade na Ásia, a China aproveitou a fronteira
comum para apoiar os rebeldes, pelo menos até os soviéticos ocuparem o corredor de
Wakhan, em Julho de 1981, ao mesmo tempo que colocava a retirada das tropas soviéticas
entre as principais questões a resolver para assegurar uma normalização das relações com
a URSS. A Índia, pelo contrário, não podia esquecer os seus objectivos estratégicos no
Afeganistão e, como principal aliada não comunista da URSS, limitou as críticas a tímidos
apelos para a retirada das tropas soviéticas e para uma resolução política do conflito.

6
Memorando dirigido a Henry Kissinger após o golpe de Daud por Harold H. Saunders e Henry R. Appelbaum,
do National Security Council, disponível em http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB59/zahir15.pdf.

215
Informação Internacional

Mapa 3
O MUNDO VISTO DA URSS

Fonte: Adaptado de um original do Atllas Strategique

A Revolução Saur e a Dinâmica Khalq

Após o golpe de Estado de 27 de Abril de 1978 Noor Mohammad Taraki (1978-1979)


passou a chefiar os principais órgãos da República Democrática do Afeganistão, Karmal
ocupou a vice-liderança e os restantes cargos dirigentes foram divididos entre as duas
facções do PDPA. As rivalidades pessoais e as diferentes visões sobre o ritmo a imprimir à

216
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

revolução Saur rapidamente começaram a provocar atritos na liderança afegã, com Taraki,
que procurava impor uma linha mais radical, a enfrentar a oposição dos moderados
Parcham. Karmal, colocado como embaixador na Checoslováquia na sequência da breve
luta entre as duas facções, foi posteriormente acusado de liderar uma conspiração contra
Taraki, sendo obrigado a permanecer no exterior até à invasão soviética. Enquanto Amin
começou a aproveitar as constantes hesitações de Taraki para reforçar o poder que detinha,
controlando uma importante parte dos meios repressivos do Estado, os dirigentes Parcham,
transformados nos principais alvos das intermináveis purgas internas no PDPA, ocupavam
os poucos lugares livres nas prisões afegãs.

Assegurada a predominância Khalq, a tentativa de implementar rapidamente profundas


reformas sociais sem considerar a especificidade da sociedade afegã provocou sucessivas
ondas de rejeição da maioria da população, levando diversos líderes religiosos a declarar
uma jihad contra o regime comunista. A reforma educativa, ao pretender instituir uma
alfabetização alargada da população, obrigando as mulheres a deixar os espaços que
tradicionalmente lhe estavam reservados e procurando implementar escolas mistas,
transformou-se numa importante fonte de conflitos. A abolição de outros hábitos tribais,
nomeadamente o dote de casamento, importante fonte de rendimentos para muitas das
famílias mais desfavorecidas, contribuiu para o alastrar do descontentamento,
especialmente nos meios rurais, onde uma sociedade tipicamente feudal era ainda
confrontada com uma reforma agrária que punha em causa os relacionamentos tribais.
Contando com uma base de apoio extremamente reduzida e quase exclusivamente urbana,
a nova liderança comunista enfrentou uma escalada de rebeliões e revoltas, e a sistemática
utilização da violência, longe de resolver o problema, só aumentou o fosso entre o PDPA e a
maioria da população.

As revoltas atingiram um ponto crítico em Março de 1979 quando, indignados com a reforma
educativa e inspirados pelo exemplo da revolução religiosa que se desenvolvia no vizinho
Irão, os rebeldes tomaram temporariamente Herat, assegurando o apoio de parte do
exército afegão estacionado na região para perseguir e eliminar muitos dos dirigentes
comunistas e dos conselheiros soviéticos. O alarme provocado por esta acção contribuiu
para aumentar o clima de desconfiança no interior do PDPA, incentivando as purgas
internas. A incapacidade das forças governamentais para controlar a situação estaria na
origem de sucessivos pedidos a Moscovo para aumentar o apoio militar, com Taraki e Amin
a solicitarem repetidamente aos líderes do Kremlin o envio de tropas do Exército Vermelho
para esmagar a rebelião7. Argumentando que a utilização de militares da URSS seria
contraproducente a nível interno, pois desacreditaria os governantes afegãos perante o
próprio povo, mas também externamente, porque seria aproveitada por outros países para
justificar o apoio às forças anticomunistas afegãs, esta pretensão seria sempre negada
pelos mesmos líderes soviéticos que a colocariam em prática nove meses mais tarde.

7
Uma interessante série de documentos relacionados com a invasão soviética do Afeganistão pode ser
consultada em http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.

217
Informação Internacional

Aproveitando a viagem de Taraki a Cuba, onde participara na VI Conferência dos Países


Não-alinhados, Leonid Breznev solicitou a sua presença em Moscovo a 10 de Setembro de
1979, aproveitando o encontro para comunicar o descontentamento da liderança soviética
com o rumo demasiado radical que tinha tomado a revolução Saur. Brejnev apelou então à
unidade no interior do PDPA, salientando os perigos que corria o processo revolucionário
com a concentração excessiva de poder nas mãos de Amin. Pressionado por Moscovo,
Taraki pareceu finalmente decidido a agir, especialmente após receber informações dos
serviços secretos afegãos sobre um golpe que Amin teria preparado durante a sua
ausência. Argumentando que fora ele o verdadeiro alvo da conspiração, Amin recusou
obedecer às ordens de Taraki e exigiu a demissão de vários ministros, criando um clima de
suspeição inultrapassável entre os dois. Na verdade, Amin já iniciara o golpe de Estado em
que afastou definitivamente Taraki e garantiu o poder absoluto e, isolando o líder histórico
do PDPA na sua própria residência, tornou infrutíferos os derradeiros esforços dos
soviéticos para evitar nova confrontação entre os Khalq.

Conhecedor da precariedade da nova liderança, Hafizullah Amin (1979) aproveita ao


extremo a poderosa máquina repressiva que desenvolvera para consolidar o seu domínio.
Garantida a eliminação física de Taraki, intensificam-se as perseguições no interior do
PDPA, ao mesmo tempo que os cargos dirigentes do Estado e do Partido são distribuídos
pelos seus familiares directos e apoiantes próximos. Durante os três meses e meio em que
governou o Afeganistão, Amin, que já não podia confiar nos líderes soviéticos, desenvolveu
diversos contactos nos meios hostis a Moscovo. Consciente das dificuldades que
resultariam de uma nova ofensiva islâmica, iniciou contactos com alguns dos líderes da
oposição e, recuperando a tradicional postura afegã de relacionamento com as
superpotências, terá também iniciado contactos com representantes norte-americanos e
paquistaneses, procurando avaliar as possibilidades de alterar profundamente a política
externa afegã. Esta ameaça de realinhamento externo, que causou enormes preocupações
em Moscovo num período conturbado para a estabilidade regional, conjugada com a
incapacidade demonstrada pela KGB para concretizar as tentativas para afastar Amin,
contribuíram decisivamente para que os líderes soviéticos ordenassem a invasão do
Afeganistão. Só assim foi possível aos soviéticos eliminar Amin e, atribuindo todos os seus
cargos a Babrak Karmal, dar início à liderança Parcham e a uma desastrosa presença militar
soviética que duraria dez anos e desempenharia um importante papel na desintegração da
própria URSS.

A Invasão Soviética

Apesar do entusiasmo inicial que provocou em Moscovo, a Revolução Saur rapidamente se


transformou numa fonte de crescente preocupação para os líderes soviéticos. Apesar do
crescente apoio militar e económico da URSS, as constantes confrontações pessoais e o
acentuar do radicalismo impediam a constituição de uma base de apoio estável à
governação comunista, e a incapacidade do PDPA para controlar a situação com os seus
próprios meios tornou-se evidente para o Kremlin após a revolta em Herat. Mas se, em
Março de 1979, os dirigentes soviéticos consideravam “inadmissível” (Andropov) o envio de
tropas para resolver um “assunto interno do Afeganistão” (Gromyko), até porque “deitaria a

218
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

perder tudo o que fora conseguido com imensa dificuldade, particularmente a détente...”
(Gromyko)8, algo terá mudado até ao final desse ano para justificar a invasão de Dezembro.

A afirmação de Hafizullah Amin como líder máximo do país foi, a nível interno, a principal
alteração que justificou a acção militar da URSS. Moscovo temia as consequências do
excessivo radicalismo dos dirigentes locais e, em vez de promover a implementação rápida
do comunismo, procurava assegurar uma influência duradoura no Afeganistão, opção
definitivamente posta em causa com a ascensão da Amin. Apesar de importantes
responsáveis militares soviéticos terem começado a estudar as possibilidades de colocar o
Exército Vermelho no terreno logo após a rebelião em Herat, uma intervenção militar só
começa a ganhar forma quando, a 1 de Setembro de 1979, a KGB elabora um memorando9
responsabilizando Amin pela evolução dos acontecimentos no Afeganistão. As acções
enumeradas no relatório, sugeridas por Breznev a Taraki durante o derradeiro encontro
entre ambos, transformaram-se nos principais objectivos imediatos da política afegã da
URSS e, constatada a incapacidade da KGB para promover a eliminação de Amin, estão na
origem da invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas.

Apesar de parecer hoje claro que a KGB transmitiu à liderança soviética uma visão
exagerada dos perigos de uma possível alteração radical na orientação da política afegã,
ainda não é possível confirmar se existiu alguma ligação entre Amin e a CIA, ou se essas
alegações resultaram apenas do trabalho da KGB para justificar a invasão. Ao contrário de
quase todos outros dirigentes do PDPA, incluindo Taraki, que já era informador no tempo da
NKVD, Amin nunca terá sido um colaborador directo da KGB e, tendo estudado nos EUA,
desenvolvera por diversas vezes contactos com importantes sectores não comunistas. O
maquiavélico comportamento de Amin após o golpe de Setembro, aparentemente ditado
pelas enormes ambições pessoais, só contribuiu para aumentar as suspeitas dos dirigentes
soviéticos sobre as suas verdadeiras intenções. Ao mesmo tempo que difundia a ideia de
que o afastamento de Taraki contava com o apoio dos líderes soviéticos, comprometendo
internamente a URSS com o seu regime, Amin acusava o embaixador soviético de colaborar
com Taraki numa tentativa para o assassinar, obrigando Puzanov a deixar o país, em
Novembro de 1979, após ter sido considerado persona non grata. Amin, acreditando ainda

8
“Meeting of the Politburo of the CC of CSPU, March 17, 1979”; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War
International History Project, http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.
9
Referido por Vasily Mitrokin, célebre arquivista da KGB refugiado no Ocidente, em ”The KGB in Afghanistan”,
pag. 52, ( http://cwihp.si.edu/pdf/wp40.pdf ) o memorando sugere:
“1-Deve ser encontrado um meio para remover Amin da liderança, pois ele é culpado de seguir uma má política
interna. Deverá ser responsabilizado pessoalmente pelas exageradas medidas punitivas e pelo falhanço das
políticas internas.
2-Taraki deverá ser persuadido de que o estabelecimento de um governo de coligação democrática é essencial,
cabendo a liderança ao PDPA, incluindo os Parcham. Representantes religiosos e tribais de inclinação patriótica
e membros das minorias nacionais e das elites intelectuais deverão ser integrados no governo.
3-Os prisioneiros políticos ilegalmente presos, em especial os Parcham, deverão ser libertados e reintegrados.
4-Deverá ser promovido um encontro não oficial com Babrak Karmal para discutir a política interna no
Afeganistão....”.

219
Informação Internacional

na possibilidade de assegurar o apoio do Kremlin ou movido por qualquer objectivo


inconfessável, solicitou em Dezembro, e por diversas vezes, o envio de tropas soviéticas,
justificando o seu pedido com o Tratado de Amizade e Cooperação assinado em Moscovo
um ano antes. Mas, tal como no século XIX, quando os contactos entre Dost Mohammad e
Vitkevitch provocaram a reacção Britânica, a potência dominante não estava disposta a
tolerar qualquer ameaça de “namoro com o adversário”, e as tropas enviadas pela URSS
para Cabul tinham como objectivo assegurar o afastamento de Amin e a instauração de um
poder mais dócil e fiel.

A ideia de enviar tropas soviéticas para o Afeganistão ganhou apoiantes no Kremlin devido à
acção de Yuri Andropov, ao tempo responsável pela KGB. Numa nota pessoal10 que enviou
a Breznev nos primeiros dias de Dezembro, Andropov salientava a ameaça que Amin
representava para a manutenção da influência soviética no Afeganistão, sugerindo o apoio a
uma nova reunificação do PDPA, liderada por Karmal e Sarwari, e a utilização de todos os
meios ao dispor da URSS, incluindo a utilização das forças armadas, de forma a garantir o
afastamento de Amin. A proposta, que contou com o decisivo apoio de Dimitri Ustinov,
Ministro da Defesa, salientava, entre outros, o perigo que resultaria de uma possível
instalação de mísseis Pershing no Afeganistão, ameaçando todo o Sul da União Soviética e
o centro espacial de Baikonur ou as consequências do apoio norte-americano à constituição
de um novo Império Otomano, que poderia vir a incluir parte da URSS11. Apesar da
oposição generalizada dos comandos militares12, justificada pela tradicional resistência
afegã à ocupação estrangeira e pela desastrosa experiência dos norte-americanos no
Vietname, mas também pelo enfraquecimento que tal movimento implicaria para as forças
soviéticas estacionadas na Europa e na fronteira com a China, as desvantagens de tal
acção para a política externa soviética foram negligenciadas. Prevaleceu a visão do
Afeganistão a fugir ao controlo soviético transmitida pela KGB, uma catástrofe que teria de
ser impedida pela participação dos militares soviéticos na substituição de Amin por Karmal,
acção que viria a ser aprovada por unanimidade numa reunião restrita do Politburo, a 12 de
Dezembro, em que participaram apenas Breznev, Suslov, Andropov, Ustinov e Gromyko.

A evolução do relacionamento entre as superpotências também influenciou a decisão dos


líderes soviéticos, pois os ventos já não sopravam a favor da détente no final de 1979.
Apesar da assinatura do tratado SALT II por Jimmy Carter e Leonid Brejnev, a 18 de Junho,
a controvérsia suscitada nos EUA em torno da sua ratificação, em parte motivada pela perda
das estações de controlo instaladas no Irão, já pronunciava a confrontação sobre os
euromísseis, iniciada com a decisão da NATO de instalar vectores de médio alcance no
território europeu que, curiosamente, foi tomada a 12 de Dezembro de 1979. A crescente
instabilidade regional provocada pela revolução iraniana, que fazia Moscovo temer um

10
“Personal memorandum, Andropov to Breznev”; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International
History Project (n.d.), http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/r7.pdf.
11
Lyakhovsky, Alexander; The Tragedy and Valor of Afghan, GPI Iskon, Moscow, 1995, pp.109-112.
12
Kornienko, Georgy M.; The Cold War: Testimony of a Participant, Moscow, Mezhdunarodnye otnosheniya,
1994, pp. 193-195.

220
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

avanço da influência islâmica nas repúblicas soviéticas da Ásia Central, agravou-se em


Novembro, quando o despoletar da crise dos reféns da embaixada dos EUA em Teerão
tornou imprevisível a reacção norte-americana. Vendo um sinal de fraqueza na indecisão de
Washington ou tentando antecipar-se a uma possível acção dos EUA no Irão, após a qual
qualquer reacção militar soviética seria vista pelos norte-americanos como uma resposta
directa, os dirigentes soviéticos optaram por intervir militarmente no Afeganistão. Mas, ao
mesmo tempo que assegurava o domínio sobre a sua zona de influência, maximizando a
segurança, a potência continental aproximava-se mais das águas quentes do Índico do que
alguma vez no passado, transformando-se numa ameaça demasiado importante para poder
ser ignorada por paquistaneses e norte-americanos.

A Intervenção dos EUA

O domínio regional dos EUA, baseado no relacionamento privilegiado com o Irão, a Arábia
Saudita e o Paquistão, não foi posto em causa com a chegada dos comunistas ao poder no
Afeganistão. Apesar de instalar no poder um governo claramente pró-soviético, a revolução
Saur não provocou uma alteração imediata na definição da política norte-americana para a
região, que continuou focada na evolução da situação política no Paquistão e no Irão. A
inquietação gerada pelas reformas radicais introduzidas por Taraki só começou a preocupar
os EUA em Fevereiro de 1979, quando o embaixador Adolph Dubs foi morto durante um
ataque da polícia afegã para o resgatar ao grupo de maoistas xiitas que o raptara. Este
grave incidente criou um clima de tensão que afectou decisivamente as relações entre os
EUA e o Afeganistão, levando o Congresso a ameaçar cortar toda a ajuda económica que
ainda prestava a Cabul.

Apesar de terem reduzido consideravelmente o apoio ao Paquistão após o golpe de Estado


de 1977, preocupados com o programa nuclear paquistanês e as constantes violações dos
direitos humanos perpetradas pelo regime do General Mohammad Zia-ul-Haq, os EUA
recuperaram progressivamente o relacionamento privilegiado com Islamabad logo que o
equilíbrio regional foi abalado pela revolução Iraniana. A ascensão de Khomeini e a
instauração de um regime profundamente anti-americano no Irão, privando os EUA de um
aliado essencial para travar potenciais investidas da URSS para Sul, acentuaram a
percepção desta ameaça, contribuindo para aumentar a preocupação com a influência
soviética no Afeganistão. O interesse norte-americano aumentou consideravelmente e,
apesar dos desmentidos oficiais, os EUA começaram a apoiar os opositores ao regime de
Cabul ainda antes da intervenção militar da URSS no Afeganistão.

Durante o mandato de Jimmy Carter, a formulação da política externa norte-americana foi


marcada pelo claro contraste de opiniões entre o secretário de Estado, Cyrus Vance, e o
conselheiro para os assuntos de segurança, Zbigniew Brzezinski. Se Vance privilegiava o
diálogo e o desanuviamento entre as superpotências, Brzezinski demonstrava uma maior
tendência para o confronto e uma enorme preocupação com as manifestações do crescente
expansionismo soviético e, à medida que aumentavam as dificuldades no relacionamento
Leste-Oeste, as opiniões do conselheiro ganharam mais peso na definição da estratégia
norte-americana. Seguindo as sugestões de Brzezinski, o presidente Carter assinara em

221
Informação Internacional

Julho de 1979 a primeira directiva que autorizava a assistência clandestina aos rebeldes,
ciente de que tal acção aumentava a probabilidade de uma intervenção militar da URSS no
Afeganistão13. Logo que esta se concretizou, Brzezinski enviou uma nota ao Presidente
Carter, que a seguir se transcreve, traçando o cenário que presidiria à abordagem da
questão afegã pelos norte-americanos enquanto se manteve a presença soviética.

NOTA DE BRZEZINSKI PARA O PRESIDENTE CARTER, 26 DE DEZEMBRO DE 1979


...Como lhe mencionei à cerca de uma semana, estamos agora a enfrentar uma crise regional.
Tanto o Irão como o Afeganistão sofrem com a agitação, e o Paquistão está num clima de
instabilidade interna e de apreensão externa.
Se os soviéticos tiverem sucesso no Afeganistão, e ...[apagado] o velho sonho de Moscovo de ter
um acesso directo ao Oceano Índico terá sido concretizado. Historicamente, os britânicos
providenciaram uma barreira a esse objectivo, com o Afeganistão a funcionar como Estado-
tampão. Assumimos esse papel em 1945, mas a crise Iraniana levou ao colapso do equilíbrio de
poder no Sudoeste Asiático e poderá conduzir à presença soviética até aos golfos Arábico e de
Oman. Neste contexto, a intervenção soviética no Afeganistão constitui um importante desafio para
nós, tanto a nível interno como a nível externo. Apesar do Afeganistão se poder vir a transformar
num Vietname soviético, os efeitos iniciais da intervenção poderão ser-nos desfavoráveis devido
às seguintes razões:
Internas:
A – A intervenção soviética é susceptível de estimular os apelos para uma acção militar mais
imediata dos EUA no Irão. A “determinação” soviética contrastará com a nossa contenção, que
deixará de ser rotulada de prudente para passar a ser crescentemente considerada como tímida;
B – Simultaneamente, a instabilidade regional poderá tornar a resolução da questão iraniana mais
difícil para nós, e poderá levar-nos a uma confrontação cara-a-cara com os soviéticos;
C – É provável que os acordos SALT sejam afectados, talvez de forma irreparável, devido à
agressividade militar soviética ter sido tão chocante;
D – Genericamente, a nossa abordagem do relacionamento com os soviéticos será atacada tanto
à direita como à esquerda.
Internacionais:
A – O Paquistão, a menos que possamos projectar confiança e poder na região, ...[apagado];
B – Com o Irão instável, não existirá uma muralha firme no Sudoeste asiático para travar o avanço
soviético para o Oceano Índico;
C – Os Chineses irão por certo perceber que a determinação soviética no Afeganistão e no
Camboja não é restringida pelos EUA.

Factores compensatórios
Existirão, por certo, alguns factores favoráveis:

A – A opinião pública mundial poderá sentir-se ultrajada com a intervenção soviética. Os países
muçulmanos ficarão preocupados e poderemos estar em posição para explorar isso;

13
Ver entrevista com Zbigniew Brzezinski em Le Nouvel Observateur nº 1732, 15 a 21 Janeiro de 1998, p. 76,
disponível em http://archives.nouvelobs.com/ .

222
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

B – Existem já 300 000 refugiados afegãos no Paquistão e podemos acusar os soviéticos de


provocarem um sofrimento humano massivo. Este sentimento irá por certo aumentar, e as acções
patrocinadas pelos soviéticos no Camboja já se encarregaram de o acentuar.
C – Existirá uma maior atenção entre os nossos aliados para a necessidade de fazer mais pela sua
própria defesa.
Um Vietname soviético?
Contudo, não deveremos estar demasiado esperançados em o Afeganistão se transformar num
Vietname para os soviéticos:
A – As guerrilhas estão mal organizadas e pobremente dirigidas;
B – Não têm um santuário, um exército organizado e um governo central – tudo o que existia no
Vietname do Norte;
C – Têm um apoio internacional limitado, em contraste com a enorme quantidade de armas que os
vietnamitas receberam da URSS e da China;
D – É provável que os soviéticos procurem agir decididamente, ao contrário dos EUA, que
seguiram no Vietname uma política para controlar o inimigo. Consequentemente, os soviéticos
poderão ter capacidade para se afirmar efectivamente e, independentemente das questões morais,
na política internacional nada garante melhor o sucesso que o próprio sucesso.
O que está para ser feito?
Seguem-se alguns pensamentos preliminares necessitando de uma discussão mais
pormenorizada:
A – É essencial que a resistência afegã continue. Isto significa mais dinheiro e armas para os
rebeldes, assim como algum aconselhamento técnico;
B – Para tornar isso possível devemos assegurar o Paquistão e encorajá-lo a apoiar os rebeldes.
Isto requer uma revisão da nossa política para o Paquistão, assegurando-lhe mais garantias e
maior apoio militar;
C – Deveríamos encorajar os chineses a também apoiarem os rebeldes;
D – Deveríamos desenvolver, em concertação com os países islâmicos, campanhas de
propaganda e de apoio secreto aos rebeldes;
E – Deveríamos informar os soviéticos de que as suas acções estão a colocar em perigo os
acordos SALT e irão influenciar a visita de Brown à China, uma vez que os Chineses estarão
indubitavelmente mais preocupados com as implicações para eles próprios das atitudes soviéticas
tão perto das suas fronteiras. A menos que digamos que os soviéticos não levarão muito a sério as
nossas “manifestações de preocupação”, com o efeito que isso implica nas nossas relações, sem
terem alguma vez sido confrontados com a questão de saber se o seu aventureirismo local vale os
danos causados a longo prazo nas relações EUA-URSS;
F – Finalmente, deveríamos considerar apresentar as acções soviéticas no Afeganistão na ONU
como uma ameaça à paz.
http://www.cnn.com/SPECIALS/cold.war/episodes/20/documents/brez.carter/

Domínio Parcham pela Força Soviética

Os líderes soviéticos, derrubando o despótico regime de Amin e instalando no poder Babrak


Karmal (1979-1986), pretendiam reunificar o PDPA e assegurar um regime mais moderado,

223
Informação Internacional

capaz de pôr fim às constantes disputas no interior do partido e abrir o regime à participação
das correntes políticas e religiosas não comunistas. Karmal, no entanto, cedeu ao tradicional
desejo de vingança afegão, e o ajuste de contas com os Khalq, responsabilizados pelos
erros do passado recente, rapidamente se transformou no principal objectivo do seu regime.
Tal postura inviabilizou uma vez mais a criação de uma frente comum contra a oposição
islâmica radical, deixando para os militares soviéticos todo o esforço de guerra contra
diversos grupos armados em ascensão. Com uma base de apoio extremamente reduzida,
dominando apenas os principais aglomerados populacionais e as vias de comunicação entre
eles, o governo de Karmal nunca teve capacidade para controlar efectivamente todo o
território, e nem a forte presença militar soviética teve capacidade para impedir a actuação
de grupos de guerrilheiros apoiados do exterior e contando com um apoio considerável entre
a população.

Em vez de contribuir para estabilizar a situação, a presença das tropas soviéticas reacendeu
a tradicional resistência afegã à ocupação estrangeira e despertou o apoio externo aos
rebeldes. Mal equipados e pouco preparados para enfrentar uma guerra de guerrilha, os
militares enviados por Moscovo não só eram alvo de constantes emboscadas, sofrendo
pesadas baixas, como inspiravam o recrutamento de voluntários, que chegavam de todo o
mundo islâmico, dispostos a combater na jihad contra os invasores infiéis um pouco por todo
o mundo islâmico. Com o Afeganistão a ocupar uma posição central no reacender da Guerra
Fria, a oposição islâmica refugiada no exterior passou a receber um crescente fornecimento
de armamento norte-americano que, conjugado com o apoio logístico do Paquistão e o
poderoso impulso financeiro da Arábia Saudita, possibilitou a progressiva transformação de
grupos mal organizados e mal armados em temíveis combatentes mujahidin. Este apoio,
desenvolvido em grande parte pela acção dos serviços secretos, nomeadamente pela
colaboração entre a CIA e o ISI14, foi canalizado exclusivamente através do Paquistão,
contribuindo decisivamente para o crescimento de complexas redes de contrabando e
corrupção com importantes ramificações em círculos do Estado e das Forças Armadas.
Dotado de um poder discricionário na distribuição do apoio, o regime liderado por Zia-ul-Haq
favoreceu os grupos Pastun mais radicais, especialmente a facção do Hisb-i-Islami (Partido
Islâmico) dirigida por Gulbuddin Hekmatyar, que o ISI se apressara a pôr em contacto com a
CIA ainda antes da invasão soviética, e que se transformou num aliado incontornável para
Islamabad.

Os soviéticos responderam aos reveses iniciais aumentando os efectivos militares mas,


progressivamente, adequaram os seus meios e tácticas de combate às condições
específicas da guerra no Afeganistão. Utilizando agentes infiltrados da KHAD15 para
localizar bases inimigas e recorrendo a helicópteros, que passam a empregar com
considerável êxito no transporte de tropas e no ataque ao solo, os soviéticos cortaram

14
Inter-Services Intelligence, que sempre desempenharam um importante papel na execução da política externa
de Islamabad para o Afeganistão.
15
Serviços de Informação do Estado, polícia política dirigida por Najibullah, que se transformou no organismo
mais eficaz do regime de Cabul.

224
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

grande parte das linhas da reabastecimento da resistência a partir do exterior e provocaram


pesadas baixas em diversos grupos mujahidin. Utilizando o suborno dos chefes das tribos e
de alguns grupos de bandidos armados, aproveitando habilmente as diferenças pessoais,
políticas, étnicas ou religiosas para promover a desconfiança e animosidade entre os grupos
oposicionistas, as forças soviéticas recorreram frequentemente a uma política de terra
queimada na tentativa de eliminar as bases de apoio dos rebeldes. Se a guerra não foi
marcada apenas pelos ataques massivos das tropas soviéticas contra povoações suspeitas
de apoiar a oposição, e as minas, os atentados bombistas e outras acções violentas dos
rebeldes causavam indiscriminadamente vítimas nos meios urbanos, a escalada do conflito
agravou drasticamente o sofrimento das populações das aldeias, aumentando o fluxo de
refugiados para os países vizinhos e tornando quase desabitadas diversas zonas rurais.
Inspirados pela política de Reagan contra o “império do mal”, os EUA procuravam responder
prontamente a qualquer sucesso relativo da URSS e, para promover a permanência de
populações essenciais para assegurar o apoio logístico aos guerrilheiros, aumentaram a
ajuda às organizações humanitárias, passando a favorecer as que prestassem auxílio no
interior do Afeganistão. Os fornecimentos de armamento também foram aumentando
durante a primeira metade dos anos oitenta, não só em quantidade como em qualidade. Em
1986, pressionada por um poderoso “lobby” que, a partir do Congresso, incitava os aliados a
aumentar o apoio financeiro aos guerrilheiros afegãos e defendia o fornecimento de
armamento cada vez mais sofisticado, a CIA passou a entregar armas de fabrico norte-
americano aos mujahidin, nomeadamente os poderosos e manobráveis mísseis terra-ar
Stinger, que num ápice se transformaram no terror da aviação soviética.

A Retirada sem Glória da União Soviética

Se Moscovo não podia esperar uma resolução do conflito pela via militar, uma solução
política favorável aos seus objectivos cedo se revelou improvável. Logo após a invasão, com
o boicote aos jogos olímpicos de Moscovo e as primeiras sanções económicas, a pressão
internacional afectou o relacionamento da URSS com o exterior, em especial com os países
islâmicos, procurando levar os soviéticos a reavaliar os custos e benefícios da aventura
afegã. O exacerbar de posições no Afeganistão só enfraquecia a posição de Moscovo,
sugerindo que a única alternativa ao regime comunista seria um governo islâmico
profundamente anti-soviético que, conjugado com a exposição dos soldados soviéticos ao
fundamentalismo islâmico, aumentava os riscos de “contaminação” religiosa às repúblicas
asiáticas da URSS. Acompanhados pelo desenvolvimento de importantes redes de
contrabando, os constantes casos de consumo excessivo de álcool e de drogas contribuíam
para uma crescente desmoralização entre os militares que, regressando da guerra,
agudizavam os problemas sociais e económicos com que se debatia a URSS, elevando o
tom das críticas até o tornar audível numa sociedade tão fechada como a soviética.

225
Informação Internacional

Mapa 4
RELEVO DO AFEGANISTÃO

Fonte: Globalsecurity.org

O elevado desperdício de recursos económicos e vidas humanas, conjugados com um


isolamento internacional incompatível com os objectivos da nova política externa soviética,
contribuíram para que os ventos de mudança anunciados por Mikhail Gorbachev chegassem
rapidamente ao Afeganistão. Conscientes que só uma alteração profunda na abordagem da
questão afegã evitaria o prolongar do esforço de guerra por tempo indeterminado, os
dirigentes soviéticos passam a estudar a retirada das forças militares em dois anos16,
definindo a neutralidade do Afeganistão como o objectivo estratégico da URSS. Como o
crescente apoio externo à oposição contrastava com a fragilidade do governo de Cabul,
obrigando a URSS a manter no terreno mais de 100 000 homens, os soviéticos procuraram
pôr fim aos intermináveis conflitos internos no PDPA substituindo Karmal por Mohammad
Najibullah17 (1987-1992). O novo regime de Cabul passou a promover a reconciliação
nacional e, para aumentar a sua base de apoio, decretou um cessar-fogo e uma amnistia,
chegando mesmo a promulgar uma constituição em que reconhecia os princípios islâmicos

16
“The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International History Project, Meeting of CC CSPU Politburo,
13 November 1986”. http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.
17
Najibullah ocupou a liderança do PDPA em Maio de 1986. Karmal renunciou à Presidência do Afeganistão em
Novembro, cargo que seria ocupado durante um ano por Hadj Muhammad Chamkani, um islâmico moderado.

226
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

e aceitava o pluripartidarismo. Simultaneamente, começaram a surgir os primeiros sinais de


abertura nas conversações de paz de Genebra, onde a ONU promovia o entendimento entre
Paquistão e Afeganistão, procurando pôr fim à ingerência externa que sustentava a guerra
civil e impedia o regresso dos refugiados. A retirada das tropas soviéticas, anunciada em
Fevereiro de 1988 por Gorbachev, constituiu um passo decisivo para o entendimento e, em
apenas dois meses, foi possível assinar um acordo aceitável por todas as partes, em que as
duas superpotências se comprometiam a cessar as interferências no Afeganistão.

Concretizada a 15 de Fevereiro de 1989, a retirada soviética não alterou o relacionamento


típico da Guerra Fria e não impediu a continuação da guerra. A impossibilidade de constituir
um governo de coligação nacional, integrando sectores do governo e dos mujahidin,
justificou a manutenção do apoio soviético a Najibullah, mas implicou idêntica atitude dos
norte-americanos em relação aos rebeldes, impossibilitando a concretização dos acordos de
Genebra. Os EUA, convictos da eminente queda do governo de Najibullah, procuraram
assegurar de imediato a libertação de Jalalabad, uma cidade estrategicamente situada entre
Peshawar e Cabul, que serviria de base ao avanço dos rebeldes sobre a capital e albergaria
um governo interino que seria reconhecido pelos norte-americanos18. A incapacidade dos
mujahidin para concretizar esta ofensiva e as tentativas de reconciliação nacional de
Najibullah não implicaram nenhuma alteração na estratégia dos EUA, mas tornaram
evidente que o conflito ainda estava longe de uma resolução definitiva.

A DESAGREGAÇÃO DA UNIÃO SOVIÉTICA E O NOVO CONTEXTO REGIONAL

Se os princípios do “grande jogo” não foram alterados pela retirada das tropas soviéticas do
Afeganistão, o colapso da URSS modificou decisivamente o equilíbrio geo-estratégico na
região. O nascimento de novas repúblicas na Ásia Central alterou as prioridades de
Moscovo, criando uma barreira física à projecção da Rússia num período em que as
convulsões internas e os antecedentes históricos limitavam consideravelmente a sua
capacidade de influência na região. Sem o incentivo da ameaça soviética, os EUA começam
a desviar a atenção para outras zonas do globo, e o súbito desaparecimento de cena das
superpotências abriu caminho à continuação da guerra, que foi acompanhada por um
crescente envolvimento das potências regionais.

A fragmentação étnica e a interferência externa, conjugadas com o tradicional espírito


guerreiro afegão e a abundância de armamento, fomentaram a continuação dos combates,
colocando o Afeganistão no epicentro da instabilidade regional. Enquanto as diversas
facções afegãs se digladiavam em combates cada vez mais mortíferos, fazendo e
desfazendo alianças consoante os caprichos pessoais dos seus líderes, os ténues laços que
garantiam um Estado unificado foram desaparecendo. A afirmação dos senhores da guerra,
exercendo um poder discricionário nas suas zonas de influência, intensificou o desrespeito
pelos direitos humanos e potenciou a proliferação das mais diversas actividades ilícitas,
contribuindo também decisivamente para a total destruição das infra-estruturas do país.

18
“Afghanistan: The Making of US Policy, 1973-1990, Steve Galster, The National Security Archive”
http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/essay.html.

227
Informação Internacional

Com a população sujeita a condições de vida sub-humanas, o fluxo de refugiados para os


países vizinhos aumentou substancialmente, em especial quando se intensificou o
bombardeamento indiscriminado de alguns dos principais centros populacionais. Na
ausência de uma pressão externa coerente, com capacidade para ajudar a fortalecer um
poder central estável, a fragmentada base étnica que sustentara a resistência foi transposta
para todo o país, restando a confrontação entre Pastun e não-pastun divididos entre Norte e
Sul. Aproveitando o caos reinante, diferentes grupos terroristas passaram a utilizar o
Afeganistão para treinar e organizar as suas actividades, ameaçando espalhar pela região
um rasto de terror que, em breve, procurariam estender a outras regiões do globo.
Mapa 5
O AFEGANISTÃO E O NOVO CONTEXTO REGIONAL

Fonte: World Food Programme

Com o Paquistão, a Arábia Saudita e o Irão na linha da frente, vários Estados procuraram
apoiar os grupos ou facções que melhor defendessem os respectivos interesses ou
impedissem os objectivos dos rivais, desenvolvendo complexas redes de influência com
diversos grupos locais. Para o Paquistão, sedento de assegurar a ligação aos novos
mercados da Ásia Central e garantir profundidade estratégica no seu embate com a Índia, a
tentação de aumentar a participação na guerra civil afegã era ainda agravada pela
necessidade vital de manter a fronteira norte na linha Durand. Conhecedores da realidade
local e decididos a impor a sua influência, os Paquistaneses apostaram na maioria Pastun,
procurando utilizar os Talibãs para atingir os seus objectivos. Interessados em assegurar a
independência dos novos Estado e subtrair os seus recursos ao controlo Russo, os EUA,

228
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

que mantêm o isolamento do Irão como importante objectivo, não encontram razões para se
opor ao crescente envolvimento do Paquistão. Mas este apetite já era seguido com
apreensão por outros países da região, especialmente o Irão e a Rússia, que viam na
influência paquistanesa uma ameaça aos seus interesses económicos. Enquanto a Índia, a
China e a Turquia mantinham um envolvimento discreto no conflito, as repúblicas criadas
após a dissolução da URSS eram inevitavelmente afectadas pela insegurança regional.
Preocupados essencialmente em consolidar o poder pessoal e afirmar a viabilidade dos
novos Estados, os seus líderes sentiam que o agravar da guerra civil afegã e a ascensão
dos Talibãs era uma ameaça directa à sua segurança, temendo a importação do islamismo
para os seus territórios. Interessados em diversificar as exportações sem o controlo da
Rússia e vendo na exploração dos recursos energéticos a solução para a estagnação
económica, os Estados da Ásia Central, especialmente o Turcomenistão, estavam
impacientes por assegurar a estabilidade no Afeganistão.

Da Guerra Civil ao Caos

Contrariando as expectativas, a anunciada vitória dos mujahidin teria de ser adiada até que
a derrocada da URSS pusesse fim ao apoio externo recebido por Cabul, e a retirada
soviética contribuiu mais para acentuar as divergências entre os rebeldes do que para a
queda imediata de Najibullah. Na ausência de tropas infiéis para mobilizar a acção conjunta,
a resistência foi incapaz de encontrar a união necessária para tomar o poder, e as
divergências políticas rapidamente ganharam contornos inultrapassáveis. As diferenças de
pontos de vista entre as diversas forças que comandavam a luta armada no interior do
Afeganistão e os grupos que coordenavam a oposição no exílio, agravadas por um
crescente clima de intimidação e terror que fustigou essencialmente os sectores mais
moderados, minaram decisivamente as possibilidades de entendimento e conduziram a uma
prolongada guerra civil. Fundamentada na fragmentação étnica e na interferência externa, a
guerra civil foi caracterizada por um constante fazer e desfazer de alianças que, impedindo a
consolidação de um poder central estável e contribuindo para a total destruição do país,
transformou o Afeganistão num conjunto de feudos medievais em permanente conflito.

Apesar de controlar uma zona cada vez menor, o regime de Najibullah só foi derrubado
quando deixou de contar com o apoio financeiro de Moscovo e, incapaz de satisfazer os
tradicionais pagamentos ao líderes locais, foi confrontado com a deserção do General
Rashid Dostum, comandante das forças Usbeques. Agrupando o Jumbesh-e-Milli-Islami
(Movimento Nacional Islâmico) de Dostum, os Hazaras do Hezb-e-Wahdat (Partido de
Unidade Islâmica), chefiado por Abdul Ali Mazari, e os Tajiques do Jamiat-e-islamic,
liderados por Burhanuddin Rabani e comandados por Ahmad Shah Massud, a Aliança do
Norte conseguiu dominar Cabul em Abril de 1992. Embora contando inicialmente com a
colaboração de alguns grupos Pastun, como o Jabha-e-Nejat-e-Milli Afghanistan (Frente
Nacional para a Libertação do Afeganistão), um grupo moderado liderado por Pir
Sibghatullah Mojaddedi, o Estado Islâmico do Afeganistão, com Rabbani (1992-1996) na
presidência, cedo enfrentou os problemas resultantes da escassa representação da maioria
Pastun no novo governo.

O afastamento do Hezb-e-Islami, liderado por Gulbuddin Hekmatyar, que representava os


sectores islâmicos mais radicais, impedia qualquer tentativa de unificação nacional.

229
Informação Internacional

Fortemente armadas, as forças comandadas por Hekmatyar começaram a bombardear


indiscriminadamente Cabul, acção que repetiriam até 1995 durante os períodos em que o
Hezb-e-Islami não participou no governo, contribuindo decisivamente para a destruição
completa de grande parte da capital. O Acordo de Islamabad, assinado em 1993 graças à
mediação de Irão e Paquistão, possibilitou a integração de Hekmatyar no governo de Cabul,
designando-o primeiro-ministro, mas o clima de confrontação entre os diversos grupos
continuou por todo o país. Hekmatyar, que começara a perder o apoio do Paquistão e da
Arábia Saudita, alia-se a Dostum no início de 1994, desencadeando um golpe de Estado
contra as forças Tajiques de Massud e Rabbani. Muito embora o fracasso da iniciativa tenha
conduzido rapidamente ao impasse militar, a guerra civil ganhou um novo ímpeto, com os
combates a atingirem novamente o centro de Cabul, provocando milhares de mortos e
aumentando ainda mais o número de refugiados.

Em 1994, o Afeganistão estava dividido em diversas regiões, correspondendo às zonas


geográficas dos principais grupos étnicos. Os Usbeques, com a base em Mazar-i-Charif,
controlavam parte do Norte, os Hazaras dominavam a região central, e os Tajiques, com
Massud, a Nordeste de Cabul, e Ismail Khan, sedeado em Herat, conseguiam assegurar
alguma estabilidade nas suas zonas de influência. Enquanto prosseguiam as disputas de
base étnica, diversos grupos combatiam internamente as forças que dominavam cada uma
destas zonas, mas situação era particularmente grave na cintura Pastun, onde Hekmatyar
não conseguia reunir os apoios necessários para controlar toda a região. A Xura de
Jalalabad controlava algumas províncias junto da fronteira com o Paquistão, mas a região
de Kandahar e grande parte do Sul eram dominados por dezenas de antigos combatentes
mujahidin que, transformados em senhores da guerra, lutavam por manter as respectivas
zonas de influência. Aterrorizando a população civil que ainda resistia à devastação
generalizada, estes grupos financiavam as acções militares graças aos enormes proventos
que acumulavam através da produção de ópio e do contrabando de armas. Com grande
parte da população a ultrapassar os limites do sofrimento humano, cada vez mais
dependente da ajuda internacional para sobreviver, a sucessiva incapacidade de afirmação
do poder central conduzira ao caos generalizado uma sociedade extremamente
fragmentada.

230
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Quadro 1
PRINCIPAIS FIGURAS E PARTIDOS DA GUERRA CIVIL

Ahmad Shah Massud (1953-2001)


Comandante militar tajique do Jamiat-e-islami, conhecido como “leão do
Panshir”. Exilado no tempo de Daud, combateu contra os soviéticos e na
guerra civil. Foi Ministro da Defesa e liderou a resistência aos talibãs.
Moderado, desde os tempos de estudante que mantinha um ódio de
estimação por Hekmatyar, mas as suas tropas foram responsáveis por
massacres contra os Hazaras durante a guerra civil. A 9 de Setembro de
2001 foi alvo de um atentado, aparentemente organizado pela Al-Qáida,
que lhe custou a vida.

Ismail Khan (1946-)


Comandante tajique aliado de Massud e governador de Herat. Chegou a
ser preso pelos Talibãs mas conseguiu fugir. Esteve refugiado no Irão mas
regressou para comandar a resistência em Heart.

Gulbuddin Hekmatyar (1947?-)


Comandante Pastun da facção mais importante do Hezb-e-Islami.
Conhecido pelo radicalismo, foi preso na juventude por assassinar um rival
shola. Fugiu para Peshawar no tempo de Daud e recebeu a maior parte da
ajuda externa na luta contra a URSS. Foi aliado preferencial de Islamabad,
mas perdeu o apoio do Paquistão a favor dos Talibãs. Primeiro Ministro
duas vezes, refugiou-se no Irão, de onde foi expulso, regressando
recentemente ao Afeganistão, onde já se transformou num alvo dos EUA.

Abdul Ali Mazari (1946-1995)


Comandante mujahid hazara, liderou a coligação xiita do Hezb-e-Wahdat.
Controlou o centro do Afeganistão e recebeu apoio do Irão. Lutou contra
Massud, mas morreu após ter sido capturado pelos Talibãs. Foi substituído
por Abdul Karim Khalili (?-) que se juntou à Frente Unida.

Abdul Rashid Dostum (1954-)


General usbeque e líder do Jumbesh-e-Milli-Islami, autoritário e impiedoso
nas zonas que controla. Mudou consecutivamente de alianças durante a
guerra civil e recebeu apoio de diversos Estados. Refugiou-se na Turquia
após os Talibãs tomarem Mazar. Integrou a Frente Unida e o governo
interino de Karzai.

Abdul Rasul Sayyaf (1946-)


Comandante mujahid de origem Pastun, líder do Ittehad-e-Islami Barai
Azadi Afghanistan. O movimento, sem uma base étnica muito marcada,
agrupava os uabistas . Juntou-se à Frente Unida no combate aos Talibãs.

Pir Sayed Ahmad Gailani (1932-)


Pastun, líder dos sufista e do Mahaz-e-Milli-Islami, pequeno grupo
mujahidin moderado e pró-monárquico próximo dos Durrani.

Mawlawi Mohammad Yunus Khalis (1919-)


Comandante mujahid Pastun. Após se incompatibilizar com Hekmatyar
líderou a facção Khalis do Hezb-e-Islami, grupo a que pertenceu o maulá
Omar e parte dos dirigentes dos Talibãs.

Mawlawi Mohammad Nabi Mohammadi (?-2002)


Comandante mujahid de etnia Pastun, líder do Harakat-e-Inqelab-e-Islami,
movimento radical ligado ao clero tradicional a que pertenceram alguns dos
dirigentes Talibãs.

Fonte: Adaptado de Zarate´s Political Collections

231
Informação Internacional

Motivados pela necessidade de lutar contra esta anarquia generalizada e assegurar a


aplicação da Xaria, um grupo de antigos mujahidin maioritariamente Pastun liderou uma
série de campanhas militares na região de Kandahar que lhes viriam a garantir o domínio
sobre quase todo o território afegão. O aparecimento em cena dos Talibãs, que será
abordado no próximo capítulo, materializado num rápido avanço no terreno, pressionou ao
reagrupamento em torno de Rabbani, e Hekmatyar regressou ao governo, recuperando o
cargo de primeiro-ministro durante um mês. Apesar da conquista de Cabul durante a
campanha militar de 1996, pondo fim ao domínio Tajique na capital, os Talibãs não puderam
impedir que o governo de Rabbani continuasse a ser reconhecido internacionalmente como
representante do Afeganistão mas, ameaçando continuar com o seu avanço para Norte,
pressionaram as outras partes a constituir uma frente comum para contrariar a nova
ameaça. Agrupando líderes com enormes rivalidades entre si, a Frente Unida19 conseguiu
impedir as tentativas dos Talibãs para controlar todo o Afeganistão, mas sem um comando
militar comum e uma estratégia unificada, revelou total incapacidade para efectuar uma
contra-ofensiva consistente. No auge do avanço dos Talibãs, quando a maioria dos líderes
da Frente Unida foi forçada a partir para o exílio, Massud continuou a assegurar a
resistência no terreno e, baseado no Vale de Panshir, controlava alguns territórios e impedia
o completo domínio dos Talibãs.
Figura 3
CRONOLOGIA DA HISTÓRIA DO AFEGANISTÃO

Fonte: Adaptado de um original do Afghanmagazine.com

O EMIRADO ISLÂMICO DO AFEGANISTÃO

O afastamento do poder da maioria Pastun, em especial dos Durrani, que costumavam


ocupar a liderança do Afeganistão, aliado ao caos que assolava principalmente o Sul do
país, incitou a organização de um novo grupo. Comandados por antigos mujahidin de etnia

19
Jabha-yi Muttahid-i Islami-yi Milli bara-yi Nijat-i Afghanistan ou Frente Islâmica Nacional Unida para a Salvação
do Afeganistão, muitas vezes referida pelas iniciais inglesas (UNIFSA) ou por Aliança do Norte.

232
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Pastun, que pertenciam maioritariamente a alguns dos grupos mais radicais da jihad, como
a facção do Hezb-e-Islami comandada por Yunus Khalis ou o Harakat-e-Inquilab-e-Islami
(Movimento Revolucionário Islâmico) de Mohammad Nabi Mohammadi, os Talibãs são
“estudantes de teologia” que frequentavam as madrassas de tradição deobandista e com
ligações ao Jammiat Ulama-i-Islam paquistanês. O rápido crescimento do movimento atraiu
apoiantes em diversos sectores, inclusive entre os ex-Khalq, mas a sua base de
sustentação encontrava-se nos refugiados que viviam no Paquistão e nas ”escolas
corânicas”. Estas madrassas, que recebiam um considerável apoio Saudita graças à
simpatia pelo uabismo, representavam a única forma dos refugiados terem acesso a algum
tipo de educação, proporcionando também alimentação, alojamento e treino militar em
meios extremamente desfavorecidos. Provenientes dos meios rurais e mais iletrados, os
Talibãs escolheram Muhammad Omar Mujahid para os chefiar, um líder religioso local de
origens modestas dotado, como os outros maulás, de um saber rudimentar quando
comparado com o conhecimento mais erudito dos ulemas. Explorando até ao limite a visão
deobandista do Islão, nomeadamente no que diz respeito ao papel das mulheres, os Talibãs
promoveram uma interpretação da Xaria profundamente restritiva, muito influenciada pelo
Pastunvali, mas a que um contínuo recurso ao conceito jihad transmitia uma dinâmica
especial.

O Ascendente do Paquistão

“Os Talibãs eram pessoas boas e honestas ligadas às madrassas em Queta e Peshawar, e
eram meus amigos da jihad contra os soviéticos. Vieram até mim em Maio de 1994 dizendo:
Hamed, temos de fazer algo sobre a situação em Kandahar. É intolerável. Não tive reservas
em ajudá-los. Tinha muito dinheiro e armas da jihad. Também os ajudei com a legitimidade
política. Foi apenas em Setembro de 1994 que outros começaram a comparecer nas
reuniões – silenciosos que eu não reconheci, pessoas que controlaram o movimento Talibã.
Era a mão escondida dos serviços secretos paquistaneses.20” As palavras de Hamed Karzai,
que quando as proferiu estava longe de imaginar que viria a chefiar um governo interino
afegão, sugerem uma profunda participação do Paquistão na ascensão dos Talibãs. Na
verdade, a vitória de Benazir Bhutto nas eleições de 1993 alterou o eixo orientador da
política paquistanesa para o Afeganistão. Afastado o Jammat-e-Islami, que sempre apoiara
Hekmatyar, Butho e o seu Ministro do Interior, o Pastun Naseerulah Babar, procuraram
aproveitar o apoio dos deobandistas do Jammiat Ulama-i-Islam para encontrar uma força
capaz de dar corpo às novas intenções de Islamabad. Além das tradicionais preocupações
paquistanesas sobre a evolução da questão afegã, Babar compreendera a importância de
estabelecer uma ligação directa com os novos Estados da Ásia Central através do
Afeganistão, e estava decidido a utilizar o ISI para assegurar o êxito da iniciativa.

O apoio do Paquistão cedo se revelou essencial para o rápido avanço dos Talibãs. A partir
de Outubro de 1994, contando já com o apoio do ISI, começaram por se apoderar de
importantes depósitos de armamento até aí na posse das forças de Hekmatyar. A pedido do

20
Kaplan, Robert D.; The Atlantic Montly; September 2000; The Lawless Frontier – 00.09 (Part Three); Volume
286, nº. 3, page 66-80.

233
Informação Internacional

Paquistão, os Talibãs atacaram os senhores da guerra que, nos arredores de Kandahar,


retinham uma caravana de camiões enviada por Babar para testar a viabilidade de uma rota
Sul ligando Queta a Ashabad, aproveitando este sucesso para derrotar os comandantes
locais e controlar a cidade no início de Novembro. Em Fevereiro de 1995, controlando nove
das trinta províncias, os Talibãs prepararam um avanço sobre Herat e Cabul, mas as forças
de Massud ainda tinham capacidade para defender as principais cidades e organizar uma
poderosa contra-ofensiva. Após tomarem Herat, em Setembro de 1995, assegurando o
domínio sobre a rota do Sul que liga o Paquistão e o Turcomenistão, os Talibãs puderam
concentrar o esforço de guerra contra a capital onde, apesar dos bombardeamentos, os
Tajiques continuaram a resistir durante um ano. Só na ofensiva de Outono de 1996, e após
tomarem Jalalabad, os Talibãs puderam entrar na capital, transformada a partir daí numa
base para as investidas a Norte. Em Maio de 1997, graças ao apoio do General Malik
Pahlawan, que se revoltara contra Dostum, os Talibãs aproveitaram os desentendimentos
nas hostes Usbeques para ocupar Mazar-i-Charif, mas acabaram por ser massacrados e
expulsos de uma cidade que só voltariam a ocupar em Agosto de 1998. Após conquistarem
Bamian, em Setembro, o avanço dos Talibãs foi dificultado pela forte resistência Tajique e,
apesar de conseguirem esporádicos avanços no terreno e dominarem a rota do Norte para a
Ásia Central, continuaram reféns da habilidade e experiência de Massud, que mantendo a
capacidade para realizar algumas contra-ofensivas, impedia a estabilização da situação
militar e a total submissão do Afeganistão aos “estudantes de teologia”.

Apesar de terem conquistado uma reputação de temíveis combatentes, revelando nas


ofensivas a tradicional bravura afegã e a disponibilidade de sacrifício típica da jihad, os
Talibãs também souberam explorar habilmente as divergências entre os restantes grupos.
Em Kandahar, por exemplo, asseguraram a estabilidade recorrendo ao suborno, método só
possível graças ao apoio financeiro do Paquistão e de certos sectores da economia
subterrânea, que utilizaram diversas vezes para assegurar o êxito das suas operações e a
pacificação das zonas mais problemáticas. Quando necessitaram de recorrer a grandes
acções armadas, souberam conciliar a mobilidade proporcionada pela característica
utilização de veículos todo-o-terreno com o modo de guerra Pastun, que em vez de uma
guerra permanente, apoiada em exércitos numerosos, valoriza as acções esporádicas mas
continuadas. Através das tropas regulares, asseguravam um rígido controlo nas regiões que
iam conquistando, mas a realização de sucessivas campanhas militares contra os seus
adversários não era posta em causa graças à mobilização regularmente efectuada entre as
tribos Pastun, o voluntariado islâmico internacional e as madrassas paquistanesas, que
encerravam sempre que os Talibãs precisavam de reforços, incitando os seus estudantes a
participar na jihad.

234
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Mapa 6
A ESTRATÉGICA LOCALIZAÇÃO DO AFEGANISTÃO

Fonte: Adaptado de um original do Público

Os Talibãs no Poder

Logo que se apoderaram de Kandahar, os Talibãs começaram a mostrar o tipo de regime


que pretendiam impor, elegendo como objectivos principais o fim da anarquia generalizada e
a aplicação da Xaria num Afeganistão reunificado. Decididos a instaurar um regime islâmico
verdadeiro, baseado numa interpretação extremamente restritiva da Xaria, começaram por
desarmar a população e controlar os senhores da guerra, substituindo o terror da desordem
por uma ordem aterrorizadora. O al-Amr bi al-Ma’ruf wa al-Nahi‘an al-Munkir ou Ministério
para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, responsável pela aplicação da moral e
dos costumes, foi utilizado para impor uma sociedade retrógrada e obscurantista nas zonas
que os Talibãs iam conquistando, transformando-se rapidamente num poderoso instrumento
repressivo. Entre as normas aplicadas por este organismo, hoje do conhecimento de todo o
Mundo, é necessário destacar o tratamento discriminatório dispensado às mulheres, a
quem, na prática, era negada a própria existência, mas também não devem ser esquecidas

235
Informação Internacional

as vigorosas restrições à divulgação cultural e a completa interdição de todos os tipos de


divertimentos. Na ausência de um qualquer sistema judicial, a aplicação discricionária da
Xaria pelos responsáveis locais garantia a ordem e o terror, com os castigos corporais e as
execuções sumárias a transformarem-se nos únicos espectáculos públicos autorizados.

A imposição desta visão extremamente restritiva do Islão tornou-se mais problemática


quando os Talibãs começaram a conquistar regiões ocupadas maioritariamente por outras
etnias. A intransigência religiosa, que impedia os Talibãs de aceitar qualquer diferença de
opinião nesta matéria, conjugada com o determinante papel atribuído à religião na
organização da vida social e política, criou uma total incapacidade para a negociação,
impedindo todas as tentativas de entendimento com outros grupos. Sem uma estrutura de
poder definida, o processo de decisão estava concentrado em Kandahar, nas mãos do
maulá Omar e do seu grupo restrito, tornando impossível assegurar qualquer
representatividade nos círculos do poder a outros clãs ou etnias. Convencidos do cariz
divino da sua missão, os Talibãs desenvolveram uma acção preferencialmente repressiva
no relacionamento com as minorias, demonstrando um profundo desrespeito pelos direitos
humanos mais elementares e fazendo ressurgir um clima de perseguições étnicas e
religiosas só comparável ao que criara Abdur Rahman, o Emir de Ferro. Estas acções, que
culminaram em diversos massacres, contribuíram para aumentar a fragmentação étnica e
provocar cíclicas ondas de refugiados, impedindo a estabilização do Afeganistão e
aumentando a pressão e o descontentamento nos países vizinhos.

Na incessante busca de um retorno ao glorioso período dos Califados, o país mudou o nome
para Emirado Islâmico do Afeganistão e o maulá Omar, procurando assegurar a legitimação
religiosa, assume o título de amir-ul momineen. Omar, que concentrou o poder terreno e a
legitimação divina, não surge só como uma figura mítica, dispõe também do poder de
decisão e administra sem restrições os elevados proveitos que os Talibãs conseguem
arrecadar. Como os novos governantes preferem participar nos combates, demonstrando
total incapacidade para exercer cargos administrativos, a ausência de uma estrutura
governativa funcional faz com que o orçamento seja utilizado quase exclusivamente para
olear a máquina de guerra. Provenientes da ajuda externa, mas também dos impostos
cobrados aos produtores de ópio e às caravanas de camiões que atravessam o país, estes
fundos nunca foram utilizados em acções para desenvolver projectos ou infra-estruturas que
contribuíssem para melhorar as difíceis condições de vida da população.

Os Talibãs e as Relações com o Exterior

A afirmação dos Talibãs contribuiu decisivamente para uma crescente instabilidade regional.
Os periódicos fluxos de refugiados, provocados pela continuação da guerra civil,
aumentavam os problemas sociais nos países limítrofes, favorecendo a penetração de
grupos islâmicos radicais e o crescimento das máfias ligadas ao tráfico de armas e de droga
que operavam com a conivência dos Talibãs. Preocupados essencialmente com a situação
da etnia Pastun, pouco identificados com o passado histórico e com os problemas do
Afeganistão, os Talibãs não se identificavam com o nacionalismo afegão, vendo no avanço
para as zonas não-pastun uma forma de difundir e impor o seu modelo religioso. Esta
tendência, aliada a um completo alheamento face ao tradicional papel dos Estados nas
relações internacionais, atraiu os Talibãs para um espécie de internacionalismo de cariz
islâmico, legitimando o apoio a grupos de guerrilheiros fundamentalistas dispostos a

236
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

espalhar a revolução noutras paragens, uma acção que se tornou particularmente visível
após Ussama bin Laden ter passado a integrar o restrito círculo que rodeava o maulá Omar.
Servindo também as forças que, do interior do Paquistão, procuravam treinar grupos de
terroristas para actuar em Caxemira, o apoio dos Talibãs aos campos de guerrilheiros
proporcionou a formação militar a muitos grupos fundamentalistas, treinando centenas de
militantes islâmicos prontos a combater pelo seu ideal em qualquer parte do globo.

A guerra civil que decorreu no Tajiquistão entre 1993 e 1997 e as acções armadas do
Movimento Islâmico do Uzbequistão (MIU) no vale de Fergana, contribuíram para aumentar
os receios de uma possível exportação do fundamentalismo para a Ásia Central,
acentuando as reservas dos dirigentes destes países em relação aos Talibãs. A participação
no conflito da Chechénia de muitos guerrilheiros treinados no Afeganistão, seguido do
reconhecimento pelos Talibãs do governo rebelde da região, levou Moscovo a conceder um
apoio discreto à Frente Unida enquanto ambas as partes procuravam ultrapassar os
traumas da ainda recente intervenção soviética. A Índia e a China, a braços com problemas
em Caxemira e Xinjiang, também partilhavam as preocupações russas, mas mantinham um
envolvimento moderado em comparação com o Irão, onde o sentimento de protecção aos
xiitas potenciava o apoio aos Hazaras. Aproveitando as afinidades étnicas com os Tajiques,
Teerão procurou aumentar a influência na região, ao mesmo tempo que se afirmava como
alternativa para o acesso à Ásia Central.

TERRORISMO E PETRÓLEO NO EPICENTRO DO GRANDE JOGO

A efectiva ocupação do território pelos Talibãs não legitimou internacionalmente o novo


poder que, reconhecido apenas pelo Paquistão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes
Unidos, demonstrou total inaptidão para encontrar novos aliados no exterior. Sem serem
particularmente fanáticos contra o Ocidente, até pelo reduzido conhecimento que tinham da
política externa, os Talibãs comprometiam qualquer aceitação pela comunidade
internacional devido ao extremismo das políticas que implementaram, e o governo de
Rabbani conseguiu manter a sua posição de representante do Afeganistão nos organismos
internacionais. Se as violações dos direitos humanos, as perseguições às minorias étnicas e
as ligações à produção e transformação do ópio não passavam despercebidas, a
discriminação contra as mulheres, a destruição das seculares estátuas Budistas de Bamian
e a situação dos refugiados mobilizaram diversas campanhas, de maior ou menor impacto,
mas que contribuíram para denegrir a imagem dos Talibãs. Seriam outros, no entanto, os
principais factores a influenciar decisivamente a evolução da questão afegã e o
relacionamento dos Talibãs com o exterior: o acolhimento de Ussama bin Laden e a
importância de um possível gasoduto Turcomenistão-Paquistão no acesso às reservas
energéticas da Ásia Central.

Ussama bin Laden e a Al-Qáida

Filho de um respeitado milionário ligado ao sector da construção, Ussama bin Laden, que
nasceu em Riade por volta de 1957, conheceu o seu mentor espiritual quando estudava na
Universidade de Jeda nos finais dos anos setenta. Influenciado pelos ensinamentos do
Sheik Abbdullah Azzam, um professor palestiniano que apoiava o fundamentalismo islâmico,
bin Laden respondeu ao apelo da jihad contra os soviéticos e partiu para Peshawar, onde
colaborou com Azzam na organização e financiamento dos mujahidin. Responsável pela

237
Informação Internacional

logística dos abastecimentos e da assistência médica, colaborou na instalação dos campos


de treinos e no fornecimento de armas aos rebeldes, desenvolvendo importantes contactos
com os serviços secretos da Arábia Saudita, do Paquistão e dos EUA. Aproveitando a
experiência familiar e parte da considerável fortuna que herdara com a morte do pai, bin
Laden mudou-se para o Afeganistão, onde dirigiu a construção de diversas estradas e túneis
para os mujahidin e participou em acções armadas contra os soviéticos. O internacionalismo
das trincheiras afegãs, onde conviviam fundamentalistas islâmicos oriundos dos mais
diversos pontos do Mundo, era o lugar ideal para criar uma organização que difundisse a
mensagem da ”gloriosa vitória do Islão sobre os infiéis”, e bin Laden começou nesta época a
participar na construção de uma “base” que coordenaria as acções de diversos grupos
islâmicos, a Al-Qáida.

Regressando ao seu país como um herói, bin Laden não reconheceu no regime Saudita as
qualidades que gostaria de ver num verdadeiro Estado islâmico. Iniciou discretos contactos
com a oposição enquanto dirigia os negócios familiares, mas o tom das críticas à família real
aumentou quando os EUA estacionaram tropas nas bases militares da península arábica e
as utilizaram para atacar o Iraque. Indignado com a possibilidade dos norte-americanos
defenderem Israel a partir dessas bases, convicto de que as acções dos EUA apenas
procuravam salvaguardar os seus interesses petrolíferos na região, bin Laden considerou
ultrajante a permanência de militares estrangeiros no solo saudita, acusando o Rei de não
cumprir o seu dever de protecção dos lugares sagrados do Islão. Como o tom das críticas foi
demasiado audível, para o intolerante regime saudita, foi colocado em prisão domiciliária
durante um curto período e, após diversas pressões, partiu para o Sudão em Abril de 1991,
acompanhado pelas mulheres e pelos vários filhos.

Sempre rodeado por um numeroso grupo de “árabes afegãos”, os voluntários de vários


países que tinham combatido na jihad contra os soviéticos, bin Laden aproveitou a
complacência do regime fundamentalista que se instalara em Cartum, passando a dedicar
mais atenção à Al-Qáida. Enquanto utilizava a enorme fortuna pessoal para investir em
diversos negócios legais começou a construir campos de treino para grupos terroristas,
aproveitando os contactos da jihad no Afeganistão para desenvolver actividades em
conjunto com diversas organizações extremistas. Considerando aliados todos os que
lutavam para assegurar a libertação dos países islâmicos da ocupação pelos infiéis, fossem
estes estrangeiros ou os seus representantes locais, bin Laden elege os norte-americanos
como alvo e o fim da ocupação da Arábia Saudita como objectivo. Embora não seja possível
fazer uma recolha exaustiva das acções da Al-Qáida, não só porque funcionava como
coordenadora de diversos grupos terroristas, dispensando essencialmente apoio financeiro
e logístico, mas também porque nunca foi habitual na organização reivindicar de pronto as
acções que desenvolvia, a sua actividade contribuíu directamente para uma importante
parte dos actos terroristas de cariz fundamentalista islâmico levados a cabo durante os anos
noventa.

238
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Figura 4
21
MAPA DA ARÁBIA EM LIVRO DE BIN LADEN

Fonte: The New York Times

À medida que se iam tornando visíveis as actividades de bin Laden, os EUA e a Arábia
Saudita começaram a preocupar-se com as acções do antigo aliado. Em 1996, após forte
pressão dos EUA e do Egipto (que suspeitava do seu envolvimento numa tentativa para
assassinar o presidente Mubarak), o governo sudanês decide expulsar bin Laden do país.
Segundo alguns rumores que carecem de confirmação, terá tentado entregá-lo às
autoridades sauditas que, no entanto, terão declinado a oferta. Sem muitas alternativas, bin
Laden aproveita os contactos afegãos para se refugiar em Jalalabad, sob a protecção de
Haji Qadir e da Xura que governava a cidade. É já no Afeganistão que define os seus
objectivos, emitindo uma fátua intitulada “Declaração de guerra contra os americanos que
ocupam a Terra dos dois Lugares Sagrados”, assumindo que “...hoje começamos o trabalho,
conversamos e discutimos as formas de corrigir o que aconteceu ao mundo islâmico em
geral e à Terra dos dois Lugares Sagrados em particular. Queremos estudar o caminho que
devemos seguir para que a situação regresse à normalidade”22. Em Fevereiro de 1998,

21
‘‘Anúncio da jihad contra os americanos que ocupam a Terra dos Lugares Sagrados’’, pelo Sheik Ussama bin
Laden.
22
Texto completo disponível em http://dossiers.publico.pt/atentado_estados_unidos/pistas_web/decwar3.htm.

239
Informação Internacional

diversos líderes de grupos extremistas23 publicaram uma nova fátua proclamando a “Jihad
contra os Judeus e os Cruzados” na qual consideravam que Israel e os EUA estavam a
tentar enfraquecer os Estados muçulmanos para garantir o domínio do Médio Oriente e que
a guerra já tinha sido declarada com a ocupação dos lugares sagrados. Por isso, apelavam
à libertação de todo o mundo islâmico, proclamando como um dever de todo o muçulmano o
ataque aos interesses dos norte-americanos e dos seus aliados, não fazendo qualquer
distinção entre alvos civis ou militares. A 7 de Agosto, exactamente oito anos após as tropas
do EUA terem chegado à Arábia Saudita, dois camiões explodem junto às embaixadas
norte-americanas em Dar es Salaam e Nairobi, provocando centenas de mortos e de feridos
e uma grande destruição nos edifícios. Apesar de bin Laden negar inicialmente qualquer
envolvimento no atentado, todas as características da operação apontavam em sentido
contrário.

Ussama bin Laden, que só entrou em contacto com os Talibãs após a conquista de
Jalalabad, começou a desenvolver um relacionamento privilegiado com o maulá Omar após
se mudar para Kandahar em 1997. Os pontos de vista comuns ajudaram essa aproximação,
mas bin Laden e os Talibãs também tinham interesses complementares. Combatentes
experientes, os “árabes afegãos” que acompanhavam bin Laden passaram a apoiar as
campanhas militares dos Talibãs, constituindo unidades autónomas que desempenhavam
um papel importante no campo de batalha, e a Al-Qáida, que voltava a controlar alguns dos
campos de treino existentes no Afeganistão, passava a estar disponível para realizar
atentados e eliminar opositores ao movimento. Mas a crescente influência de bin Laden
também contribuiu para a alterar a política externa dos Talibãs. Seduzidos pelo pan-
islamismo, um ideal distante quando começaram a controlar Kandahar e a cintura Pastun,
os Talibãs passaram a demonstrar um claro sentimento anti-ocidental e uma nova
intransigência religiosa, baseada na retórica contra os cristãos e os judeus, típica do
pensamento de bin Laden. Detentora do poder e de um novo estatuto económico e social, a
liderança Talibã passou a confundir as vitórias militares com o dever de espalhar o
fundamentalismo islâmico, não sendo de estranhar surgisse a vontade de estender o seu
domínio aos 15% da população paquistanesa de etnia Pastun e, com o apoio dos seus
tradicionais aliados nos meios radicais paquistaneses, aproveitar a crónica instabilidade do
país para promover o surgimento de um novo regime. O Paquistão, único país muçulmano a
possuir armamento nuclear, poderia ser uma peça importante na afirmação do pan-
islamismo, mas o principal objectivo de bin Laden continuava a ser a libertação dos lugares
sagrados e da Arábia Saudita, que seria a base de um processo de difusão religiosa e
social semelhante aos dos primórdios do Islão.

23
O documento, disponível em http://www.fas.org/irp/world/para/docs/980223-fatwa.htm, é assinado por Ayman
al-Zawahiri, emir da Jihad Egipcia, Abu-Yasir Taha, do Grupo Islãmico Egípcio, Mir Hamzah, secretário do
Jamiat-ul-Ulema-e-Pakistan e Fazlur Rahman, emir da Jihad no Bangladesh e por Ussama bin Laden.

240
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Mapa 7
PRESENÇA DA AL-QÁIDA NO MUNDO

Fonte: Público

Mais do que um aliado e um mentor, Ussama bin Laden foi-se transformando num forte
entrave à afirmação dos Talibãs, contribuindo para aumentar a pressão internacional sobre
o maulá Omar e os seus seguidores. Os EUA, que bombardearam algumas bases
terroristas no Afeganistão na sequência dos atentados contra as embaixadas africanas,
passaram a liderar uma campanha solicitando a entrega de bin Laden, conseguindo isolar
os Talibãs com a aprovação da Resolução 1267/99 pelo Conselho de Segurança da ONU.
Indiferente, bin Laden pode continuar a apoiar a formação de guerrilheiros islâmicos,
passando a organizar acções cada vez mais arrojadas. O êxito alcançado no violento ataque
contra o USS. Cole no Iémen, que custou a vida a vários marinheiros norte-americanos e
quase provocou o colapso do navio, comprovou as altas taxas de sucesso alcançadas pelas
tácticas suicidas, incentivando bin Laden a preparar um ataque sem precedentes aos
centros de poder do inimigo.

O Afeganistão e o Acesso aos Recursos Energéticas da Ásia Central

O novo mapa político regional potenciou o valor estratégico do Afeganistão que, apesar do
afastamento das superpotências, podia recuperar o lugar privilegiado que perdera quando o
nascimento da União Soviética criou uma barreira às tradicionais relações com a Ásia

241
Informação Internacional

Central. Como as principais redes de transportes tinham sido construídas em direcção ao


Norte, as novas repúblicas procuravam desesperadamente encontrar rotas comerciais
alternativas, que lhes permitissem escapar à dependência de Moscovo e, à medida que
começaram a atrair interesses económicos mais poderosos, tornou-se claro que um
Afeganistão estabilizado se poderia transformar numa importante porta de acesso à Ásia
Central. Anunciava-se o regresso do “grande jogo”, mas a exploração das enormes reservas
energéticas da Ásia Central implicava um avultado investimento que, além de modernizar os
processos extractivos, teria de assegurar canais de distribuição adequados. A Bridas,
empresa petrolífera argentina que explorava algumas jazidas no Turcomenistão, propôs no
final de 1994 a construção de uma conduta para transportar o gás até ao mercado
paquistanês, com a possibilidade de uma posterior extensão até à Índia. Apesar de contar
inicialmente com o apoio do Turcomenistão e do Paquistão, que acreditam que os Talibãs
podiam controlar a rota do gasoduto, a Bridas viria a ser afastada do projecto.

Quando a ideia de quebrar o isolamento da Ásia Central atravessando o Afeganistão


ganhou adeptos em Washington, os norte-americanos da Unocal entraram na corrida e
rapidamente ultrapassaram a Bridas. A Unocal desenvolveu a partir de 1995 diversos
contactos, especialmente no Afeganistão, em Washington e em Moscovo, tentando garantir
a ligação do novo oleoduto às condutas já existentes, assegurando desta forma que a
produção da Ásia Central e da Rússia podia ser escoada pelo Paquistão. Para executar este
projecto foi constituído, em 1997, um consórcio internacional a CentGas24. No entanto, a
descida no preço do petróleo, a continuação de um clima de instabilidade no Afeganistão e a
crescente pressão da opinião pública norte-americana, onde ganhavam eco algumas
campanhas contra as políticas dos Talibãs em relação às mulheres, levaram a Unocal a
retirar-se do consórcio em 1998, afirmando que só o voltaria a integrar “quando o
Afeganistão atingisse a paz e estabilidade necessárias para obter o financiamento das
agências internacionais para o projecto, e fosse estabelecido um governo reconhecido pela
ONU e pelos EUA”25.

A batalha das condutas, que Ahmed Rashid descreve na terceira parte do livro “Os Talibãs
O Islão o Petróleo e o Novo Grande Jogo Na Ásia Central”, levou diversas companhias
petrolíferas a estabelecer contactos com os Talibãs e com as restantes facções do conflito
afegão, contribuindo decisivamente para acentuar a guerra civil afegã e aumentar o
interesse dos Estados envolvidos. Incentivados pelo Paquistão que, cada vez mais
interessado numa rápida resolução do conflito, procurava explorar o tradicional alinhamento
com os EUA e a Arábia Saudita, os Talibãs acentuaram as campanhas militares para
controlar todo o território, na esperança de garantir o reconhecimento internacional e
assegurar uma nova fonte de receitas. Os EUA, que tardavam em definir uma política

24
Formado pela Unocal (46,5%), a Delta Oil (Arábia Saudita, 15%), o Governo do Turcomenistão (7%), a
Indonesia Petroleum (6,5%), a ITOCHU Oil (Japão, 6,5%), a Hyundai (Coreia do Sul, 5%) e The Crescent Group
(Paquistão, 3,5%). Os restantes 10% ficavam reservados para a adesão dos russos da RAO Gazpro, que nunca
se chegou a concretizar.
25
“Unocal Statement: Suspension of activities related to proposed natural gas pipeline across Afghanistan”
disponível em http://www.unocal.com/uclnews/98news/082198.htm.

242
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

coerente para a região, acreditaram que os Talibãs podiam garantir a estabilidade da rota e
apoiaram mais uma vez a interferência paquistanesa no Afeganistão. Marcados pela lógica
da Guerra Fria, pretendiam viabilizar o acesso às reservas energéticas da Ásia Central, para
promover a afirmação das novas repúblicas e conter a influência da Rússia na região, mas
sem esquecer a tradicional intransigência face ao Irão. Esta opção também se integrava
numa estratégia mais vasta de diversificação da oferta de petróleo, procurando diminuir a
dependência do Golfo Pérsico, onde o espaço de manobra dos EUA estava limitado pela
tentativa de isolar o Iraque e a incapacidade de pôr fim ao conflito Israelo-Palestiniano.

Mapa 8
OLEODUTOS E GASODUTOS NA ÁSIA CENTRAL

Fonte: . Worldpress.org

O interesse dos EUA e das petrolíferas norte-americanas aumentou a perplexidade do Irão.


Desconfiado das intenções de Washington e pouco disposto a ser afastado do acesso à
Ásia Central, o Irão também não podia aceitar a ascensão dos Talibãs, especialmente após
vários diplomatas iranianos serem assassinados na conquista de Mazar, num incidente que
quase levou o Irão a invadir o Afeganistão. Aproveitando os laços étnicos, o Irão aumentou o
apoio à Frente Unida, procurando demonstrar que uma solução da questão afegã não
poderia ser obtida sem o consentimento de Teerão. A Rússia, que procurava recuperar
influência na Ásia Central, sempre fizera depender o apoio a novos oleodutos da sua

243
Informação Internacional

participação nos projectos e, para tentar travar a ameaça de uma alternativa ao seu
monopólio, foi-se aproximando do Irão. Enquanto os Estados da Ásia Central desesperavam
por novos canais para escoar as suas exportações, partilhavam com a China, a Índia e a
Turquia, embora a níveis diferentes, as preocupações com a difusão do fundamentalismo
islâmico na região. O radicalismo demonstrado pelos Talibãs, especialmente a identificação
com o extremismo pan-islâmico, incentivou o apoio da maioria destes Estados à Frente
Unida, levando-os a uma aproximação aos interesses da Rússia e do Irão que impediu a
estabilidade necessária para viabilizar a rota pelo Afeganistão.

Nos EUA, onde as campanhas contra as práticas dos Talibãs subiam de tom, especialmente
entre o tradicional eleitorado feminino de Bill Clinton, a persistente recusa em entregar bin
Laden contribuía para uma progressiva mudança no posicionamento dos norte-americanos.
Os EUA compreenderam que, com o extremismo que implementavam, os Talibãs não
podiam assegurar um clima de estabilidade, condição fundamental para atrair os avultados
investimentos necessários à viabilização das novas rotas, e que essa estabilidade só
poderia ser conseguida após terminar a guerra civil afegã. Os norte-americanos também
não tinham conseguido impedir um acordo de longo prazo para a exportação de gás
iraniano para a Turquia, o primeiro do género conseguido por Teerão após a revolução, e
que ameaçava ligar os gasodutos dos dois países, tornado o Irão a alternativa mais viável
para assegurar o acesso à Ásia Central. Assinado em Agosto de 1996 e válido por 25 anos,
o acordo esteve rodeado de diversas polémicas que impediram a sua execução imediata26,
não sendo de estranhar que grande parte delas tenham origem na pressão dos norte-
americanos. Reféns das políticas dos seus aliados regionais, especialmente do Paquistão,
pois a Arábia Saudita já se afastava dos Talibãs em consequência da ameaça que bin
Laden representava, os EUA procuravam encontrar alternativas, apoiando, nomeadamente
a proposta para a construção um oleoduto sob o Mar Cáspio. Esta rota, evitando a Rússia e
o Irão, possibilitava o acesso à Ásia Central, ligando directamente o Azerbeijão e o
Turcomenistão, mas dependia da estabilidade na Geórgia e de um acordo sobre a utilização
do Mar Cáspio, onde a Rússia e o Irão eram fundamentais para atingir qualquer
entendimento. Quando os altos custos ameaçaram transformar o projecto numa miragem,
aumentando a impaciência dos restantes actores, os EUA pareciam cada vez mais longe de
atingir os seus objectivos na Ásia Central. Mas, o interesse dos norte-americanos pelas
reservas da Ásia Central voltou a crescer com o rápido aumento do preço do petróleo e
com a eleição de George W. Bush, que, naturalmente, veio favorecer as pretensões do
sector petrolífero. A conjugação destes factores originou a definição de uma nova política
energética que, reconhendo a dependência do exterior, deu ainda mais ênfase às tentativas
de diversificar a origem dos fornecimentos. A Ásia Central, no entanto, ainda parecia um
lugar demasiado longínquo e inacessível para motivar um envolvimento tão dispendioso,
mas, em breve, os EUA receberiam um impulso decisivo para aumentar a sua preocupação
sobre a evolução dos acontecimentos na região, particularmente no Afeganistão.

26
Apesar das pressões norte-americanas, as entregas de gás iraniano à Turquia começaram em 2002. Ver
Shamshiri, Mohsen; “Gas Export from Iran to Turkey Within the Next 25 Years”, Mardom-Salari, Jan 27, 2002,
Vol. 1, No. 30, disponível em http://www.netiran.com/weeklyjournal.html.

244
O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

A INTERVENÇÃO QUE FALTAVA

“O que é mais importante para a História do Mundo? Os talibãs ou a queda do Império


Soviético? Alguns islâmicos excitados ou a libertação da Europa Central e o fim da Guerra
Fria?”27 Apesar da incontestável importância da desagregação da URSS, Brzezinski não
seria hoje tão peremptório. Os ataques de 11 de Setembro de 2001, em que, para além dos
elevados prejuízos humanos, os principais centros do poder norte-americano foram pela
primeira vez atacados por um inimigo externo, levarão, por certo, os actuais responsáveis
dos EUA a reflectir sobre os erros cometidos no Afeganistão. “Contra todas as expectativas,
nós, o mundo livre e os afegãos, demos um xeque-mate ao expansionismo soviético há uma
década. Mas o meu povo não pode saborear a vitória. Em vez disso, foi arrastado para um
remoinho de intriga internacional, decepção, grandes manipulações e luta interna. ... O
Mundo pode hoje ver e sentir claramente o resultado de tais actos erróneos. O Sul da Ásia
Central está em turbulência, com alguns países às portas da guerra. A produção ilegal de
drogas e o planeamento de actividades terroristas estão a crescer. Têm ocorrido massacres
por motivos étnicos e religiosos, deslocações forçadas de populações, e os mais básicos
direitos dos homens e das mulheres são vergonhosamente violados. O país tem sido
gradualmente ocupado por fanáticos, extremistas, terroristas, mercenários, máfias da droga
e assassinos profissionais. Uma das facções, os talibãs, que de forma alguma representam
o Islão, o Afeganistão ou a nossa centenária herança cultural, exacerbou esta situação
explosiva graças ao apoio externo. Negociar com eles é completamante improdutivo pois
são incapazes de aceitar um compromisso com qualquer um dos outros grupos”28. A carta
que Massud escreveu ao Comité de Relações Exteriores do Senado só fez sentido no
Ocidente, e em particular nos EUA, após a sua morte. Era impensável que um centro do
poder ocidental pudesse vir a ser alvo de um ataque organizado num país remoto, muito
menos que um grupo terrorista, mesmo que bem organizado, pudesse executar nos EUA
uma acção com a dimensão dos atentados de 11 de Setembro, mas o Afeganistão reunia as
condições para que esse mito fosse definitivamente quebrado.

Exclusivamente concentrados na confrontação Leste-Oeste, os EUA procuraram transformar


o Afeganistão no Vietname da URSS, fomentando uma forte oposição armada que acabaria
por forçar a retirada e contribuir para a posterior derrocada da União Soviética. Como os
interesses dos norte-americanos coincidiam com os dos grupos mais radicais do Paquistão
e da Arábia Saudita, e os EUA confiavam nestes países para assegurar o sucesso da
missão, foi inevitável o apoio a alguns dos sectores mais radicais do Islão. Por outro lado, os
EUA nunca questionaram os sistemas políticos dos seus aliados, aceitando quase sempre
sem constrangimento a governação autoritária, muitas vezes despótica, que caracterizou
estes Estados. Enquanto procuravam manipular os grupos mais radicais de acordo com as
suas próprias ambições, o Paquistão e a Arábia Saudita não conseguiam evitar o constante
crescimento da pobreza e do descontentamento, ajudando a fortalecer o extremismo
islâmico que vêem surgir agora como importante ameaça ao poder instituído. Pactuando
com regimes que não podiam corresponder às expectativas das suas próprias populações,
os EUA acabavam por contribuir para a difusão de um vincado sentimento anti-americano

27
Ver entrevista com Zbigniew Brzezinski em Le Nouvel Observateur nº 1732, 15 a 21 Janeiro de 1998, p. 76,
disponível em http://archives.nouvelobs.com/
28
“A Message to the People of the United States of America” Ahmad Shah Massud 8 de Outubro de 1998,
disponível em http://www.ciriello.com/site/pw/46massud.html#anchor

245
Informação Internacional

por todo o Médio Oriente, já potenciando pelo tradicional posicionamento norte-americano


na questão palestiniana. Ao abandonarem o Afeganistão à mercê das potências regionais
quando já não tinha utilidade na luta contra o comunismo, os EUA permitiram que o
imaginário do país recuasse da Revolução Soviética de 1917, em que os excêntricos
dirigentes Khalq acreditavam viver, para a época dos Califados, mais ao agrado de um
maulá Omar transformado em Emir. E não era preciso muito para fazer regressar à Idade
Média um país completamente destruído pela guerra civil.

Atacados no coração do seu próprio território, os EUA não podiam mais ignorar bin Laden e
a evolução da situação no Afeganistão. Perante a já esperada recusa dos Talibãs em
entregar bin Laden, os EUA realizaram uma poderosa ofensiva diplomática para assegurar
os apoios diplomáticos necessários à longa luta contra o terrorismo anunciada por George
W. Bush, de que a intervenção militar no Afeganistão seria apenas o primeiro capítulo. Foi
possível isolar os Talibãs e, sem grande surpresas, recolher o apoio ou evitar a oposição
dos principais Estados com interesses na região. No Paquistão, o caso mais complicado, o
General Pervez Musharraf foi confrontado com o fantasma do apoio aos Talibãs, e a
submissão aos interesses norte-americanos provocou a agitação dos sectores mais radicais.
A Rússia, a China e o Irão, condenaram veementemente os atentados terroristas, mas não
reagiram da mesma forma ao ataque aos Talibãs. A Rússia surgia na primeira linha do apoio
aos EUA, com Vladimir Putin a incitar os países da Ásia Central a apoiar os norte-
americanos, aproveitando para realçar as semelhanças e as ligações entre os Talibãs, bin
Laden e os guerrilheiros chechenos, enquanto Irão e China, embora de forma mais ou
menos moderada, criticaram a intervenção ou o excessivo sofrimento que causou. Um
pouco mais surpreendente, embora de forma alguma inexplicável, foi a recusa Saudita em
ceder bases militares para ataques directos contra os Talibãs e bin Laden, dificultando a
logística das operações norte-americanas e pondo em causa e estensão dos ataques a
outros países.

Se as condições específicas do Afeganistão deixavam antever algumas dificuldades, a


poderosa máquina de guerra norte-americana arrasou rapidamente as estruturas em que
assentava o poder dos Talibãs. Mais do que a destruição provocada nas forças militares
pelo contínuo bombardeamento a que foram sujeitas, a substancial redução das linhas de
comunicação com o exterior, única forma de reabastecer o exército de um país que nada
produz, impediu uma resistência prolongada. Sem meios para continuar a comprar a
lealdade dos chefes tribais, os Talibãs agiram de acordo com o tradicional modo de guerra
Pastun, abandonando simplesmente as acções militares para a tradicional pausa de Inverno
ou dedicando-se a esporádicas acções de guerrilha a partir de bases de difícil acesso.
Enquanto para os “árabes afegãos” e para os voluntários internacionais da Al-Qáida restava
a fuga, a rendição ou a resistência até à morte, reunia-se em Bona uma Conferência com
representantes da comunidade internacional e de todas as facções afegãs, procurando
nomear um governo interino e decidir o futuro do Afeganistão.

A Actual Situação e o Relacionamento Futuro

Apesar de ainda não serem visíveis todas as consequências da intervenção militar da


coligação liderada pelos EUA, até porque as intenções finais dos norte-americanos não são
totalmente conhecidas, é possível avaliar alguns dos problemas e desenvolvimentos que
marcam o Afeganistão e a Ásia Central actualmente.

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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

Mapa 9
SITUAÇÃO HUMANITÁRIA NO AFEGANISTÃO

Fonte: US Department of State

No Afeganistão, em primeiro lugar, os ataques norte-americanos não se limitaram a varrer


os Talibãs do poder ou aos “efeitos colaterais”, que habitualmente querem dizer vitimas
civis, e estão sempre associados a este tipo de acções. A ofensiva provocou uma onda de
refugiados ainda antes de se iniciar, e novas vagas se seguiram à medida que a destruição
ia aumentando, criando mais problemas às organizações humanitárias e aos países
vizinhos. A entrega atempada da ajuda humanitária, essencial para a sobrevivência de mais
de sete milhões de pessoas, tornou-se a principal prioridade imediata, mas a reconstrução
política do país, estabelecendo uma administração efectiva em todo o território e
proporcionando a segurança mínima às populações, demonstrou ser essencial para
assegurar a distribuição dessa ajuda. Sempre que não foi possível instaurar de pronto a
ordem após a retirada dos Talibãs, especialmente na cintura Pastun, onde a influência da
Frente Unida é reduzida, criaram-se situações de vazio de poder, potenciando a desordem e
o ressurgimento em força de diversos senhores da guerra.

Entretanto, em Bona, eram dados os primeiros passos para a reconstituição da identidade


nacional, e a pressão internacional levou as tradicionalmente desavindas facções afegãs a
chegar a um acordo para formação do governo provisório, que convocaria uma Loya Jirga
para decidir o futuro do país. Hamed Karzai, um Pastun ocidentalizado próximo da
monarquia, chefe do tradicionalmente poderoso clã Popalzai, foi escolhido para chefiar um
governo interino em que quase todos os principais lideres aceitaram participar. Embora a
real tarefa do novo executivo seja garantir a união e a estabilidade, evitando confrontações
insanáveis entre as diversas facções e criando condições para um controlo efectivo do país,

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Informação Internacional

não poderá esquecer diversos sectores essenciais para evitar a perpetuação da actual
situação. Ultrapassar a total destruição das infra-estruturas e a inexistência dos mais
elementares sistemas de saúde e de educação, satisfazendo as necessidades mais básicas
da população nestes campos, não será possível sem a criação de meios de comunicação
adequados para transmitir mensagens a uma população maioritariamente analfabeta. Um
maior respeito pelos direitos humanos, acompanhado por uma intervenção decidida em
matérias de capital importância para assegurar a segurança, como o tráfico de drogas e o
contrabando de armas, são fundamentais para assegurar a estabilidade, mas vão provocar
inevitáveis reacções dos atingidos. A luta entre os diversos grupos para assegurar a maior
representatividade possível na Loya Jirga, e as tensões que resultarão das suas decisões,
são uma ameaça constante à manutenção da unidade afegã, mas o agravar da
fragmentação étnica só poderá conduzir à divisão do país, criando um precedente perigoso
que pode alastrar a toda a região. Evitar este cenário deverá ser, por certo, um dos
principais objectivos de todos os actores envolvidos, mas só um forte e continuado empenho
poderá assegurar o seu afastamento definitivo.

A eliminação da ameaça que os Talibãs representavam foi recebida com alívio na região,
mas o regresso aos países de origem de alguns voluntários que combatiam no Afeganistão
contribuiu, no imediato, para aumentar a tensão em diversas zonas. Se Caxemira, o
Curdistão Iraquiano e o Uzbequistão foram algumas das regiões mais afectadas, a situação
parece particularmente grave no Paquistão. Mas, se a normalização no Afeganistão não
pode ser obtida à custa da degradação da situação no Paquistão, já que a estabilidade
neste país é essencial para atingir tal objectivo, o estatuto nuclear e o perigo de escalada na
tradicional disputa com a Índia, tantas vezes manobrada para garantir a coesão nacional,
podem transformar o Paquistão na maior ameaça à estabilidade regional.

CONCLUSÃO

O Afeganistão foi, durante séculos, um importante ponto de passagem para diversas


civilizações, em grande parte devido à sua localização geográfica e às particularidades do
relevo envolvente. Os Impérios Europeus interessaram-se pela região no século XIX,
quando atingiram o auge as disputas para controlar o acesso aos portos do Golfo Pérsico e
do Índico entre uma potência marítima (Grã-Bretanha) e uma potência continental (Rússia).
Neste jogo, geralmente baseado na pressão e no suborno, mas que exigiu, por vezes, a
acção militar, as tentativas de influenciar o destino do Afeganistão determinaram as actuais
fronteiras, dividindo povos e tribos por linhas artificiais, e condicionaram o comportamento
dos governantes afegãos. Apesar de ter aproveitado a decadência do Império Britânico para
assegurar uma independência plena, o Afeganistão continuou refém da mesma lógica de
oposição entre superpotências, a que a criação da União Soviética apenas acrescentou uma
componente ideológica.

O Afeganistão manteve intacto o seu valor estratégico após a II Guerra Mundial, mas a
situação alterou-se substancialmente quando a afirmação dos EUA como potência marítima
dominante se conjugou com a saída dos Britânicos da Índia, provocando o aparecimento de
novos Estados e novas dinâmicas regionais. Os EUA tentaram assumir o papel até aí
atribuído aos Britânicos mas, com a tensão entre Índia e Paquistão a dominar a formação
das alianças regionais, o problema da delimitação de fronteiras herdado do século XIX foi
determinante na definição no posicionamento do Afeganistão durante a Guerra Fria. Apesar
do interesse dos EUA em apoiar a independência e neutralidade do Afeganistão, as alianças

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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

com o Irão e com o Paquistão asseguraram os seus objectivos regionais, e esta opção
impossibilitava uma real aproximação ao Afeganistão. Fracassadas todas as tentativas de
entendimento, os líderes afegãos desenvolvem relações privilegiadas com a URSS que,
lentamente, evoluiriam para uma situação de crescente dependência económica e militar.
Assegurando uma progressiva influência na sociedade afegã, a URSS veria esse esforço
recompensado quando a Revolução Saur instaurou um regime comunista claramente pró-
soviético.

Se o novo regime afegão podia pôr em causa o equilíbrio regional, a transformação do Irão
numa República Islâmica comandada por Khomeini provocou um verdadeiro terramoto na
estabilidade regional, numa época em que se esfumavam os efeitos da détente. Os EUA,
vendo o principal aliado na região transformar-se num feroz opositor, passaram a dedicar
uma maior atenção ao Afeganistão que, especialmente após a invasão soviética, iria ocupar
um papel fulcral no reacender da disputa entre as superpotências. A presença das tropas da
URSS no Afeganistão justificaria o crescente apoio dos EUA a diversos grupos de mujahidin
que combatiam o regime comunista. Desenvolvido através do Paquistão com um forte apoio
logístico e financeiro da Arábia Saudita, o envolvimento norte-americano foi fundamental
para impedir a consolidação da ocupação soviética, contribuindo decisivamente para a
retirada do Exército Vermelho e para a posterior derrocada da URSS.

O desaparecimento da URSS alterou completamente o equilíbrio regional, mas o valor


estratégico do Afeganistão como ponto de passagem saiu reforçado. Acompanhada do
surgimento de novos actores desejosos de agir de forma independente, a saída de cena das
superpotências, pondo fim aos fundamentos do “grande jogo”, favoreceu a afirmação das
potências regionais. O Paquistão colocou-se na primeira linha, procurando assegurar uma
ligação directa à Ásia Central através do Afeganistão, competindo com o Irão, a Índia, a
Turquia, e os novos Estados, que também pretendiam assegurar os respectivos interesses.
Mas os ecos da traumatizante intervenção militar da URSS ainda não tinham deixado de se
ouvir. As acções das forças soviéticas e a resposta patrocinada separadamente pelos
diversos países que apoiavam os mujahidin, acentuaram drasticamente a fragmentação
étnica, e as subsequentes tentativas das potências regionais aprofundaram essas divisões.
O carácter religioso da jihad, atraindo muçulmanos de todo o Mundo, colocou o Afeganistão
no centro da difusão dos ideais fundamentalistas e, terminada a guerra contra os soviéticos,
o regresso a casa dos combatentes iria ter repercussões em diversas zonas do globo. O
Afeganistão mergulhou no caos e na guerra civil, com uma população martirizada perante a
indiferença da maior parte da comunidade internacional. Assim, serviu de abrigo às mais
diversas actividades ilícitas, do cultivo e produção de droga ao tráfico de armas, albergando
também diversos movimentos radicais que começaram a atacar os interesses dos EUA e a
aumentar a pressão sobre os governantes do Paquistão e da Arábia Saudita.

Os atentados de 11 de Setembro precipitam os EUA para o Afeganistão, tornando visível um


novo “grande jogo” que até aí decorria quase exclusivamente nos bastidores. Numa acção
justificada pela necessidade de castigar os responsáveis e acabar com a ameaça terrorista,
os EUA, apoiados pela maior parte dos seus tradicionais aliados, atacaram e controlaram os
pontos estratégicos do país, mantendo aberta a possibilidade de avançar noutras direcções.
Mas, primeiro, os EUA são obrigados a lidar com a fragmentação étnica no Afeganistão,
tentando harmonizar as diversas facções para assegurar a estabilidade. A diversidade
étnica afegã, que transforma o país num puzzle difícil de montar, não é exclusiva do

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Informação Internacional

Afeganistão, antes pode ser encontrada em todos os Estados da Ásia Central. No centro
deste mosaico étnico, que pode vir a estalar com facilidade, existem enormes reservas de
gás e petróleo. Não perdendo de vista os seus interesses estratégicos, os EUA alargaram a
cooperação com os Estados da Ásia Central, com quem partilham o desejo de tornar viável
a exploração desses recursos. Se a estratégia dos EUA no acesso a esses recursos se
baseou até agora na exclusão da Rússia e do Irão, os acontecimentos de 11 de Setembro e
a evolução que se seguiu, podem ou não conduzir a uma alteração no posicionamento
norte-americano.

Caso seja assegurada a estabilidade no Afeganistão, será possível transformá-lo na


principal porta de entrada na Ásia Central, não sendo de estranhar que surjam rapidamente
os meios financeiros necessários para melhorar as comunicações e explorar os recursos
disponíveis. Esta opção poderia garantir os objectivos dos EUA e das Repúblicas da Ásia
Central, ajudando a recuperar das economias do Afeganistão e do Paquistão, mas deixaria
um papel secundário à Rússia. No entanto, ultrapassando a lógica subjacente à Guerra Fria,
a Rússia apoiou a aproximação dos EUA à Ásia Central, posicionando-se favoravelmente
para participar nos consórcios envolvidos na exploração e comercialização ou desenvolver
projectos alternativos para atingir o mercado chinês. Além da exclusão da Arábia Saudita
que, até recuperar das desventuras com os Talibãs, parece necessitar de um período
sabático, outros dois factores podem reduzir a velocidade da iniciativa; a inclusão do
Paquistão e a exclusão do Irão. Apesar das possibilidades de desestabilização do Paquistão
serem reais, o que deitaria por terra todo o projecto, elas seriam limitadas pelas vantagens
comerciais e económicas que o país obteria com a sua concretização, e a posterior ligação
à Índia dos oleodutos constituiria um escudo bem melhor do que a profundidade estratégica
que sempre procurou no Afeganistão. Hoje uma importante potência regional, o Irão
dificilmente aceitará o afastamento, e, devido ás afinidades que possui no terreno, a ameaça
de utilização da força contra a sua influência no Afeganistão apenas poderá impedir uma
rápida estabilização da situação. Apesar de ser um dos objectivos iniciais dos EUA, a
completa exclusão do Irão poderá ser o elo mais fraco nesta solução.

Uma retirada do Afeganistão sem atingir os objectivos ou um sucesso limitado, isto é, sem
garantir a estabilidade necessária para transformar o país num acesso privilegiado à Ásia
Central, poderia obrigar os EUA a rever a sua política nesta matéria. Como Irão e a Rússia
continuam com capacidade para inviabilizar qualquer uma das rotas alternativas, seria entre
eles que os EUA poderiam encontrar a parceria ideal. Como, em Washington, as chagas da
Guerra Fria parecem já ter sarado mais do que as da Revolução Iraniana, a Rússia surge
como óbvio aliado preferencial, e com a vantagem de um vasto relacionamento com as
Repúblicas da Ásia Central. O Irão, no entanto, não deve ser completamente excluído, pois
já possui parte das infra-estruturas e do conhecimento necessário, e poderá ser tentado a
desenvolver uma solução alternativa de acesso ao Sul e ao mercado paquistanês. Não
assegurando essa ligação, as Repúblicas da Ásia Central poderiam tentar recuperar a
desvantagem económica no relacionamento com China, mas a maioria das suas actividades
seriam seriamente prejudicadas. O Paquistão seria, provavelmente, o principal perdedor,
ficando dependente do gás iraniano e sem nenhum novo impulso para fortalecer a
economia, e o seu crescimento, tal como o do Afeganistão, poderia ser muito mais lento.

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O Afeganistão − no Epicentro do Conflito ou da Estabilidade na Ásia Central

O Afeganistão, que hoje é, indubitavelmente, um dos países mais pobres e atrasados de


todo o planeta, continua, pela sua localização estratégica, a desempenhar um papel
fundamental no acesso à Ásia Central. A sua evolução vai marcar decisivamente o ritmo do
desenvolvimento regional, mas a herança de mais de vinte anos de luta contínua, que o
colocaram na actual situação, provocaram feridas demasiado profundas, que só poderão ser
curadas com uma colaboração entre todas as partes envolvidas, interna e externamente. Só
assim será possível evitar que se repitam as consequências dos boicotes anteriores e,
quebrando o ciclo vicioso da intolerância e da violência, criar um clima de estabilidade que
contribua para o bem-estar das populações e para o desenvolvimento. Mas, será algum dia
possível estabilizar o Afeganistão?

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