You are on page 1of 3

Março 2009 Revista Adusp

DOPS agora é Memorial da Resistência


Diante de ex-presos políticos, Governador fica em silêncio

Tatiane Klein
Estudante de Jornalismo (ECA-USP)

Anderson Barbosa

Reformado, prédio que abrigou polícia política tornou-se um espaço educativo

Do lado de dentro do prédio da inscrições são réplicas das originais. Nesse dia, o edifício que abriga
Estação Pinacoteca, quatro celas são Foram feitas há menos de um ano, o Memorial, originalmente constru-
relíquia do passado repressor do Es- no processo de reconstituição das ído como espaço para os escritórios
tado brasileiro. “Olavo Hansen mor- dependências do Departamento Es- e armazéns da Companhia Estrada
reu aqui”, está gravado no interior tadual de Ordem Política e Social, de Ferro Sorocabana, recebeu de
da cela 2. “Pegaram meu bebê para mais conhecido pelas siglas Deops ex-presos políticos a jovens estu-
me ameaçar”, assina Rose Noguei- e DOPS, e de construção do Memo- dantes, passando pelas autoridades
ra ao lado. Apesar de remeterem rial da Resistência, trazido a público que inauguraram oficialmente o
ao período da Ditadura militar, tais em 24 de janeiro de 2009. espaço. Pronunciaram-se, na aber-

16
Revista Adusp Março 2009
Anderson Barbosa
tura, o Fórum Permanente de Ex-
Presos e Perseguidos Políticos, nas
figuras de Rafael Martinelli, seu
presidente, e do jornalista Ivan Sei-
xas; o coordenador da Pinacoteca
do Estado, Marcelo Araújo; o se-
cretário estadual da Cultura, João
Sayad; e o presidente da Comissão
de Anistia do Ministério da Justiça,
Paulo Abrão, representando o mi-
nistro Tarso Genro.
Aguardado por três horas desde
a abertura do evento, às 11 horas, o
governador José Serra não se mani-
festou no lançamento do Memorial.
Apesar de ter sido cumprimentado
Interior de cela aberta à visitação
por Martinelli, como “companhei-
ro de perseguição política desde
1964”, o governador apenas visitou fotógrafo José Patrício, do jornal superiores, permanecem fechadas.
o espaço e sequer falou aos jorna- O Estado de S. Paulo, na reconsti- Patrício explica que houve intenção
listas que cobriam a inauguração. tuição. “Ninguém sabia mais como de abrir essas salas, mas não havia
Questionado pela Revista Adusp so- era. As portas e as colunas foram material suficiente para reconstruir
bre a possibilidade de transforma- as únicas coisas que se mantiveram os espaços. Ele recorda especial-
ção de outros locais, para fins de originais”, ele explica. Durante to- mente a sala do famigerado delega-
preservação da memória histórica, do o mês de outubro de 1998, quan- do Sérgio Paranhos Fleury: “A sala
Serra novamente silenciou. do Patrício trabalhava para o Diá- dele tinha móveis rústicos, móveis
Sayad, porém, respondeu à re- rio Popular e enquanto o prédio do pretos, uns sofás verde-e-amarelo.
portagem, afirmando que existe in- Deops ainda conservava sua forma Ele era um cara que todo mundo
teresse do governo na criação de original, o fotógrafo visitou várias temia muito. E no andar em que
outros memoriais. “Eu gostaria que vezes o local, registrando detalhes ele ficava, só mesmo os policiais po-
o museu fosse mais dramático ain- importantes para a reconstituição. diam entrar. Eu cheguei a retratar e
da, mas sempre será uma recons- “Muitos presos não lembravam relatar tudo isso aí, em imagens: a
trução, porque o original se perdeu mais [como era]. Diante das fotos a sala dele, a caveira do Deops, mui-
— foi pintado, raspado e perdido”, memória deles revivia”, aponta Pa- tos móveis, muitos objetos”.
reclamou ele na abertura do even- trício, lembrando que a existência Na última das celas reconstitu-
to. A referência do Secretário da de uma escada no final do corre- ídas, depoimentos sonoros de ex-
Cultura é a reforma que, em 2002, dor em que os presos tomavam sol presos políticos detalham o clima
transformou a aparência original foi confirmada por uma fotografia de solidariedade que se criou entre
do Deops em um ambiente em que sua. A maquete exposta no princi- eles no interior do Deops. Um de-
as celas “pareciam confortáveis sa- pal saguão do Memorial também les, o jornalista Alípio Freire, lem-
las de hotel”, nas palavras do secre- foi baseada nas imagens produzidas bra no áudio o quase ritual de sal-
tário da Cultura. por ele. vamento para os companheiros que
A reprodução das celas tal como Há dependências, contudo, que voltavam da sala de tortura. Era
elas eram no período 1971-1982 só não foram reabertas. As salas de preciso “fazer massagem; não dar
foi possível graças ao trabalho do tortura, que ficavam nos andares água imediatamente”; depois de

17
Março 2009 Revista Adusp
Anderson Barbosa
um tempo, conta Freire, vinha o lei-
te e a conversa com o companheiro.
Entre os prisioneiros, a conversa
era como uma celebração.
Um episódio marcante foi a noi-
te do assassinato de Carlos Mari-
ghella. Segundo o relato de Freire,
o delegado Raul Ferreira desceu
as escadas carregando fotografias,
uma bíblia, uma estola nas mãos.
À frente da cela 2, o delegado, cujo
apelido era “Pudim”, começou a
cantar: “Olê, olá! Marighella se f.
foi no jantar!”. Ofendidos, os pre-
sos não aceitaram a notícia da mor-
te do veterano militante comunista,
Alípio Freire revê o local
líder do grupo armado clandestino
Ação Libertadora Nacional (ALN).
“A gente não acreditou e ele mos- Deops, hoje Memorial da Resistên- O projeto do Memorial come-
trou as fotos do Marighella morto”, cia, nome absolutamente adequado, çou a ser implantado em maio de
deslinda Freire. Rindo, o delegado é apenas um importantíssimo passo, 2008 e foca desde as ações educa-
seguiu pelos corredores do Deops o projeto é maior do que está aí. tivas e culturais até a disseminação
exibindo as fotografias e cantando. Temos que ir em frente. Devemos de estudos e pesquisas científicas
Na contrapartida dessa tentativa de nos apropriar de todos os espaços sobre o Deops. Ele abriga também
desmoralização, os presos cantaram de memória deste país, não só de um Centro de Referência Biblio-
a Internacional Comunista. São Paulo. Porque foram muitos gráfica e de Bens Patrimoniais que
Em entrevista, Freire, que che- centros de tortura e eles vão demo- expõe objetos retirados de inqué-
gou ao Deops em 6 de julho de 1969, lindo. Demoliram o quartel onde ritos, bem como reproduções de
relembra outros aspectos da cotidia- funcionava a Oban e o Presídio Ti- fichas de presos políticos que cons-
no: “Durante a semana, de segunda radentes”. tam dos registros do Deops e hoje
a sexta, nós subiamos para ser inter- Sérgio Gomes, jornalista que fi- estão em posse do Arquivo Público
rogados e torturados. Vários compa- cou preso no Deops em 1975, re- do Estado de São Paulo. O traba-
nheiros. Toda vez que alguém estava clama da inexistência de um memo- lho de pesquisa fica por conta do
lá em cima, aqui em baixo tinha um rial não só para lembrar as agruras Proin, um projeto que integra a
silêncio sepulcral, porque a gente do regime, mas também das idéias Universidade de São Paulo e o Ar-
não sabia o que estava acontecendo políticas que pautavam a ação dos quivo Público do Estado, que exis-
com esse companheiro, não sabia se grupos e indivíduos perseguidos te há 12 anos e hoje já permite a
ele voltaria. Nesse período você não durante a Ditadura. Segundo ele, consulta parcial de fichas do Deops
existia legalmente, não existia man- faltam iniciativas da parte dos pró- pela internet. O projeto do Memo-
dado judicial. Nesse período muitos prios militantes do Direito à Me- rial da Resistência é de autoria das
companheiros desapareceram para mória, à Verdade e à Justiça para professoras Maria Cristina Oliveira
sempre”. que os projetos políticos dos prisio- Bruno, do Museu de Arqueologia
Freire, que assessorou a recons- neiros da época ganhem fôlego nos e Etnologia da USP, e Maria Luiza
tituição, destaca a importância da dias de hoje tal e qual as histórias Tucci Carneiro, do Departamento
existência do Memorial: “O antigo de repressão. de História da FFLCH-USP.

18

You might also like