You are on page 1of 2

1 Sucessão tibetana no exílio

2 Aldo Pereira

3 Ao anunciar mais uma vez a decisão de transferir seu poder temporal, o


4 Dalai Lama responde à pergunta tantas vezes repetida — quando? Mas
5 deixa outras questões por serem respondidas, entre estas a de como
6 transferir ao sucessor a liderança construída ao longo de cinco décadas de
7 eficiente e bem financiada propaganda erigida sobre o alicerce da mística
8 tibetana.

9 As complicadas negociações entre o governo chinês e exilados tibetanos


10 (hoje provavelmente superados, em número, por seus descendentes) têm
11 sido marcadas por astúcia, prevaricação e contradições, algumas destas
12 desconcertantemente bizarras. Por exemplo, a mera existência de um
13 “Governo Tibetano no Exílio” (GTE) contradiz o reconhecimento da
14 soberania da China sobre o Tibete, reconhecimento esse tantas vezes
15 reiterado pelo Dalai Lama nos últimos anos.

16 De sua parte, o governo chinês, oficialmente ateu, reclama o direito de


17 reconhecer e oficializar possível reencarnação do Dalai Lama.
18 (Tradicionalmente, em razão do celibato, nenhum Dalai Lama procria
19 sucessor, mas reencarna nalgum bebê macho nascido logo depois de ele
20 desencarnar; uma comissão de astrólogos e videntes identifica o sucessor.)

21 Antes de a China efetivar a anexação do Tibete, em 1949, o país era


22 governado por uma coalizão de teocratas e aristocratas liderada
23 historicamente pelo Dalai Lama, que reunia em sua pessoa poderes e títulos
24 de monarca absolutista e sumo-sacerdote da religião oficial, o budismo
25 tibetano. Muito do poder político do Dalai Lama, então, sempre foi
26 manipulado por cortesãos que, no estilo da Renascença italiana, muitas
27 vezes recorreram a intrigas e assassinatos para assentar diferenças entre
28 facções.

29 Estas buscavam colocar a serviço delas a aura mística imensamente popular


30 do Dalai Lama e sua liderança espiritual do budismo tibetano. O qual
31 pouco tem a ver com as beatitudes agnósticas do budismo original indiano,
32 mas continua sendo convergência sincrética de credos animistas
33 autóctones, chamados coletivamente de Bon, fundidos com teologias e
Aldo Pereira, Sucessão tibetana, 2/2

34 liturgias hindus e budistas, resultando desse amálgama fantástico panteão


35 de centenas de divindades nacionais e locais.

36 Em suma, a distinção presumida entre poder temporal e religioso do Dalai


37 Lama pode se revelar impraticável. Ele tem dito que sua função é
38 espiritual, pois já delega assuntos seculares ao primeiro-ministro do GTE,
39 que há uns dez anos tem sido Samdhong Ripoche. Já ouvir falar nele?

40 Aldo Pereira (aldopereira.argumento@uol.com.br)


41 é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.

You might also like