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SARTRE DE BEAUVOIR

LUCIANO OLIVEIRA
Professor da UFPE
jlgo@hotlink.com.br

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir formaram durante meio século um casal mágico para
minha geração – aquela que nos anos 60 descobriu o marxismo, encantou-se com a revolução
cubana e deu de cara com a ditadura militar –; e, mesmo morando numa pequena cidade do
interior do Brasil – como era o meu caso –, começou a ouvir falar em amor livre, sobre que
havia toda uma mitologia em torno da Suécia (até hoje não sei por que exatamente a Suécia) e
dos jovens suecos que “faziam amor” (anglicismo que entrou no nosso vocabulário) quando
lhes desse na veneta! Sartre e Beauvoir, com seu “casamento aberto”, estimulavam uma ima-
ginação onde figuravam, percebo hoje, muita inocência e alguma má-fé: afinal, nós, os ho-
mens, certamente estávamos preparados para a liberdade sexual de que Sartre desfrutava, mas
não creio que estivéssemos preparados para que nossas namoradas se comportassem como
Simone!... Aliás, sabemos hoje que entre os dois as coisas não eram tão simples assim. Quem
leu Tête-à-Tête da americana Hazle Rowley, o livro que trata da relação “igualitária” que Je-
an-Paul e Simone prescreveram para si, fica com a impressão de que ela sofreu com a vaga-
bundagem sexual que ele, bem mais do que ela, exerceu com uma inconseqüência que chegou
por vezes a ser desrespeitosa.
A última palavra contém, propositadamente, certo despropósito! Jean-Paul e Simone
encarnaram, àquela época, tudo o que havia de mais radical em matéria de recusa ao que
chamávamos, com uma insolência onde não faltava também alguma inocência, de valores
burgueses. “Respeitabilidade” – com aspas, naturalmente – era um deles. Foram por 50 anos
um casal realmente sui generis: sempre habitando perto um do outro, nunca moraram juntos;
e sentimentos de posse estavam explicitamente excluídos do pacto de indissolubilidade (não-
matrimonial) que tinham para toda a vida – na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.
Que, aliás, cumpriram. Pelo menos, ela cumpriu! É curioso como, na velhice, Simone termi-
nou repetindo o destino de boa parte das mulheres que, normalmente mais longevas do que os
homens, terminam cuidando dos seus maridos com um desvelo de que eles geralmente não
são capazes. Quem já leu A Cerimônia do Adeus, em que ela descreve os anos de decadência
do seu companheiro, fica impressionado com a capacidade de doação que ela tinha. Morto, ela
vai ao quarto de hospital onde ele faleceu e tem uma idéia maluca: descobri-lo e deitar-se uma
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última vez ao lado do seu corpo nu. Roído pela diabetes e problemas circulatórios, partes dele
já estavam gangrenadas, e a enfermeira chama-lhe a atenção energicamente para a possibili-
dade de infecção: “Não. Cuidado... a gangrena”. Só então, diz ela, compreendeu “a verdadeira
origem de suas escaras”. Mesmo deixando o lençol, alonga-se junto do defunto e dorme um
momento. O seu relato termina com uma desencantada e racional, mas comovente declaração
de amor: “Sua morte nos separa. A minha morte não nos reunirá. Assim são as coisas: já é
muito que nossas vidas tenham podido se acordar durante tanto tempo”. Isso foi em 1980.
Seis anos depois, ela também partiu para o grande mistério.
Recentemente, no curso de uma revisita à obra de Sartre, é que me dei conta de que
nunca a tinha lido! E acho que não fui o único. Fiquei pensando sobre isso. A impressão que
tenho é a de que as pessoas da minha geração – pelo menos aquelas do mundo macho e de
esquerda de que eu fazia parte – nunca a consideraram uma pensadora a ser levada na mesma
conta em que tínhamos seu companheiro. Pensando bem, ela sempre foi a “mulher de Sartre”.
Pensando melhor ainda, não me lembro nunca de ter ouvido alguém referir-se a ele como o
“homem de Beauvoir”. Vejo hoje, nisso (ai, as voltas que o mundo dá!), uma espécie de re-
produção, mesmo que fosse inconsciente, do papel subalterno da mulher no mundo – desde
que o mundo é mundo –, e que ela, com brilho e uma erudição de tirar o fôlego, analisou e
denunciou numa obra monumental a que também nunca tinha dado maior importância: O Se-
gundo Sexo, publicada em 1949, quando ela tinha “apenas” 41 anos. Li-o recentemente, im-
pulsionado por um insight que tive num dia desses, que alguns amigos (sobretudo amigas...)
olharam meio de banda, mas no qual continuo apostando, sobretudo agora depois de ter per-
corrido suas cerca de mil páginas: Simone de Beauvoir é autora de uma obra que, com o pas-
sar do tempo e as peripécias da história, tornou-se mais importante do que a de Jean-Paul Sar-
tre! Por quê?
Porque da mesma maneira que Marx, que não inventou o socialismo, tornou-se o nome
mais importante do movimento operário, Beauvoir, que não inventou o feminismo, tornou-se
a teórica mais importante da – como costuma se dizer – única revolução que deu certo no sé-
culo XX: a das mulheres! E Sartre?
Sartre. Tenho a impressão de que sua obra teórica está bastante datada. O que não dimi-
nui a importância de sua participação no pensamento e na história política do século findo.
Entre o final da Segunda Guerra e inícios dos anos 80, o nome de Sartre, sem exagero, reful-
giu no mundo inteiro – dando continuidade a uma hegemonia cultural da França que se ini-
ciou com o Iluminismo e ainda não perdeu de todo o seu prestígio (basta considerar o que
ocorre hoje em dia com um nome como o de Michel Foucault). Contam que, no conturbado
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Maio de 68, com a França literalmente paralisada por um movimento que parecia ter saído
dos eixos de qualquer razoabilidade, o general De Gaulle foi aconselhado por seus acólitos a
mandar a polícia recolher o velho Sartre que, animando um auditório de estudantes gritando
palavras de ordem contra todo tipo de autoridade, tinha ocupado a veneranda Sorbonne. De
Gaulle, do alto dos seus quase dois metros de altura, teria replicado com sabedoria: “Não se
prende Voltaire!”. É isso. Sartre foi, em determinado momento, o Voltaire do século XX –
aquele que, corajosa e semelhantemente ao que seu ilustre antecessor havia feito em relação à
intolerância religiosa, decidiu afrontar a sociedade de privilégios em que nasceu e afirmar que
“o ponto de vista dos deserdados” é o mais verdadeiro em qualquer circunstância.
Hoje já não acreditamos nessa simplificação, mas pouco importa. O que vale a pena re-
cordar é que esse é, por assim dizer, o “segundo Sartre”, aquele da fase marxista que todos
nós conhecíamos e repetíamos mesmo sem ter lido A Crítica da Razão Dialética – onde se
encontra a proclamação de que o marxismo seria “a filosofia insuperável do nosso tempo”; o
Sartre que pôs em voga uma palavra mágica que chegou até Aracaju e o interior do estado de
Sergipe onde eu vivia: “engajamento”! Mas é esse Sartre, justamente, que, se ouso dizer, é um
pensador menor – como foi Voltaire no seu tempo, uma figura de inexcedível grandeza na
defesa dos valores das Luzes, mas que não chega a constituir uma ruptura no pensamento e na
forma de pensar, como foi, antes dele, um Hobbes; no seu tempo, um Rousseau; e, depois
dele, um Kant. Ocorre que Jean-Paul, por volta dos anos 50, mesmo sem admitir e até fazendo
um esforço descomunal para juntar as duas coisas, deixou de lado a perspectiva sombria da
chamada filosofia existencialista, dentro da qual tinha se tornado um nome de reputação com
a publicação em 1943, numa França ainda ocupada pelos nazistas, de O Ser e o Nada (outro
livro que nenhum de nós leu...), e abraçado, com fervor, o revolucionarismo marxista mais
delirante, responsável por sua ruptura com velhos amigos como Raymond Aron, Merleau-
Ponty e Albert Camus.
Este Sartre ultra-esquerdista está datado. Mas o filósofo da fase existencialista, também
acho que está. Sartre fez parte de uma geração influenciada pela filosofia de Heidegger – para
quem o homem se definia como um ser para-a-morte. Não há nada de alvissareiro nessa pers-
pectiva, e a obra do Sartre dessa época faz sua a “experiência da negatividade” típica da sen-
sibilidade moderna desde que Nietzsche fez o anúncio de que “Deus está morto”. A angústia é
o ar do tempo, e está na literatura de Kafka, no teatro de Beckett, na pintura do norueguês
Edvard Munch, cujo famoso quadro, O Grito, vale por uma pinacoteca inteira de desolação.
Retomemos os célebres termos sartrianos: o em-si, o para-si e o para-o-outro. Para ele
há dois modos fundamentais de ser: aquele próprio às coisas inanimadas – o em-si, e aquele
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outro próprio à consciência humana – o para-si. A consciência, vazia de sentido, é inteira-
mente livre no momento em que se dirige às coisas. “O Homem está condenado à liberdade” é
outra de suas frases antológicas. Isso é fonte de angústia, e uma das maneiras de escapar dessa
situação é desempenhar o papel que os outros designaram “para si”, tornando-se um ser para-
o-outro. O olhar do outro, assim, me petrifica, me transforma numa coisa em-si com a minha
aquiescência, porque a responsabilidade de exercer a liberdade radical a que estou condenado
é fonte de sofrimento. Prefiro, assim, uma vida inautêntica, como ser para-o-outro, donde
outra frase famosa que correu o mundo: “O inferno são os outros”.
Tudo isso é meio confuso e sombrio, e se, por razões de espaço, simplifico ao extremo,
não creio que falsifique o essencial do seu existencialismo. Pessimista por excelência, ele pa-
rece inscrito no clima cinzento do pós-guerra numa Paris ainda sofrendo a falta de víveres,
cujos intelectuais exorcizavam os horrores do conflito nas caves esfumaçadas da sofisticada
rive gauche, onde se escutava jazz e Juliette Greco, a qual, de cabelo na cintura e cantando
toda de preto, tinha se tornado a “musa do existencialismo” – que, por sua vez, tinha se torna-
do moda! Mas logo Sartre deixará de cultivar essa filosofia do desespero aderindo, como vi-
mos, ao marxismo. O livro sobre a razão dialética será seu projeto teórico nesse sentido. Sem
abandonar os conceitos existencialistas, ele irá historicizar o homem “inautêntico”, fazendo
dele não mais uma decorrência da condição humana, mas produto da sociedade capitalista,
com isso tornando-o um equivalente do homem “alienado” de Marx. Numa pirueta arguta,
mas a meu ver pouco convincente, ele dirá que o homem em-si, tornado objeto pelo olhar do
outro, será superado pela inserção no “grupo em fusão” da ação revolucionária que redimirá
sua inautenticidade. Como não acreditamos mais nisso, passemos a Simone.
Na verdade falo apenas da Simone de Beauvoir que escreveu O Segundo Sexo em 1949.
Mas quem escreve uma obra dessa magnitude aos 41 anos precisa de outras credenciais? É
nele onde se encontra o célebre princípio que nutre teoricamente ainda hoje o movimento fe-
minista: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Curiosamente, o desenvolvimento do
enunciado é bem menos radical do que dá a entender a sua leitura descontextualizada, pois
Beauvoir não está pretendendo que as mulheres não nascem fêmeas! Acho mesmo esse um
dos pontos mais lúcidos do seu pensamento: ser mulher não é a mesma coisa que ser fêmea;
da mesma maneira, aliás, que ser homem não é a mesma coisa que ser macho. Macho e fêmea
são destinos biológicos; mulher e homem são construções históricas. O que hoje até parece
uma banalidade, não o era então. Nesse sentido o livro de Simone é um desses que anunciam
uma tese que, vindo posteriormente se incorporar ao senso comum – mesmo que um senso
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comum qualificado –, parece desprovido de novidade quando o lemos a partir de um patamar
retrospectivo, esquecendo o quanto ele contribuiu para a construção desse mesmo patamar.
Com sua divisa célebre Beauvoir está afirmando que existe a fêmea como dado biológi-
co, certo, mas o que é feito desse dado – que atribuições lhe são designadas, que costumes lhe
são infligidos –, aí a responsabilidade já não cabe à biologia. Se de um lado só a mulher pode
dar à luz e amamentar, de outro se abrem infinitas possibilidades diferentes no que diz respei-
to ao exercício da maternidade e à prática da amamentação – e será a história, a economia, a
cultura etc. que se encarregarão de estabelecê-las. Como ela mesma diz, “Os dados biológicos
são de uma extrema importância [...]. Mas o que recusamos é a idéia de que eles constituem
para a mulher um destino fixo; eles não a condenam a conservar para sempre esse papel su-
bordinado.” O texto de Beauvoir está cheio de observações argutas sobre detalhes aparente-
mente menores acerca da maneira como revestimos as diferenças entre os dois sexos: “Nada é
menos natural do que vestir-se de mulher; sem dúvida o vestuário masculino é também artifi-
cial, mas é mais cômodo e mais simples, é feito para favorizar a ação em lugar de entravá-la”
– lembre-se o leitor de que, à época em que o livro foi escrito, mulheres não usavam calças!...
Assim, ela adverte: “Quando emprego palavras como mulher ou feminino, não me refiro evi-
dentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável”; ao usar essas palavras, acres-
centa, é preciso subentender: “no estado atual da educação e dos costumes.”
Mas esse estado atual, desde a mais remota antiguidade, foi sempre obra de homens.
“Foram os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações; que
descobriram a terra e inventaram todos os instrumentos para explorá-la, que a governaram e
encheram-na de estátuas, de quadros e de livros.” Neste universo masculino, à mulher sempre
coube o papel de apêndice – como está escrito no renitente mito da criação da primeira mu-
lher a partir de uma costela do primeiro homem. Como, então, admirar-se de que ela própria
se sinta inferior? Em determinado momento Beauvoir remete a uma deliciosa boutade de
Bernard Shaw: “O americano branco relega o negro à condição de engraxate; e daí conclui
que ele é bom apenas para engraxar sapatos”... Valendo-se da terminologia sartriana que ela
usa abundantemente no livro, a mulher – como o negro numa sociedade racista, o judeu numa
sociedade nazista – não tem uma vida autêntica; ela é um ser para-o-outro.
Seria impossível, numa apresentação tão breve que é ao mesmo tempo uma homenagem
– além de convite para que leitores retardatários como eu conheçam finalmente seu grande
livro –, falar de toda a riqueza histórica, sociológica, psicológica e até literária de O Segundo
Sexo. Esquivo-me da tentação de inserir alguma conjunção adversativa nesta admiração. Al-
gumas até me ocorreram durante a leitura. Há passagens em que la Beauvoir deixa-se entusi-
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asmar pela militância e parece comprazer-se no exercício tão jacobino e tão francês de épater
le bourgeois. Miudezas minhas. No atacado, o balanço positivo ganha de goleada. Certamente
por ser mulher e por ter sido uma grande escritora, são particularmente fascinantes as páginas
em que Simone disseca com lírica crueldade os diversos momentos cheios de desconforto e
angústia por que passa a fêmea no seu processo de transformação em mulher: o primeiro pen-
teado que não pode ser desmanchado, a estréia do incômodo vestidinho, o uso de toalhinhas
na menstruação, a noite de núpcias e o defloramento muitas vezes traumático, a gravidez, o
parto, a amamentação e, finalmente, a menopausa que a libera do ciclo que a natureza lhe im-
pôs de reproduzir a espécie – quando então, liberta das obrigações da fêmea, a mulher desco-
bre em si, desolada, um corpo sem frescor.
Mas o livro termina com uma nota otimista. Como que deixando de lado a sinistra pers-
pectiva do Outro cujo olhar nos transforma em objetos, ela anuncia um futuro, “quando for
abolida a escravidão de metade da humanidade”, em que, “para além das suas diferenças natu-
rais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade”.

Recife/PE, mar./2011

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