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CONTRIBUIÇÃO PARA UMA LEITURA DE NIETZSCHE NO

CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE1
EDUARDO SUGIZAKI2
Fragmentos de Cultura, Goiânia
3 (7): 120-127, 1993

Pretendo, com o presente artigo, dar um retorno ao IFITEG, instituição onde estudo e
leciono (como monitor) teologia, sobre minha atividade de pesquisa desenvolvida dentro do
projeto “Nietzsche e a pós-modernidade”, do qual participaram os Professores Dr. Gerardus
Maria Cremers e Mestre Antônio Cappi. Trata-se de uma pesquisa do Departamento de
Filosofia da UFG, apoiada e financiada pelo CNPq, e que fez parte do quadro de requisitos
apresentados pelo Departamento para a implantação do Mestrado em Filosofia Política. A
minha monografia final, recolhendo os frutos da pesquisa, intitula-se “Nietzsche e a teologia
da libertação: viva ou morra o deus dos fracos?”
Neste artigo, gostaria motivar uma leitura de Nietzsche, à partir da ótica dos pobres e
marginalizados e atento aos atuais desafios do mundo urbano e da cultura pós-moderna.
Quero fazê-lo numa linguagem mais popular que puder. Este é um texto de debutante... Peço
que o leitor o aceite na simplicidade.

DE ENTRADA, UM TROPEÇO

Uma verdadeira porta de entrada deveria ser uma boa motivação para se ler um
filósofo como este. Mas que motivação encontrar para ler um apóstolo da morte de Deus; com
uma péssima reputação política (muitos acham que seu pensamento foi instrumentalizado pelo
nazifacismo); fortemente etnocêntrico; possivelmente já velho para os dias atuais (viveu entre
l844 e 1900) e que, à primeira vista, não parece contribuir em nada com a luta popular em que
nos empenhamos?
Para cristalizar o que acabo de dizer, cito o teólogo e filósofo Enrique D. Dussel3
“Schopenhauer e Nietzsche ao criticarem a ordem vigente fazem-no em nome da ontologia
dominadora, da própria essência da violência, do “ego conquisto” de uma Europa sacralizada: nestes
dois autores encontramos, mais que irracionalismo, uma ontologia guerreira aristocrática, europeísmo
sacralizado em panteísmo insuperável.

Este é o problema político para a leitura do filósofo. Aparece logo de cara, quando
começamos ler qualquer uma de suas obras. Por isso, antes de apontar motivos para lê-lo,
devo minimizar os motivos que o leitor possa ter para não considerar esta uma leitura
importante.

1 Artigo de fronteira entre a filosofia e a teologia. Leitura crítica de conceitos nietzscheanos e da teologia da
libertação.
2 Graduando em Teologia e Filosofia. Professor-monitor de Teologia no curso de Teologia Pastoral no Ifiteg.
3 Método para uma filosofia da Libertação. Loyola, São Paulo, 1986, p. 134.
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A análise que Nietzsche opera da sua Europa contemporânea leva-o a ver na cultura
e nos agentes políticos dominantes a presença dos fracos e da fraqueza. Os fracos e escravos,
através de uma moral reativa, conseguiram demonizar a condição dos fortes e senhores. Desta
forma, os fracos e escravos impuseram-se sobre os fortes e os senhores através de uma moral
invertida, que considera bons os incapazes e maus os detentores de força física e militar. O
“exemplo” quase permanente desta inversão presente na obra de Nietzsche é o judaísmo e seu
herdeiro, o cristianismo. As aspas são para indicar minha suspeita de teoria esteja mais para o
exemplo do que o inverso.
Os conceitos “fracos” e “fortes”, “escravos” e “senhor” não se pode imediatamente
identificá-los com aquilo que a linguagem libertaria designa como “oprimidos” e
“opressores”, “pobres” e “ricos”, “dominados” e “dominadores”.
Mas seguindo a pesquisa nietzscheana sobre a origem do predomínio dos fracos
(genealogia), deparamo-nos com um passado não datado em que os fracos não eram
exatamente os pobres, mas uma determinada espécie de gente submetida, os sacerdotes. Eles
competiam pelo predomínio sobre o povo a classe da aristocracia guerreira, mas estavam a ela
submetidos.
Na gênese do domínio dos fracos do hoje (de Nietzsche) está a própria gênese do
fraco em si mesmo. O fraco aparece como o insatisfeito com a realidade. Aquele que sofre
com ela. O fraco é o que está por baixo e inveja o forte. O fraco é por excelência o sacerdote
submetido ao militar, o forte.
No primeiro momento, os guerreiros estão em condição de superioridade sobre todo
o resto pela sua forca física e militar. Os sacerdotes elaboram, então, uma moral contra os
dominantes guerreiros. Esta moral ensina que bons são os que não atacam nem ofendem
ninguém, ou seja, os próprios sacerdotes. Mas são as “aves de rapina que devoram os
cordeirinhos”. As aves de rapina são os membros da aristocracia guerreira.
Os sacerdotes arrebanham o povo com seu discurso, contaminam ou contagiam a
sociedade. Acabam por vencer e tornam-se representantes da moral hegemônica. Isto explica
a situação atual para Nietzsche, uma multiplicação geral de desorganizacão de força física,
informada por uma moral de sace tes, de “fracos”.
Este resumo comprimiu tanto o pensamento do autor que pode tê-lo desfigurado. Não
apresentei a criação moral dos senhores e fortes. Mas isto já basta para encaminhar os
elementos que considero importantes para se enfrentar estes problemas na leitura do autor.
Se o pensamento de Nietzsche não se estrutura a partir de uma economia-política,
não quer dizer que não contenha uma visão e um conteúdo sociopolítico. Os conceitos “forte”
e “fraco”, “senhor” e “escravo” ao mesmo tempo que extrapolam uma caracterização
socioeconômica, a incluem.
Disto inferimos que:
a) A leitura de Nietzsche não pode ser politicamente neutra e não se pode dizer
que os conceitos de “forte” e “fraco” e seus correlatos tenham sentido estritamente
“espiritual”.
b) Enquanto os conceitos fraco e escravos têm uma conexão sóciopolítica, eles
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nos atingem. Somos, no plano do capitalismo internacional e nacional, os derrotados e os


excluídos. Somos nós, os pobres, os que sofremos com a realidade, podemos ser os que têm
motivos para erigir um código moral reativo, negador do outro. Neste sentido, interessa-nos
ouvir a crítica de Nietzsche contra os fracos, utilizando-a como autocrítica. Neste ponto a
filosofia da libertação de E. Dussel poderia ser repensada. Ela prioriza a negação da
metafísica ocidental. Uma leitura a partir dos pobres é escutar atentamente as críticas que um
aristocrata dirige aos pequenos, pois o que pretendemos é erigir valores novos e melhores do
que estes que conduziram a humanidade a mais completa exclusão de três quartas partes de
sua totalidade.
c) Não nos interessa a posição política de Nietzsche seu endeusamento da
aristocracia. Interessa-nos a preocupação nietzscheana com a superação do gregarismo
(moral de rebanho, de “Maria vai com as outras”) e a superação do homem: o homem fazendo
de si mesmo algo maior e melhor do que é. Queremos um outro homem que não o do projeto
do capitalismo. Este novo homem não está pronto.
d) Interessa ao povo pobre uma crítica nietzscheana dos sacerdotes, quando estes
querem submeter o povo a si mesmos. É um pouco o que os teólogos chamam de
eclesiocentrismo. Desejamos uma libertação integral do homem todo e de todos o homens.
Uma libertação econômica e política exige uma libertação cultural. Mas a libertação sob
perspectiva nietzscheana não poderia ser reativa. Necessita ser criativa: criar o novo a partir
do valor intrínseco a si mesmo. Ficam excluídas as atitudes anticlericais e revanchismo contra
o capitalismo. Isto seria reação e não ação.
Muitos textos nietzschianos, objetivamente, tornam difícil a tentativa de
impossibilitar seu uso por correntes políticas de coloração fascista. Querendo-se, pode-se usar
com facilidade uma quantidade razoavelmente grande de textos seus para elaborar uma
doutrina imperialista ou de extrema direita, altamente discriminatória e elitista. Porém, uma
leitura criteriosa apenas das obras mais importantes evidencia a inadequação deste tipo de
instrumentalização. No contexto do vertiginoso crescimento do neonazismo, inclusive em
grandes centros brasileiros e até em cidades pequenas e interioranas como Rolândia no
Paraná, é preciso se fazer uma leitura correta de Nietzsche como das condições pós-modernas
que estão na base deste tribalismo altamente destrutivo.

NIETZSCHE E A PÓS-MODERNIDADE

Há muitas divergências para a caracterização e compreensão da Pós-modernidade.


Jair Ferreira dos Santos (O que é pós-moderno. Brasiliense, 1986) considera que Pós-
modernidade é coisa apenas do Primeiro Mundo. Steven Connor (Cultura pós-moderna,
editado em português pela Loyola, 1992) chega a considerar a Pós-modernidade uma nova
moda acadêmica, criada pelos professores universitários para suprir seu esvaziamento de
poder no conjunto da sociedade atual. David Harvey (Condição pós-moderna, editado em
português pela Loyola, 1993) vê profundas mudanças no mundo atual, agrupáveis sob a
designação “condição pós-moderna”. Estas mudanças são efetivas, mas segundo Harvey, não
representam uma mudança essencial no modo de produção capitalista.
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Convence-me mais o último autor. Diferentemente de J.F. dos Santos, penso que a
pós-modernidade está nos atingindo e profundamente. Nesta história não somos realidade
espelho. Também fazemos parte desta dispersa massa cultural que está pondo em crise a
modernidade. Ainda está por se fazer uma pesquisa que detecte as características de uma pós-
modernidade própria na periferia do mundo. É verdade que a discussão teórica sobre a pós-
modernidade seque o que se pensa na Franca e nos Estados Unidos, mas o fenômeno não é
apenas acadêmico e não foi nas academias que ele começou, apenas ganhou nome aí. A
academia está dando consciência teórica e crítica ao mundo do que ele está vivendo. Digo o
mundo porque penso que a condição pós-moderna está acontecendo também na Rússia, na
China, nas Coréias, Paraguai, em Angola... A pós-modernidade me parece imbricada com o
fim do socialismo do leste europeu, em seu caráter tribalista, nacionalista, anti-stalinista e
antileninista.
Penso que estas são as motivações centrais para ler Nietzsche. Há quem diga
abertamente que ele é um pós-moderno. O fato é que ele antecipou, quase profeticamente,
muito do que estamos vivendo em termos culturais. Formadores de cultura atuais,
destacando-se os diretores de cinema, se inspiram no filósofo. Todos os filósofos da pós-
modernidade e os que os anteciparam como é o caso de Michael Foucault leram e pensaram
Nietzsche. Há quase três décadas os escritos de Nietzsche vem exercendo forte influência
sobre filósofos como Gilles Deleuze, François Lyotard, Jacques Derrida e Jean Baudrillard.
Aqui em Goiânia, o dono de um sebo disse-me que livros de Nietzsche não param
nas prateleiras. A Companhia das Letras está fazendo uma edição crítica das obras mais
importantes do filósofo em português, apesar de que elas possam ser encontradas com
facilidade em nosso idioma (inclusive a correspondência pessoal). Devem vender bem.
Esta presença não é gratuita. Os escritos nietzschianos têm uma impressionante
capacidade de fazer entrar no “clima” da cultura contemporânea, predominantemente Urbana,
marcadamente niilista.
A leitura de Nietzsche e sobre pós-modernidade fez compreender as mudanças que
estão ocorrendo no mundo e ao mesmo tempo no interior do homem as mudanças na
experiência do sagrado e na relação com o religioso; a mudança de valoração da razão e de
um tipo de lógica; as mudanças de atitude na prática e militância política, sindical e
associativista; a mudança de relação com grandes utopias; a mudança da relação como o
próprio consumo; incorporação de uma nova visão sobre bem e mal (ética), novo estilo de
gostar e sentir prazer (estética).
Não acho que fazer cultura seja privilégio apenas do Primeiro Mundo. Podemos fazer
nós também algo além da cultura que recebemos, com o nosso jeito e do modo como a
queremos. Nós temos cinema, literatura, música, partidos políticos e teologia ligados aos
interesses dos menores abandonados, lavradores sem terra, bóia-frias, operários, estudantes,
trabalhadores, donas de casa... Fraquinha a nossa filosofia neste aspecto.
Em teologia ultimamente se vem falando muito em inculturação. Efetivamente a
inculturação na vida indígena e afro-americana é o que se tem de mais criativo e novo na
prática eclesial latino-americana. Há cristãos vivendo isto intensa e libertadoramente.
Admirável neste ponto o esforço dos irmãos Beneditinos de Goiás. Não digo apenas que os
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cristãos deveriam igualmente se inculturar na pós-modernidade, mas que há algo de pós-


moderno nas atitudes de inculturação que já estão tomando.
Alguns teólogos da libertação (destaco Clodovis Boff, Alberto Antoniazzi, Comblin)
estão se voltando para o problema da Pastoral Urbana, e para a inculturação na cultura
adveniente (pós-moderna). Esta é uma motivação positiva, atual e desafiadora para a leitura
que proponho.
Segundo o teólogo católico Jean Granier “não se pode compreender (Nietzsche) a
não ser ‘assumindo’ o pensamento – com todo o seu peso de paixão existencial, de fervor, e
até de imaginário...”4 Digo o mesmo da pós-modernidade. Sei que o novo representa sempre
um risco. Os jovens gostam das coisas arriscadas.
A fragmentação teórica deste artigo e de seu autor fiquem por conta da condição pós-
moderna. De qualquer forma, esta revista propõe algo modesto, ser colagem de fragmentos de
cultura, projeto, ao qual estou aderindo com o meu próprio fragmento.

4 Ver. Concilium. Pensar com e contra Nietzsche, n. 165, 1981/5. Vozes, Petrópolis, p. 125. A revista completa
foi dedicada a Nietzsche.

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