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IDENTIDADE CULTURAL E ALTERIDADE: PROBLEMATIZAÇÕES NECESSÁRIAS

Joice Oliveira Pacheco*

RESUMO:
Este artigo pretende ser uma reflexão teórica acerca da configuração da identidade cultural na
pós-modernidade e relativa produção da alteridade. Com base numa concepção identitária não-
essencialista, refletimos o sujeito, a (re)produção, representação e (re)significação da identidade
cultural na modernidade e na pós-modernidade buscando identificar os mecanismos de
construção identitária, suas subjetividades e suas relações com a produção e a representação da
alteridade, atentando de maneira um pouco mais específica para o fortalecimento do
comunitarismo e da comunidade que se apresentam enquanto fontes de possibilidade de
segurança nesse momento marcado pela incerteza. Procuramos ainda, evidenciar os problemas
decorrentes da relação identificação/diferenciação e principalmente o caráter político-estratégico
que perpassa essa relação.
PALAVRAS-CHAVE: História – Identidade Cultural – Pós-modernidade

CULTURAL IDENTITY AND ALTERIDADE: PROBLEMATIZAÇÕES NEEDED

ABSTRACT:
This article aims to be a theoretical discussion about the configuration of cultural identity in the
post-modernity and on production of alterity. Based on a design identity non-essentialist, reflect
the subject, the (re) production, representation and (re) meaning of cultural identity in modernity
and post-modernity seeking identify the mechanisms of identity construction, their subjectivities
and its relations with production and the representation of alterity, looking for a little more
specific way to the strengthening of communitarianism and the community who stand as potential
sources of security at that time marked by uncertainty. Looking further, highlight the problems
arising from the relationship identification / differentiation and particularly the political and
strategic nature that perpassa this relationship.
KEYWORDS: History-Cultural Identity-Post-modernity

*
A autora é graduada em Estudos Sociais – História pela UNISC. Possui Especialização em História do Brasil pela
mesma Universidade, de onde resultou o artigo aqui apresentado, o qual faz parte do trabalho de conclusão da
referida Especialização, orientado pelo Professor Ms. José Martinho Rodrigues Remedi.
2

Expressado moralmente: amor ao próximo,


viver para os outros e outras coisas pode ser
a medida de defesa para a manutenção do
mais duro dos egocentrismos.

Friedrich Nietzsche

O mundo é do tamanho do conhecimento que


temos dele. Alargar o conhecimento, para
fazer o mundo crescer, e apurar seu sabor é
tarefa de seres humanos.

Terezinha Azerêdo Rios

A palavra “inclusão” hoje está na moda. “Incluir as diferenças” é discurso obrigatório na


área social e da educação, mesmo que não se tenha consciência do que realmente significa e de
que maneira se dará. Se observarmos os discursos governamentais, político-partidários, as
propagandas de tv, os planos e projetos pedagógicos nas escolas, teremos a ilusória percepção de
que realmente vivemos um período de “aceitação e respeito às diferenças” - sejam elas quais
forem: étnicas, sexuais, de gênero, religiosas, culturais, raciais, enfim.
Palavras como diversidade, diferença, identidade e multiculturalismo adentram as
instituições escolares, a mídia, as campanhas eleitoreiras. Da mesma forma, os termos respeito e
igualdade, são os “abre-alas” de qualquer discurso que se diga democrático, social e/ou
humanitário.
Nesse sentido, Duschatzky e Skliar (2001, p.120) lembram que certas retóricas sobre a
diversidade se tratam “em certas ocasiões, de palavras suaves, de eufemismos que tranqüilizam
nossas consciências ou produzem a ilusão de que assistimos a profundas transformações sociais e
culturais simplesmente porque elas se resguardam em palavras de moda”.
Não se pode esquecer que a identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso
significa que sua definição - discursiva e lingüística - está sujeita a vetores de força, a relações de
poder. Elas não são simplesmente definidas, são impostas. Silva (2000, p.81) salienta que “a
identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”, segundo o autor, onde existe diferenciação, aí
está presente o poder. Ele destaca, no entanto, que há uma série de processos que traduzem essa
diferenciação, como incluir/excluir (identificando e representando/marcando/simbolizando quem
pertence e quem não pertence); demarcar “fronteiras” (que definam e separem “nós” e “eles”);
classificar; normalizar.
3

A diferenciação, portanto, é responsável por (re)construir/(re)produzir a alteridade, por


definir quem é o “outro”, e torná-lo identificável, (in)visível, previsível. Ao dividir, separar,
classificar, normalizar, a diferenciação resulta na hierarquização. Fixar uma determinada
identidade como a norma, é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das
diferenças, pois normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas
possíveis, em relação às quais, as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa,
tal como afirma Silva (2000).
A marcação da diferença constitui então, o componente chave de qualquer sistema de
classificação que vise definir quem é a “identidade” e quem é a “diferença”. Para Cuche (2002,
p.187), “a imposição de diferenças significa mais a afirmação da única identidade legítima, a do
grupo dominante, do que o reconhecimento das especificidades culturais”, este é um pouco mais
problemático, na medida em que é necessária a negatividade da diferença para afirmar a
positividade e a normalidade da identidade.
Nesse sentido, cabe destacar que a identidade cultural não é “natural”, nem inerente ao
indivíduo, ela é preexistente a ele, e como a própria cultura se transforma, a identidade cultural
do sujeito não é estática e permanente, mas é fluída, móvel, e principalmente, não é uma
imposição inocente, nem uma apropriação, de todo, inconsciente. A identidade cultural é por sua
vez construída, manipulada e política.
Na modernidade, com o surgimento dos Estados-nação, a identidade tornou-se
decididamente um “assunto de estado”. Como afirma Denys Cuche (2002, p.188) “O Estado
torna-se o gerente da identidade para a qual ele instaura regulamentos e controles”.
Benedict Anderson (1983, p.14) argumenta que a nação é, na verdade, uma “comunidade
imaginada”. Para que exista, é preciso que um número considerável de pessoas de uma dada
comunidade se sinta parte de uma nação, que tenham coisas em comum, que se “considerem” ou
se “imaginem” integrantes dessa nação.
Para haver essa “consciência” de nação, esse sentimento de pertencer a um mesmo grupo,
a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma identificação nacional, alguns dispositivos1
são acionados para representar a nação e produzir significados. Nesse sentido, a língua, a raça e a

1
Adotamos o termo “dispositivos”, pois entendemos que tanto a (re)produção/(re)construção das identidades
nacionais como de uma consciência nacional, não são processos de todo espontâneos e inconscientes, são também
conscientes e estratégicos, e por isso se valem de alguns mecanismos – os dispositivos – capazes de tornar tanto a
4

história enquanto narrativas homogeneizadoras foram/são essenciais para a constituição das


identidades nacionais, para a constituição das culturas nacionais e para a formação de uma
consciência nacional, essas narrativas possibilitaram/possibilitam a internalização da idéia de
pertencimento nacional, de nacionalidade. Os Estados-nação “não se lançaram à tarefa no escuro,
seu esforço tinha o poderoso apoio da imposição legal da língua oficial, de currículos escolares e
de um sistema legal unificado (...)”, como aponta Bauman (2001, p.199).
Para construir uma forma unificada de identificação a partir das tantas diferenças
existentes no interior da “nação”, homogeneizando os traços constitutivos da identidade nacional,
já que como afirma Bauman (2003, p.84) “dentro das fronteiras do Estado só havia lugar para
uma língua, uma cultura, uma memória histórica e um sentimento patriótico”, o projeto de
construção do Estado-nação necessitava, portanto, erradicar as diferenças e/ou os diferentes,
fosse por meio da “assimilação” ou por meio da “eliminação/exclusão”.2
Portanto, para dar conta de sustentar seus parâmetros de ordem, beleza, limpeza e
progresso, a modernidade se serviu de uma lógica binária, de um sistema de classificação e
distinção cultural e identitário que visava preservar e garantir a conformidade social com esses
parâmetros. A modernidade inventou e multiplicou os seus “anormais” - para usar uma expressão
de Foucault -, os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas, os surdos, os cegos, os
aleijados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os homossexuais, os miseráveis, os
“outros”. Ela criou instituições com a função de normatizar e normalizar os elementos da cultura
e criar, reproduzir e legitimar uma cultura, uma identidade e uma consciência nacional,
conseqüentemente, essas instituições se tornaram palco da produção, reprodução e do controle da
alteridade no contexto da modernidade, a fim de purificar, afastar, limpar toda “sujeira social”3.
A identidade cultural do sujeito moderno apresentava-se, nesse contexto, estável,
localizada, naturalizada. Havia lugares e comportamentos próprios a cada um. O sujeito centrado
da modernidade vivenciava sua identidade cultural nacional de maneira horizontal, compartilhava

identificação quanto a consciência nacional existentes, isto é, capazes de tornar a “comunidade imaginada” uma
nação efetiva.
2
Sobre isso ver Bauman (2003, p.85)
3
Uso a expressão “sujeira social” para designar àqueles sujeitos, àquelas culturas ou àquelas identidades que não são
compatíveis com os parâmetros estabelecidos pela modernidade, os diferentes, os estrangeiros, os “outros”.
Woodward, 2000, p.47, trás a definição de Douglas, M. (1966) para o que é “sujo”, e conforme ela nossas
concepções sobre “sujeira” são “compostas de duas coisas: cuidado com a higiene e respeito pelas convenções”. A
expressão que utilizamos diz respeito a esta última.
5

de uma identidade unificada e comum em torno de uma cultura nacional que primava pela
homogeneidade, pela igualdade4e abominava a diferença e os diferentes.
Atualmente, porém, nesse período povoado pelas tecnologias da informação, pela
compressão das distâncias - seja por via virtual como pela velocidade dos meios de transporte -,
nesse contexto em que caem por terra as fronteiras nacionais e no qual os produtos (comida,
bebida, vestuário, língua, crença, música, moda, valores, entre tantos outros) das mais diversas
culturas, dos mais diversos países, invadem sem pedir licença, sem permissão, fiscalização ou
visto os territórios de outras nações, países, povos e comunidades mais distantes, a identidade
cultural se configura – enquanto resultado desse contexto – muito menos fechada, muito menos
estável e estática, e principalmente, muito menos “nacional” do que o era na época moderna.
É certo que essa nova percepção, essa nova forma de ver e vivenciar as identidades
culturais é conseqüência das transformações ocorridas ao longo da modernidade – principalmente
no último século, após a Segunda Guerra Mundial na chamada Modernidade Tardia ou Pós-
Modernidade5 – mais precisamente da globalização, das diásporas pós-coloniais, do processo de
desconstrução do Estado-nação e de descentração do sujeito moderno.
Com a integração econômica e com a difusão da informação possibilitadas pela
globalização e pelo avanço tecnológico, também a cultura e as identidades culturais estão em
trânsito constante. Junto com a informação e com os produtos, o fluxo de valores, costumes,
idéias, estilos, ou seja, das particularidades de cada país, sociedade, comunidade ou grupo é
muito grande e veloz6.
Todavia, se esse aparato tecnológico que nas palavras de Silva (2001) nos permite
“viajar a longas distâncias sem sair do lugar”, possibilita um trânsito cultural e identitário, ou
seja, torna possível a universalização da cultura e das identidades, a homogeneização das
identidades culturais, por outro lado, e simultaneamente a esse impacto “global”, pode ser
observado um novo interesse pelo “local”, principalmente por aqueles – grupos/comunidades –

4
Entenda-se a palavra igualdade aqui, referindo-se à um padrão cultural nacional, lingüístico, étnico, religioso,
sexual, etc..
5
Deve ficar claro que ao adotarmos o termo Pós-modernidade neste trabalho, não estamos considerando a
Modernidade em termos de superação (um período já ultrapassado), apenas procuramos marcar no mundo
contemporâneo o que é novo em relação aos pressupostos modernos.
6
Embora desigual – o fluxo de valores - pois assim como a entrada e saída de produtos e informação não é a mesma
para cada país ou povo (grupo, comunidade, etc. ), devido à posição que ocupa no mercado global e ao seu nível de
desenvolvimento, entre outros fatores, também o intercâmbio cultural e identitário deverá ser diferente,
possibilitando que algumas culturas e economias exerçam maior influência do que outras.
6

que temem, para usar as palavras de Hall, que a globalização ameaça “solapar as identidades e a
unidade das culturas nacionais” (2005, p.77). Ainda sobre isso, Bauman (1999) afirma que “junto
com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio e do fluxo de informação,
é colocado em movimento um processo localizador, de fixação no espaço”.
Também as diásporas pós-coloniais tiveram/tem um papel muito importante no processo
de (re)construção, (re)significação pelo qual passam as identidades culturais no mundo
contemporâneo, com elas acelerou-se/acentuou-se o transporte de culturas de um lugar para
outro, e a tradução7 dessas culturas e dessas pessoas – de suas identidades - no novo local/lugar
para o qual se deu a migração, possibilitando a transformação da cultura local e,
conseqüentemente, a produção de identidades culturais híbridas, este tipo identitário
característico da Modernidade Tardia. Conseqüentemente, também teve influxo direto sobre as
transformações na percepção espaço-temporal e na configuração atual da alteridade, visto que no
“entre-lugar” – assim Bhabha (1998) denomina os lugares em que se instalam os migrantes – “a
diferença não é nem o Um nem o Outro, mas algo além, intervalar”.
Se na modernidade conseguíamos identificar a identidade do sujeito através dos
elementos, símbolos e práticas que as compunham e as localizavam num tempo, num espaço, e os
quais definiam e cristalizavam as identidades, os locais e papéis sociais, que eram ao mesmo
tempo comuns a praticamente todos os sujeitos conforme o elemento identitário8, no contexto
contemporâneo já não temos essa possibilidade, ao menos não de maneira tão clara e precisa
como o mundo moderno possibilitava.
A identidade cultural do sujeito atual é muito mais variada, muito mais inconstante, muito
mais plural. Enquanto podíamos, por exemplo, falar sobre a mulher da sociedade moderna com
certa precisão, já que sua identidade era muito mais homogênea, muito mais centrada e singular,
teríamos hoje que falar sobre as mulheres da sociedade atual, visto que não há um único tipo,
uma única identidade, um único papel, ou um único lugar que a defina.
Atualmente, junto com as “novas” formas de identidade, “novas” formas de alteridade são
produzidas. A relação identificação/exclusão tem peculiaridades que são provenientes desse
contexto sócio-econômico-espaço-temporal pós-moderno, resultando em novos “outros”, novos

7
Entenda-se o termo “Tradução” para designar/descrever aquelas formações de identidade que atravessam e
intersectam fronteiras naturais compostas por pessoas vítimas das diásporas pós-coloniais. Sobre esse conceito, ver
Hall,2005, p.87-89.
7

“eles” e em diferentes formas de bani-los, de controlá-los, de colocá-los nos “seu devido lugar”;
novos discursos, novas formas de “os” representar9.
Considerando-se a relação identidade/diferença e a dependência que uma possui da outra,
seria inevitável, e necessário até (se assim podemos dizer), “novos diferentes” capazes de
“normalizar” essas “novas identidades” que emergem. Como lembram Duschatzky e Skliar
(2001, p.124) “necessitamos do outro para, em síntese, poder nomear a barbárie, a heresia, a
mendicidade etc. e para não sermos, nós mesmos, bárbaros, hereges e mendigos”.
Veiga-Neto apud Larrosa e Skliar (2001, p.107) argumenta sobre esses “novos anormais”
que “o critério de entrada não é mais o corpo (em sua morfologia e comportamento); o critério de
entrada pode ser, também, o grupo social ao qual esse corpo é visto como indissoluvelmente
ligado”. Os anormais contemporâneos são os sem-emprego, os sem-teto, os sem -terra, os
consumidores falhos de Bauman, os “portadores de necessidades especiais”, os “improdutivos” e
os pobres10.
Os novos “impuros”, a “sujeira social” pós-moderna, ou seja, a diferença, assim como a
identidade cultural, saem do território restrito e limitado dos Estados-nação, para serem ditadas,
definidas, impostas, (re)produzidas e (re)significadas enquanto produtos da interconexão cultural
global, da globalização econômica, dos novos valores decorrentes desse fim das fronteiras
nacionais e da substituição da supremacia do estado nacional pela do mercado capitalista, e até
mesmo, pelo temor que esse processo de universalização da cultura, em alguns casos provoca.
Em nível local, podemos citar como exemplo deste último fator de (re)significação/(re)produção
da alteridade, o fortalecimento do comunitarismo, ou neocomunitarismo como é também
chamado.
A falência dos Estados-nação, e com isso, do sentimento de segurança, estabilidade,
limpeza e ordem que deles derivavam, fazem com que a comunidade se torne atualmente um
atrativo para aqueles grupos minoritários que temem serem absorvidos pelo processo de

8
Partimos do pressuposto de que a identidade se constitui na interação de vários elementos identitários: raça, etnia,
classe social, sexo, gênero, nacionalidade, enfim.
9
Ao apontar na pós-modernidade a configuração de novas formas de representação e controle da alteridade, não
estamos extinguindo àquelas formas constituídas e instituídas pela modernidade, apenas salientamos a emergência de
“novas”.
10
Bauman argumenta que “cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de
predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os
pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação (...)”. (1998, p.59)
8

homogenização cultural decorrente do fenômeno globalização e terem a sua cultura/identidade


exposta à infiltração cultural.
O que precisa ser ressaltado é que esses movimentos comunitaristas, embora se
apresentem como um processo inocente de fortalecimento de comunidades “naturais” –
geralmente organizadas em torno de uma etnia comum – se constroem a partir de discursos
excludentes e preconceituosos, que reivindicam e afirmam sua identidade através de relações
identidade/diferença baseadas em concepções essencialistas e de pureza, que via normalização
dos elementos – símbolos, signos e representações - que compõem a identidade da comunidade
desenvolvem discursos e práticas de negação e não aceitação dos “seus diferentes”, possibilitando
a exclusão e a marginalização daqueles pela comunidade estigmatizados.
Todavia, como o Estado-nação revelou-se muito mais ocupado/preocupado com uma
sociedade regida pelos frios interesses do mercado do que pela “unidade de
sentimentos”(Bauman, 1998), é agora nas comunidades onde se deposita a confiança e a
esperança de execução daquelas promessas que o Estado-nação não conseguiu cumprir. A
comunidade por sua vez, representa atualmente o sonho de um porto seguro. Tal como é aspirada
pelos comunitaristas, ela atrai pelo aconchego caseiro, pela promessa de apoio e compreensão
mútuos, pela harmonia de interesses, pela “identidade comum” e principalmente pela esperança
de que na comunidade se encontre a segurança, a certeza e se restabeleça a confiança que a
sociedade contemporânea não dispõe devido ao grande desequilíbrio existente entre a liberdade e
as garantias individuais.
No entanto, embora os significados e as sensações que a idéia e a própria palavra
“comunidade” remetem11 enquanto algo bom e positivo, há sempre um preço a pagar pelo
privilégio de “viver em comunidade”. Para Bauman (2003), o preço é pequeno e até invisível
enquanto a comunidade for um sonho, e ele é pago em forma de liberdade, autonomia, direito à
auto-afirmação e à identidade. O que precisa ser ressaltado, é que por trás dos significados e
sensações positivos e acolhedores que o termo e a idéia de comunidade transmitem, o
comunitarismo abrange processos de exclusão dos “outros”, daqueles que não compõe ou não
estão “aptos” a compor a comunidade. Ele promove a etnização da cultura produzindo e

11
Ver Bauman, 2003. Em sua introdução ele faz uma reflexão dos significados e sensações encontrados no termo
“comunidade” atentando para os motivos pelos quais a relacionamos sempre como algo positivo.
9

representando a alteridade de maneira negativa, como ameaça. O expurgo dos que não fazem
parte torna-se assunto da comunidade.
A lógica do comunitarismo, portanto, é a mesma lógica de constituição dos Estados-nação
na modernidade, dá-se através da homogeneização cultural, da marcação da identidade e
“demonização” da diferença. Como destaca Silva (p.206), “tendemos a pensar o comunitarismo
como aliado na luta contra os efeitos ‘perversos’ da globalização sem nos darmos conta de que o
inimigo está na trincheira”.
É preciso dizer ainda que o caráter de “naturalidade” utilizado pelo discurso comunitário
na defesa da comunidade não se sustenta mais na era da informática, com o trânsito rápido e
incontrolável da informação e da cultura. Na pós-modernidade, as comunidades não têm como
manter “puras” as suas tradições, elas não podem mais manter instransponíveis as fronteiras que
separam o “dentro” e o “fora”.
Para Bauman (2003) a comunidade “natural” está sendo substituída pela “comunidade do
entendimento comum”, e esta, por sua vez, mesmo se alcançada, permanecerá frágil e vulnerável,
necessitando de constante vigilância, reforço e defesa, visto que o “entendimento comum” só
pode ser alcançado, como afirma o autor “ao fim de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e
em competição com um número indefinido de outras potencialidades” (p.19). Nessa comunidade,
toda homogeneidade, toda unidade e todo acordo precisam ser construídos, produzidos, e estarão
sempre sujeitos a contestação, discussão e reflexão. A “comunidade realmente existente” exigirá
olhos atentos vinte e quatro horas por dia “para manter os estranhos fora dos muros e para caçar
os vira-casacas em seu próprio meio”. (Bauman, 2003, p.22)
Sabemos que nas condições atuais, é impossível fechar-se ao “outro”, mantê-lo distante,
assim como sua identidade, sua cultura e a carga de atributos negativos que lhe foram conferidos.
Ao mesmo tempo esses tantos “outros” pós-modernos provocam medo, por não serem
localizados, previsíveis e por não estarem confinados em instituições de controle – as instituições
modernas que antes eram as responsáveis pela sua (re)habilitação, regulação e controle estão
falidas, nem (re)habilitam, nem regulam, nem controlam.
Contudo, embora se apresente como solução para esses temores, para os anseios dos
homens e mulheres que procuram a segurança, a estabilidade, a ordem e a previsibilidade nas
relações sociais, a comunidade dos discursos neocomunitaristas não pode oferecer mais do que já
10

se tem: ao levantar seus muros, priva a liberdade; ao deixar os “outros” soltos do lado de “fora”,
instaura apreensão e insegurança.
A alteridade vista – e nisso nada difere da modernidade – como um problema ao mesmo
tempo incômodo e necessário, dentro da lógica comunitarista, deve ser isolada, controlada,
demonizada. Preocupa é como, na prática, essa lógica se efetiva.
Nesse período de tantas incertezas, de falência e crise das instituições estáveis da
modernidade; nesse período em que o inimigo é disperso, sem um centro, em que o excesso de
liberdade promove ainda maior falta de segurança; num período em que temos medo, em que
almejamos ordem, estabilidade e previsibilidade, habitar uma comunidade seria perfeito, não
fosse ela uma réplica microscópica do Estado-nação, com toda sua perversidade e limitações.

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11

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