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INT. CONSULTÓRIO MÉDICO DERMATOLOGISTA - DIA
POV trêmulo de CÂMERA PORTÁTIL PARA EXAMES MÉDICOS:
Consultório elegante. LIPE, 23 anos, sem camisa, deitado de
bruço em uma maca. Ele é uma pessoa muito branca e com muitas
pintas nas costas.
CÂMERA PORTÁTIL pára de se mexer e revela MÉDICO, 40 anos,
que está ao lado da maca.
MÉDICO
Então agora eu vou fotografar as
suas pintas...
Lipe se vira em direção ao Médico.
MÉDICO (CONT'D)
...para que eu possa, com a ajuda
desse computador aqui, entender
melhor se elas são normais ou se
será necessária uma intervenção
cirúrgica, tá bom?
Médico coloca a câmera portátil em cima de uma mesa e veste
as luvas plásticas. Ao fundo, fora de foco, Lipe está deitado
na maca.
LIPE
Eu tenho medo das estranhas.
(se contorce para apontar
uma pinta nas costas)
Tipo essa aqui...
MÉDICO
Não tem que ter medo de nenhuma.
Médico, de luvas, vai até Lipe e examina as pintas de suas
costas.
MÉDICO (CONT'D)
(simpático)
É... Tirar tudo isso é impossível.
Médico vai até a mesa, pega a câmera e a aproxima das costas
de Lipe. Pintas, muitas pintas. Pintas de formas e
tonalidades diversas.
Música e créditos iniciais sobre as pintas.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
IRMA
(off, no vídeo)
Às vezes eu penso tanto na coisa
dentro da minha cabeça que quando
ela vai acontecer... Já tô cansada.
Mas eu vou te conhecer antes.
No monitor de um computador essas IMAGENS EM MINIDV são
manipuladas e editadas por IRMA, 24, magra e alta, sentada em
frente ao computador. Irma avança e retrocede o vídeo na
timeline, ajusta uma entrada de plano. Irma dá play e se
levanta da cadeira para assistir a edição.
Música. IMAGENS EM MINIDV do PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES se
fundem com imagens gravadas do cotidiano de Irma--
imagens de seu pequeno quarto, a cabeceira da cama repleta de
bonequinhos feitos de massinha, tortos mas graciosos, imagens
da mão de Irma, suas unhas com esmalte decascando e suas
anotações na palma da mão.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Parênteses. Desculpa aos trinta e
três apartamentos que vão receber
isso à toa. Parênteses. Eu não
quero me gastar e escolhi você.
(pausa) Por exemplo, um dia as
pessoas falam que não querem mais
chocolate no leite, de um dia pro
outro: só café.
Desenhos tortuosos de Irma feitos à lápis na parede do
quarto, em traços finos.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
E eu fiquei aqui, porque não me
desperdicei. Eu queria ir no banco
de trás, pra ir deitada igual uma
doente... Enquanto você dirige. E
aí depois eu dirijo e é a sua vez.
No vídeo: Imagem de desenhos sendo feitos casualmente no
programa de desenhar no computador tipo Paint Brush.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Se desperdiçar por aí, tentando se
explicar, sabe? É igual
desembrulhar um bolo e a cobertura
ficar grudada no papel alumínio.
No vídeo: Ao lado do Paint Brush tem um programa de bloco de
anotações tipo Wordpad aberto, com o texto que Irma está
lendo.
(CONTINUED)
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CONTINUED: (2)
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Sei que as vezes a gente fica
procurando na profundidade das
coisas demais... Queria procurar
com você. Eu não sei onde está, mas
não tá nem tão fundo, nem fora da
gente.
No vídeo: Imagem do texto lido no Wordpad. Letras em close.
Irma vai até o comutador, abre o software de queimar DVD, dá
o comando para queimar DVDs e, na opção de "número de cópias"
coloca "34". Dois tubos cheios de DVDs novos estão do lado do
monitor.
Irma vai até a janela e vê lá fora--
o PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES, o mesmo do vídeo. Irma o
observa.
ALICE
(off, empolgada, voz muito
fina)
Irma, cê ta aí? Tá dormindo?
IRMA
(olhando pela janela)
Tô. Mas pode falar.
Na sala está--
ALICE, 24, saia indiana, se exercita na sala. Faz caras e
bocas e se movimenta esquisito. É atriz.
ALICE
Então.. meu amigo me disse que tá
tendo festival do minuto...Cê
sabia?
No quarto--
Irma sai de perto da janela e vai até seu computador.
ALICE (CONT'D)
(off, da sala)
Queria te chamar pra fazer
um vídeo comigo, quer?
Irma verifica o relógio do monitor do computador. São 14:59.
Irma olha, através da janela de seu quarto, para o PRÉDIO DE
PASTILHAS VERDES.
ALICE (CONT'D)
(off, da sala)
Porque eu não acredito que nunca
fizemos nada juntas... Eu tô lendo
muito Nelson Rodrigues esses dias,
sabe...
(CONTINUED)
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CONTINUED: (3)
(CONTINUED)
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CONTINUED:
LIPE
Também não.
DR. ALBERTO
Alergia de alguma coisa?
LIPE
Nada.
DR. ALBERTO
De algum alimento... pó?
LIPE
Não.
DR. ALBERTO
Cirurgias?
LIPE
Não.
DR. ALBERTO
E fraturas?
LIPE
Hum. Eu acho que não.
Dr. Alberto olha para Lipe de modo inquisidor.
LIPE (CONT'D)
Mas minha família tá cheia de
doenças...
Silêncio no consultório.
LIPE (CONT'D)
Eu devo ter tido aquelas doenças de
bolinhas...
DR. ALBERTO
Catapora? Sarampo?
LIPE
É...não.
Dr. Alberto, de cabeça baixa, continua completando
burocraticamente o FORMULÀRIO MÉDICO.
DR. ALBERTO
Agora eu preciso que você abaixe as
calças e a cueca.
LIPE
Tudo?
Dr. Alberto não reage. Então Lipe abaixa as calças e a cueca.
DR. ALBERTO
Assopra forte nas costas da sua
mão. Assim.
(CONTINUED)
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CONTINUED: (2)
(CONTINUED)
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CONTINUED:
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EXT/INT. TÁXI - DIA
MÚSICA, mesma da cena anterior. Táxi andando na rua. Irma
deitada no banco de trás, olhando para cima, pela janela do
carro. Topos de árvores, fios de eletricidades, cabeças de
postes, topos de prédios, tudo de ponta-cabeça. Irma,
deitada, olha tudo, sonhadora. Um avião passa de ponta-cabeça
no céu.
(CONTINUED)
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IRMA(CONT'D)
CONTINUED:
Mas lembra que você nunca entendia
porque eu queria ter uma banda que
fosse famosa, mas que tocasse no
polo norte? Então. É meio por
isso...
O táxi pára em um cruzamento onde um Menino de Rua faz
malabarismos com bolinhas de pano em troca de moedas.
IRMA (CONT'D)
E na verdade eu acho que não tô
precisando mais de análise. Eu sou
normal.
O Artista, maravilhado, se apóia na mala para observar melhor
o malabarismo do Menino de Rua.
IRMA (CONT'D)
(off)
Mas acho que eu só queria que
alguém me conhecesse, e fizesse:
HHHHHH, sabe? Então desculpa, se eu
exagerei.
O Menino de Rua chegam na janela. O Artista bate palmas.
MENINO
Um trocado, tio?
O Artista continua batendo palmas, impressionado. O Menino,
sem entender, vai embora para pedir dinheiro em outro carro.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
IRMA
(off, no vídeo)
... tentando se explicar, sabe? É
igual desembrulhar um bolo e a
cobertura ficar grudada no papel
alumínio.
Lipe, usando paletó, camisa e calça social, está sentado no
sofá, assistindo o vídeo de Irma, enquanto VERA, 62 anos,
fala de fora da sala.
VERA (OFF)
Temos que evoluir. Nós, seres
humanos, somos animais também, sob
os efeitos da teoria da evolução...
LIPE
Mãe! Que DVD é esse que tava jogado
aqui?
VERA (OFF)
Que DVD?!
LIPE
Esse aqui...
Vera entra na sala. É uma senhora de traços fortes e olhos
esbugalhados.
VERA
Ah! Veio junto com as cartas. Eu
achei que era uma dessas
propagandas modernas.
(saindo da sala)
Ai, vai passar perfume. Tá na hora.
LIPE
Não quero passar perfume, mãe! Eu
já tô pronto!
VERA
(continua, em off)
As formigas, por exemplo...
Lipe se levanta, vai até uma mesa e pega um ENVELOPE DE EXAME
LABORATORIAL. Tira de dentro dele uma FITA VHS AZUL.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
VERA
Olha aí. O Síndico já convocou uma
reunião geral pra falar sobre esses
tais DVDs.
Vera olha para menino do aro grosso, para puxar assunto.
VERA (CONT'D)
Se for pensar bem, isso é um
absurdo, né?
Jovem de Óculos de Aro Grosso concorda com a cabeça,
desinteressado.
VERA (CONT'D)
Imagina se é pornografia. Os
capetinhas do 3B iam assistir com
certeza. Você recebeu também?
JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO
Recebi, mas nem vi.
VERA
(inconformada)
O Dermivaldo ter deixado alguém
mandar essas porcarias para o
prédio todo? Um absurdo!
JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO
Coisa de quem não tem o que fazer.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
VERA
Do mesmo modo que as nossas
amiguinhas antenadas, as formigas,
nós temos a função de manter uma
sociedade organizada. Daí a
importância de se ser agradável.
Esta sim deveria ser a nossa
filosofia de vida. Cada um está
neste mundo para nos fazer sentir
melhores sobre nós mesmos. Meu
filho, por exemplo, foi criado sob
esta luz...
Na platéia, Lipe esconde os olhos com a mão.
CORTA PARA:
(CONTINUED)
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CONTINUED:
(CONTINUED)
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IRMA(CONT'D)
CONTINUED:
Eu sei que eu não falei isso antes,
mas eu to falando agora porque
assim alguém me impede de voltar
aqui e entregar mais DVDs. É que eu
queria saber se alguém perguntou de
mim...
Dermivaldo sai da sua cabininha. Ele é um nordestino
baixinho, que vai até o portão e o fecha pelo lado de dentro.
DERMIVALDO
Olha aqui, moça. Aquilo que você
fez deu uma trabalheira pra mim...
todo mundo perguntando, o negócio
aqui não parava de tocar. Faz favor
pra mim, não entrega não essas
coisas.
IRMA
Eu não vim entregar, só tô
perguntando se alguém perguntou de
mim...
DERMIVALDO
Quase todo mundo, já falei.
Irma fica em silêncio.
Dermivaldo olha para ela, entra na sua cabininha e volta
trazendo o ENVELOPE DE EXAME LABORATORIAL.
DERMIVALDO (CONT'D)
Tó. Ninguém entendeu nada, nem eu,
mas eu até que achei bonito sua
filmagem.
IRMA
Gostou mesmo?
DERMIVALDO
O prédio assim, visto de cima.
Bonito.
Irma pega o pacote na mão e o observa.
IRMA
(mais empolgada)
Ai, brigada, moço!
Música.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
Irma olha para o pacote, sobe na cama e olha para o PRÉDIO DE
PASTILHAS VERDES. Irma abre o pacote e tira de dentro dele
uma FITA VHS AZUL. Irma coloca o VHS no vídeo cassete e dá
play. Irma senta na cama e assiste ao vídeo, que são muitas
pintas gravadas no exame médico de Lipe. Pintas em conjunto,
pintas em close, de diferentes formas e tamanhos, pintas em
plano geral. Irma, maravilhada, abre o vidro da janela de seu
quarto e grita pra fora, em direção ao PRÉDIO DE PASTILHAS
VERDES.
(CONTINUED)
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CONTINUED:
ALICE
Não passei.
IRMA
No festival do minuto?
ALICE
Não, no teste pra um curta.
IRMA
Mas. É só um curta.
Irma pára, pensativa.
IRMA (CONT'D)
Na verdade eu acho que você devia
ser menos... visceral.
Alice pára de chorar de repente, olha para Irma.
IRMA (CONT'D)
É. Eu acho que as coisas não são
assim; tanta emoção.
Irma senta na ponta oposta do sofá em que está Alice.
ALICE
(séria, enxugando as
lágrimas)
Outro dia eu ouvi você gritando
pela janela.
IRMA
Tá.
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CONTINUED:
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CONTINUED:
Irma sorri.
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EXT/INT. RUA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES / APARTAMENTO DE
LIPE - SALA - DIA
A rua está com pouco movimento de carros. No prédio, muitos
moradores estão apinhados nas janelas e na portaria,
esperando o encontro marcado por Irma no DVD. Vera, no
telefone, também espera à janela.
VERA
Olha lá a cara da safada.
Dona Carola alisa um gato na janela ao lado.
VERA (CONT'D)
(off)
Se eu fosse esse menino, eu não ia
encontrar com essa maluca. Mulher é
tudo louca, mas essa daí...
Lipe, sentado no sofá da sala, observa sua mãe na janela.
Ansioso, ele balança a perna e rabisca um papel.
VERA (CONT'D)
Ó lá. Deve ser aquela ali. Maluca,
esperando no meio da rua.
Lipe rabisca o FORMULÁRIO MÉDICO realizado pelo Dr. Alberto.
Lipe, absorto, pinta um a um todos os quadradinhos que
descriminam "alergias", "fraturas", "cirurgias", "doenças
congênitas", que antes estavam em branco.
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CONTINUED:
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