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Obra Prima

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INT. CONSULTÓRIO MÉDICO DERMATOLOGISTA - DIA
POV trêmulo de CÂMERA PORTÁTIL PARA EXAMES MÉDICOS:
Consultório elegante. LIPE, 23 anos, sem camisa, deitado de
bruço em uma maca. Ele é uma pessoa muito branca e com muitas
pintas nas costas.
CÂMERA PORTÁTIL pára de se mexer e revela MÉDICO, 40 anos,
que está ao lado da maca.
MÉDICO
Então agora eu vou fotografar as
suas pintas...
Lipe se vira em direção ao Médico.
MÉDICO (CONT'D)
...para que eu possa, com a ajuda
desse computador aqui, entender
melhor se elas são normais ou se
será necessária uma intervenção
cirúrgica, tá bom?
Médico coloca a câmera portátil em cima de uma mesa e veste
as luvas plásticas. Ao fundo, fora de foco, Lipe está deitado
na maca.
LIPE
Eu tenho medo das estranhas.
(se contorce para apontar
uma pinta nas costas)
Tipo essa aqui...
MÉDICO
Não tem que ter medo de nenhuma.
Médico, de luvas, vai até Lipe e examina as pintas de suas
costas.
MÉDICO (CONT'D)
(simpático)
É... Tirar tudo isso é impossível.
Médico vai até a mesa, pega a câmera e a aproxima das costas
de Lipe. Pintas, muitas pintas. Pintas de formas e
tonalidades diversas.
Música e créditos iniciais sobre as pintas.

INT. APARTAMENTO DE IRMA - QUARTO DE IRMA / SALA - DIA


Mesma música da cena anterior.
IMAGENS EM VÍDEO MINIDV--
de um PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES, desfocado, focado e
novamente desfocado. Corta para plano parado que enquadra, de
cima, a portaria deste prédio e a rua vazia no fim de tarde.

(CONTINUED)
1
CONTINUED:

IRMA
(off, no vídeo)
Às vezes eu penso tanto na coisa
dentro da minha cabeça que quando
ela vai acontecer... Já tô cansada.
Mas eu vou te conhecer antes.
No monitor de um computador essas IMAGENS EM MINIDV são
manipuladas e editadas por IRMA, 24, magra e alta, sentada em
frente ao computador. Irma avança e retrocede o vídeo na
timeline, ajusta uma entrada de plano. Irma dá play e se
levanta da cadeira para assistir a edição.
Música. IMAGENS EM MINIDV do PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES se
fundem com imagens gravadas do cotidiano de Irma--
imagens de seu pequeno quarto, a cabeceira da cama repleta de
bonequinhos feitos de massinha, tortos mas graciosos, imagens
da mão de Irma, suas unhas com esmalte decascando e suas
anotações na palma da mão.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Parênteses. Desculpa aos trinta e
três apartamentos que vão receber
isso à toa. Parênteses. Eu não
quero me gastar e escolhi você.
(pausa) Por exemplo, um dia as
pessoas falam que não querem mais
chocolate no leite, de um dia pro
outro: só café.
Desenhos tortuosos de Irma feitos à lápis na parede do
quarto, em traços finos.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
E eu fiquei aqui, porque não me
desperdicei. Eu queria ir no banco
de trás, pra ir deitada igual uma
doente... Enquanto você dirige. E
aí depois eu dirijo e é a sua vez.
No vídeo: Imagem de desenhos sendo feitos casualmente no
programa de desenhar no computador tipo Paint Brush.
IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Se desperdiçar por aí, tentando se
explicar, sabe? É igual
desembrulhar um bolo e a cobertura
ficar grudada no papel alumínio.
No vídeo: Ao lado do Paint Brush tem um programa de bloco de
anotações tipo Wordpad aberto, com o texto que Irma está
lendo.

(CONTINUED)
2
CONTINUED: (2)

IRMA (CONT'D)
(off, no vídeo)
Sei que as vezes a gente fica
procurando na profundidade das
coisas demais... Queria procurar
com você. Eu não sei onde está, mas
não tá nem tão fundo, nem fora da
gente.
No vídeo: Imagem do texto lido no Wordpad. Letras em close.
Irma vai até o comutador, abre o software de queimar DVD, dá
o comando para queimar DVDs e, na opção de "número de cópias"
coloca "34". Dois tubos cheios de DVDs novos estão do lado do
monitor.
Irma vai até a janela e vê lá fora--
o PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES, o mesmo do vídeo. Irma o
observa.
ALICE
(off, empolgada, voz muito
fina)
Irma, cê ta aí? Tá dormindo?
IRMA
(olhando pela janela)
Tô. Mas pode falar.
Na sala está--
ALICE, 24, saia indiana, se exercita na sala. Faz caras e
bocas e se movimenta esquisito. É atriz.
ALICE
Então.. meu amigo me disse que tá
tendo festival do minuto...Cê
sabia?
No quarto--
Irma sai de perto da janela e vai até seu computador.
ALICE (CONT'D)
(off, da sala)
Queria te chamar pra fazer
um vídeo comigo, quer?
Irma verifica o relógio do monitor do computador. São 14:59.
Irma olha, através da janela de seu quarto, para o PRÉDIO DE
PASTILHAS VERDES.
ALICE (CONT'D)
(off, da sala)
Porque eu não acredito que nunca
fizemos nada juntas... Eu tô lendo
muito Nelson Rodrigues esses dias,
sabe...

(CONTINUED)
3
CONTINUED: (3)

Irma observa a portaria do PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES. Um


JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO, 25, muito moderno e estiloso,
entra no PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES.

EXT. PORTARIA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES -


DIA
Irma anda na rua com uma sacola grande. Chega até a portaria
do prédio e toca o interfone.
IRMA
Oi. Eu queria entregar uns dvds...
DERMIVALDO
(off, no interfone)
DVDs? Locadora, né?
A porta automática destranca. Irma faz menção de responder no
interfone, mas não responde e entra no prédio.

INT. PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - HALL - DIA


Na parede do hall há pequenas caixas de correios dos
apartamentos, numeradas de um a trinta e quatro.
Irma coloca um a um os envelopes com DVDs dentro de todas as
caixas postais.

INT. ANTE-SALA DO CONSULTÓRIO MÉDICO DA TV MAIS - DIA


Lipe está sentado numa ante-sala, embaixo de uma placa
"Ambulatório da TV MAIS". Pela janela, atrás dele, passa um
homem vestido de cowboy, montado num cavalo, tocando violão e
cantando uma música sertaneja. Lipe não se abala.

INT. AMBULATÓRIO MÉDICO DA TV MAIS - DIA


Consultório antigo, encardido. DR. ALBERTO, 55, gordo, de
barba, está sentado à sua mesa, enquanto Lipe está ao lado,
de pé. Dr. Alberto assinala ítens de um FORMULÁRIO MÉDICO e
não olha para a cara de Lipe.
DR. ALBERTO
Alguma doença grave?
LIPE
Nenhuma.
DR. ALBERTO
Toma algum remédio regularmente?

(CONTINUED)
4
CONTINUED:

LIPE
Também não.
DR. ALBERTO
Alergia de alguma coisa?
LIPE
Nada.
DR. ALBERTO
De algum alimento... pó?
LIPE
Não.
DR. ALBERTO
Cirurgias?
LIPE
Não.
DR. ALBERTO
E fraturas?
LIPE
Hum. Eu acho que não.
Dr. Alberto olha para Lipe de modo inquisidor.
LIPE (CONT'D)
Mas minha família tá cheia de
doenças...
Silêncio no consultório.
LIPE (CONT'D)
Eu devo ter tido aquelas doenças de
bolinhas...
DR. ALBERTO
Catapora? Sarampo?
LIPE
É...não.
Dr. Alberto, de cabeça baixa, continua completando
burocraticamente o FORMULÀRIO MÉDICO.
DR. ALBERTO
Agora eu preciso que você abaixe as
calças e a cueca.
LIPE
Tudo?
Dr. Alberto não reage. Então Lipe abaixa as calças e a cueca.
DR. ALBERTO
Assopra forte nas costas da sua
mão. Assim.

(CONTINUED)
5
CONTINUED: (2)

Dr. Alberto assopra forte nas costas da sua mão. Lipe o


imita.
CORTA PARA:
Lipe, já vestido, espera Dr. Alberto completar o FORMULÁRIO
MÉDICO em três vias separadas por papéis carbonos. No fim da
ficha, Dr. Alberto escreve algo em garranchos que parece ser:
"MUITO INEXISTENTE". Dr. Alberto destaca do bloco três folhas
do FORMULÁRIO e entrega duas vias para Lipe, que não tira os
olhos dos garranchos finais que parecem dizer "MUITO
INEXISTENTE".

INT. REDAÇÃO-ESTÚDIO DO JORNAL DA TV MAIS - DIA


Estúdio de Jornal cuja redação faz parte do cenário de fundo.
O estúdio-redação é movimentado: produtores e jornalistas
imprimem pautas, carregam fitas, falam ao telefone.
Lipe, observa FLÁVIO, 20, metaleiro, sentado na frente de um
monitor. Flávio transcreve uma fita com opiniões de populares
ao lado de uma escultura de vaca feito com material
reciclável, na Avenida Paulista.
POPULAR AO LADO DA VACA
...não sei. É arte, né? Atrapalha
um pouco na hora de andar na rua,
mas até que alegra a gente.
No monitor: Popular olha para a vaca, sorri. Olha para o
repórter fora de quadro, sorri.

INT. CORREDORES DA TV MAIS - DIA


Lipe, carregando uma pilha de fitas betas, anda com Flávio
pelos corredores da redação.
FLÁVIO
É assim. Aqui na TV existem dois
mundos. Os que são gays ou que se
parecem gays e a galera da técnica.
E esses dois mundos não se falam
nunca. Sua função é basicamente
fazer que esses manos e essas minas
se falem.
Lipe se desequilibra com as betas, Flávio ajuda.
FLÁVIO (CONT'D)
Daqui a pouco você pega o jeito. O
que você não pode fazer é deixar o
fluxo de fitas e de boletins se
atrasar. Antes de começar o jornal
você vai ver. É loucura.

(CONTINUED)
6
CONTINUED:

Lipe, com muita dificuldade, tira as vias do FORMULÁRIO


MÉDICO do bolso.
LIPE
Onde é que eu entrego?
Flávio pega as vias do FORMULÁRIO MÉDICO da mão de Lipe.
FLÁVIO
O que é isso?
LIPE
Exame médico.
FLÁVIO
Ah, no RH. Deixa comigo.
Flávio destaca as vias do FORMULÁRIO MÉDICO, fica com uma e
devolve a outra para Lipe.
LIPE
Vê se você entende o que está
escrito aqui.
Lipe aponta para o garrancho no FORMULÁRIO MÉDICO. Flávio
tenta ler o garrancho que parece dizer "muito inexistente".
FLÁVIO
(com dificuldade)
"Muito inexistente"?
LIPE
Hum...

INT. REDAÇÃO-ESTÚDIO DO JORNAL TV MAIS - DIA


Lipe entra na redação na qual o jornal está sendo
apresentado. As pessoas estão agitadas, o som da vinheta toca
alto. A câmera robô corre ao longo da redação, mostrando Lipe
ao fundo que, atrapalhado com as betas, encara a câmera.

INT. APARTAMENTO DE IRMA - QUARTO DE IRMA - DIA


É cedo pela manhã. Irma, sentada em sua cama, amarra devagar
os sapatos. Atrás dela, há uma TV ligada no jornal da TV
MAIS. No cenário de fundo, Lipe encara a câmera.
Irma vai até a janela e olha a portaria do PRÉDIO DE
PASTILHAS VERDES. A rua está vazia. O Jovem de Óculos De Aro
Grosso, estiloso, sai do prédio segurando uma BEXIGA ROXA
FLUTUANTE. Irma fica feliz. MÚSICA.

7
EXT/INT. TÁXI - DIA
MÚSICA, mesma da cena anterior. Táxi andando na rua. Irma
deitada no banco de trás, olhando para cima, pela janela do
carro. Topos de árvores, fios de eletricidades, cabeças de
postes, topos de prédios, tudo de ponta-cabeça. Irma,
deitada, olha tudo, sonhadora. Um avião passa de ponta-cabeça
no céu.

INT. AEROPORTO - DESEMBARQUE - DIA


Irma segura uma placa escrito “MAM” e observa pessoas pegarem
suas malas na esteira. Irma observa a esteira e acompanha uma
mala de viagens muito esquisita--
de metal, com bonecas de plástico sem braços, penduradas,
amarradas umas nas outras pelos cabelos. A mala vai andando
até ser pega por um cara todo vestido de preto, o ARTISTA.
O Artista se dirige até as pessoas com plaquinhas nas mãos e
vai de encontro à Irma.
ARTISTA
Hello...
IRMA
Hi.
ARTISTA
Are you from...
IRMA
The museum.

INT. PONTO DE TÁXI - DIA


Irma chama um táxi e ela e o Artista entram no táxi.

EXT/INT. TÁXI - DIA


Irma e Artista em silêncio no banco de trás, a mala esquisita
no meio. Irma está com o celular na orelha, ouve por um
tempo.
IRMA
Oi Dr. Otmar... Tudo ... Não, não
esqueci de você nessa quarta, não.
É que sabe, é que eu não quis ir
mais mesmo. Não quero mais. .. Não,
não é nada com você.

(CONTINUED)
8
IRMA(CONT'D)
CONTINUED:
Mas lembra que você nunca entendia
porque eu queria ter uma banda que
fosse famosa, mas que tocasse no
polo norte? Então. É meio por
isso...
O táxi pára em um cruzamento onde um Menino de Rua faz
malabarismos com bolinhas de pano em troca de moedas.
IRMA (CONT'D)
E na verdade eu acho que não tô
precisando mais de análise. Eu sou
normal.
O Artista, maravilhado, se apóia na mala para observar melhor
o malabarismo do Menino de Rua.
IRMA (CONT'D)
(off)
Mas acho que eu só queria que
alguém me conhecesse, e fizesse:
HHHHHH, sabe? Então desculpa, se eu
exagerei.
O Menino de Rua chegam na janela. O Artista bate palmas.
MENINO
Um trocado, tio?
O Artista continua batendo palmas, impressionado. O Menino,
sem entender, vai embora para pedir dinheiro em outro carro.

INT. MAM - ESCRITÓRIO - DIA


Irma coloca suas coisas em sua mesa. A pessoa da mesa ao lado
fala ao telefone.
PESSOA DA MESA AO LADO
(ao fundo)
É sim, sobre o corpo no terceiro
mundo. (...) O conceito de corpo
fragmentado. (...) Não, o artista
que é deficiente físico é o da
África. África do Sul. Isso...
Irma recebe de um office boy, em sua mesa, um ADESIVO do
museu, onde está escrito: "MAM - eu respiro ARTE". O office
boy continua distribuindo os adesivos por outras mesas. Irma
observa o adesivo. Pega uma tesoura no porta-trecos em sua
mesa e corta o final do adesivo.

INT. APARTAMENTO DE LIPE / SALA - DIA


Na televisão--
Imagem de bichinhos feitos de massinha, mal feitos mas
graciosos.

(CONTINUED)
9
CONTINUED:

IRMA
(off, no vídeo)
... tentando se explicar, sabe? É
igual desembrulhar um bolo e a
cobertura ficar grudada no papel
alumínio.
Lipe, usando paletó, camisa e calça social, está sentado no
sofá, assistindo o vídeo de Irma, enquanto VERA, 62 anos,
fala de fora da sala.
VERA (OFF)
Temos que evoluir. Nós, seres
humanos, somos animais também, sob
os efeitos da teoria da evolução...
LIPE
Mãe! Que DVD é esse que tava jogado
aqui?
VERA (OFF)
Que DVD?!
LIPE
Esse aqui...
Vera entra na sala. É uma senhora de traços fortes e olhos
esbugalhados.
VERA
Ah! Veio junto com as cartas. Eu
achei que era uma dessas
propagandas modernas.
(saindo da sala)
Ai, vai passar perfume. Tá na hora.
LIPE
Não quero passar perfume, mãe! Eu
já tô pronto!
VERA
(continua, em off)
As formigas, por exemplo...
Lipe se levanta, vai até uma mesa e pega um ENVELOPE DE EXAME
LABORATORIAL. Tira de dentro dele uma FITA VHS AZUL.

INT. ELEVADOR DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - DIA


No elevador, o Jovem de Óculos de Aro Grosso se olha no
espelho, arrumando o cabelo estiloso. A porta do elevador se
abre, entram Lipe e Vera. Silêncio constrangedor. Lipe
esconde o ENVELOPE DE EXAME LABORATORIAL dentro do paletó.
A porta do elevador se fecha. Vera aponta para um papel
pregado na porta do elevador.

(CONTINUED)
10
CONTINUED:

VERA
Olha aí. O Síndico já convocou uma
reunião geral pra falar sobre esses
tais DVDs.
Vera olha para menino do aro grosso, para puxar assunto.
VERA (CONT'D)
Se for pensar bem, isso é um
absurdo, né?
Jovem de Óculos de Aro Grosso concorda com a cabeça,
desinteressado.
VERA (CONT'D)
Imagina se é pornografia. Os
capetinhas do 3B iam assistir com
certeza. Você recebeu também?
JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO
Recebi, mas nem vi.
VERA
(inconformada)
O Dermivaldo ter deixado alguém
mandar essas porcarias para o
prédio todo? Um absurdo!
JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO
Coisa de quem não tem o que fazer.

INT. APARTAMENTO DE IRMA - QUARTO DE IRMA - DIA


Entardece. Irma, à janela, tira a película do ADESIVO que ela
recebeu no museu. Lá em baixo, saindo do PRÉDIO DE PASTILHAS
VERDES, estão saindo Lipe e Vera. Lipe para na portaria e
entrega algo para Dermivaldo. Na sala, Alice ensaia um texto.
ALICE
(off, da sala)
Ôxi, quer que meu pai veja?
Abestado! (pausa) Ôxi abestado,
quer que meu pai veja? (pausa) Oxi!
Abestado... quer que meu pai
veja!?...
Irma cola o adesivo no vidro da janela: "MAM - Eu respiro
AR".

INT. AUDITÓRIO - NOITE


Em um grande auditório, Vera discursa em um palco, para uma
pequena platéia. Atrás dela existe uma faixa escrita:
"Conclusão do XXI Curso de Oratória".

(CONTINUED)
11
CONTINUED:

VERA
Do mesmo modo que as nossas
amiguinhas antenadas, as formigas,
nós temos a função de manter uma
sociedade organizada. Daí a
importância de se ser agradável.
Esta sim deveria ser a nossa
filosofia de vida. Cada um está
neste mundo para nos fazer sentir
melhores sobre nós mesmos. Meu
filho, por exemplo, foi criado sob
esta luz...
Na platéia, Lipe esconde os olhos com a mão.
CORTA PARA:

INT. AUDITÓRIO - NOITE


Festinha improvisada no palco, com pratinhos de doces e
salgados trazidos pelas pessoas do curso. Lipe pega um
salgadinho de um dos pratinho. Ao redor pessoas discutem os
temas apresentados, os docinhos da mesa, etc. IRINEU,
português, 72 anos, se aproxima de Lipe.
IRINEU
E a minha palestra sobre o
infinito?
Lipe se vira para Irineu e termina de engolir o salgadinho.
LIPE
Que coisa existir um infinito maior
que o outro, né? Interessante...
Irineu, satisfeito, dá tapinhas nas costas de Lipe. Vera,
alegre, se aproxima dos dois.
VERA
Ah! Irineu! Não entendi nada! É
tudo infinito!!
Vera e Irineu conversam. Lipe se afasta. No caminho ele
esbarra com um JOVEM.
JOVEM
Ai, desculpa.
LIPE
Não, magina. Desculpa eu.
JOVEM
Eu que pisei no teu pé.
LIPE
Que é isso! Eu que pisei.

(CONTINUED)
12
CONTINUED:

O Jovem sai sorrindo simpático para Lipe, que também sorri


amarelo e se afasta, indo em direção aos doces. Lipe pára em
frente a uma bandeja cheia de doces em formato de POKEMON,
coloridos. OLGA, 28, muito magra, de óculos, tímida, se
aproxima. Lipe, desconfiado, pega o doce POKEMON.
OLGA
(muito educada)
Que bom que sua mãe dá valor à
educação...
Lipe devolve o doce POKEMON e não acredita que todos estejam
vindo falar com ele por causa de sua mãe.
OLGA (CONT'D)
(olhando para os doces)
Eu que fiz, pintei um por um.
Lipe observa os pokemons meio tortos. Pega um, o mais torto.
(MORE)
LIPE
É, tá bonito.
OLGA
Ah, pode falar a verdade...
LIPE
Não, tá bonito mesmo.
Lipe olha o pokemon torto.

INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - DIA


Irma vem andando, decidida. Toca o interfone.
DERMIVALDO
(off, ao interfone)
Oe.
IRMA
(falando ao interfone)
Oi. Eu queria saber se alguém aí
perguntou de mim... Eu entreguei
uns DVDs aí esses dias...
DERMIVALDO
(off, ao interfone)
DVD? Locadora né?
Dermivaldo abre o portão. Irma não entra, fica segurando o
portão.
IRMA
(ao interfone)
Não.. Moço, eu não sou da locadora.

(CONTINUED)
13
IRMA(CONT'D)
CONTINUED:
Eu sei que eu não falei isso antes,
mas eu to falando agora porque
assim alguém me impede de voltar
aqui e entregar mais DVDs. É que eu
queria saber se alguém perguntou de
mim...
Dermivaldo sai da sua cabininha. Ele é um nordestino
baixinho, que vai até o portão e o fecha pelo lado de dentro.
DERMIVALDO
Olha aqui, moça. Aquilo que você
fez deu uma trabalheira pra mim...
todo mundo perguntando, o negócio
aqui não parava de tocar. Faz favor
pra mim, não entrega não essas
coisas.
IRMA
Eu não vim entregar, só tô
perguntando se alguém perguntou de
mim...
DERMIVALDO
Quase todo mundo, já falei.
Irma fica em silêncio.
Dermivaldo olha para ela, entra na sua cabininha e volta
trazendo o ENVELOPE DE EXAME LABORATORIAL.
DERMIVALDO (CONT'D)
Tó. Ninguém entendeu nada, nem eu,
mas eu até que achei bonito sua
filmagem.
IRMA
Gostou mesmo?
DERMIVALDO
O prédio assim, visto de cima.
Bonito.
Irma pega o pacote na mão e o observa.
IRMA
(mais empolgada)
Ai, brigada, moço!
Música.

INT. APARTAMENTO DE IRMA - QUARTO DE IRMA - DIA


Mesma música da cena anterior. Irma, sentada na cama, com o
ENVELOPE DE EXAME LABORATORIAL na mão, olha pela porta que dá
para a sala e vê--
Alice em frente à câmera no tripé, recitando textos e fazendo
movimentos esquisitos.

(CONTINUED)
14
CONTINUED:
Irma olha para o pacote, sobe na cama e olha para o PRÉDIO DE
PASTILHAS VERDES. Irma abre o pacote e tira de dentro dele
uma FITA VHS AZUL. Irma coloca o VHS no vídeo cassete e dá
play. Irma senta na cama e assiste ao vídeo, que são muitas
pintas gravadas no exame médico de Lipe. Pintas em conjunto,
pintas em close, de diferentes formas e tamanhos, pintas em
plano geral. Irma, maravilhada, abre o vidro da janela de seu
quarto e grita pra fora, em direção ao PRÉDIO DE PASTILHAS
VERDES.

EXT. RUA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - DIA


Irma, no meio da rua vazia, espera. Irma ouve o portão do
prédio abrir. O Jovem de Óculos De Aro Grosso sai segurando
um BEXIGA ROXA FLUTUANTE. Irma sai atrás dele, feliz.
Irma pára em frente do Jovem de Óculos De Aro Grosso na
calçada e ele pára de andar.
IRMA
Gostei do vídeo.
O Jovem de Óculos De Aro Grosso continua parado.
IRMA (CONT'D)
As pintas. Nem tão fundo, nem fora
da gente.
Irma pega na camiseta do Jovem de Óculos De Aro Grosso e a
levanta, mas não vê pinta nenhuma. O Jovem de Óculos De Aro
Grosso dá um passo para trás, a camiseta escapa da mão de
Irma. Irma, um tanto obsessiva e esperançosa, tenta levantar
a camiseta do outro lado.
JOVEM DE ÓCULOS DE ARO GROSSO
Você é louca?
Jovem de Óculos De Aro Grosso desvia de Irma e continua
andando pela calçada. Ele pára em frente a uma escolinha
infantil, de onde saem muitas mães com crianças. Ele espera
na frente da escolinha, com a BEXIGA ROXA FLUTUANTE na mão.
Olha de soslaio para Irma, que fica parada no meio da
calçada. Da escolinha sai uma Loira Bonita com uma Criança no
colo. A Criança vai correndo em direção ao Jovem de Óculos De
Aro Grosso, querendo a BEXIGA ROXA FLUTUANTE. A Loira Bonita
dá um beijo na boca do Jovem de Óculos De Aro Grosso. Do meio
da calçada, Irma olha para a cena.

INT. APARTAMENTO DE IRMA - SALA - DIA


Irma abre a porta do apartamento e vê Alice chorando no sofá
da sala, agarrada a uma almofada. Irma pára na porta do
apartamento e observa Alice que continua chorando e
soluçando, olhando para Irma, parada à porta da sala.
IRMA
O que foi?

(CONTINUED)
15
CONTINUED:

ALICE
Não passei.
IRMA
No festival do minuto?
ALICE
Não, no teste pra um curta.
IRMA
Mas. É só um curta.
Irma pára, pensativa.
IRMA (CONT'D)
Na verdade eu acho que você devia
ser menos... visceral.
Alice pára de chorar de repente, olha para Irma.
IRMA (CONT'D)
É. Eu acho que as coisas não são
assim; tanta emoção.
Irma senta na ponta oposta do sofá em que está Alice.
ALICE
(séria, enxugando as
lágrimas)
Outro dia eu ouvi você gritando
pela janela.
IRMA
Tá.

INT. CONSULTÓRIO MÉDICO DERMATOLOGISTA - DIA


Uma mão com luva examina a textura de uma pinta.
MÉDICO
(off)
Mas coça quando?
LIPE
Não sei, tem horas que eu percebo,
e horas que eu não percebo.
MÉDICO
Tá coçando agora, por exemplo?
LIPE
Tá...Agora que você falou.
Lipe vai com a mão até a pinta e a coça.
MÉDICO
Vai ver ela está só tentando chamar
atenção...

(CONTINUED)
16
CONTINUED:

Médico dá um sorrizinho e começa a tirar as luvas.


MÉDICO (CONT'D)
Olha, o procedimento é assim... Na
dúvida, a gente tira.
Lipe pensativo.

INT. ANTE-SALA/SALA DO CONSULTÓRIO MÉDICO DA TV MAIS - DIA


Lipe espera sentado nas cadeirinhas da recepção, com a perna
balançando de nervoso. A porta da sala de consultas se abre.
Lipe se levanta. Da sala de consulta sai um macaquinho
encoleirado. Segurando a coleira, sai um Adestrador.
ADESTRADOR
Obrigado! Até mais, Doutor.
Da sala de consulta sai Dr. Alberto, segurando sua maleta e
tirando o jaleco. Dr Alberto olha para Lipe, estranhando ele
ali, olha no relógio.
LIPE
Não, eu só queria perguntar se
tirar uma pinta é cirurgia...

EXT. PORTARIA DA TV MAIS - DIA


Uma confusão de fãs com faixas se amontoam para entrar. Lipe
passa seu crachá para sair e olha para o FORMULÁRIO MÉDICO
médico que tem um quadrado assinalado "Micro cirurgia" e em
baixo escrito algo parecido com "muito inexistente".
Música.

INT. HALL DE ENTRADA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - DIA


Mesma música da cena anterior.
Irma coloca um a um os DVDs nas caixas de correios dos
apartamentos. Ao fundo, Dermivaldo está encostado no batente.
DERMIVALDO
... Por que eu também já pensei uma
coisa muito, muito mesmo, até
enjoar. Foi quando eu queria um
peixe beta. Sabe aquele peixinho
que são feito galo de briga? Então.
Queria tanto, só pensava nisso,
mas... Aí quando eu juntei o
dinheiro pra ir comprar, eu já
tinha imaginado tanto que na minha
imaginação o diabo do peixe era
muito mais bonito!

(CONTINUED)
17
CONTINUED:

Irma sorri.

INT. APARTAMENTO DE LIPE - SALA - NOITE


Lipe, sentado no sofá, assiste a tv, enquanto Vera fala ao
telefone na cozinha.
Na televisão: bonequinhos de massinha desfocados, bonequinhos
em foco. Música.
IRMA
(off, na televisão)
Tô dando outra chance.
VERA
(off, da cozinha)
Você entendeu alguma coisa agora,
Neide? Porque eu ainda não entendi
nada. (pausa) Não... eu não acho
que tem que demitir o Dermivaldo...
Na televisão: Um céu estrelado.
IRMA
(OFF, na televisão)
Tá, fui meio idiota. Mas tô
insistindo. Pra poder ser inteira
idiota. E aí desistir.
Na televisão: A imagem do céu estrelado vai se transformando
por fusão na imagem das costas de Lipe cheias de pintas.
IRMA (CONT'D)
(OFF, na televisão)
Nem tão fundo, nem tão fora da
gente.
Na televisão: Pintas e pequenas janelas de apartamentos.
IRMA (CONT'D)
(OFF, na televisão)
Parênteses. Desculpa aos trinta e
três apartamentos que vão receber
isso. Parênteses. Por favor,
aparece na frente do prédio nesse
sábado, às duas. Da tarde. Ou três.
Espero até as três.
Lipe, sentado no sofá, assiste a tv, coça a pinta.
VERA
(off)
O que me dá nos nervos é que a Dona
Carola falou que ia chamar a
polícia.

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EXT/INT. RUA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES / APARTAMENTO DE
LIPE - SALA - DIA
A rua está com pouco movimento de carros. No prédio, muitos
moradores estão apinhados nas janelas e na portaria,
esperando o encontro marcado por Irma no DVD. Vera, no
telefone, também espera à janela.
VERA
Olha lá a cara da safada.
Dona Carola alisa um gato na janela ao lado.
VERA (CONT'D)
(off)
Se eu fosse esse menino, eu não ia
encontrar com essa maluca. Mulher é
tudo louca, mas essa daí...
Lipe, sentado no sofá da sala, observa sua mãe na janela.
Ansioso, ele balança a perna e rabisca um papel.
VERA (CONT'D)
Ó lá. Deve ser aquela ali. Maluca,
esperando no meio da rua.
Lipe rabisca o FORMULÁRIO MÉDICO realizado pelo Dr. Alberto.
Lipe, absorto, pinta um a um todos os quadradinhos que
descriminam "alergias", "fraturas", "cirurgias", "doenças
congênitas", que antes estavam em branco.

EXT. RUA DO PRÉDIO DE PASTILHAS VERDES - DIA


Irma, no meio da rua, olha para a portaria do prédio apinhada
de gente. Donas de casa, crianças, grupos de jovens, todos
olham para Irma e cochicham. Um pré-adolescente tira um
celular do bolso e tira uma foto de Irma. Nas janelas dos
apartamentos pessoas apontam, comentam com as pessoas das
janelas dos lados. Irma olha para tudo isso do mesmo modo
como foi apresentado em seu DVD: desfocando e focando o que
ela vê. Irma não se incomoda com os observadores. Apenas
espera.
Uma movimentação na portaria. Pessoas abrem espaço para Lipe,
que vai em direção à Irma.
Irma espera Lipe se aproximar. Lipe pára na frente dela.
Dona Carola olha para Vera. Vera olha para Dona Carola.
Lipe tira do bolso um papel. Desdobra devagar o papel e o
mostra para Irma.
LIPE
Você entende o que está escrito
aqui?

(CONTINUED)
19
CONTINUED:

Irma lê o papel. É o exame médico que Lipe recebeu do Dr.


Alberto. Lipe aponta com o dedo onde parece estar escrito, em
garranchos, a frase "muito inexistente".
IRMA
Risco inexistente? Tá escrito
"risco inexistente".

INT. CAMA - FIM DE TARDE


Lentamente, uma caneta esferográfica faz uma linha sobre uma
pele muito branca. A linha atinge uma pinta, pára e toma
outra direção. A linha segue até atingir outra pinta. A linha
muda de direção, desfoca, atinge outra pinta. Música. Pintas
muito próximas são ligadas pela linha. A linha segue por
muito tempo sem atingir nenhuma pinta, passa por um curativo
pequeno feito com esparagrapo e gase. Finalmente atinge uma
pinta grande. Corta. Caneta em primeiro plano risca uma longa
linha. Ao fundo, uma teia de linhas desfocadas ligando
pintas.
Irma está deitada com a cabeça no peito de Lipe, que dorme
sem camisa.
CRÉDITOS FINAIS.

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