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Origem e perspectivas
Fonte: Arquivo de Ruy Mauro Marini, con la anotación "Ponencia Sociología, 070894".
Índice
Sociologia e Capitalismo
O pensamento social latinoamericano
A institucionalização da sociologia
Problemas e perspectivas
O primeiro a considerar é que a sociologia só pode surgir em certos tipos de sociedades, nas
quais se dão determinadas características. Mais que isso, ela é uma expressão particular de
certa linha de pensamento, cuja essência consiste em ser uma reflexão sobre as estruturas e
processos que estabelecemos no marco da convivência social, vale dizer, no marco de
nossas sociedades. Na sua dimensão mais ampla, essa reflexão parte de concepções
totalizadoras, como foram a economia política clássica ou a teoria social do século XVIII,
para alcançar, mais tarde, as ciências especiais, como são hoje a economia e a ciência
política, entre outras, assim como, a sociologia.
Sociologia e Capitalismo
Nas distintas sociedades que registradas pela história antes do advento do capitalismo
correspondiam a formas sociais mais simples, baseadas em uma estrutura de classes pouco
diferenciada e muito estratificada, que se expressava em sistemas políticos centralizados e
autocráticos. Pensemos nos regimes teocráticos ou feudais e, em geral, nas sociedades cuja
produção era assegurada por relações escravistas ou de servidão. Desde logo, na
sustentação desses sistemas de dominação, desempenhava um papel destacado no uso da
força. No entanto, não há regime que se sustente somente em base à força: as classes
dominadas têm que ser também persuadidas de que sua sujeição está relacionada a razões
superiores, que transcendem os interesses e as motivações individuais, para responder a
fatores de caráter mais geral. Em outras palavras, a dominação de classe deve apresentar-se
sempre como a expressão de algo necessário e, em certa medida, natural.
Isso se observa já em situações nas quais se produz uma marcante diferenciação social e um
certo desenvolvimento mercantil, aliadas a expansão imperialista, como na Grécia Antiga.
O agravamento dos conflitos sociais estimula, na localidade, uma reflexão sociológica cada
vez mais especializada, que passando pelos sofistas, produzirá algumas obras mestras que
se propõem a desvendar a razão desses conflitos e suprimi-los em benefício da classe
dominante. Que se trate de uma construção ideal, como A República, de Platão, onde são
identificados os segmentos que formam a sociedade buscando articulá-los harmonicamente
em um sistema corporativo, ou de uma investigação comparada, como na Política, de
Aristóteles, que toma as classes e suas interações como eixo de análise, na perspectiva do
equilíbrio e da harmonia social, sempre estamos na presença de uma teorização destinada a
assegurar ou transformar uma ordem de coisas determinadas, a partir de um ponto de vista
de classe.
Isso ocorrerá com mais força ainda quando o capitalismo, rompendo a ordem feudal, passa
a conformar Estados nacionais. Estes correspondem a sociedades de classe altamente
complexas, cuja lógica – ainda que consagre a dominação de umas sobre as outras e
repouse sempre na força – é a de recorrer crescentemente aos mecanismos econômicos e à
persuasão ideológica como mecanismos de dominação. Na medida em que o capitalismo se
consolide, a burguesia tratará, por um lado, de assumir o monopólio absoluto do poder
político e, por outro, de afirmar sua hegemonia sobre a classe operária e demais setores
sociais.
A economia política – que emerge como ciência com William Petty, na Inglaterra, e
Boisguillebert, na França, ao final do século XVII – cumprirá essa dupla tarefa. A
burguesia se valerá dela para atacar a velha classe dos grandes proprietários de terra, que
mantém sua presença no Estado, começando por proclamar o caráter parasitário desta
classe, ao sustentar, como os fisiocratas, que a terra é a única fonte de riqueza. O crescente
predomínio da indústria, a partir do último terço do século XVIII, a levará, logo, com
Adam Smith e David Ricardo, a postular o trabalho como o fator determinante na criação
de riqueza.
A sociologia se colocará, até a terceira década do século XIX, como reação a esse processo.
Denominando a economia política de “ideologia”, se preocupará em obscurecer certos
aspectos da realidade e em centrar na análise na dinâmica social, desconhecendo ao
máximo possível os processos materiais concretos em que esta dinâmica se baseia. Seu
fundador, Auguste Comte, mesmo que sem desvincular inteiramente a sociologia e
filosofia, proclamará a ordem social burguesa como uma ordem em si mesma, um
organismo perfeito, mas imutável, expressão definitiva do normal, contra o qual toda ação
contrária seria indicativa de um desvio, quer dizer, uma manifestação de tipo patológica.
Aprofundando nessa direção, Émile Durkheim tomará essa ordem como um objeto em si da
sociologia e a dotará de um método particular, completando assim sua constituição como
ciência particular. A investigação sociológica deverá fundar-se essencialmente na
observação empírica dos fenômenos sociais, tomados como coisas, cuja freqüência
determina seu caráter normal ou patológico. Com ele se descarta a revolução, que passa a
ser considerada como enfermidade social. Posteriormente, sob a influência de Darwin,
Herbert Spencer enfatizará na nova disciplina as noções de evolução e seleção natural, que
consagram as teses de sobrevivência dos mais aptos, proporcionando a competência
capitalista a justificativa que ela necessitava1.
O pensamento latino-americano
A sociologia assim constituída chega na América Latina na segunda metade do século XIX.
Neste momento, a América Latina já havia promovido sua independência em relação às
metrópoles ibéricas e se empenhava na formação de seus Estados nacionais. Sob a
dominação colonial, a região não teve condições de produzir idéias próprias: importava-as
da metrópole, seja por meio da absorção das idéias defendidas por intelectuais que de lá
provinham, seja em função do envio dos seus homens cultos, letrados, para que se
apropriassem delas. Essa situação não sofre muita alteração no primeiro século de vida
independente dos países latino-americanos.
Esse pensamento imitativo e reflexo2 derivava das condições materiais nas quais se
reproduziam nossas sociedades, mas se ajustava perfeitamente às necessidades de nossas
classes dominantes. Assim ocorreu com a maneira como abraçaram o liberalismo, já que
1
Cfr. mi ensayo "Razón y sinrazón de la sociología marxista", en Bagú, S., y otros, Teoría marxista de las clases
sociales, México, UAM-Iztapalapa, 1983, pp. 7-22.
2
El concepto de pensamiento reflejo fue formulado por Guerreiro Ramos, A., y desarrollado sobre todo em A redução
sociológica, Río de Janeiro, Instituto Superior de Estudios Brasileños, 1958. En un trabajo anterior, ese autor señalaba:
"...la historia de las ideas y actitudes de los países colonizados refleja siempre los periodos por los que ellas pasan en los
países colonizadores." El proceso de la sociología en Brasil (Esquema para una historia de las ideas), Río de
Janeiro, sin editor, 1953, p. 11.
este proporcionava às classes dominantes a justificativa adequada ao ciclo de reprodução do
capital, que constituía a base de sua própria reprodução enquanto classe: constituídas por
grandes proprietários de terras e comerciantes (essas oligarquias encontravam no
intercâmbio de matérias-primas por manufaturas sua razão de ser econômica). Daí para
admitir o caráter necessário da forma que então assumia a divisão internacional do trabalho
e a proclamar como natural a vocação agrária de nossos países, era só um passo.
No entanto, os intelectuais nativos não podiam deixar de observar as diferenças que esse
tipo de organização social apresentava em relação às sociedades européias, assim como em
relação a estudunidense, e, por isso, experimentar certa angústia. Mas, como intelectuais
orgânicos da oligarquia, mais que entender, preocupavam-se em justificar a ordem das
coisas da qual eles também se beneficiavam. O positivismo, com suas noções de ciência,
evolução e patologia social, assim como o enxerto racista que não tardou de receber,
proporcionou-lhes o instrumento que necessitavam.
Dessa forma, esses países, às voltas com uma significativa população indígena ou negra,
não titubearam em responsabilizar a mestiçagem pelos problemas de sua situação social,
política e cultural, chegando a fazê-lo, às vezes, de maneira extremamente brutal. “Impuros,
ambos” – dizia Bunge referindo-se tanto aos mestiços como aos mulatos – “ambos
atavicamente anticristãos, são como duas cabeças de uma hidra enorme que rodeia, espreita
e estrangula, entre seu espiral gigantesco, uma bela e pálida virgem: a América
espanhola!”3
O remédio proposto para fazer frente ao problema variava. Existiam aqueles que, como
Ingenieros, apoiavam-se em um pragmatismo cínico para afirmar: “Fazer algo a favor das
raças inferiores é anti-científico, no máximo se poderia protegê-los para que se extingam
agradavelmente, facilitando a adaptação providencial dos que por exceção podem realizá-
la”4.
Outros, mesmo que sem ocultar seu desprezo e até seu ódio pelos excluídos, inclinaram-se
até a auto-flagelação, punindo-se por arcar com essa maldição, esse pecado original de
pertencer a nações mestiças. Não surpreende que na literatura da época abundem títulos
como o Manual de patologia política (1899), do argentino Augustin Alvarez; O continente
3
Bunge, C. O., Nuestra América. Ensayo de psicología social (1903), cit. por Stabb, M. S., América Latina en busca
de una identidad. Modelos del ensayo ideológico hispanoamericano, 1890-1960, Caracas, Monte Avila, 1969, p. 28.
4
Ingenieros, J., Crónicas de viaje (1919), cit. por Stabb, op. cit., p. 50.
enfermo (1899), do venezuelano César Zumeta; Enfermidades sociais (1905), do argentino
Manuel Ugarte, e Povo enfermo (1909), do boliviano Alcides Arguedas.
Em menor número ainda serão os pensadores, que descartam, de partida, a ideologia racista
na reflexão sobre seus países. Assim, Alberto Torres, em seu livro O problema nacional
(1914), buscará a explicação das especificidades brasileiras na história, nas estruturas
políticas e cultura nacional, antes que no sangue ou na cor da pele. E José Martí, com o
idealismo e conhecimento que o caracterizam, afirmará sem rodeios: “Não há raças:
existem somente modificações do homem”.6
A institucionalização da sociologia
5
Así, en Argirópolis, Sarmiento afirmaba: "La emigración del exceso de población de unas naciones viejas a las nuevas,
hace el efecto del vapor aplicado a la industria: centuplicar las fuerzas y producir en un día el trabajo de un siglo. Así se han
engrandecido y poblado los Estados Unidos, así como hemos de engrandecernos nosotros...", añadiendo: "El norteamericano
es... el anglosajón exento de toda mezcla con razas inferiores en energía". Cit. por Zea, L., El pensamiento
latinoamericano, Barcelona, Ariel, 1976 (1a. ed., 1965), pp. 146-148.
6
Martí, J., "La verdad sobre Estados Unidos", cit. por Stabb, op. cit., p. 53.
levando, na maioria dos casos, à formação de novos tipos de Estados, baseados no
nacionalismo e em pactos sociais menos excludentes7.
Porém, isso vai mudar. Valendo-se em boa medida do marxismo, ainda que não somente
dele, os intelectuais latinoamericanos trataram de estabelecer a partir de bases firmes uma
tradição original e independente na teorização sobre a região. Logo, acontecerá a
institucionalização das ciências sociais, particularmente da sociologia e da economia. Em
relação à primeira, isso corresponde à emancipação da disciplina, que até então existia
enquanto disciplinas no interior dos cursos de filosofia e direito. O primeiro passo no Brasil
ocorreu com a criação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, em 1933. Em
1950, esse processo se estende para a maioria dos países da região, superando
definitivamente a fase que Germani chama de “pensamento pré-sociológico”.9
Problemas e perspectivas
7
La Revolución mexicana de 1910 representa una excepción, por la importancia que tiene allí el campesinado, no así por la
participación de las clases medias. Sus frutos se verán, de hecho, en las dos décadas siguientes.
8
Cfr. el capítulo IV de mi libro América Latina: democracia e integración, Caracas, Nueva Sociedad, 1993.
9
Germani, G., La sociología latinoamericana. Problemas y perspectivas, Buenos Aires, EUDEBA, 1964, pp. 19 ss.
hoje com um valioso instrumento para fazer frente aos problemas que a vida nos coloca. A
recuperação, atualização e aprofundamento dessa tradição teórica as colocam em condições
de interpretar este novo mundo e, mais que isso, transformá-lo.
Mas, nem tudo são flores. A sociologia, como disciplina científica, vem se especializando
de maneira crescente, abrindo espaço para a sociologia política, do desenvolvimento, da
cultura, do trabalho, da informação e tantas outras. Se essa especialização contribuiu para
adequar e refinar o instrumento teórico-metodológico que se aplica ao objeto de estudo,
carrega também o perigo da perda de visão da sociedade como totalidade e da estreita
interconexão que caracteriza os fenômenos sociais. Faz-se por isso necessária uma sólida
formação de base na disciplina, antes de seguir se aprofundando nos ramos particulares que
dela derivam.
Na mesma linha de raciocínio e no sentido inverso ao das razões que deram origem à
sociologia, é necessário reestabelecer seus vínculos com as demais ciências sociais, em
particular com a economia e a ciência política. A formação de jovens sociólogos deve,
necessariamente, levar em consideração que a sociedade apresenta não mais que dimensões
de análise, cujo estudo admite até certo ponto a existência de ciências especiais, como é a
sociologia, sem que isso implique em perder de vista a necessidade de aspirar a uma ciência
social total. O trabalho interdisciplinar atende, em certa medida, a essa exigência, mas não
ataca a raiz do problema. Impõe-se, na formação sociológica básica, recorrer à filosofia e à
história para que se assegure, de partida, essa visão totalizadora, antes de enveredar pelo
caminho da especialização.
Resta assinalar que o sociólogo, por seu próprio campo de trabalho, não pode deixar de
assumir um compromisso com a sociedade: o de estudá-la para propor metas e instrumentos
capazes de fazê-la melhor e mais feliz. Ele precisa negar-se ser um mero agente dos grupos
que submetem as maiorias à exploração e à opressão, para assumir, decididamente, o lado
dessas maiorias.
A sociologia não poderia encontrar uma razão de ser mais válida, nem os jovens que se
dediquem a ela uma tarefa mais nobre.