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Projecto Morro > petit CABANON

[Inês Moreira, 2008]

O projecto Morro é uma experiência no terreno que explora as técnicas da autoconstrução, os


materiais da arquitectura popular e a colaboração comunitária na criação de uma estrutura física
tridimensional. A estrutura resultante assemelha-se a uma pequena casa/barraca para alfaias
agrícolas, tanto nas suas dimensões como materiais (madeira, chapa, chapa ondulada). O projecto
Morro não dispôs de matérias ou recursos financeiros, todos os intervenientes colaboraram na recolha
e reutilização de materiais, a mão-de-obra foi voluntária e não adveio qualquer proveito económico da
sua criação. Neste ponto, assemelha-se a muitas das construções circundantes, nos terrenos
agrícolas vizinhos.

Morro não é uma construção anónima: cada fase da sua edificação tem uma autoria identificável. É
multi-autoral, pelo que as autorias se diluem, não no anonimato, mas na sucessão de autorias
anteriores. Morro não é uma estrutura habitável, a sua habitabilidade reside no momento da
construção (apenas foi temporariamente ocupada por um porco na proposta de Ruben Santiago). Os
métodos da sua construção diferem também fundamentalmente dos processos da autoconstrução
para habitação. Tradicionalmente, a construção inicia-se pelas fundações, seguem-se os paramentos
exteriores e encerra-se a cobertura. A existência de fundações distingue um assentamento temporário
de um definitivo. A urgência da habitação leva a que as fundações não sejam executadas, e determina
também um período de construção muito curto, de dias ou horas. Na Turquia perdura a lei que
determina que uma casa concluída e coberta não possa ser demolida. A rapidez é um dos factores
neste tipo de construção, que acontece durante a noite fora do horário da fiscalização. Gecekondu,
construído-à-noite, é nome destas casas e assentamentos.

Morro foi iniciado pelo telhado. Primeiro, Hugo Canoilas abriu roços e cravou três estacas no chão.
Em seguida criou uma plataforma/telheiro para criar uma sombra que estabeleceu o que seria a área
da intervenção. Em seguida, os diversos autores desenvolveram intervenções, numa lógica anti
gravítica: suspendendo do telheiro a sua intervenção, Milles Thurlow e, expandindo o território aéreo
numa rede de cabos onde suspenderam alfaias agrícolas sobre o terreno, Sancho Silva e Nuno
Delmas. Apenas mais tarde Teresa Gillespie ocupou o terreno, abrindo sulcos e cavidades que o
tornaram inabitável. Foi Vasco Costa quem encerrou o espaço. Um recinto, precário, mantendo a
ligação com o exterior e encerrando uma árvore no interior dos paramentos. E posteriormente, Ruben
Santiago recriou o chão, onde abriu valas para a passagem de água. Contrariamente, ainda, aos
processos da autoconstrução - solução urgente para habitação e usualmente prolongada no tempo –
no Morro houve um ritual final protagonizado por André Maranha e Francisco Tropa. Da operação
restaram apenas as cinzas e os padrões da ocupação do solo agrícola.

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Projecto Morro > Costa da Caparica

Ao petit CABANON interessa pensar: o que é este Morro na Costa da Caparica? Morro é a
designação de um pequeno acidente geográfico, uma colina, um pequeno monte. O seu topo é uma
localização privilegiada para domínio sobre o território, visibilidade e exposição solar. As suas
encostas são perigosas: o deslizamento de terras, a derrocada da construção ou as enxurradas
mostram como a geografia, a geologia, a orologia e a ocupação humana estão sempre em conflito.
Morro é também a denominação de uma das primeiras favelas do Rio de Janeiro, onde no final do
séc. XIX ocorreu a rápida autoconstrução de abrigos muito precários para habitação de 10.000 ex-
soldados vindos da guerra de Canudos, enquanto aguardavam habitações do estado. Aos soldados
juntaram-se os ex-escravos, que construíam as suas habitações entre a vegetação das encostas.
Hoje, os morros estão totalmente cobertos por construção. A vegetação desapareceu, e as suas
ladeiras foram ocupadas, dando origem às favelas que albergam grande percentagem da população
da América Latina.

Vasco Costa e Hugo Canoilas referem Oiticica como referência. Recordemos que em Tropicália, 1967,
Oiticica apresentava um labirinto com materiais, animais, vegetação e sons que humanizavam e
atribuíam às favelas e à cultura popular brasileira o ritmo, e a cultura musical que o resto do “1º
mundo” consumia e canibalizava. A crítica social e política surgia atravessadamente na cultura das
favelas. Desde que o projecto Morro terminou nas cinzas de Francisco Tropa e André Maranha, a
Costa da Caparica tem estado no domínio público. Entre Outubro 2007 e Fevereiro 2008, inúmeros
jornais, telejornais e blogues noticiam a zona da Costa, evidenciando os conflitos ecológicos, sociais e
culturais. O território onde o Morro foi erigido está em conflito: com a erosão costeira pelo mar, com a
infra estruturação da engenharia (INA e FEUP), com as políticas agrícola (RAN), ecológica (REN) e
urbana (Polis), com o planeamento (CMAlmada), com a segurança, com a evolução demográfica.

A Caparica é uma ex-vila piscatória e agrícola. Aí existiam construções palafiticas de pescadores e


viviam agricultores rendeiros. Faziam o veraneio algumas famílias Lisboetas. Após o 25 de Abril, com
o surto do automóvel e o desenvolvimento urbano em ambas margens do Tejo (apoiado pela ponte), a
Costa da Caparica foi ocupada pelas classes média-baixas de Lisboa e Almada. Aí fazem o veraneio
e têm segunda habitação, constituída por construções clandestinas nos terrenos agrícolas, nas
arribas, na própria praia. A Fonte da Telha foi totalmente construída entre 1974-77 com materiais
pobres em terrenos protegidos, comprados ilicitamente a “proprietários” que os cobraram. Demolida
em 1988 pela sua ilegalidade e risco ecológico, está hoje novamente construída, no mesmo lugar,
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sobre a areia, encostada à Arriba Fóssil que ameaça desmoronar-se . Os materiais continuam os
mesmos, pobres, com pouca qualidade e durabilidade. As infra-estruturas agora existem, mas vieram
depois da construção.

1
Ver o documentário de António Barreto e Joana Pontes “Portugal um Retrato Social”, episódio nº 3:“Mudar de
Vida: o Fim da Sociedade Rural”, Edições Público, 2007, minuto 27.

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Cada vez mais a população se fixa e reside nesta zona costeira. Também sobre as dunas se encontra
o parque de campismo, pensado para a ocupação sazonal, mas consolidado com o tempo numa
cidade de caravanas e trailers. A erosão da costa e a ruína das dunas naturais ameaçou-o em 2007 e
expôs a precaridade e a clandestinidade da bárbara ocupação da costa litoral. A erosão televisionada
em directo, os deslizamentos de terras e a desaparição da orla costeira (costas da Caparica, da
Figueira da Foz ou de Esmoriz) obrigam a pensar sobre a costa litoral como um território mais
alargado. A alteração dos fluxos dos rios, a contenção das areias nas barragens, as dragagens e o
uso de inertes para a construção, a natural variação da morfologia costeira e a eventual subida das
águas do mar, também, pela artificialização da acção humana, tornam evidente que mais que uma
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linha de praias, a Costa é uma zona costeira complexa e viva.

Também a pressão imobiliária das cidades leva os subúrbios cada vez mais perto da Costa. Ao longo
dos anos 80 Almada cresceu descontroladamente. Também as estradas aproximam hoje a Costa da
cidade. A construção e a imobiliária exercem pressão neste território, aproximando os idílicos areais
cada vez mais de uma “praia urbana”, delimitada por prédios e serviços turísticos. Os bairros ilegais
de barracas, onde vivem imigrantes africanos e de leste, surgem também na Caparica, em terrenos
camarários e em terrenos agrícolas alugados ilegalmente, como nas Terras do Lello ou nas Terras do
Abreu. Aí vivem trabalhadores da construção. A desaparição progressiva dos areais e das dunas vem
pôr em evidência os riscos da acção humana e do não planeamento do território. A linha de contacto
entre mar e terra revela-se permeável e porosa. Ameaça as economias do mar, expõe os riscos da
construção especulativa e da proximidade excessiva da linha de água. Desde 1870, o mar avançou
quase 3kms sobre a embocadura do Tejo. Desde os anos 60, a consolidação costeira - construção de
linhas de esporões no mar, deslocação de areias - tenta repor as praias, reparar as dunas, impedir as
correntes marítimas e a erosão. Hoje, a derrocada de construções de madeira, a inundação dos
parques de campismo, os riscos da Arriba Fóssil e da erosão de estradas e avenidas litorais
manifestam o que já desconfiávamos: a Costa está demasiado ocupada!

Costa da Caparica > petit CABANON

O projecto Morro ocupou o terreno de uma exploração agrícola biológica localizada no território da
Caparica – o projecto 270. Pensamos ser importante referir que a ideia de “morro” pode também
designar a organização dos terrenos onde o projecto Morro criou a sua estrutura. Ainda que
fisicamente este seja plano, inscreve-se num território híbrido, com pouca consolidação e em rápida
transformação. Com linguagem de construção precária, com técnica de construção clandestina, com
localização temporária nos terrenos onde se disputam a Reserva Ecológica e a Reserva Agrícola
Nacional, os Planos Directores, as protecções costeiras, Morro experimentou a execução urgente da
habitação e do refúgio precário. Deu expressão física e visibilidade aos condicionalismos sociais e

2
Ver o texto de Ted Cavanagh e Alison Evans “No here there: designing no place” in “Extreme Sites: the
“Greening” of Brownfield”, Architectural design, vol 74, nº2, Wiley Academy, London 2004 p.20-25

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económicos da autoconstrução. E expõe, também, o não-planeamento, apenas activado para
remediação. Também neste Morro o território é contingente.

CV_
Inês Moreira.
Arquitecta, investigadora, curadora.

+ info:
Projecto MORRO. Um projecto de Vasco Costa e Hugo Canoilas
Exposição de 1 de Maço a 12 de Abril 2008, petit CABANON, Porto
www.petitcabanon.org

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