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O objetivo desta investigação foi fornecer subsídios para que representantes dos trabalhadores, através
do SINDIPETRO-NF e instituições públicas de poder executivo (CT-QPP/CONSEST) e legislativo
(CPI/ALERJ) pudessem ter elementos técnicos para aprofundar no futuro as investigações e
desenvolverem estratégias de controle e prevenção de acidentes que possibilitassem melhorar as
condições de trabalho e reduzir a freqüência e a gravidade dos acidentes. Ainda que os autores não
tenham participado conjuntamente da investigação iniciada pelo poder judiciário, particularmente o
MPT, foi entregue uma cópia do relatório técnico da investigação de modo a subsidiar sua atuação,
ainda que esta tenha sido isolada das outras.
Este tipo de investigação se faz urgente e necessária quando consideramos que na história da
exploração do petróleo na Bacia de Campos há o registro de catástrofes como os acidentes ocorridos na
Plataforma de Enchova em 1984 e 1988. O primeiro resultou em 37 óbitos imediatos e o segundo na
destruição total do convés e da torre, totalizando um prejuízo de 500 milhões de dólares
(SINDIPETRO-NF, 1997). A memória de acidentes como o da Plataforma de Enchova (1984), bem
como o da plataforma de Piper Alpha (Mar do Norte, 1988), o qual resultou no óbito de 165 dos 228
trabalhadores presentes no dia do acidente, ou seja 72%, simbolizam o grande potencial de perigo que
existe nas plataformas de petróleo e exigem que instituições públicas de pesquisa, junto com
instituições dos poderes executivo, legislativo e judiciário relacionadas à segurança nos ambientes de
trabalho permanentemente levem em consideração o que vem ocorrendo tanto na Bacia de Campos
como em outros estados onde há exploração marítima de petróleo, não cabendo omissões quando o que
se encontra em jogo é a saúde e a vida de milhares de trabalhadores, bem como o bem estar de suas
famílias.
Ao revelar os fatores causais dos acidentes de trabalho nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos
tendo como referência comparativa as causas para o desastre de Piper-Alpha, esperamos contribuir para
mudar a lógica predominante das investigações de acidentes de trabalho no país, particularmente na
Bacia de Campos, na qual a vítima sempre é culpada até que alguém prove o contrário.
2. METODOLOGIA E FONTES
Nos últimos anos tem se revelado cada vez mais a ineficiência das abordagens de investigações de
acidentes que, ao atribuírem continuamente a responsabilidade aos trabalhadores pelos eventos em que
são vítimas, acabam tendo muito mais o papel de manter determinadas estratégias de controle das
relações sociais de trabalho pelas empresas do que um efetivo gerenciamento dos riscos no processo de
produção. Quando os próprios trabalhadores acabam sendo, na maioria das vezes, responsabilizados
pelos acidentes, sendo considerados culpados até que se prove o contrário, o resultado inevitável é o
desenvolvimento de estratégias de gerenciamento artificial de riscos que contribuem para que os
acidentes continuem ocorrendo, ainda que hajam investimentos objetivando maior controle e prevenção
dos acidentes (Machado et al., 1995).
Neste contexto, há uma crescente ênfase sobre o contexto social e organizacional no qual os acidentes
acontecem, já que tendem a fixar padrões de produção inseguros. Nesta perspectiva, a investigação de
acidentes é um poderoso instrumento para revelar as subjacentes fragilidades da matriz sócio-
organizacional das empresas em que ocorrem, permitindo vislumbar que, para fazer uma plataforma de
petróleo funcionar, por exemplo, um corpo de usos e práticas informais que não se encontravam
previstas no projeto tecnológico podem, ao longo dos anos, crescer e fixar modos de operação
inseguros. Nesta perspectiva, os esforços para compreender o que aconteceu de errado e, mais
especificamente, para encontrar medidas para a prevenção futura, conduzem à uma ampla análise dos
aspectos sociais e organizacionais em que são identificados os padrões patológicos que contribuíram
para o acidente em questão e que poderão contribuir para prevenir que acidentes futuros ocorram
(Jasanoff, 1994).
É baseado nestas premissas que este trabalho foi desenvolvido. A metodologia adotada para a análise
baseia-se no pressuposto de ainda que a coincidência dos eventos finais que resultam no acidente não
seja em si mesma controlável, a falha resultou essencialmente da acumulação de falhas
organizacionais. Nesta perspectiva, a análise de um acidente que vise um aprendizado para prevenir a
ocorrência de futuros eventos envolve, primeiramente, a compreensão dos múltiplos e diferentes fatores
que conduziram ao mesmo, tal como realizou Paté-Cornell (1993) na análise do acidente da Plataforma
de Piper Alpha. Isto, obviamente, nos obriga a investigar além das causas imediatas que contribuíram
para um acidente e buscar as causas que se encontram subjacentes e concernem aos aspectos gerenciais
e organizacionais (Kletz, 1993; Freitas et al., 1997).
A metodologia adotada para a análise dos acidentes nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos
segue esta tendência, constituindo-se numa abordagem diferente daquelas que são tradicionalmente
utilizadas nas análises de riscos de estrutras offshore e que tendem a focalizar muito mais a
probabilidade de eventos extremos e raros que excedem a capacidade estrutural das plataformas (ICE,
1992). Porém, como observa Paté-Cornell (1993), estas abordagens baseadas no pior cenário possível,
constituem apenas uma pequena parte dos riscos globais de falhas.
A perspectiva deste tipo de análise é de que a redução de riscos vai além do puramente técnico ou do
estabelecimento de normas burocráticas de segurança mais estritas. Necessariamente nos obriga à ir
além e incluir também melhorias organizacionais, como, por exemplo, evitar que decisões baseadas
apenas na busca de lucros financeiros das estruturas das empresas não provenham incentivos diretos
para redução de pessoal e cortes nas operações de manutenção do setor de produção a ponto de colocar
em risco a vida dos trabalhadores.
As fontes utilizadas para este primeiro relatório são os documentos fornecidos pelo SINDIPETRO-NF
ao Programa Estadual de Saúde do Trabalhador e ao Ministério Público do Trabalho, constantes do
Procedimento Prévio 017/96, sendo estes: relatórios de ocorrências anormais (ROAs); relatórios de
acidentes com lesões (RALs); laudos técnicos da Petrobrás; laudos técnicos da Capitania dos Portos;
atas de reunião da CIPA; comunicados internos; estatísticas de acidentes da empresa; dossiê do
SINDIPETRO-NF para a Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro; relatórios de inspeção da Delegacia Regional do Trabalho; relatórios de inspeção da
Petrobrás; comunicações de acidentes de trabalho (CATs).
O Quadro I, ao revelar que grande número dos trabalhadores acidentados pertencem as empresas
contratadas, reflete a forma como vem se dando o processo de terceirização de muitas das atividades
operacionais pela maioria das empresas. Este processo tem com principal objetivo a redução de custos
operacionais fixos, de modo a possibilitar a maximização dos lucros financeiros. A questão central é
que o modo como vem ocorrendo este processo no país e na Empresa, contribui para que se ampliem e
se agravem os riscos para a saúde e a vida dos trabalhadores em geral, atingindo principalmente os das
empresas contratadas, os quais, comparados com os trabalhadores diretos das empresas, tendem a
receberem não somente menos treinamento e informação de segurança e saúde, mas também a
trabalharem em condições precárias.
Dos 10 incidentes a maioria se deu por falhas de equipamentos e queda de geração de energia. Deve-se
frisar que estes incidentes, embora em número aparentemente pequeno quando comparados com o total
de acidentes, constituem apenas a ponta do iceberg dos riscos que existem atualmente nas plataformas
de petróleo da Bacia de Campos. E, neste caso, o baixo número destes eventos registrados revelam a
pouca atenção para com os mesmos.
Como contraponto e para mostrar os limites e precariedade da abordagem utilizada pela empresa,
classificou-se cada um dos incidentes/acidentes, de acordo com o que estava relatado nos próprios
documentos que se teve acesso, utilizando-se como referência inicial o sistema de classificação adotado
na Comunidade Européia para os acidentes em indústrias de processo químicos (Drogaris, 1993)
(Quadros II e III) ampliando a análise multicausal e relacionada diretamente ao processo de trabalho.
Corrosão 8 (16%)
No contexto dessa abordagem podemos notar uma inversão da importância da falha humana como
causa imediata ou básica. Enquanto estas aparecem em 10% dos casos no tipo de análise e classificação
adotada pela Comunidade Européia, na análise e classificação adotada pela empresa atingem 87%.
Nos métodos de análise desenvolvidos a partir de eventos complexos há uma conseqüente maior ênfase
das falhas de componentes estruturais do processo de trabalho, que aparecem em 86% das causas
imediatas, somando as corrosões às falhas de componentes (Quadro II). Essa inversão operada pelo
método é mais flagrante ao analisarmos as causas subjacentes no Quadro III, em que aparecem as
omissões gerenciais e organizacionais e a inadequacidade do projeto em 96% dos casos, enquanto que
os procedimentos apropriados não seguidos aparecem em apenas 4% dos casos e mesmo assim podem
e devem ser relativisados pela maior pressão de produção em relação aos procedimentos de segurança.
Total(1) 92 (100%)
OBS : (1) - O número de causas ficou maior que o número de acidentes/incidentes já que para vários acidentes foram
atribuídos mais de uma causa, embora existam acidentes para os quais nenhuma causa foi atribuída por falta de dados.
Mesmo quando questões de segurança são incluídas no projeto, a sua efetividade dependerá da
capacidade real dos equipamentos de resistirem aos diversos cenários potenciais de acidentes. As
questões dos dispositivos de segurança já são um problema desde os projetos originais das plataformas,
que são instalações bastante complexas e que podem incluir a produção e armazenagem de óleo e gás à
alta pressão, a perfuração de poços, e obras de construção e manutenção (Booth et al., 1992) associado
à uma diversidade de atividades tais como partidas de instalações e produção; paradas e redução da
produção; manuseio de equipamentos e materiais perigosos; controle manual do processo;
monitoramento da produção por sistema supervisório; manutenções preventivas e corretivas; limpezas
de máquinas e equipamentos; transporte de materiais; operações manuais e mecânicas de lifting;
inspeções e testes de equipamentos; transporte marítimo e aéreo; cozinha; limpeza; construção e
reforma, entre outras (Rundmo, 1994). Isto faz com que nas plataformas de petróleo se conjuguem de
forma única os riscos típicos de muitas atividades de produção e manutenção industriais de refinaria,
tratamento e unidades de produção de energia com outros próprios das tarefas relacionadas com a
exploração de gás e petróleo, como a perfuração e os poços de produção, associados aos de transporte
aéreo (helicópteros) e marítimos, de construção civil nas atividades de reparo, construção e reforma, de
mergulhos rasos e, principalmente, profundos, entre outros (OIT, 1993). Estas características
complexas das plataformas podem intensificar os perigos quando posteriores modificações não
previstas desde o início no projeto original ocorrem com vistas à ampliação da capacidade produtiva,
ampliando as situações de riscos. Uma ampliação não planejada desde o início pode resultar para os
mesmos equipamentos em um novo cenário em termos de complexidade das concecções resultando no
enfraquecimento e desgaste de muitos equipamentos, pois o crescimento da produção não previsto
resultará no estresse mecânico do sistema por meio da velocidade e pressão e, por conseqüência,
levando ao aceleramento da pelo fato de não serem incluídos de modo satisfatório. porém, erosão
causada pela areia e outras partículas durante a exploração de petróleo (Paté-Cornell, 1993).
Outro aspecto referente aos riscos que podem ser gerados pelas modificações não previstas no projeto
original para aumentar a capacidade de produção é que a desigualdade de vida entre os equipamentos
pode conduzir a fenômenos da catacrese. De acordo com Duarte (1994), este fenômeno consiste em
práticas em que o emprego abusivo ou inapropriado de meios de trabalho são aplicadas para suprir as
carências, as insuficiências ou a falta momentânea ou durável dos meios habitualmente utilizados numa
atividade normal. Nesse processo, a adaptação dos procedimentos operacionais formais e prescritos às
necessidades locais de produção, para atender as metas de produção estabelecidas nos níveis decisórios
e gerenciais, torna-se um elemento comum e constituinte do trabalho real dos operadores no seu dia-a-
dia, deixando de ser apenas um problema conjuntural e assumindo o status de uma questão estrutural ao
modo de operação das plataformas de petróleo.
A modificação que resultou neste acidente é apenas mais uma, entre tantas outras e anteriores
que foram ao longo do tempo contribuindo para que procedimentos operacionais e de segurança não
formalizados e que constituem adaptações as necessidades de produção. Este processo de
modificações, ao longo dos anos, tanto de equipamentos, quanto de procedimentos operacionais e de
segurança, associado à falhas do projeto devem ser analisados com o máximo de atenção, pois como
em Piper-Alpha, podem resultar em verdadeiros desastres. E, neste caso, no que se refere ao projeto,
verificou-se que o mecanismo de proteção (para a estrutura da plataforma e para evitar que sejam
envolvidas áreas adjacentes), utilizando “chapas fusíveis” no chão e no teto da sala fechada onde se deu
a ocorrência, necessita, para seu funcionamento adequado, que as portas de acesso à sala suportem o
deslocamento de gases em expansão. Entretanto, as portas estão aquém desta necessidade e as
modificações, embora solicitadas, ainda não tinham sido feitas até o momento do acidente.
Após este acidente, uma das providências decididas na reunião extraordinária da CIPA foi a de
interromper a injeção de gás lift até que se conclua o teste hidrostático nas linhas de injeção. Outro
ponto constante da ata desta reunião diz respeito ao registro, cobrado pela gerência imediata, dos by-
pass do sistema de detecção de gases em quadro próprio na sala de controle. Muitas vezes, as
conseqüências de acidentes como o anteriormente relatado não são extremamente graves, no que se
refere a saúde e a vida dos trabalhadores, mas, por vezes podem ser, estando criadas todas as condições
para que isto ocorra.
A Plataforma de Enchova, em que ocorreram os acidentes de 1984 e 1988, é uma plataforma das mais
antigas, e possivelmente a que apresenta os equipamentos em maior estado de envelhecimento,
resultando na degradação do sistema através de um processo de deterioração gradual dos seus
equipamentos e dispositivos técnicos. De acordo com Duarte (1996), esta degradação pode manifestar-
se em um estado permanente de disfuncionamentos e de incidentes, tais como: baixa taxa de utilização
dos equipamentos; inúmeras panes nos equipamentos; acidentes freqüentes; patologias diversas.
O fato da Plataforma de Enchova ser uma das plataformas mais antigas da Bacia de Campos e se
encontrar em estágio de reforma e ampliação, o que envolve um número maior de trabalhadores de
empreiteiras, pode, no momento, estar contribuindo para que apresente um alto percentual de incidentes
e acidentes. De qualquer modo esta reforma e ampliação não deixa de ser preocupante quando se
considera que resultam também na instalação de novos equipamentos que combinados com os mais
antigos, acabam por resultar em uma desigualdade da vida útil dos diferentes elementos do sistema
tecnológico, o que já foi abordado anteriormente. Como observa Duarte (1994), as instalações mais
antigas, concebidas originalmente sem a previsão do aumento que muitas vezes ocorre anos depois para
aumentar sua capacidade produtiva, contribuem para que a utilização de determinados equipamentos
ocorra superando sua capacidade nominal, contribuindo este processo para que os riscos de
deterioração sejam elevados tornando-se a saturação fonte permanente de disfuncionamentos. As
implicações deste processo é que as reformas e a ampliação, além de contribuírem para elevar a
freqüência de incidentes e acidentes durante sua fase de atividades, podem, por conta do exposto
anteriormente, resultar, ao seu término, também em novas fontes de permanentes incidentes e
acidentes. De um modo geral isto não tem sido considerado, dado que está se privilegiando somente o
aumento da capacidade produtiva a curto prazo e se considerando que os acidentes, particularmente
aqueles como Enchova e Piper-Alpha, são raros e distantes no tempo.
Falhas no sistema de alarme, repetição de falhas gerando incidentes/acidentes similares, corrosão de
equipamentos sem que haja manutenção a contento e adaptação de equipamentos previstos para
determinados fins são alguns indicativos do modo degradado de produção e da transformação das
anormalidades em normalidades na operação das plataformas de petróleo na Bacia de Campos. Uma
série de incidentes/acidentes ocorridos ilustra este processo e seus perigos.
2. incidente em 12/06/96: Os cabos de comunicação de uma das plataformas mais modernas vinham
apresentando problemas quanto a passagem de ligações sensíveis por áreas de movimentação de
cargas pesadas e/ou de grandes dimensões. Não houve entrada dos geradores de emergência e
atuação do alarme geral e o gerador de emergência encontrava-se em manutenção no momento da
ocorrência.
O que os casos relatados para ilustrar revelam é que, embora seja esperado que o modo degradado de
produção e a transformação das anormalidades em normalidades seja uma característica comum e
predominante em uma plataforma como Plataforma de Enchova, estas não se restringem somente as
plataformas mais antigas, sendo encontradas mesmo em plataformas mais modernas.
De um modo geral, a imagem pública que se tem dos sistemas tecnológicos, como as plataformas de
petróleo da Bacia de Campos é a de que seu funcionamento é permanentemente seguro, e as falhas,
esporádicas e ocasionais. Quanto mais longe se está do dia-a-dia do chão da fábrica, mais provável é
que se considerem as falhas humanas e/ou de componentes fatores causais de um acidente. Porém,
como observa Dwyer (1991), à medida que se aproxima do chão da fábrica, do seu dia-a-dia, o que se
encontra como causas dos acidentes são fatores bastante tangíveis. Essa proximidade revela que as
falhas, principalmente as parciais, são bem mais freqüentes, fazendo parte do funcionamento normal
dos sistemas tecnológicos. Descobre-se que a implementação dos projetos ou das atividades de
operações são o resultado contínuo da invenção e negociação de novas regras com o objetivo de
adaptar as situações locais às “necessidades” dos princípios tecnológicos gerais (Wynne, 1988). Ao
longo dos anos esse processo de contínua adaptação para a operação dos sistemas tecnológicos
contribuem para sua deterioração, constituindo, assim, um modo degradado de operação (Duarte,
1994). A partir daí, o que se verifica, no chão do fábrica, no modo real de operação dos sistemas
tecnológicos, é que o modo degradado de operação vai pouco à pouco constituindo seu modo normal
de operação e a segurança vai pouco a pouco sendo minada pela banalização de falhas consideradas
“menores”, constituindo o que Wynne (1988) denomina anormalidade normal. A grande variabilidade
desses sistemas tecnológicos complexos e seu modo degradado de operação, que continuamente
transforma a anormalidade em normalidade, sendo esse seu modo real e normal de operação,
transformam falhas que deveriam ser visíveis em invisíveis. A questão central é que este processo vai,
ao longo dos anos, resultando em uma série de incidentes, prenúncios de inúmeros acidentes de
trabalho que ocorrerão, que por sua vez são prenúncios de desastres como Enchova e Piper-Alpha, pois
é isto o que encontramos por trás dos grandes desastres tecnológicos (Jasanoff, 1994).
Este processo em que os serviços de manutenção preventiva vão cedendo as manutenções corretivas
não se encontra isolada de um outro processo que tem contribuído para ampliar e agravar os riscos de
acidentes, ou seja: a redução de efetivos de trabalhadores. Na época do acidente de Piper-Alpha, o
número de trabalhadores que se encontravam trabalhando na fase 1 do processo era o mínimo requerido
e era insuficiente, pois em um sistema tecnológico que vai se degradando e contribuído para o aumento
da freqüência de anormalidades e falhas, os operadores se encontram numa situação em que há uma
sobrecarga de trabalho. Neste caso, acabam tendo de escolher quais as funções devem realizar
primeiro, e, de modo geral, estas se referem àquelas que privilegiam a produção em detrimento da
segurança, dada as pressões para manter os níveis de produção.
Conforme observa Duarte (1994), de um modo geral, somente “...após as decisões relativas ao:
orçamento, objetivos qualitativos e quantitativos de produção, seleção de tecnologia, compra de
máquinas, definições organizacionais (níveis hierárquicos, tempos de trabalho, etc) é que o trabalho dos
operadores é pensado...”. O resultado de um tal processo, que tem como um dos objetivos a redução
dos custos da mão-de-obra e aumento da produtividade, são muitas vezes nefastos para operadores e
empresas, pois operadores em número reduzido podem se encontrar em situações onde não há margem
de manobra possível capaz de garantir a segurança do processo.
Ainda segundo Duarte (1994), em muitos casos, a redução de efetivos baseia-se em falsas
hipóteses sobre o trabalho dos operadores, pois pressupõe a estabilidade das condições de trabalho e o
bom funcionamento das unidades produtivas. O resultado é que a determinação do número de
operadores das equipes de turno não tem seguido critérios condizentes com as realidades de suas
unidades de produção tendo isto implicações sobre a segurança. Um estudo realizado pelo
FUNDACENTRO sobre a diminuição de operadores em uma unidade industrial demonstra as
dificuldades das equipes de turno na antecipação, diagnóstico e correção dos disfuncionamentos do
processo, concluindo que a redução da mão de obra estava contribuindo para aumentar
consideravelmente os riscos de acidentes (Ferreira et al., 1991: Apud Duarte, 1996).
No caso da manutenção, se associa como problema agravantes das situações de riscos a questão da
terceirização, fazendo ambos parte de um quadro de reestruturação da produção, em que a redução do
efetivo de trabalhadores, obviamente é acompanhado de uma crescente terceirização de muitas das
atividades operacionais, tal como a manutenção. O objetivo principal é a redução de custos
operacionais fixos da empresa, de modo a possibilitar a maximização dos lucros financeiros. Este
processo, vem resultando na deterioração das condições de trabalho, bem como queda nos rendimentos
financeiros e na qualidade de vida dos trabalhadores, principalmente das empresas contratadas. Diante
deste quadro, a redução do efetivo de operadores, bem como a crescente terceirização constituem-se em
fatores, que necessariamente combinados, contribuem para o incremento dos riscos de acidentes, não
sendo por acaso que, conforme pode se verificar no Quadro I, a grande maioria dos trabalhadores
acidentados sejam os terceirizados, o que também tem se verificado em estudos internacionais
(Sutherland et al., 1991; OIT, 1993; Rundmo, 1994).
Todo este processo resulta, ao final, na deficiência de pessoal e de tempo, afetando isto a manutenção
não só fazendo como que predominem as corretivas sobre as preventivas, mas também para que se
manifestem deficiências no sistema de permissões de trabalho (PT), bem como na disciplina necessária
disciplina e treinamento para que cada PT seja efetivamente verificada. De acordo com o ICE (1992),
cerca de 30% dos incidentes/acidentes registrados nas indústrias químicas são relacionados à
manutenção, sendo que problemas nas emissões de PT respondem por 2/3 deste total. No desastre de
Piper-Alpha a cultura que encorajava o abreviamento dos procedimentos e que uma única PT pudesse
resultar em múltiplos trabalhos acabou contribuindo diretamente para o evento. (Paté-Cornell, 1993;
Booth et al., 1994). No caso das plataformas de petróleo da Bacia encontramos atualmente a mesma
situação.
Para ilustrar esta situação recorre-se ao caso do acidente ocorrido em 14 de julho de 1997. Neste caso,
a operação que se encontrava em andamento era de manutenção/modificação, sendo a troca de selo
mecânico de bomba do sistema de circulação de água quente. Quando o operador que estava efetuando
os preparativos para que se realizasse a intervenção notou uma anomalia, provavelmente vazamento na
válvula de bloqueio a jusante e/ou a montante da bomba. Entretanto, superiores seus mandaram que se
desse prosseguimento à intervenção, já que havia sido feita operação semelhante em outra bomba sem
ocorrências anormais. Porém, ao se dar prosseguimento à operação, usando os mesmos procedimentos
inadequados anteriores, ocorreu o vazamento. O que se encontra no caso deste acidente, em termos de
causas são falhas referentes ao procedimento de emissão de Permissão de Trabalho (PT), já que houve
simultaneidade, para economia de tempo, das operações de montagem do andaime (o que exigiria uma
PT) e troca do selo da bomba (o que exigiria outra PT). Além do mais, acrescenta-se o fato de o
emissor da PT não ir sequer inspecionar o local da execução dos serviços (prática comum de
segurança) e de a emissão da PT de troca do selo da bomba ter ocorrido sem a emissão de Certificado
de Inspeção de Segurança, ainda que o operador tivesse informado a existência de um problema que
caracterizava um risco potencial na operação. Quanto ao projeto, o duplo bloqueio do sistema não
atende a necessidade do processo, já que, a partir de vazamento na válvula, anula-se a possibilidade de
utilização da figura “8” , a não ser que se pare a produção. Na reunião extraordinária da CIPA em
seguida ao acidente, anunciou-se a nova sistemática para confecção de RAL e ROA, que não deverá
mais ser feita pelos técnicos de segurança.
A subestimação pela empresa dos incidentes que se produzem em situações anormais, as quais se
distinguem das situações normais apenas por diferenças que podem parecer secundárias, oculta, na
verdade fontes latentes graves e freqüentes de disfunções que rapidamente podem se propagar e gerar
verdadeiras catástrofes. Sendo assim, esta subestimação, manifestada através do sub-registro dos
mesmos, já que constituem apenas um quinto do total de acidentes (ver Quadro I), quando deveria no
mínimo ser o contrário, deixa de ser apenas um problema de registro, mas também, e principalmente
um problema de segurança, pois as falhas latentes que podem estar se ocultando em determinado
momento podem, no momento seguinte, se transformar em acidentes que ameaçam a saúde e a vida dos
trabalhadores (Duarte, 1994; Wisner, 1996)
Situação similar de miopia ocorre quando compara-se as estatísticas da Noruega com as do Brasil,
temos um acréscimo de 9,7 casos de acidentes por mês. Tomando como referência o trabalho de
Rundmo (1994) sobre os acidentes de trabalho nas plataformas de petróleo no Mar do Norte, verifica-se
uma estimativa de 19,2 acidentes por mês. Por sua vez, tomando como referência as estatísticas da
empresa acerca dos 231 acidentes registrados no período de janeiro à agosto de 1996, verifica-se uma
estimativa de 28,9. Portanto, a freqüência de acidentes nas plataformas da Bacia de Campos representa
50,5% a mais em relação a situação da Noruega.
Outro aspecto a ser salientado é que os acidentes registrados tendem a guardar uma relação com
acidentes mecânicos, sendo os acidentes envolvendo substâncias químicas desvalorizados em relação a
sua gravidade potencial dos vazamentos e incêndios. Porém, mesmo assim, comparando os acidentes
em geral da situação brasileira com os registros do Health Safety Committee inglês do biênio 1992/93
verifica-se um quadro 1196,0/100mil trabalhadores da indústria inglesa de extração mineral, óleo e gás
natural, sendo a taxa brasileira para indústria de extração de petróleo calculada, tendo como base os
dados dos 231 acidentes registrado pela Petrobrás, de 5780/100 mil trabalhadores, cerca de 5 vezes
maior, configurando uma situação de maior gravidade e maior magnitude.
Atualmente, no Brasil, e nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos não é diferente, a maioria das
análises de incidentes/acidentes em sistemas tecnológicos parte de uma imagem que, na prática, não
condiz com a realidade do seu dia-a-dia de operação. Esses sistemas não são apenas tecnológicos,
compostos de válvulas, linhas de transferência, reatores e tanques de armazenamento, operando dentro
de uma racionalidade técnica e unitária; são também sociais, reproduzindo, no pequeno universo das
plantas industriais, relações sociais presentes na sociedade. Isto torna os acidentes/incidentes falhas
produzidas socialmente, já que as relações entre as pessoas em seu trabalho são gerenciadas por meio
de relações sociais de trabalho. Assim, os acidentes não podem ser vistos como resultados de falhas
apenas tecnológicas e humanas, mas também e em última análise falhas gerenciais e organizacionais
que permeiam as relações sociais no trabalho e o modo de operação dos sistemas tecnológicos (Dwyer,
1991). Assim, como observa Paté-Cornell (1993), em um importante estudo do acidente na plataforma
de Piper-Alpha, onde morreram 165 trabalhadores, ainda que a coincidência dos eventos finais que
dispararam um acidente de dimensões catástroficas não seja em si mesma controlável, a falha resultou
essencialmente da acumulação de erros gerenciais ao longo do tempo. O não reconhecimento dos erros
gerenciais que vem ocorrendo nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos podem contribuir para
manter a atual estrutura hierárquica e de poder privilegiando a produção, mas tem sido pouco eficazes
em gerar um aprendizado que efetivamente contribua para prevenir a ocorrência de eventos futuros.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto constitui uma análise preliminar do que vem ocorrendo em termos de acidentes de trabalho
nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos, onde só em 1998 foram registrados 10 óbitos. De
qualquer modo, fornece subsídios para investigações futuras em uma realidade que em 1997, de acordo
com o SINIDPETRO-NF, empregava cerca de 6.000 trabalhadores, sendo que deste total havia uma
proporção muito maior de empregados de empresas contratadas em condições gerais de jornada, salário
e de transporte/hospedagem piores do que o pessoal da empresa. Tudo isto em quadro de quebra do
monopólio estatal e ampliação intensa do volume de operações e de instalações off-shore e suas
interligações com a utilização intensiva e simultânea de instalações antigas e novas, acelerando a
complexidade e a interdependência dos desempenhos e dos incidentes de cada parte com as demais.
Associado à isto, tem se verificado como prática gerencial a redução do efetivo de trabalhadores; a
negação e cerceamento da expressão social e política dos trabalhadores e de seu conhecimento do
próprio trabalho; a intensificação do trabalho e polivalência; o emprego de um grande contingente de
trabalhadores de empreiteiras sem informações e treinamentos adequados para o trabalho em
plataformas; entre inúmeros outros aspectos (SINDIPETRO-NF, 1997).
Dentre estes fatores podemos destacar gerenciais e organizacionais que identificamos como na raiz dos
acidentes que vem ocorrendo nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos e que estiveram
presentes no desastre da plataforma de Piper-Alpha gostaríamos de destacar: a degradação do sistema
de operação e manutenção, o que vem implicando em sérias implicações para a segurança; a ausência
de padronização e formalização dos procedimentos operacionais e de manutenção; a transformação de
anormalidades na operação e na manutenção em normalidades operacionais; a precariedade do atual
sistema de manutenção; as implicações da redução dos efetivos de trabalhadores e a terceirazação
como fatores que vem contribuindo para agravar e ampliar os riscos; a precariedade e dificuldade de
aprendizado com os acidentes passados, implicando na precariedade de formulação de estratégias de
gerenciamento de riscos e de planejamentos de emergências.
A grande maioria dos acidentes que vem ocorrendo nas plataformas de petróleo da Bacia de Campos
podem e devem ser evitados. Entretanto, na forma que vem organizando o trabalho e gerenciando a
produção, privilegiando a produção em detrimento da segurança, a empresa não só contribui para que
os acidentes continuem a ocorrer e se ampliem em termos de freqüência e gravidade, mas também para
que sejam criadas as condições que se encontraram na raiz de desastres como os de Piper-Alpha (1986)
e Enchova (1984).
6. REFERÊNCIAS
BOOTH, M. and BUTLER, J., 1992. A New Approach to Permit to Work Systems Offshore. Safety Science, 15: 309-320.
DROGARIS, G. 1992. Major Accident Reporting System - Lessons Learned from Accidents Notified. London: Elsevier.
DUARTE, F.J.C.M., 1994. A Análise Ergonômica do Trabalho e a Determinação de Efetivos: Estudo da Modernização
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