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ELAINE DE AZEVEDO

Alimentação e Modos
de Vida Saudável
Food and Healthy Ways of Life

RESUMO Este artigo analisa as mudanças nos modos de viver e de se ali-


mentar ocorridas a partir da adoção do Padrão Técnico Moderno de pro-
dução de alimentos. As repercussões do referido padrão produtivo são
exploradas sob vários aspectos: social, ambiental, saúde pública, direciona-
mento da pesquisa científica e, mais enfaticamente, sob a dinâmica cultural
dos povos. Considera-se a cultura como um elemento determinante na for-
mação de hábitos alimentares equilibrados e modos de vida saudável. Dis-
cute-se como a uniformização das necessidades nutricionais humanas, com
base nas diretrizes de um padrão produtivista, gera conseqüências negativas
sobre a saúde e a qualidade de vida.
Palavras-chave CULTURA – ALIMENTAÇÃO – MODOS DE VIDA.

ABSTRACT This article analyses the changes in the way of living and eating
produced by the Modern Technical Pattern of agriculture. The
repercussions of such productive pattern are analyzed under several
aspects, such as the social, environmental, and the public health aspects;
besides the scientific research development and, more emphatically, the
ELAINE DE AZEVEDO* peoples’ cultural dynamics. Culture is considered as a decisive element in
Universidade do Sul de Santa Catarina the creation of balanced nutritional habits and healthy ways of life. The
(Unisul/SC)
standardization of the human nutritional needs is discussed, based on the
*Correspondências: Rua Frederico guidelines of a productivist pattern that brings negative consequences to
Veras, 596, trav. 7, Pantanal, 88040-
200, Florianópolis/SC health and to the quality of life.
elaineaz@unisul.br Keywords CULTURE – NUTRITION – WAYS OF LIFE.

Saúde em Revista 31
ALIMENTAÇÃO E MODOS DE VIDA SAUDÁVEL
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ELAINE DE AZEVEDO

INTRODUÇÃO base a manutenção da biodiversidade, da forma


natural dos alimentos, além de serem definidas a

A
tualmente, quando se pensa em uma dieta partir da sazonalidade e da cultura local.2
saudável, remete-se freqüentemente a práti- As civilizações se estabeleceram em torno dos
cas dietéticas restritivas, alimentos light cultivos agrícolas. Com o suporte das primeiras re-
(com baixo teor de gorduras e calorias), fibras e ligiões, os alimentos ganharam um status ritualísti-
complementos nutricionais. Porém, por mais pa- co. As primeiras teorias sobre qualidade alimentar
radoxal que possa parecer, considera-se que uma surgiram em tratados filosóficos históricos e livros
dieta saudável não existe. O que existe são varia- sagrados, vinculadas aos preceitos da religião de
dos modelos alimentares,* e o conceito de uma origem. A transição dos sistemas agroalimentares
vida saudável não está vinculado estritamente à pré-modernos para as sociedades industriais mo-
dieta, mas a um modo de viver irremediavelmen- dernas implicou grandes mudanças nos valores
te ligado a hábitos culturais específicos. culturais e sistemas de conhecimento, ocorridas
Este artigo foca a relação entre alimentação e entre o colapso do Império Romano, a Idade Mé-
modos de vida saudável a partir da análise do sis- dia e o início da era moderna. Houve uma sepa-
tema agroalimentar baseado no Padrão Técnico
ração gradativa do homem e da natureza, e a
Moderno** de produção. Inicia-se com o históri-
agricultura distanciou-se da vida diária das pesso-
co desse sistema, enfocando especialmente as mu-
as, que passaram a morar em cidades cada vez
danças ocorridas a partir do século 18 no modo
mais longes do meio rural.4
de produzir alimentos. Posteriormente, as reper-
cussões do referido padrão produtivo são avalia- Transformações internas nas práticas agrícolas
das nos mais variados aspectos: social, ambiental, e na sociedade rural ocorridas entre o final do sé-
saúde humana, direcionamento da pesquisa cien- culo 18 e início do século 19 levaram à intensifi-
tífica e dinâmica cultural dos povos. cação da produção de alimentos para dar suporte
O elemento cultural, foco deste artigo, é essen- à crescente população urbana que apoiava a Re-
cial na definição de modelos alimentares e merece volução Industrial. Surgiram, também, fatores ex-
ser considerado como um modo de reivindicação ternos que estimularam mudanças nos sistemas
de conhecimento que apóie a ciência e a tecnologia alimentares locais. Com a colonização e explora-
de produção de alimentos. Ignorar a dimensão cul- ção das riquezas dos novos mundos, os alimentos
tural que define um modelo alimentar permite a vindos de longe se tornaram atraentes. Com o
uniformização das necessidades nutricionais hu- trabalho escravo e o estabelecimento das colôni-
manas. Essa uniformização é baseada em parâme- as, desenvolveram-se as primeiras cadeias de
tros científicos reducionistas que são estimulados commodities e o alimento ganhou uma condição
por padrões produtivos e tem repercussões sobre a de mercadoria.4
saúde e a qualidade de vida humana. A ciência desenvolvida a partir do século 19
influenciou o sistema agroalimentar e os concei-
O PADRÃO TÉCNICO MODERNO DE tos de qualidade alimentar. Pesquisas nos campos
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS da física e da química se intensificaram a partir de
1840, com a descoberta dos nutrientes e de seu
Os povos antigos conheciam empiricamente as valor nutritivo. A caloria foi escolhida como uni-
plantas medicamentosas, venenosas e alimentares. dade termodinâmica e iniciou a análise quantitati-
O alimento escolhido por eles respondia plena- va dos nutrientes. O conhecimento da função dos
mente à sua demanda nutricional. Para processar e nutrientes direcionou as primeiras pesquisas de
conservar os alimentos excedentes, foram desen- desenvolvimento de adubos químicos. As dietas
volvidos métodos naturais de baixo impacto so- definidas pelo perfil geográfico e cultural, bem
bre o valor nutricional. Por mais diferentes que como as teorias sobre qualidade alimentar abriga-
fossem as dietas desses povos, todas tinham como das em livros sagrados, foram gradativamente

*
Garcia define modelos alimentares como “as características alimentares e nutricionais de uma população, incluindo peculiaridades
de sua estrutura culinária, de modo a permitir identificar tais características como parte da cultura de um povo ou nação”7 (p. 28).
**
O Padrão Técnico Moderno de produção de alimentos alia a noção de alta produtividade na agricultura aos avanços tecnológi-
cos e descobertas científicas com base nos fertilizantes químicos, no melhoramento genético e na mecanização.5

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substituídas por orientações nutricionais baseadas ram sobre o dinamismo da atividade produtiva;
na abordagem calórico-quantitativa. na dimensão social, uma vez que a modernização
A Revolução Agrícola, configurada a partir da focou a grande propriedade agrícola tradicional,
necessidade de aumento de produtividade na reduzindo a necessidade da força de trabalho; e,
agricultura, utilizou-se dos fertilizantes solúveis e por último, na dimensão ambiental, com o uso
da tratorização da tração. Instala-se, assim, uma excessivo e indiscriminado dos insumos químicos
transição gradual para uma forma industrial de de origem industrial e o risco de um sério desgas-
fazer agricultura, completada com as variedades te de recursos naturais.10
altamente produtivas e os agrotóxicos. Estabele- Outra repercussão importante diz respeito
ce-se, assim, o Padrão Técnico Moderno de pro- ao direcionamento da pesquisa científica a partir
dução de alimentos. do enfoque produtivista do referido padrão.
Ao mesmo tempo, estruturou-se, junto à agri- Apontam-se algumas mudanças no perfil dietéti-
cultura, uma indústria alimentar. O produto origi- co incentivadas pelos interesses do sistema agro-
nal agrícola foi essencialmente mantido no início alimentar dominante e apoiadas por pesquisas
do desenvolvimento da tecnologia de alimentos. em nutrição, como o incentivo à substituição do
Mais tarde, porém, essa indústria passou a incor- leite materno pelo leite em pó (década de 60), a
porar recursos da indústria química e o produto substituição das formas naturais (e saudáveis,
agrícola original foi crescentemente decomposto. diga-se de passagem) de gorduras (banha, mantei-
Alguns desses recursos permitiram diminuir a de- ga, óleos de coco e palma) pelos óleos de soja,
pendência em relação a produtos agrícolas especí- gordura hidrogenada e margarina** e, mais re-
ficos. A tendência dominante apontava um sistema centemente, o estímulo à introdução da soja na
industrial global de alimentação, em um regime dieta como fonte de proteína e cálcio, com ação
que favorecia os países industrializados. Essa ten- estrogênica natural.*** Todas essas mudanças ali-
dência tem sido reforçada pelas transformações mentares foram impulsionadas por excedentes de
que ocorrem atualmente no sistema mundial de produção agrícola e pelas indústrias de alimentos
alimentação* e que fortalecem a concentração das que estimulam pesquisas na área da saúde, sob
corporações, a globalização da produção, distribui- um enfoque causal reducionista.
ção e marketing alimentar e reforçam tendências Também a saúde pública sofreu os efeitos da
de padronização e uniformização das dietas defini- adoção desse padrão. Dados da área de saúde pú-
das culturalmente.4, 17 blica mostram que a população do continente
O Padrão Técnico Moderno da agricultura, americano vive uma epidemia crescente de doen-
ao priorizar elevados ganhos de produtividade, ças não-transmissíveis. Por outro lado, doenças
gerou crises que podem ser apontadas em três di- transmissíveis consideradas extintas, como a malá-
mensões: na dimensão econômica, por meio do ria, a tuberculose, as infecções respiratórias e as di-
aumento da eficiência tecnológica e comercial, es- arréias, ainda matam.1 Essas doenças concentram-
timulando a superprodução, cujos efeitos incidi- se, especialmente, entre a população socialmente

* Mudanças que incluem a engenharia genética e o patenteamento de seres vivos; a criação animal confinada em grande escala; a
promoção de uma segunda revolução verde; a agricultura de precisão; a nanotecnologia, além dos sofisticados sistemas eletrônicos
que gerenciam o perfil e o hábito dos consumidores.17
** A hipótese levantada nos anos 50 pelo pesquisador Ansel Keys de que a ingestão de gordura animal está diretamente ligada ao
aumento de doenças cardiovasculares deve ser revista. Sem dúvida, o excesso de gordura animal é prejudicial ao organismo, assim
como a carência ou o excesso de qualquer nutriente. Porém, as causas dietéticas dessas doenças devem ser consideradas globalmente
dentro da dieta ocidental, que é pobre em fibras que influenciam na absorção das gorduras, deficiente em minerais e vitaminas de
ação protetora das paredes dos vasos, de ação antioxidante e hipocolesteronêmica e rica carboidratos de rápida absorção que inter-
ferem no metabolismo das gorduras.2 Sabe-se, também, que a ingestão de gorduras vegetais hidrogenadas não garante níveis equili-
brados de colesterol devido à presença de ácidos graxos trans, de ação comprovadamente hipercolesteronêmica.3 Além do mais, é
preciso considerar que a etiologia das doenças cardiovasculares é multifatorial e o desequilíbrio alimentar é uma das causas, junto
com o sedentarismo, o fumo e o estresse.
***
A ingestão da soja não fermentada é desaconselhável devido aos fatores antinutricionais desativadores de enzimas e inibidores de
crescimento naturalmente encontrados no grão. Pesquisa demonstra que a ingestão de soja não fermentada na forma de proteína
texturizada, bebidas e grãos está relacionada à formação de pedras nos rins, devido ao seu alto teor de oxalatos.12 São necessários
mais estudos que garantam que a ação bloqueadora de minerais dos fitatos presentes na soja não interfira na biodisponiblidade de
minerais no organismo e que sua ação estrogênica não afete os neonatais, particularmente vulneráveis a ação de fitoestrógenos.

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vulnerável que o Padrão Técnico Moderno de produto e a satisfação do paladar. Se, de um lado, o
agricultura contribuiu significativamente para for- processamento industrial garante a higienização e o
mar. A produção de alimentação preconizada por aumento da durabilidade dos alimentos, de outro,
esse padrão tem sido, muitas vezes, associada a provoca mudanças significativas na sua estrutura quí-
uma maior disponibilidade de alimentos para po- mica e na biodisponibilidade dos nutrientes.
vos, que teriam, por isso, uma expectativa de vida Uma dietética baseada enfaticamente em critérios
maior. Entretanto, considera-se que o prolonga- quantitativos como a atual não responde às reais ne-
mento da vida não é sinônimo de saúde melhor. cessidades nutricionais do ser humano. A própria co-
Na verdade, “as sociedades estão sendo chamadas notação de qualidade deve ser reavaliada para que
a examinar se elas podem suportar o custo de não seja baseada somente em valores nutricionais
manter a vida a qualquer custo”1 (p. 2, tradução quantitativos e higienização, mas considere, também,
da autora); e se é possível não somente dar “anos a aspectos como a integridade do alimento, a vitalida-
vida, mas vida aos anos”6 (p. 20). Outros riscos so- de, a biodisponibilidade de nutrientes e a ausência de
bre a saúde humana atingem todas as classes soci- contaminantes químicos sintéticos.
ais. São riscos relacionados à contaminação das Por fim, as repercussões sobre a dimensão cul-
águas e do solo, além da modificação da qualidade tural, que merece especial atenção neste artigo. O
dos alimentos consumidos. Padrão Técnico Moderno permitiu uma mudan-
Os alimentos funcionais, os nutracêuticos e os ça na agricultura inserida no contexto urbano-in-
suplementos alimentares passam a fazer parte da dustrial próprio da modernidade, que enfatiza,
dieta a partir da preocupação advinda da relação além da produtividade, tendências de uniformiza-
entre sua baixa qualidade e saúde. O modelo ali- ção dos modos de vida rural e urbano. Essas ten-
mentar contemporâneo sofre forte influência do dências incentivaram mudanças no modo de
estilo de vida urbano próprio da modernidade, viver do agricultor familiar e contribuíram para
apoiado pelo Padrão Técnico Moderno de pro- minar a importância da manutenção da sua racio-
dução. O impacto desse modelo repercute no es- nalidade e de sua identidade cultural. O conheci-
tado de saúde da população. Percebe-se o mento agrícola tradicional, bem como os hábitos
desequilíbrio quantitativo na dieta, como o exces- de vida relacionados à manutenção da cultura de
so de calorias, de alimentos protéicos, de sal, de cada região, foram desvalorizados. O Padrão Téc-
açúcar e de gordura e a falta de alimentos fontes nico Moderno não considerou os saberes agríco-
de fibras, minerais e vitaminas. O aumento da las tradicionais e a racionalidade ecológica dos
obesidade, das doenças crônico-degenerativas e agricultores. Essa racionalidade sempre foi ajusta-
das deficiências carenciais, além da necessidade da à complexidade de cada meio rural e remete à
crescente de cápsulas e complementos alimenta- identidade cultural construída pelos agricultores,
res, são claros sinais da incapacidade da dieta em a partir do seu ambiente. Essas repercussões cul-
promover a saúde. Os alimentos mais comumen- turais são igualmente sentidas no meio urbano. O
te consumidos são questionados no que diz res- sistema de produção e os hábitos alimentares cul-
peito à sua toxicidade, devido à presença de turalmente diferenciados foram substituídos por
contaminantes químicos utilizados na sua produ- alimentos produzidos sob a ótica da predominân-
ção. São os adubos e aditivos químicos sintéticos, cia econômica, tecnológica e cultural ocidental.18
os agrotóxicos, os hormônios, as drogas veteriná- A tendência alimentar dominante aponta dietas
rias e os antibióticos. Esses contaminantes são tes- padronizadas e uniformizadas à luz dessa cultura
tados em animais e não se tem informações industrializada, que desconsidera a territorialida-
suficientes e seguras do seu poder cumulativo, do de dos hábitos alimentares.
seu efeito combinado e da sua mutabilidade e, O sistema agroalimentar vigente, apoiado
dessa forma, não é possível estabelecer inter-rela- pela ciência, define as mudanças de hábitos ali-
ções precisas e imediatas entre as conseqüências mentares e de promoção de saúde. Ao longo da
do consumo no longo prazo e as várias disfun- história, esse sistema se ajustou às mudanças no
ções orgânicas já pesquisadas. modo de vida, respeitando o conhecimento tradi-
Na industrialização do sistema agroalimentar, cional dos diferentes povos. Porém, a ordem mo-
são utilizados, cada vez mais, aditivos funcionais e fa- derna foi baseada na ruptura das tradições, na
bricados produtos de recombinações que priorizam mobilidade e “no pensamento contrafactual, vol-
as reduções de custo, o aumento da durabilidade do tado unicamente para o futuro”9 (p. 104). Uma

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nova ordem mundial exige que se considere o res- ao mesmo tempo, significação profunda e direção. É exa-
gate das tradições como meio de reconectar pre- tamente disto que se trata: por um lado, adequação aos
sente e futuro, de reavaliar a necessidade de valores graças aos quais o que se faz tem sentido, quer
dizer pleno de bom senso e, por outro lado, orientação
humanização das tecnologias e de considerar a
para o futuro e avanço numa dada direção. A faculdade
noção de promoção de saúde em âmbitos diver- de atribuir um sentido ao que fazemos é próprio das pes-
sos. Dentro dessa perspectiva, a valorização do soas. (...) Nesta perspectiva, a sua dimensão simbólica
conhecimento tradicional ocupa um entre os (valores, espiritualidade etc.) desempenha um papel
muitos aspectos de legitimação de conhecimento. crucial15 (p. 2).
O conhecimento tradicional pode ser equiparado
ao que a ciência, como forma central de aquisição O ser humano é movido por razões simbóli-
do conhecimento, privilegiou na modernidade. cas e, por isso, muitas restrições e simbolismos
Como aponta Lyotard11 (p. 85), a perspectiva alimentares só podem ser compreendidos conhe-
pós-moderna “vê uma pluralidade de reivindica- cendo a cultura de cada povo. A complexidade
ções heterogêneas de conhecimento, na qual a ci- que permeia as linhas dietéticas deve ser respeita-
da considerando a dimensão cultural. Conceitos
ência não tem lugar privilegiado”.
quantitativos reducionistas não podem ter a pre-
tensão de explicar ou criticar hábitos alimentares
ASPECTOS CULTURAIS, ALIMENTAÇÃO culturalmente direcionados. Muitos desses hábi-
E MODOS DE VIDA SAUDÁVEL tos de povos saudáveis, como o vegetarianismo
dos hindus ou o elevado consumo de carne e gor-
dura animal dos esquimós, são considerados enig-
Conhecer aspectos da alimentação saudável de mas biológicos. Quando a nutrição se propõe a
um determinado grupo passa, obrigatoriamente, resgatar estudos antropológicos desses povos, in-
por revelar e apreender a dinâmica cultural dessa serindo o modelo alimentar na cultura de origem,
população, que a define como única. No reino hu- consegue elucidar esses enigmas.
mano é onde se revelam mais nitidamente as ten-
dências individuais da espécie e uma das mais Povos antigos, longevos e saudáveis, como os
efetivas capacidades de adaptação ao ambiente. O Mayas, os habitantes do Vale dos Hunza e de Vil-
ser humano habita quase todas as regiões do planeta cabamba no Equador, tinham em comum a inges-
e ajusta-se às condições geográficas e climáticas mais tão de alimentos locais, frescos ou pouco
adversas. A partir dessas condições, cada povo se de- processados, provenientes do seu meio e de sua
senvolveu culturalmente diferenciado, e a diversida- própria cultura alimentar.14 Atualmente, no Brasil,
de das dietas espelha esse desenvolvimento. Ignorar podemos relacionar a população de descendentes
o contexto cultural no qual um povo está envolvido de imigrantes que povoam a Serra Gaúcha com os
gera a uniformização das necessidades nutricionais povos antigos acima mencionados. A taxa de lon-
humanas, com base em parâmetros científicos redu- gevidade dos colonos da região entre a serra e o
cionistas e no estabelecimento de universais cultu- Vale de Taquari, no Rio Grande do Sul, é maior
rais na busca de um “consensus gentius que de fato que no resto do país. Esse fato é atribuído ao pa-
não existe”8 (p. 52-53). drão de qualidade de vida aliado à dieta. Esses ha-
bitantes vivem da agropecuária local e têm como
A cultura sempre foi um elemento orientador base alimentos frescos e processados artesanalmen-
das opções dietéticas. A abordagem cultural te, como a carne de porco, o frango caipira, as ver-
transforma a nutrição não somente em um pro- duras e frutas da época, a polenta, o leite integral,
cesso químico-biológico, mas também em uma os queijos, a nata e os embutidos. Também conso-
forma de comunicação que contém as raízes de mem regularmente o vinho produzido na região.
cada povo, suas forças sagradas e seu simbolismo. Os índices de doenças cardiovasculares e de estres-
A manutenção das práticas alimentares tradicio- se são baixos. Permanecem lúcidos, movimentam-
nais e a gastronomia típica aproximam os seres se e trabalham até idade avançada, além de partici-
humanos, inserindo-os no contexto de sua terri- parem regularmente de atividades religiosas e soci-
torialidade e identidade cultural. Verhelst, ao dis- ais, como jogos de bocha e festas. A relação
cutir as funções sociais da cultura, a vê como uma
familiar é bastante valorizada e sentem-se seguros
criadora de sentido: na região em que vivem. O estudo enaltece as qua-
Sobretudo, a cultura é um dinamismo criador de sentido. lidades do vinho, bebida com propriedades tera-
Dar um sentido ao que se faz é capital. (...). Em várias lín- pêuticas e antibióticas conhecidas.13 Porém,
guas européias, a palavra sentido (inglês: sense) significa, atribuir a um determinado alimento ou a uma die-

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ta o resultado de toda uma maneira harmoniosa de vem descolada da cultura de origem e sem formas
viver e alimentar-se é forçar a simplificação de uma de absorção pela cultura receptora, a qual sofrerá
proposta ampla de qualidade de vida, inserida em uma adaptação nesta direção, resultando num
um contexto cultural específico. modo particular, diferente do original, de uso
Esse mesmo tipo de simplificação ocorreu no desses novos produtos”7 (p. 5).
estudo da dieta dos povos mediterrâneos, base As discussões mais férteis no campo da alimen-
para a estruturação da pirâmide alimentar utiliza- tação têm levado em conta as questões globais de
da nas escolas de nutrição de todo o mundo. Essa cunho socioambiental que apontam o padrão pro-
pirâmide serve de instrumento para demonstrar a dutivo como agente determinante das condições
proporção de tipos de alimentos adequados ao
de saúde e modos de vida saudável.
ser humano.16 A visão reducionista que embasou
a pirâmide alimentar não conseguiu incluir o con- Por fim, diante da tendência de padronização
texto cultural desses povos como fator determi- dos modelos alimentares, torna-se essencial consi-
nante de sua saúde. Sua utilização irrestrita como derar a diversidade cultural como elemento impor-
indicador de uma dieta saudável não trouxe re- tante na ampliação dos conceitos de qualidade
sultados positivos para as condições de saúde do alimentar e saúde. Ações futuras que envolvam a
homem contemporâneo, que continua sofrendo noção de modos de vida saudável devem promo-
com os altos índices de doenças crônico-degene- ver a integração do ser humano com sua cultura de
rativas e obesidade. Garcia enfatiza essa afirma- origem, considerar as especificidades locais e focar
ção quando menciona que “A adoção pura e a dinâmica cultural das populações, com o intuito
simples de alimentos de uma outra estrutura culi- de restabelecer relações mais equilibradas entre o
nária é artificial enquanto recomendação porque local e o global.

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Submetido: 10/maio/2004
Aprovado: 6/jul./2004

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