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RESENHA
SARMENTO, D ANIEL . D IREITOS FUNDAMENTAIS E
RELAÇÕES PRIVADAS .R IO DE JANEIRO : LUMEN J URIS , 2004.
STEINMETZ, WILSON . A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES
A DIREITOS FUNDAMENTAIS . S ÃO PAULO : M ALHEIROS , 2004.
quase total liberdade dos juízes na solu- (1) Sarmento usa o conceito como
ção dos casos concretos. Fazer dogmáti- sinônimo de desigualdade material;
ca dos direitos fundamentais é, sobretu- (2) O conceito é estanque, já que
do, justamente elaborar critérios que tende a pressupor que sempre que houver
possibilitem o controle intersubjetivo, desigualdade material entre as partes
aumentando a racionalidade do processo envolvidas deverá haver maior proteção
de interpretação e aplicação das disposi- dos direitos da parte materialmente
ções de direitos fundamentais. mais fraca;
(3) Isso ignora o jogo de forças no
4.1 DANIEL SARMENTO interior da relação, que pode ser muito
Daniel Sarmento apóia boa parte da sua mais importante do que a condição
proposta de solução para o problema da material dos envolvidos e não estar a ela
tensão entre autonomia privada e direi- necessariamente vinculado.
tos fundamentais em dois conceitos- Para se ter um exemplo do que se
chave. O primeiro deles é a dicotomia quer dizer com esses três fatores: aque-
simetria/assimetria entre as partes; o les que participam dos chamados reality
segundo é aquilo que Sarmento chama shows, tão em voga nas emissoras de tele-
de questões existenciais, que ele contra- visão no Brasil e no mundo, o fazem
põe às questões de cunho patrimonial. com base no exercício de sua autonomia
O primeiro dos critérios, aquele da vontade. Esse exercício acarreta, sem
baseado na dicotomia simetria/assime- dúvida, restrições a direitos fundamen-
tria das partes envolvidas na relação tais, especialmente ao de privacidade. A
entre particulares, é reputado por desigualdade material entre, por exem-
Sarmento como primordial (p. 303). Por plo, a Rede Globo, uma das maiores
assimetria, Sarmento entende desigual- empresas de comunicação do mundo, e
dade fática entre os envolvidos. os participantes de seu reality show é ine-
Segundo ele: “quanto maior for a desigual- gável. Isso não significa, contudo, que
dade (fática entre os envolvidos), mais inten- haja uma necessidade de intervir nessa
sa será a proteção ao direito fundamental em relação para proteger direitos funda-
jogo, e menor a tutela da autonomia priva- mentais restringidos: a desigualdade
da. Ao inverso, numa situação de tendencial material não interfere, necessariamente,
igualdade entre as partes, a autonomia pri- na autenticidade das vontades.
vada vai receber uma proteção mais intensa, Com isso, quero salientar que o
abrindo espaço para restrições mais profun- recurso a desigualdades (fática e mate-
das ao direito fundamental com ela em con- rial), ainda que possa ser usado como
flito” (p. 303). No entanto, a associação elemento da argumentação jurídica
de três fatores, que exponho a seguir, nesse âmbito, deve ser encarado com
faz com que, na minha opinião, o recur- extrema reserva. Parece-me que o deci-
so ao conceito de desigualdade fática sivo é a sinceridade no exercício da auto-
seja algo problemático: nomia privada, que não necessariamente
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NOTAS
1 Cf., por exemplo: Sarlet, Ingo Wolfgang. constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do
Direitos fundamentais e direito privado: algumas consid- Advogado, 2000. p. 107-163.
erações em torno da vinculação dos particulares aos dire-
itos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A 2 Para evitar incompreensões: não pretendo aqui,
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obviamente, fazer uma defesa de uma desimportância do al”, usado por Steinmetz, e a dicotomia entre “questões
debate germânico. Isso seria incongruente com a minha existenciais e questões patrimoniais”, usada por
própria produção acadêmica. Para mim, quanto maior for Sarmento. No caso de Steinmetz, pessoal e patrimonial
a possibilidade de leitura em outros idiomas (leia-se: de são atributos do direito fundamental em jogo, razão pela
outros debates), maior será a possibilidade de arejar e qual ela confere maior valor à autonomia privada quando
aperfeiçoar o debate brasileiro. O que eu quis ressaltar se trata de direitos de conteúdo patrimonial. No caso de
foi apenas que nada substitui o rigor na pesquisa e a Sarmento, existencial e patrimonial não são atributos dos
acuidade na argumentação. direitos em jogo, mas do tipo de relação. É por isso que
é justamente nas relações de cunho existencial que a
3 Exceções a essa dicotomia entre efeitos diretos autonomia privada deve ser mais respeitada. Um exemp-
e efeitos indiretos são principalmente as obras de lo dado pelo próprio Sarmento (p. 309-310) pode
Schwabe e Alexy. Cf. SCHWABE, Jürgen. Probleme der esclarecer melhor esse ponto: em uma relação de cunho
Grundrechtsdogmatik. 2. Aufl., Hamburg, 1997; Die sogen- patrimonial, como um contrato de aluguel, seria impen-
nante Drittwirkung der Grundrechte. München: Goldbach, sável que se aceitasse uma cláusula que estipulasse a
1971; e ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. Aufl., rescisão do contrato de aluguel se o locatário recebesse
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 484 e ss. pessoas negras (ou judias, ou muçulmanas etc.) em seu
imóvel. Por outro lado, não seria possível, com base no
4 É claro que essa é uma simplificação da análise direito fundamental de igualdade, obrigar alguém a con-
de ambas as soluções. Por razões de espaço, contudo, não vidar pessoas negras (ou judias, ou muçulmanas) a sua
haveria como entrar em maiores detalhes e abordar out- festa de aniversário, já que essa seria uma decisão de
ros aspectos das monografias resenhadas. cunho existencial.
5 Sobre o conceito de mandamentos de otimiza- 7 Outros pontos são abordados em obra mais
ção, cf. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, p. 75. ampla, dedicada ao tema, a ser publicada em breve. Cf.
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito:
6 Para evitar incompreensões, é preciso distin- os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
guir o binômio “conteúdo pessoal/conteúdo patrimoni- São Paulo: Malheiros, 2005. No prelo.