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DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES


ENTRE PARTICULARES

Virgílio Afonso da Silva

RESENHA
SARMENTO, D ANIEL . D IREITOS FUNDAMENTAIS E
RELAÇÕES PRIVADAS .R IO DE JANEIRO : LUMEN J URIS , 2004.
STEINMETZ, WILSON . A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES
A DIREITOS FUNDAMENTAIS . S ÃO PAULO : M ALHEIROS , 2004.

1. (META-)INTRODUÇÃO a tarefa que aceitei, a pedido do conse-


Antes de iniciar a análise das obras indi- lho editorial desta Revista. Passo, então,
cadas acima, parece-me ser necessário a desenvolvê-la.
um esclarecimento inicial sobre a pró-
pria idéia de resenha, para que mal-
entendidos sejam evitados. Isso porque, 2. PRELIMINARES
no Brasil, pelo menos na área jurídica, Ambos os trabalhos que são objetos
costuma-se entender por resenha a sim- desta resenha têm como origem teses de
ples exposição do conteúdo de alguma doutorado, ambas defendidas em 2003.
obra, um mero resumo. Resenha, no Daniel Sarmento defendeu seu doutora-
entanto, é muito mais do que isso, já que do na Universidade do Estado do Rio de
pressupõe menos a exposição sistemáti- Janeiro (UERJ), sob orientação do Prof.
ca de um trabalho e mais uma aborda- Dr. Ricardo Lobo Torres, em junho de
gem crítica das teses centrais defendidas 2003. Já Wilson Steinmetz, orientado
por seu autor ou por seus autores. Essa é pelo Prof. Dr. Clèmerson Merlin Clève,
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defendeu sua tese na Universidade aliado à qualidade acadêmica. E, ainda


Federal do Paraná (UFPR), alguns que involuntariamente, ambos os traba-
meses antes, em fevereiro do mesmo lhos têm outro mérito: o de derrubar o
ano. Os trabalhos têm como objeto o mito, muito difundido no Brasil, de que
mesmo problema: a vinculação dos par- somente o acesso ao debate travado na
ticulares aos direitos fundamentais. A Alemanha proporciona as condições
questão que está por trás do problema é para se elaborar um trabalho de dogmá-
bastante simples: os direitos fundamen- tica constitucional de qualidade. E o
tais, que originalmente foram pensados enfrentamento desse mito, no caso em
para regular as relações entre os indiví- questão, tem um significado ainda
duos e o Estado, devem produzir efeitos maior, já que o tema da vinculação dos
nas relações das quais este não partici- particulares aos direitos fundamentais é
pa, ou seja, nas relações entre particula- um tema genuinamente germânico e gran-
res? Se sim, e mais importante, que efei- de parte da produção acadêmica sobre
tos podem ser esses e de que forma ele é feita em língua alemã. Mas tanto
poderão ser realizados? Ainda que a Sarmento quanto Steinmetz, a despeito
idéia seja simples, a resolução do pro- de não terem tido acesso a boa parte
blema não o é. Esse é um debate que desse material, já que pouco foi traduzi-
ocupou especialmente a jurisprudência do nessa área, puderam mostrar que a
e os juristas alemães por várias décadas qualidade de um trabalho é decorrência
após a promulgação da constituição de da acuidade da argumentação e não do
1949. De uma certa forma, é também argumento de autoridade.2
um debate que ocupa tribunais e juristas
dos Estados Unidos, onde o debate é
travado sob a epígrafe da “doutrina da 3. O PROBLEMA
ação estatal”. Poucos são os publicistas que ainda res-
No Brasil, contudo, com exceção de tringem a aplicação dos direitos funda-
alguns artigos esparsos,1 o tema não mentais apenas às relações entre os indi-
havia ainda sido objeto de monografias víduos e o Estado (relação vertical). A
mais extensas até a publicação, em grande maioria deles aceita a existência
2004, das obras de Sarmento e de uma produção de efeitos desses direi-
Steinmetz. O pioneirismo de ambos é, tos também nas chamadas relações hori-
portanto inegável. zontais, ou seja, naquelas das quais o
Pioneirismo não é, contudo, um Estado não participa. O problema cen-
valor em si mesmo e os trabalhos rese- tral que o tema coloca não é, portanto,
nhados não merecem atenção simples- o problema do “se” os direitos produzem
mente por isso. Pioneirismo sem quali- efeitos nessas relações, mas do “como”
dade nada significa. Os trabalhos de esses efeitos são produzidos. Na literatu-
Sarmento e Steinmetz devem ser enca- ra e na jurisprudência alemãs, o debate é
rados como referência pelo pioneirismo dividido em dois grandes blocos de teses
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(cf. SARMENTO, p. 238-258; STEINMETZ, gem, já que o primeiro confere um peso


p. 135-175): de um lado ficam aqueles decisivo à questão da assimetria nas rela-
que entendem que os direitos funda- ções entre particulares, enquanto que o
mentais devem ser aplicados de forma segundo, embora também leve essa assi-
direta às relações entre particulares, da metria em consideração, salienta a
mesma forma como são aplicados na importância da aplicação do chamado
relação entre o Estado e os indivíduos; princípio da proporcionalidade.4
do outro lado ficam aqueles que defen-
dem que os direitos fundamentais
devem produzir efeitos nas relações 4. POSSÍVEIS SOLUÇÕES
entre particulares, mas que esses efeitos Nos próximos dois tópicos, pretendo
são apenas indiretos, produzidos sobre- fazer uma análise rápida do que conside-
tudo por meio de uma espécie de rein- ro ser alguns pontos centrais nos traba-
terpretação do direito infraconstitucio- lhos de Sarmento e Steinmetz, que são
nal.3 Essa dicotomia entre efeitos direi- as propostas de elaboração de parâme-
tos e efeitos indiretos foi “resolvida”, no tros para a solução da tensão entre direi-
caso alemão, de forma francamente tos fundamentais e autonomia privada.
favorável à segunda posição. O caso bra- Considero esses pontos como centrais
sileiro é, por diversas razões, diferente por duas razões: (1) por ser, obviamen-
do alemão e uma simples transposição te, o ponto nevrálgico de todo o debate
do debate seria um equívoco. Ao abor- sobre os direitos fundamentais nas rela-
dar a nossa realidade, embora Sarmento ções entre particulares, já que os direi-
e Steinmetz partam, ao menos no plano tos fundamentais, nessas relações, ten-
teórico, da mesma dicotomia que pau- dem a sufocar a autonomia privada se
tou o debate alemão, ambos propõem-se não houver uma forma de compreender
a encontrar soluções que sejam aplicá- ambos em harmonia; e (2) porque
veis ao caso brasileiro, em face das pecu- Sarmento e Steinmetz, independente-
liaridades de nosso texto constitucional mente das críticas que serão feitas a
e de nossa realidade. Em vista da limita- seguir, não encaram a tarefa da colisão
ção de espaço, pretendo me ater ao que de direitos fundamentais com a superfi-
me parece ser o essencial na questão, cialidade que tem cada vez mais aumen-
que é a forma de se compatibilizar a tado na doutrina e na jurisprudência
aplicação dos direitos fundamentais nas brasileiras. Ou seja, os autores não se
relações entre particulares com a auto- contentam com a fácil posição de que
nomia privada que está na base dessas tudo se resolve no caso concreto por
relações. Qualquer trabalho que preten- meio de sopesamento e propõem-se a
da enfrentar esse problema deve se fornecer critérios para esse sopesamen-
demonstrar apto a resolver essa situação to, tentando aumentar a possibilidade de
de tensão. E, nesse ponto central, os tra- controle desse procedimento, evitando,
balhos de Sarmento e Steinmetz diver- assim, o excesso de subjetividade e a
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quase total liberdade dos juízes na solu- (1) Sarmento usa o conceito como
ção dos casos concretos. Fazer dogmáti- sinônimo de desigualdade material;
ca dos direitos fundamentais é, sobretu- (2) O conceito é estanque, já que
do, justamente elaborar critérios que tende a pressupor que sempre que houver
possibilitem o controle intersubjetivo, desigualdade material entre as partes
aumentando a racionalidade do processo envolvidas deverá haver maior proteção
de interpretação e aplicação das disposi- dos direitos da parte materialmente
ções de direitos fundamentais. mais fraca;
(3) Isso ignora o jogo de forças no
4.1 DANIEL SARMENTO interior da relação, que pode ser muito
Daniel Sarmento apóia boa parte da sua mais importante do que a condição
proposta de solução para o problema da material dos envolvidos e não estar a ela
tensão entre autonomia privada e direi- necessariamente vinculado.
tos fundamentais em dois conceitos- Para se ter um exemplo do que se
chave. O primeiro deles é a dicotomia quer dizer com esses três fatores: aque-
simetria/assimetria entre as partes; o les que participam dos chamados reality
segundo é aquilo que Sarmento chama shows, tão em voga nas emissoras de tele-
de questões existenciais, que ele contra- visão no Brasil e no mundo, o fazem
põe às questões de cunho patrimonial. com base no exercício de sua autonomia
O primeiro dos critérios, aquele da vontade. Esse exercício acarreta, sem
baseado na dicotomia simetria/assime- dúvida, restrições a direitos fundamen-
tria das partes envolvidas na relação tais, especialmente ao de privacidade. A
entre particulares, é reputado por desigualdade material entre, por exem-
Sarmento como primordial (p. 303). Por plo, a Rede Globo, uma das maiores
assimetria, Sarmento entende desigual- empresas de comunicação do mundo, e
dade fática entre os envolvidos. os participantes de seu reality show é ine-
Segundo ele: “quanto maior for a desigual- gável. Isso não significa, contudo, que
dade (fática entre os envolvidos), mais inten- haja uma necessidade de intervir nessa
sa será a proteção ao direito fundamental em relação para proteger direitos funda-
jogo, e menor a tutela da autonomia priva- mentais restringidos: a desigualdade
da. Ao inverso, numa situação de tendencial material não interfere, necessariamente,
igualdade entre as partes, a autonomia pri- na autenticidade das vontades.
vada vai receber uma proteção mais intensa, Com isso, quero salientar que o
abrindo espaço para restrições mais profun- recurso a desigualdades (fática e mate-
das ao direito fundamental com ela em con- rial), ainda que possa ser usado como
flito” (p. 303). No entanto, a associação elemento da argumentação jurídica
de três fatores, que exponho a seguir, nesse âmbito, deve ser encarado com
faz com que, na minha opinião, o recur- extrema reserva. Parece-me que o deci-
so ao conceito de desigualdade fática sivo é a sinceridade no exercício da auto-
seja algo problemático: nomia privada, que não necessariamente
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terá alguma relação com desigualdades patibilização entre ambos, portanto,


externas a ela. deveria seguir a mesma linha mestra
Quanto ao segundo critério, que que dirige a compatibilização de direi-
leva em consideração o tipo de questão tos fundamentais em caso de colisões
envolvida – existencial ou econômico- entre eles.
patrimonial –, Sarmento sustenta que, A contribuição de Steinmetz,
nos casos envolvendo questões existen- neste ponto, consiste no desenvolvi-
ciais, a autonomia privada terá um peso mento de critérios que possam nor-
maior do que nos casos concernentes a tear a aplicação da proporcionalidade
questões econômico-patrimoniais. Além aos casos de atos de autonomia priva-
disso, nesses últimos casos, a proteção da que restrinjam direitos fundamen-
da autonomia privada em face de um tais (p. 216-225). Steinmetz usa como
eventual direito fundamental restringi- exemplo a seguinte situação: em uma
do deverá variar em função da essencia- relação contratual entre dois particu-
lidade do bem envolvido (p. 309). A lares, estabeleceu-se, de comum acor-
importância desse critério consiste jus- do, a restrição a um direito fundamen-
tamente na tentativa de evitar, para usar tal de um dos contratantes – logo uma
a expressão de García Torres e Jiménez- restrição a direito fundamental decor-
Blanco, um “totalitarismo dos direitos fun- rente do exercício da autonomia pri-
damentais” ou, na expressão do próprio vada; após a finalização do contrato, e
Sarmento, a “homogeneização forçada do já em curso seus efeitos, o particular
comportamento individual a partir de pautas que teve seu direito fundamental res-
tidas como ‘politicamente corretas’, às custas tringido ingressa com ação judicial
do pluralismo e da própria dimensão liberta- para anular o contrato firmado; o
dora que caracteriza os direitos fundamen- outro particular, em sua defesa, invoca
tais” (p. 310). o princípio da autonomia privada (p.
216-217) . Segundo Steinmetz, a solu-
4.2 WILSON STEINMETZ ção para o caso somente pode ser
Para Steinmetz, a compatibilização entre encontrada na aplicação do chamado
direitos fundamentais e autonomia pri- princípio da proporcionalidade. Seria
vada somente pode ser levada a cabo por necessário, diante disso, que se exami-
meio do chamado princípio da propor- nasse se a restrição contratual ao direi-
cionalidade. Isso porque o autor parte to fundamental é adequada, necessária e
do pressuposto – correto, na minha opi- proporcional em sentido estrito. Para
nião – de que tanto os direitos funda- Steinmetz, se houver a necessidade de
mentais – pelo menos em sua grande fazer um sopesamento (proporcionali-
maioria – quanto a autonomia privada dade em sentido estrito) entre a auto-
têm estrutura de princípios, nos termos nomia privada e um direito fundamen-
definidos por Alexy. Ou seja, ambos são tal, é necessário que alguns critérios
mandamentos de otimização.5 A com- sejam sedimentados para orientar o
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operador do direito. O autor parte de precedência prima facie do direito fun-


um conceito usado por Alexy – as pre- damental individual de conteúdo
cedências prima facie – para desenvol- patrimonial ante o princípio da auto-
ver um modelo próprio (p. 214 e ss). nomia privada. 6
Segundo ele, as “precedências prima facie Dois são os problemas principais do
não contêm determinações definitivas em modelo desenvolvido por Steinmetz.
favor de um princípio [...], contudo esta- O primeiro deles diz respeito ao recur-
belecem um ônus de argumentação para a so ao chamado princípio da proporcio-
precedência do outro princípio [...] no nalidade; o segundo refere-se, da
caso concreto. Assim, uma precedência mesma forma como já apontado no
prima facie constitui uma carga de argu- caso de Daniel Sarmento, à importân-
mentação a favor de um princípio e, por cia que se dá à idéia de igualdade ou
conseqüência, uma carga de argumentação desigualdade fática entre as partes con-
contra o outro princípio” (p. 215) . tratantes. Nesse último ponto, se cor-
Transportando esse raciocínio para o retas forem as observações feitas quan-
problema da tensão entre autonomia do da análise do trabalho de Sarmento,
privada e direitos fundamentais, mais correto seria substituir, também
Steinmetz desenvolve quatro diferen- no modelo de Steinmetz, igualdade e
tes precedências prima facie (p. 224): desigualdade fáticas por sinceridade e
1. Em uma relação contratual de insinceridade no exercício da autono-
particulares em situação (ou sob condi- mia privada. Entendo, portanto, que o
ções) de igualdade fática, há uma prece- que foi dito no tópico anterior é aqui
dência prima facie do direito fundamen- também aplicável.
tal individual de conteúdo pessoal ante o Mais problemático, contudo, é o
princípio da autonomia privada. recurso ao chamado princípio da pro-
2. Em uma relação contratual de porcionalidade para solucionar proble-
particulares em situação (ou sob condi- mas nas relações das quais o Estado não
ções) de desigualdade fática, há uma participa. Em razão da limitação de
precedência prima facie do direito funda- espaço, restrinjo-me a apenas um desses
mental individual de conteúdo pessoal problemas, relacionado ao teste da
ante o princípio da autonomia privada. necessidade. Quando se aplica a propor-
3. Em uma relação contratual de cionalidade para os casos de atos estatais
particulares em situação (ou sob condi- que restrinjam direitos fundamentais,
ções) de igualdade fática, há uma prece- perguntar se uma medida é necessária
dência prima facie do princípio da auto- implica indagar sobre a existência de
nomia privada ante o direito fundamen- outras medidas que sejam eficazes para
tal individual de conteúdo patrimonial. fomentar o mesmo objetivo, mas que
4. Em uma relação contratual de restrinjam menos o direito atingido. Se
particulares em situação (ou sob con- houver alguma medida alternativa nes-
dições) de desigualdade fática, há uma ses termos, a medida estatal adotada não
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era necessária e, por isso, foi despropor- 5. CONCLUSÃO


cional. A mim me parece, contudo, que Claro que, neste curto espaço disponí-
esse raciocínio não pode ser transporta- vel, pude apenas abordar pouquíssimos
do para as relações entre particulares e pontos dos trabalhos de Sarmento e
a razão é trivial: exigir que os particula- Steinmetz. A escolha foi, proposital-
res adotem, nos casos de restrição a mente, pelos pontos que entendo ser
direitos fundamentais, apenas as medi- mais problemáticos.7 Como já salientei
das estritamente necessárias – ou seja, na introdução, não é a intenção de uma
as menos gravosas – para o atingimento resenha resumir toda a obra resenhada,
dos fins perseguidos nada mais é do que mas desenvolver uma breve análise críti-
retirar-lhes a autonomia de livremente ca sobre questões fundamentais dos tra-
dispor sobre os termos de seus contra- balhos analisados. Foi o que se tentou
tos. Em outras palavras: exigir a obe- fazer. Não há dúvida de que a análise crí-
diência à regra da necessidade não é tica aqui exposta não é a única possível.
uma forma de solução da colisão entre Ela é, por razões óbvias, uma análise crí-
direito fundamental e autonomia priva- tica que parte dos pressupostos teóricos
da, já que essa autonomia estará neces- de seu autor. Partindo-se de outros
sariamente comprometida pelas pró- pressupostos – como aqueles dos quais
prias exigências dessa regra. Se aos par- os respectivos autores partiram –, as
ticulares não resta outra solução que conclusões seriam necessariamente
não a adoção das medidas estritamente outras. A divergência de conclusões não
necessárias, não se pode mais falar em é, portanto, reflexo do certo ou do
autonomia. E, diante disso, as precedên- errado, mas de enfoques e pressupostos
cias prima facie estabelecidas pelo pró- diferentes para o mesmo problema. E é
prio Steimetz perdem um pouco de seu somente a existência de divergências,
sentido, já que mesmo que a relação como tenho sempre insistido, que pode
contratual tenha sido estabelecida sob fazer com que o debate acadêmico no
condições de igualdade fática (ou de sin- Brasil fique cada vez mais interessante.
ceridade) e o direito fundamental No plano da dogmática dos direitos fun-
envolvido tenha conteúdo patrimonial, damentais e de seus efeitos nas relações
se os termos do contrato não forem os entre particulares, o pontapé inicial já
menos gravosos a esse direito, o contra- foi dado pelos ótimos trabalhos de
to será sempre nulo. Sarmento e Steinmetz.

NOTAS

1 Cf., por exemplo: Sarlet, Ingo Wolfgang. constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do
Direitos fundamentais e direito privado: algumas consid- Advogado, 2000. p. 107-163.
erações em torno da vinculação dos particulares aos dire-
itos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A 2 Para evitar incompreensões: não pretendo aqui,
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obviamente, fazer uma defesa de uma desimportância do al”, usado por Steinmetz, e a dicotomia entre “questões
debate germânico. Isso seria incongruente com a minha existenciais e questões patrimoniais”, usada por
própria produção acadêmica. Para mim, quanto maior for Sarmento. No caso de Steinmetz, pessoal e patrimonial
a possibilidade de leitura em outros idiomas (leia-se: de são atributos do direito fundamental em jogo, razão pela
outros debates), maior será a possibilidade de arejar e qual ela confere maior valor à autonomia privada quando
aperfeiçoar o debate brasileiro. O que eu quis ressaltar se trata de direitos de conteúdo patrimonial. No caso de
foi apenas que nada substitui o rigor na pesquisa e a Sarmento, existencial e patrimonial não são atributos dos
acuidade na argumentação. direitos em jogo, mas do tipo de relação. É por isso que
é justamente nas relações de cunho existencial que a
3 Exceções a essa dicotomia entre efeitos diretos autonomia privada deve ser mais respeitada. Um exemp-
e efeitos indiretos são principalmente as obras de lo dado pelo próprio Sarmento (p. 309-310) pode
Schwabe e Alexy. Cf. SCHWABE, Jürgen. Probleme der esclarecer melhor esse ponto: em uma relação de cunho
Grundrechtsdogmatik. 2. Aufl., Hamburg, 1997; Die sogen- patrimonial, como um contrato de aluguel, seria impen-
nante Drittwirkung der Grundrechte. München: Goldbach, sável que se aceitasse uma cláusula que estipulasse a
1971; e ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. Aufl., rescisão do contrato de aluguel se o locatário recebesse
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 484 e ss. pessoas negras (ou judias, ou muçulmanas etc.) em seu
imóvel. Por outro lado, não seria possível, com base no
4 É claro que essa é uma simplificação da análise direito fundamental de igualdade, obrigar alguém a con-
de ambas as soluções. Por razões de espaço, contudo, não vidar pessoas negras (ou judias, ou muçulmanas) a sua
haveria como entrar em maiores detalhes e abordar out- festa de aniversário, já que essa seria uma decisão de
ros aspectos das monografias resenhadas. cunho existencial.

5 Sobre o conceito de mandamentos de otimiza- 7 Outros pontos são abordados em obra mais
ção, cf. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, p. 75. ampla, dedicada ao tema, a ser publicada em breve. Cf.
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito:
6 Para evitar incompreensões, é preciso distin- os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
guir o binômio “conteúdo pessoal/conteúdo patrimoni- São Paulo: Malheiros, 2005. No prelo.

Virgílio Afonso da Silva


P ROFESSOR DA FACULDADE DE D IREITO DA U NIVERSIDADE
DE S ÃO PAULO

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