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FANTASMAS DE CARNE

Há dias eu havia me mudado para aquela propriedade no sul, é verdade que o


inverno era terrível. Sozinho naquele casarão de madeira olhava através da velha janela
os arredores, a floresta um pouco à frente da construção, árvores morrendo para nascer
novamente. Curiosamente costumava fixar meus olhos na cadeira de balanço construída
nas imediações, um mero enfeite. As correntes rangiam e, mesmo vazia, balançava
inquietantemente com o vento gelado.
Bebida nenhuma parecia dar conta totalmente da minha inquietude, mas meus
motivos eram fortes demais, minha esposa Monique havia viajado da cidade para aquele
lugar tão sombrio e distante, onde o tempo parecia eternamente mergulhado na noite.
O motivo dos meus sonos perdidos; cheguei e não encontrei sinais de minha
mulher. Parecia um pesadelo, encontrei marcas de pegadas ao redor da casa, as portas
estavam destrancadas, alguém havia estado ali, isso era fato. Mas desde que cheguei que
ela não aparecia. Não ousei arredar meus pés, permaneci ali, com o revólver em mãos.
Pode parecer uma atitude estúpida, mas não tinha como saber o paradeiro de
Monique, tampouco poderia confiar nas pessoas que moravam na região, eu era um
forasteiro. Ela havia comprado a propriedade há alguns anos, mas eu nunca tinha ido ali
antes.
Pensei que caso alguém a tivesse levado poderia voltar à casa, não percebi sinal
de roubo, os pertences dela ainda estavam lá, como se apenas tivesse saído para voltar
depois. Porém, muitas ideias passavam por minha cabeça: sequestro, talvez tivesse se
perdido na mata, ou ainda fora levada pela maldade de algum desconhecido.
Dias cruéis e confusos, trancafiado naquela cela de madeira, nem mesmo a
lareira era mais confortável, foi quando resolvi escrever para um grande amigo. Baltazar
já era um homem de cabelos brancos, não sei bem o que poderia fazer por mim, como
ajudaria a encontrar minha esposa se isso ainda fosse possível.
Minha esperança residia naquele homem de idade avançada, não sabia responder
ao certo o porquê, mas foi minha cartada. Todos os dias eu alimentava um cachorro que
surgia cada vez num horário diferente, animal desconfiado, dono de um ar imperioso,
forte.
Não brincava com o bicho, apenas o dava de comer e o assistia surgir, e quando
bem entendesse, desaparecer.
Era o único ser vivo que se movia por ali além de mim, apesar do que eu sentia.
Ouvia passos durante a noite, não pude enxergar quem era, mantinha um ritmo, se
arrastava em algum ponto e eu não conseguia me mover ao ouvir aquele som, da janela
percorria com olhos assustados o lado de fora em busca de algo. Arma em punho,
naqueles momentos as doses de uísque eram maiores. Minha aflição aumentava com o
passar dos dias e só foi melhorar quando, numa manhã, estava almoçando na cozinha, e
ouvi o barulho de um carro. “Baltazar!” pensei.
Me dirigi para a sala e nos deparamos ali mesmo, ele entrara sem fazer
cerimônias e me abraçou, seu semblante mostrava uma profunda preocupação comigo,
talvez maior do que com o desaparecimento de minha mulher.
– Tomas! Assim que li sua mensagem vim o mais rápido que pude. Imagino
como tem passado. Fique tranquilo, farei o que for necessário. Algum sinal de
Monique?
– Ainda não. Já faz dias que a situação que descrevi permanece a mesma.
Ele soltou um suspiro inconformado, já havia colocado uma bolsa no chão, me
pediu que o ajudasse a carregar seus pertences. Primeiro mostrei onde ficava a cozinha
para que ele fosse tomar algo, se dizia exausto, pedi que descansasse, eu mesmo pegaria
suas coisas no carro.
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Chegando lá me deparei com a esposa dele, Elizabeth. Não imaginava que ele a
traria, devia ter seus motivos e pela consideração que tivera comigo preferi não indagar
sobre a presença dela. Antes de me mudar sabia que não estavam bem e não ousaria
tocar em um assunto tão delicado. Preferi apenas conversar com ela o necessário.
– Elizabeth!
Ela virou-se, a passagem dos anos era perceptível em seu rosto, já a conheci com
aquela aparência desgastada, cabelo curto, castanho com partes grisalhas, roupas
esmaecidas; uma mulher de baixa estatura e magra.
– Tomas! Não poderia deixar de vir. Estou muito preocupada com você e
Monique. Não o abandonaria num momento como esse por nada.
Agradeci suas palavras, ela perguntava como eu tinha passado, repeti a resposta
que tinha dado ao seu marido, enquanto pegava as bagagens a convidei para entrar, mas
ela disse que queria ficar um pouco ali fora respirando ar puro.
O restante do dia foi delicado, Elizabeth se mantinha esquiva, evitava contato
com Baltazar, apenas uma vez sentou-se no sofá conosco, mas seu marido não dava
atenção a ela, ficava apenas observando enquanto eu e ele conversávamos muito. Ele
tentava me convencer a ir até a polícia local, ou quem sabe sondar os moradores, mas eu
estava irredutível.
Ainda fui sutil e pedi mais um dia tentando por conta própria. Apesar de deixar
claro que não acreditava que eu fosse capaz, concordou em esperar pelo dia seguinte.
Levantou-se, veio até perto de mim e tocou meu braço.
– Você deve estar muito cansado com tudo isso. Trouxe um calmante, logo seria
bom que usasse – disse e me deixou.
Ele estava exausto e foi para um quarto de hóspedes para descansar um pouco.
– Ele nunca acredita em você Tomas. Não o culpe por isso. É o jeito dele, e se
servir para algo, saiba que tem meu apoio. Sei que irá encontrá-la.
Elizabeth disse aquilo decidida, beijou-me a testa e com passos lentos seguiu
pelas escadas para o quarto também. Quando se aproximou percebi que havia fumado, o
cheiro de cigarro era forte.
Anoiteceu, Baltazar me deu um pequeno comprimido e pediu para que eu
tomasse na hora de dormir. Parecia muito feliz com aquele gesto tão simples, meus
sentidos me alertaram, joguei o remédio fora. O vi entrar em seu quarto, quando virei
me deparei com sua esposa, me olhava de um jeito estranho, apenas esboçou um sorriso
e depois também foi deitar-se.
Novamente estava por detrás da janela, tinha certeza que naquela noite algo
significativo aconteceria, sentia muitas saudades de Monique, e me preocupava cada
vez mais, já parecia algo doentio.
A garrafa estava quase no fim, sentado em uma cadeira de balanço percebi que
os ponteiros do grande relógio na parede se aproximavam das doze.
Comecei a ouvir aqueles passos novamente, meu coração acelerou, segurei o
revólver mais forte, num impulso fiquei de pé. Ofegante e colado ao vidro percebi outro
som vindo lá de fora. Era o cão, estava latindo, percebi que os passos cessaram. O
animal enfrentava aquela pessoa. Rosnava, mas de repente soltou um grito, mais
parecido com um choro e em seguida silêncio. Não foi difícil perceber que fora morto.
Não sei o que se operou em mim, mas desci as escadas e ganhei a escuridão da
floresta, ousei finalmente enfrentar meus medos. A casa continuava quieta, os visitantes
não perceberam minha saída. Corri por entre as árvores, na direção de onde pareciam vir
aqueles passos, cada vez mais próximos.
Me deparei com o animal esticado, saía sangue do seu pescoço, um ferimento
feito com algo cortante, os passos se tornavam confusos, senti-me em um labirinto.
Num momento extremo de minhas emoções fui atingido na cabeça e desmaiei.
3

Não sabia exatamente quanto tempo fiquei desmaiado, minha visão estava um
pouco embaçada no começo, também tinha enxaqueca e minha boca estava seca, efeitos
da bebida.
Estava numa espécie de chalé, muito velho por sinal, eu estava sentado numa
cadeira, minhas mãos atadas, e não percebi sinais da minha arma.
Mal percebi chegada de um sujeito, parou diante da entrada daquele cômodo, os
raios de sol vinham detrás dele, não reconheci seu rosto. Era de estatura mediana,
cabelos pretos, usava roupas velhas e me olhava curiosamente.
Havia tantas perguntas que eu queria fazer que permaneci calado. Ele quem
começou a conversa:
– Está se sentindo melhor?
O olhei desconfiado, ele se aproximou de mim, respondi que tinha sede e que
minha cabeça doía.
– Andou exagerando na bebida, percebi ontem enquanto o trazia para cá.
– Então foi você quem me acertou?
Ele me encarou como que me estudando e confirmou, assim como disse ter
matado também o cachorro que o atacara. Perguntei por que fizera aquilo comigo, quem
ele era, tudo muito rápido como se tivesse me recuperado de repente. Antes que ele
começasse a responder vi um móvel com a gaveta aberta, dentro uma seringa e alguns
vidros, aparentemente remédios.
Disse que era um trabalhador da região, e que me atacou para me salvar de mim
mesmo. Uma revelação confusa. Disse que eu estava muito alterado, e a arma
dificultava ainda mais a situação. Discutimos muito, ele pegou a arma, tirou todas as
balas e me entregou o revólver vazio depois de me desamarrar. Me deu um copo de
água. Algo em mim confiava nele, algo que eu não compreendia. Guardou as balas no
bolso, e antes que eu dissesse mais alguma coisa me mandou ir para casa que
encontraria Monique por lá. Indaguei sobre como sabia de minha esposa, mas não
respondeu mais nada e, gritando, me fez correr de volta.
Quando eu havia chegado à porta ele começou a falar algo, querendo que eu
ouvisse, parei, e me admirei.
– Tomas! A serpente foi ferida, mas não foi morta. E consequentemente ela vai
juntar um a um seus pedaços. Será de novo a mesma a nos perseguir os passos e
vulnerável ficará ao seu dente perverso nossa frágil maldade.
Não podia acreditar, um trabalhador rural, num lugar afastado como aquele,
conhecer uma das falas de Macbeth de Shakespeare. Agora se tornara alguém ainda
mais misterioso. Insistiu novamente para que partisse, eu obedeci, foi fácil encontrar o
caminho, uma estrada passava perto do chalé, bastou segui-la.
Tudo estava confuso, não podia acreditar nos últimos acontecimentos, minha
decisão de na noite anterior enfrentar meu grande pavor, e depois acordar naquele chalé,
um sujeito estranho e ao mesmo tempo familiar. Alguém que me ajudou, um homem do
campo, sem contar aquela frase, e ainda a seringa e os remédios. Queria mesmo
acreditar que encontraria minha esposa em casa quando voltasse.
Entrei com calma, não sabia como Baltazar e Elizabeth poderiam reagir à minha
repentina aparição depois do sumiço. Andava cautelosamente no piso de madeira,
comecei a ouvir vozes, eram familiares, um sorriso nasceu no meu rosto, por trás de
uma porta eu podia ouvir claramente uma conversa entre Baltazar e Monique. Agradeci
aos céus por descobrir que ela ainda estava viva, por tê-la de volta.
Colei meus ouvidos à porta para escutar o que conversavam, não percebi sinal
algum de Elizabeth, mas por ora aquilo não era um problema.
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– Fiz o que pude Monique. O estado de seu marido é grave. Dei a ele um
medicamento noite passada. Mas não sei se ele ingeriu alguma bebida alcoólica, ou se
jogou o comprimido fora.
– Tudo o que eu contava era que você o mantivesse aqui Baltazar. E nem isso
você foi capaz de fazer. Sabe que é um dos poucos em quem ele confia. Eu o fiz vir até
aqui, tive que armar toda a cena, mas você não foi capaz de cumprir algo tão simples
como sedá-lo.
Num impulso eu abri a porta e adentrei o cômodo sedento de explicações:
– O que está acontecendo aqui? Por que queria me arrastar até este lugar e ainda
por cima me sedar?
– Tomas! – disse Monique. – Meu amor! Que bom vê-lo novamente. Não nos
entenda mal, posso explicar tudo.
Ela se aproximou, mas eu recuei, estava confuso sobre as intenções dela agora.
Nenhum dos dois me parecia confiável. Nos sentamos e iniciamos uma longa conversa.
– Esquizofrênico, eu?! Vocês não podem estar falando sério.
– Acalme-se Tomas – disse Baltazar. – É normal que não se lembre de nada, são
os sintomas da cognição, sua memória está alterada. Não se lembra dos momentos
anteriores à sua vinda para cá. Estou certo?
Como eu não tinha prestado atenção àquilo antes. Realmente não me lembrava
de muita coisa antes de saber do desaparecimento de minha esposa. Fiquei muito
inquieto, disseram que meu tratamento seria melhor ali, e tudo fora arranjado para me
atrair até lá, já que meu estado anterior, segundo eles, era terrível.
Foi então que contei sobre o que havia acontecido na noite passada, se olharam
assustados.
– Esse homem de quem fala não existe Tomas – disse Monique. – Ele não é real,
é uma alucinação, faz parte da doença, por isso precisa se tratar.
Me recusei a acreditar no que ouvia. Eles ficaram aparentemente mais
preocupados e sob insistência minha, após contar cada trecho, inclusive sobre como o
tal sujeito sabia que Monique estaria em casa, concordaram em me seguir até o chalé.
– Pois bem, então iremos até esse sujeito de quem fala. Mostraremos que ele é
apenas um delírio, nada mais. E então você nos passa a ouvir e iniciamos seu tratamento
– disse Baltazar.
Para a minha decepção ao chegarmos ao chalé, apesar de manter o mesmo
visual, estava habitado por uma família, nos deixaram entrar e fui até o local onde estive
naquela manhã. Os moradores disseram que residiam ali há décadas e, transtornado,
retornei para o casarão de madeira.
Durante a noite preferi ficar isolado, nem mesmo matei minha curiosidade sobre
a ausência de Elizabeth. Eles pareciam estar certos, mas tudo havia sido tão real. Como
eu poderia recusar aquelas experiências? Foi quando peguei novamente o revólver,
estava sem balas, andei até a janela e vi o sujeito do lado de fora, olhava para mim, sem
que percebessem dei um jeito de ir até ele. Lá fora ficamos frente a frente, ele iniciou a
conversa:
– Então Tomas? O que lhe disseram ao meu respeito? Que não sou real? Mas
você sabe que sim.
– Não tenho mais tanta certeza.
– É esse o plano deles. Sabem por que estou aqui, como têm certeza, que posso
ameaçar as intenções deles.
Elizabeth surgiu por trás de uma árvore, tinha a aparência assustada, senti que
tudo estava a perder. Pedi a ela que se afastasse, foi quando o sujeito sacou uma arma.
As fronteiras da realidade agora representavam uma ameaça terrível.
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– Eu sou real Tomas, ela não. A esposa de Baltazar morreu faz dez anos em um
acidente de carro. Sei que está a vendo, mas não existe, é uma alucinação, por não
lembrar-se é ainda mais real. Confie em mim!
Ordenei para que guardasse aquela arma e virando-me para Elizabeth mandei
que corresse para casa e pedisse ajuda. Mas ele percebeu a direção dos meus olhos e
efetuou um disparo. Vi o corpo frágil de Elizabeth cair manchando o chão com sangue.
Me aproximei dela e depois, com extrema violência, parti para cima dele. Não reagiu e
na briga me forçou a olhar novamente. O corpo dela havia sumido. Depois ela apareceu
novamente como se nada houvesse acontecido, parecia um fantasma, eu me perguntava
o que estava acontecendo.
– Agora entende Tomas? Eu sou real. Não sei se vai se lembrar de meu nome,
me chamo Felipe, somos amigos de infância, fizemos teatro juntos durante nossa
juventude. Por isso mencionei aquela fala de Macbeth, na esperança de tocar seus
sintomas de cognição.
– Não pode ser. Agora algo distante veio à minha mente. Mas e quanto à família
no chalé? E Monique e Baltazar?
Felipe então me explicou que atualmente era enfermeiro onde eu morava antes, e
que acompanhava meu tratamento, mas Monique começou a tramar alguma coisa,
proibiu as visitas de Felipe e armou tudo para que eu a seguisse devido ao seu falso
sumiço. Depois que parti, preocupado comigo, Felipe veio para me ajudar, soubera
através de escutas no hospital que Baltazar e Monique tinham um caso e queriam livrar-
se de mim para não só ficarem juntos, mas também tomarem posse de minha herança.
A tal família morava em outro chalé, onde minha esposa ficara escondida, mas
percebendo a presença de Felipe um dia, deixou-os de aviso, e quando ficamos de
retornar ao local, ela imediatamente os telefonou e mandou que partissem e tomassem
conta do lugar.
Felipe ao ver o chalé que alugara, com outros moradores além de Monique,
Baltazar e eu, preferiu recuar e esperar os próximos acontecimentos.
Felizmente os dois amantes foram desmascarados e eu pude retomar minha vida
de volta à cidade. Felipe passou a frequentar minha casa com frequência, arrumou um
médico confiável, e meu tratamento ia muito bem dentro das possibilidades. Voltamos
às peças de teatro e eu arrumei outra mulher. Monique foi presa e Baltazar faleceu
durante uma tentativa de fuga onde seu carro capotou.
Curiosamente morrera como Elizabeth. Um dia me lembrei daqueles momentos
intensos, e entendia meus comportamentos agora que estava mais esclarecido em
relação à doença, mas não podia negar que fora uma aventura e tanto. Refletia sobre os
conflitos de realidade e desejava que aquela Elizabeth, simpática e leal, amiga
verdadeira que não enxergava os limites e acreditava na capacidade e na superação, que
ela, assim como minha felicidade agora, minha nova esposa e meu amigo Felipe,
também fosse real.
Agora até a fala de Macbeth pronunciada por Felipe no chalé tomava uma nova
abordagem. A esquizofrenia assim como a serpente foi ferida, mas não foi morta. Eu a
enfrento todos os dias, não a deixo juntar os pedaços e me perseguir os passos, e mesmo
vulnerável continuo de pé. Pois assim como a serpente é real, minha força também é
real.

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