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A ADMISSÃO DE PROVA ILÍCITA EM JUÍZO QUANDO O ÚNICO MEIO

DE GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Andréa Presas Rocha1

A Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LVI, proíbe a utilização, no


processo, de provas obtidas por meios ilícitos. Assegura, ainda, em seu art. 5º, incisos X e
XII, a inviolabilidade da intimidade e das comunicações telefônicas. Permite, contudo, a
quebra do sigilo de comunicações telefônicas, por ordem judicial, para fins de investigação
criminal ou instrução processual, nas hipóteses e na forma estabelecidas na lei.
No presente trabalho, examinaremos a possibilidade de utilização, em Juízo, de
gravações, apresentadas pelo trabalhador, de ligações telefônicas mantidas entre terceiros e
prepostos do seu ex-empregador, obtidas sem o conhecimento deste, com o intuito de
comprovar a ocorrência de ofensas a direitos próprios, consubstanciadas na divulgação de
informações difamatórias sobre as suas qualidades pessoais e profissionais, obstaculizando,
assim, a obtenção de novo emprego pelo trabalhador.
Não há dúvidas de que a prova obtida nessas condições (gravação de conversa
telefônica entre terceiros) é materialmente ilícita, já que, segundo Nelson Nery Junior2,
derivou de um ato contrário ao direito pelo qual se conseguiu um dado probatório
(gravação telefônica).
As questões que surgem, em conseqüência de tal constatação, são as seguintes: 1)
embora ilícito, é possível a utilização de referido dado probatório, diante dos contrapontos
à proibição de uso da prova ilícita, que são o direito à jurisdição e o direito à prova?; 2) o
ato praticado pelo trabalhador, que feriu o direito à intimidade do empregador, foi
justificável?
Examinaremos, doravante, anteditas indagações de ordem processual e material.
Em termos processuais, salientamos que não há propriamente ponderação entre a
proibição de uso da prova ilícita, de um lado, e os direitos à prova e de acesso à Justiça, de
outro lado. O que se deve sopesar, diante de um caso concreto, são o direito que seria
realizado por meio da prova e o direito que foi por ela desconsiderado. Nesse sentido,
confira-se Luiz Guilherme Marinoni:
“No processo civil, o uso da prova prima facie ilícita pode ser admitido, segundo a
lógica da regra da proporcionalidade em sentido estrito, conforme as circunstâncias do caso
concreto. Deixe-se claro, porém, que nesse caso se está muito longe de ponderação entre
direito de ação e direito de defesa, ou mesmo entre direito à descoberta da verdade (ou de
produzir prova) e direito de não ter a esfera jurídica atingida pelos efeitos de prova obtida
por meio ilícito. A ponderação deverá ocorrer entre o direito fundamental objeto da tutela e o
direito fundamental violado com a obtenção da prova”3.
Disso resulta que o exame da questão deve, ultima ratio, se dar pelo confronto entre
o direito que seria realizado por meio da prova (direitos do trabalhador à honra e ao
trabalho) e o direito que foi por ela desconsiderado (direito do empregador à intimidade). É
o que ora se fará.
Como visto, a Constituição Federal autoriza, excepcionalmente, a violação do
direito à intimidade, para fins de investigação criminal.

1
Juíza do Trabalho do TRT da 5ª Região. Mestre e doutoranda pela PUC-SP. Doutoranda pela Universidad
Castilla La Mancha, Espanha. Professora de graduação e pós.
2
NERY JUNIOR, Nelson. “Princípios do processo civil na Constituição Federal”. 8ª ed. São Paulo: RT,
2004, p. 199-200.
3
In: “Teoria geral do processo”. Vol. 1. São Paulo: RT, 2006, p. 351
A situação ora posta, contudo, não se insere na exceção constitucional do art. 5º,
inciso XII. Cuida-se, com efeito, de hipótese distinta em que a licitude da situação - e,
conseqüentemente, da prova obtida -, “dependerá do confronto do direito à intimidade (se
existente) com a justa causa para a gravação ou a interceptação”, conforme ensina Vicente
Grecco Filho, citado no Acórdão n. HC 74678/SP, do Supremo Tribunal Federal, da lavra
do Min. Moreira Alves.
Vale dizer: o confronto deverá ocorrer entre o direito à intimidade do empregador e
os direitos que o trabalhador busca resguardar (direito à honra e direito ao trabalho), por
meio da utilização da prova ilícita.
Decerto que a hipótese apresentada revela uma daquelas situações de difícil
solução, denominadas de hard cases por Ronald Dworkin4, para as quais o Princípio da
Proporcionalidade deve ser invocado, aplicando-se a técnica da ponderação de bens, sob o
manto da concordância prática ou harmonização, cuja finalidade consiste na realização
máxima de valores constitucionais imbricados, visando harmonizá-los5.
A propósito, quando princípios constitucionais entram em conflito, como é o caso
ora proposto, a moderna doutrina, inspirada no Direito alemão, utiliza-se do Princípio da
Proporcionalidade, de molde a solucionar a controvérsia.
Isso porque os princípios, por serem normas fundamentais, não podem ser
excluídos do sistema, mas apenas afastados em uma situação concreta; continuam,
portanto, dentro do ordenamento jurídico. A incidência dos princípios não pode ser posta
em termos de tudo-ou-nada (all-or-nothing), de validade ou invalidade, devendo-se
reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância6.
Consoante Robert Alexy:
“Las colisiones de principios deben ser solucionadas de manera totalmente distinta.
Cuando dos principios entran en colisioón – tal como es el caso cuando según un principio
algo está prohibido y, según otro principio, está permitido – uno de los dos principios tiene
que ceder ante el otro. Pero, esto no significa declarar inválido al principio deslazado ni que
en el principio despplazado haya que introducir una clausula de excepsión. Más bien lo que
sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principios precede al otro. Bajo otras
circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa.
Esto es lo que se quiere decir cuando se afirma que en los casos concretos los principios
tienen diferente peso y que prima el principio con mayor peso”7.
Se o conflito fosse de regras, a solução seria mais simples: bastaria a utilização dos
critérios clássicos de resolução de antinomias, excluindo-se uma das regras e aplicando-se
a outra.
Quanto aos princípios, uma vez que não há hierarquia entre eles, deve-se buscar a
aplicação da solução da ponderação de bens, cujo principal critério subjetivo reside no
princípio da dignidade da pessoa humana, comparando-se, no caso concreto, os interesses
em conflito, a fim de resolver a controvérsia constitucional.
Claro que tal técnica da ponderação de interesses deve, sempre, ser realizada sob o
parâmetro da proporcionalidade, para que a restrição sobre cada bem jurídico em confronto
seja a mínima possível. Sob o amparo do Princípio da Proporcionalidade, consectário do

4
In: “Levando os direitos a sério”. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
5
CANOTILHO, J. J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” 7ª ed. Coimbra: Almedina,
2003, p. 1240-1.
6
Barroso, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. “A nova interpretação constitucional: ponderação,
argumentação e papel dos princípios”. In: LEITE, George Salomão organizador). “Dos princípios
constitucionais: considerações em torno da normas principiológicas da Constituição”. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 113
7
ALEXY, Robert. “Teoria de los derechos fundamentales”. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002, p. 89.
Estado de Direito, as restrições não deverão ir além do necessário à solução dos conflitos,
isto é, as restrições devem ser apenas aquelas essenciais ao resultado da ponderação.
Na prática, tenta-se, primeiramente, harmonizar os princípios em confronto, e, não
sendo possível, resolve-se o conflito levando-se em conta o peso relativo de cada um deles.
No caso ora posto, tem-se, de um lado, o direito à intimidade do empregador, e o
seu corolário da inviolabilidade das comunicações telefônicas, e, do outro, os direitos do
trabalhador à honra e ao trabalho.
Todos, não há dúvidas, são direitos fundamentais, de primeira e segunda
dimensões8.
A colisão entre tais direitos fundamentais deve, assim, ser solucionada à luz do
Princípio da Proporcionalidade, por meio do qual é possível fazer-se um sopesamento entre
aqueles direitos, de molde a que se encontrem o equilíbrio e a harmonia necessários à
efetivação desses mesmos direitos.
No entanto, a aplicação do postulado da proporcionalidade depende do atendimento
de certos elementos, chamados pela doutrina de subprincípios da proporcionalidade, quais
sejam: princípio da adequação; princípio da necessidade; e princípio da proporcionalidade
em sentido estrito.
De acordo com Humberto Ávila, o postulado da proporcionalidade:
“se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois
elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa
proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da
necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim,
não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da
proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim
correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?)”9.
No caso vertente, deve-se, então, perguntar:
1) A proteção ao direito à honra e ao direito ao trabalho do trabalhador justifica a
utilização da gravação telefônica, e, portanto, a quebra do direito à intimidade do
empregador?
2) Esse era o único meio de que dispunha o trabalhador para fins de buscar guarida
judicial visando a proteção dos seus direitos? Era esse meio necessário?
3) A vantagem da proteção dos direitos do trabalhador corresponde à desvantagem
pela violação dos direitos do empregador? Ou seja, a vantagem foi proporcional à
desvantagem?
Entendemos que, no caso ora apresentado, a resposta às três indagações acima deve
ser positiva.
O trabalhador, que teve violados direitos seus fundamentais, não dispunha de outro
meio para provar a ofensa. Justificável, assim, a utilização da gravação, uma vez que a
desvantagem causada ao direito do empregador foi proporcionalmente inferior à vantagem
de garantir os direitos do trabalhador.
Reprise-se que a prova ilícita apenas pode ser aceita quando é a única capaz de
evidenciar fato absolutamente necessário à tutela, no caso concreto, de determinado direito.
E tal situação é vislumbrada no caso ora posto.
Afinal, de que outra forma poderia o trabalhador comprovar a violação perpetrada
pelos prepostos do seu ex-empregador? Convocando-os a depor em Juízo, onde eles,

8
Nesse sentido é a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (in: “A eficácia dos direitos fundamentias”. 6ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 54-58.
9
In: “Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos”. 6ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006, p. 149.
certamente, negariam as acusações? Interpelando as empresas nas quais entregou
currículos, para que lhe declinassem os motivos da sua não contratação?
Em tese, todas essas atitudes parecem possíveis, mas, em termos práticos,
dificilmente veria o trabalhador algum resultado.
Bem se vê que o trabalhador, com a prova obtida, colimou unicamente resguardar
seus direitos fundamentais à honra e ao trabalho, e, ultima ratio, preservar o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, o qual é o vetor da ponderação.
Nesta senda, é incontestável o direito do empregador à inviolabilidade de
comunicação. Porém, tem mais peso, no caso ora tratado, a dignidade da pessoa humana
consubstanciada nos direitos do trabalhador à honra e ao trabalho.
Não é a toa, que a Constituição Republicana os consagrou em seus arts. 1º e 160,
elevando o trabalho a condição da dignidade humana:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (destacamos);
“Art. 160: A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento
nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:
II- valorização do trabalho como condição da dignidade humana”
(destacamos).
Também a Declaração Universal dos Direitos Humanos declarou, expressamente,
que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas
e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego” (destacamos).
Destarte, à luz do Princípio da Proporcionalidade, entendemos que podem ser
admitidas, como modalidade de prova, as gravações obtidas pelo trabalhador, sem o
conhecimento do empregador, de conversas telefônicas entre este e terceiros, com a
finalidade de demonstrar a violação, por parte de seu ex-empregador, dos seus direitos
fundamentais à honra e ao trabalho, quando este seja o único meio de que dispõe o
trabalhador para comprovar tais lesões.

BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. “Teoria de los derechos fundamentales”. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.
ÁVILA, Humberto. “Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos”. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. “A nova interpretação
constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios”. In: LEITE, George
Salomão (organizador). “Dos princípios constitucionais: considerações em torno da
normas principiológicas da Constituição”. São Paulo: Malheiros, 2003.
CANOTILHO, J. J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 7ª
ed. Coimbra: Almedina, 2003
DWORKIN, Ronald. “Levando os direitos a sério”. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
MARINONI, Luiz Guilherme. “Teoria geral do processo”. Vol. 1. São Paulo: RT,
2006.
NERY JUNIOR, Nelson. “Princípios do processo civil na Constituição Federal”.
8ª ed. São Paulo: RT, 2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. “A eficácia dos direitos fundamentias”. 6ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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