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Publicado em Redes. Revista Capixaba de Filosofia e Teologia. 1 (2003) 115-132
2
As obras citadas serão abreviadas segundas as edições clássicas com o título latino: De coelesti
hierarchia (= CH); De ecclesiastica hierarchia (= EH); De divinis nominibus (= DN); De mystica
theologia (= MT); Epistolae (= EP). Para a edição crítica do Corpus, cf. B. R. SUCHLA, Corpus
Dionysiacum 1: De divinis nominibus.Berlin-New York: W. de Gruyter,1990; G. HEIL, Corpus
Dionysiacum 2: De coelisti hierarchia. De ecclesiastica hierarchia. De mystica theologia.
Epistulae.Berlin-New York: W. de Gruyter,1991
3
Cf. PSEUDO-DIONIGI L’AREOPAGITA, Gerarchia celeste. Teologia mistica. Lettere.
Introduzione, traduzione e note a cura di S. LILLA.Roma: Città Nuova,1986
4
Cf. PSEUDO-DIONIGI L’AREOPAGITA, La gerarchia ecclesiastica.Introduzione, traduzione e
note a cura di S. LILLA.Roma: Città Nuova,2002
5
Cf. B.R. SUCHLA, Die Namen Gottes.Stuttgart,Hiersemann,1988; V. MUNIZ RODRIGUEZ,
Significado de los nombres de Dios en el Corpus Dionysiacum.Salamanca: Universidad Pontificia,
1975
6
Cf. a tradução de L. A. DE BONI, Filosofia Medieval. Textos.Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p.
69-74; M. S. DE CARVALHO, Pseudo-Dionísio Areopagita: Teologia Mística. Porto,1996
2
discípulo de Proclo (✟ 485) e de Damáscio, último dirigente da mesma Escola até o seu
fechamento no ano de 529 por ordem do imperador Justiniano.
Na obra do Pseudo-Dionísio Areopagita, o discurso teológico e o simbolismo não se
limitam a meros instrumentos e ou produtos naturais da inteligência, mas estão integrados
em uma economia superior na qual encontram seu valor e sua eficácia. O objetivo deste
artigo consiste em situar a Escritura e a Tradição como verdadeiras fontes de nossa ciência
divina e sublinhar sua íntima conexão e complementaridade.
I. A ESCRITURA
Qualquer que seja o nome que se lhe atribua – theología, logia, graphē, graphai -7,
o Pseudo-Dionísio Areopagita cita sempre a Escritura com muita veneração8. É assaz claro
que o Pseudo-Dionísio Areopagita deseja prosseguir sua pesquisa sobre os Nomes Divinos
que já estariam presentes de algum modo nos Livros Santos. Desses provém a luz; é sobre
eles que incidirão suas pesquisas e suas meditações9. A razão desta atitude reside no fato de
que esses livros procedem de Deus: theoparádota logía10. Os Livros Santos se impõem
como uma lei, como uma disposição divina (theía thesmothesía), antes das (e algumas
vezes contra as) regras humanas. A Escritura será para o Pseudo-Dionísio a regra única de
todo raciocínio e de toda discussão, de sorte que não aceitar este ponto de partida
obrigatória significa situar-se fora de seus princípios de sabedoria e tornar impossível toda
troca intelectual:
7
Isto é, a Palavra de Deus ou sobre Deus; os Oráculos por excelência; a Escritura, as Escrituras.
8
Eis alguns adjetivos aplicados à Escritura: pánsophos (CH IV 3, 180 C), hierós (DN I,588 A),
paníeros (EH III III 6, 432 C), hierótatos (EH I 2, 372 C), díkaios (EH VII III, 564 A),
alēthēs (EH VII III, 557 D), theoparádotos (EH I 4, 376 B), septótatos (ibidem), agathos (EH VI
1, 532 A).
9
DN I, 597 B
10
“De fato, a substância da nossa hierarquia é constituída dos oráculos transmitidos por Deus” (EH
I,4, 376 B).
3
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DN II, 640A
12
DN II, 640 A-B
13
EH IV III 10, 484 B: krýphion lógion.
14
CH II 2, 140 A: mystikòn lógion.
4
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DN I, 588 A; MT V, 1045 D; DN I, 588 A; IV, 701 C; I, 593 C
5
uma inteligência purificada que sabe manter um afastamento infinito entre o Deus que ela
procura e as diversas expressões que a Escritura lhe impõe. Ao nível dos símbolos, ela
entenderá as semelhanças de modo dessemelhante. Ao nível dos conceitos, ela retificará os
atributos humanos dados a Deus pela Escritura, rejeitando todos os antropomorfismos que
eles implicam. Mas a inteligência divinizada não retomará as afirmações e as negações da
Escritura senão em um certo recuo, senão em um recuo interior e segundo uma perspectiva
espiritual que impede de aderir somente à literalidade de uma linguagem irremediavelmente
inadequada.
O verdadeiro sentido da Escritura não se revela senão às inteligências purificadas.
Isto quer dizer que tal sentido só apreendido por uma elite? A inteligência purificada
segundo o Pseudo-Dionísio Areopagita tem sempre necessidade de uma ajuda do alto que a
dirija e a ilumine. Neste sentido, ela jamais terminará de compreender as Escrituras e para
ela nada haverá de definitivamente adquirido. A Escritura é acessível a todos, na medida
em que esses aceitam o ensinamento que lhes é proposto e o conjunto das abordagens
hierárquicas que são inseparáveis deste ensinamento. A participação no conhecimento e na
vida divinas não são, portanto, o apanágio de uma elite, mas o lote comum, e sempre
pessoal, de todas as inteligências de boa vontade. Em resumo: se as Escrituras são ditas
escondidas ou misteriosas, isto se deve ao fato de que elas nos fazem lembrar que somente
Deus pode nos falar de si mesmo, e que sua linguagem deve permanecer secreta às
inteligências profanas.
II. A TRADIÇÃO
16
EH I 4, 376 B-C
7
17
No capítulo III da EH o Pseudo-Dionísio Areopagita menciona alguns nomes e expõe o
significado da Eucaristia que não se limita simplesmente à reunião dos fiéis em um só lugar, mas
significa também a união dos fiéis com Deus, entre si e consigo mesmos. É assaz significativo o
termo com o qual ele indica a Eucaristia: sýnaxis = reunião.
18
Cf. EH IV III 4, 477 B
19
EH I 1, 372 A
8
aos profanos as conseqüências que acarretavam para eles revelações prematuras. Para ter
acesso a Deus, é preciso ter o sentido de seu Mistério e de sua inacessível grandeza.
Assim, no pensamento do Pseudo-Dionísio Areopagita, Escritura e Tradição vivem
em uma estreitíssima complementaridade. De um lado, a Palavra de Deus oferece um
conjunto de metáforas, de parábolas, de imagens e de narrações; ela atribui a Deus nomes
de qualificações inteligíveis. E o Pseudo-Dionísio Areopagita defende o valor dos símbolos
e dos nomes divinos que lhe propõem os Livros santos. Mas, de outro lado, a tarefa
educadora da Igreja e da tradição o obriga a reter as formas mais humildes do
conhecimento de Deus: “às crianças, o alimento das crianças”. Assim procedendo, a Igreja
faz nascer os homens para a vida divina, ela os instrui paulatinamente e lhes permite
transpor sucessivamente os degraus da ciência e da santidade. A Hierarquia eclesiástica tem
por missão revelar e explicar a Escritura: os theoparádota logía são ao mesmo tempo
hierarchíkà logía.
20
R. ROQUES fala de métodos (no plural) ou de funções teológicas na obra do Pseudo-Dionísio
Areopagita, utilizando indiferentemente ambas as expressões: cf. Structures théologiques. De la
gnose à Richard de Saint-Victor. Essais et analyses critiques. Paris: PUF,1962, p. 135-150
21
Sobre os modelos de teologia que o Pseudo-Dionísio Areopagita transmitiu à Tradição eclesial,
cf. sobretudo G. LAFONT, Modelli di Teologia nella Storia, in FISICHELLA, R.; POZZO, G. &
LAFONT, G. La Teologia tra Rivelazione e Storia.Bologna: Dehoniane,1999, p. 332-336.340-341;
Cf. também do mesmo autor, História teológica da Igreja Católica. Itinerário e formas da
teologia.São Paulo: Paulinas, 2000, p. 74-76.325-328
9
Este texto define assim duas orientações gerais que conduzem ao conhecimento de
Deus: a iniciação simbólica e a demonstração filosófica. É preciso observar aqui que o
conhecimento demonstrativo e filosófico colocado em paralelo com o método simbólico-
místico da iniciação não estão em oposição. Ao contrário, o método demonstrativo deve
estar inserido no coração da revelação transcendente. Sendo mais precisos que a EP IX, os
tratados apresentam quatro funções ou métodos teológicos, necessários e mutuamente
dependentes, a serviço do conhecimento de Deus. É que agora passamos a examinar.
A. Teologia simbólica23
22
EP IX, 1105 C-D
23
Cf. A. LÉON, Le langage symbolique chez Denys l’Aréopagite: une vie vers la connaissance de
Dieu.Romae: Pontificium Athenaeum Sanctae Crucis,1997
24
CH II, 145 B
10
nenhum dos homens verdadeiramente inteligentes poderia negar que as semelhanças mais
longínquas sejam mais aptas para elevar a nossa inteligência”25.
Na Carta IX, tem-se um exemplo de “teologia simbólica”, isto é, de uma linguagem
pela qual, segundo a Sagrada Escritura, Deus se revela aos imperfeitos por meio de imagens
materiais. O Pseudo-Dionísio Areopagita comenta o Banquete da Sabedora, no Livro dos
Provérbios (9,2-4).O “alimento sólido” que o “diviníssimo Paulo” distribui não às crianças,
mas aos “homens adultos que têm os sentidos exercitados no discernimento do bem e do
mal” (Hb 5,14) simboliza “a perfeita identidade de um poder intelectivo permanente, graças
ao qual... os mistérios divinos se deixam participar por esses sentidos intelectuais”. O
Pseudo-Dionísio Areopagita reconhece, portanto, a existência de “sentidos intelectuais”,
como Orígenes e Gregório de Nissa:
25
CH II, 141 A
26
EP IX, 1112 A
11
27
CH II, 141 A
28
DN I, 597 B
29
DN VII, 869 D-872 A. Em uma perspectiva complementar, ver também MT III, 1033 B-D. Esta
última passagem estabelece que a teologia afirmativa segue um movimento descendente, da ordem
da processão, e a teologia negativa um movimento ascendente, da ordem da conversão.
30
É exatamente a ordem adotada no tratado dos Nomes Divinos.
31
MT III, 1033 C
12
32
DN VII, 872 A
33
Cf. F. PIO DE A. FLECK, A função da negação na via remotionis, in DE BONI, L. A. (org.)
Lógica e Linguagem na Idade Média.Porto Alegre: Edipucrs,1995, p. 47-54
34
MT III, 1033 B-D. É preciso notar que a teologia negativa (apofática) abre o caminho para a
teologia mística, de sorte que é difícil distinguir materialmente onde uma termina e a outra começa.
13
35
DN VII, 869 A
36
Cf. MT V, 1048 B
37
Cf. DN I, 593 A-C
38
Cf. Chr. YANNARAS, Heidegger e Dionigi Areopagita. Assenza e ignoranza di Dio. Roma:
Città Nuova,1995. A tradução desta obra do grego para o italiano foi feita por A. Fyrigos e se
baseou na reelaboração do próprio autor de sua obra publicada em 1967 (Hē theologia tēs apousías
kaì tēs agnosías toû theoû.Atenas,1967) e reeditada vinte anos depois com modificações
substanciais em 1988 com o seguinte título: Cháinteger kaì Aeropagítēs [= Heidegger e o
Areopagita],Atenas,1988
14
“Não é, portanto, verdade dizer que conhecemos a Deus não pela sua
natureza, enquanto não é cognoscível e supera toda razão e inteligência, mas
pela ordem de todos os seres, enquanto proposto por ele e que contém algumas
imagens e semelhanças de seus exemplares divinos, segundo as nossas forças,
ascendendo ordenadamente em direção àquele que supera todas as coisas na
privação e na excelência e na causa de todas as coisas?”39.
39
DN VII, 869 C-872 A
16
D. Teologia mística40
40
Sobre a Teologia Mística do Pseudo-Dionísio Areopagita, cf. H. ALTESOR, Dionísio. El
Místico.Buenos Aires: Corregidor,2000; J. B. DA COSTA, A Teologia Mística do Pseudo-Dionísio,
in BAUCHWITZ, O. F. (ed.) O Neoplatonismo.Natal: Argos Editora,2001, p. 47-55. Para o influxo
do Pseudo-Dionísio Areopagita na mística e teologia posteriores, cf. F. A. PASTOR, A Lógica do
Inefável.São Paulo: Loyola,1986; A. DE LIBERA, Eckhart, Suso, Tauler ou la divinisation de
l’homme.Paris: Bayard,1996; I. EUGENIO MARIA, Contemplación filosófica y contemplación
mística. Desde las grandes autoridades Del siglo XIII a Dionísio Cartujano (s. XV).Buenos Aires:
Editorial de la Universidad Católica Argentina,2002
41
H. C. DE LIMA VAZ, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental.São Paulo: Loyola,
2000, p. 36-37
42
DN VII, 872 A-B
43
DN II, 648 B
44
Cf. DN II, 648 B
17
A teologia mística se situa, portanto, acima das outras funções teológicas, onde o
silêncio é plenitude e eloqüência. Observemos que a orientação fundamental do
pensamento sempre se norteia em direção ao cume, ao inefável e ao transcendente. O
procedimento é essencialmente anagógico no sentido de que convida a abandonar as
representações sensíveis para elevar-se em direção à unidade e à divinização (hénosis e
théosis):
“E novamente há um conhecimento diviníssimo de Deus, aquele que se
obtém mediante a ignorância, segundo a união superior à inteligência, quando a
inteligência, afastando-se de todas as coisas que existem e, em seguida, também
abandonando a si mesma, se une aos raios de clareza superior e, graças a esses
raios, é iluminada com a imperscrutável profundidade da Sabedoria”45.
45
DN VII, 872 A-B
46
Cf. L. BOUYER, Mysterion. Du mystère à la mystique.Paris: O.E.I.L.,1986
47
Cf. Tb 12,7.11; Jt 2,2; 2Mc 13,21; Eclo 22,22; 27,16.21; Dn 2,28.29.47
18
48
É inequívoca a passagem do “mistério” à “mística”, isto é, da celebração dos mistérios do Cristo
na liturgia à contemplação desses mistérios na literatura monástica da Idade Média onde, a partir
dos Cistercienses, há uma nota de intimidade que é nova. É toda a passagem da teologia monástica
beneditina, onde a liturgia e espiritualidade estão unidas, à devotio moderna onde elas estão
dissociadas, que é o ponto em questão. Para uma fundamentação dessas afirmações, cf. as obras de
G. PENCO, Medioevo monastico.Roma: Pont. Ateneo S. Anselmo,1988; Il monachesimo fra
spiritualità e cultura. Milano: Jaca Book,1991; sobre a Devotio Moderna, cf. também D. De
PABLO MAROTO, Espiritualidad de la baja Edad Media (Siglos XIII-XV).Madrid: Editorial de
Espiritualidad,2000, p. 309-336
49
Cf. J. VANNESTE, Le mystère de Dieu. Essai sur la structure rationnelle de la doctrine
mystique du Pseudo-Denys l’Aréopagite.Bruges: Desclée de Brouwer,1959, p. 224 e 221; J. RIST,
Platonism and its Christian Heritage.London: Variorum Reprints,1985
50
Cf. J. VANNESTE, Le mystère de Dieu..., p. 223. A tese de J. Vanneste se baseia na redução do
êxtase dionisiano ao êxtase plotiniano.
51
Cf. especialmente Y. DE ANDIA, Henosis.L’union à Dieu chez Denys l’Aréopagite.Leiden:
Brill,1996, p. 450-453
19
Sem entrar no debate sobre a mística no século XX para aprofundar as duas vias nas
quais a reflexão se norteou (teológica e psicológica)52, basta afirmar o seguinte: a mística
do Pseudo-Dionísio Areopagita é uma mística que dá lugar ao mistério, no sentido de que
Deus, paradoxalmente, se manifesta mas permanece escondido em sua própria
manifestação. Ele é inapreensível, incompreensível, e a liturgia o celebra com uma litania
de atributos negativos. Ele se manifesta nos sacramentos ou mistérios, mas a mistagogia
conduz o iniciado em direção à sua face escondida. A mistagogia não é uma redução do
mistério a uma explicação racional, mas uma introdução sempre mais profunda ao mistério
divino.
Em toda a abordagem do Pseudo-Dionísio Areopagita acerca da relação entre
Escritura e Tradição, é esta presença de Deus que norteia os métodos e que faz sua
verdadeira unidade. Deus é o critério, a regra, o método teológico no Pseudo-Dionísio
Areopagita. Aqui reside o sentido profundo de sua concepção de Escritura e da pesquisa
teológica: Deus como objeto, Deus como iniciador, Deus como método. É certamente o que
os teólogos jamais terminarão de descobrir.
52
Cf. J. MARÉCHAL, Études sur la psychologie des mistiques.2vol.Paris: Desclée de Brouwer,
1937-1938; A. STOLZ, Theologie der Mystik.Regensburg: Pustet,1936; V. LOSSKY, Essai sur la
Théologie mystique de l’Église d’Orient.Paris: Aubier-Montaigne,1944; L. JORGE GONZÁLEZ,
Psicologia dei mistici. Sviluppo umano in pienezza.Città del Vaticano: Libreria Editrice
Vaticana,2001