You are on page 1of 245

CONSELHO EDITORIAL

Ainhoa Larrañaga Elorza (Espanha)


Aldacy Rachid Coutinho (Brasil)
Boaventura de Sousa Santos (Portugal)
Carlos Frederico Marés de Souza Filho (Brasil)
Celso Luiz Ludwig (Brasil)
Claus Magmo Germer (Brasil)
Gonçalo Dias Guimarães (Brasil)
Jacques Chonchol Chait (Chile)
José Antônio Peres Gediel (Brasil)
Jose Cademartori Invernizzi (Chile)
José Juliano de Carvalho Filho (Brasil)
Liana Frota Carleial (Brasil)
Márcio Pochmann (Brasil)
Paul Israel Singer (Brasil)
Plínio de Arruda Sampaio (Brasil)
Rui Namorado (Portugal)
José Antônio Peres Gediel
(Organizador)
© Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito – UFPR 2007

EQUIPE TÉCNICA

Eduardo Faria Silva (Doutorando - UFPR)


Felipe Drehmer (Acadêmico - UFPR)
Giovana Bonilha Milano (Acadêmica - UFPR)
Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel (Organizador)

Estudos de direito cooperativo e cidadania / Organizador


José Antônio Peres Gediel. – Curitiba : Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFPR, n. 1 (2007).
244 p.

1. Direito Cooperativo. 2. Cidadania. 3. Cooperativismo.


I. Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
II. Universidade Federal do Paraná.

CDU 334:331(81)

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Antônia Schwinden
CAPA
Glauce Midori Nakamura
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Ivonete Chula dos Santos

4
APRESENTAÇÃO

José Antônio Peres Gediel*

É com grande satisfação que apresentamos este segundo


volume do “Direito Cooperativo e Cidadania” produzida graças
ao apoio material do FINEP e intelectual de pesquisadores da
UFPR e de outras universidades nacionais e estrangeiras.
Os temas deste volume são variados e profundos, como
variada e complexa é a discussão sobre o lugar do cooperativismo
e de suas vertentes atuais, nas sociedades contemporâneas.
Por essas razões, é sempre necessário articular a história
do cooperativismo com suas potencialidades, bem como permitir
o diálogo de seus críticos mais contundentes com os teóricos
da sua permanente reconstrução.
O direito também comparece para apontar formas de
organização autogestionárias e cooperativas que promovem
reconhecimento desses espaços coletivos de trabalho e
produção, pelo Estado de Direito, e facilitam sua inserção nas
políticas públicas de diminuição da pobreza e da marginalização.
A diversidade de experiências e propostas emerge do
conjunto dos textos e possibilitam diversas leituras, interpretações
e usos. O nosso propósito com esta publicação é o debate
e a pesquisa nas universidades e em outros espaços da
sociedade brasileira.

* Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Direito da


Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Civil da mesma Universidade e coordenador
do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania.

5
6
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................... 5
José Antônio Peres Gediel

COOPERATIVISMO – HISTÓRIA E HORIZONTES ..................... 9


Rui Namorado

LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO:
EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN ...................... 37
Ainhoa Larrañaga

A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA CRÍTICA MARXISTA ............ 51


Claus Germer

A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS EIXOS


PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A
LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO
BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA ............. 75
Eloíza Mara da Silva, Fernanda de Oliveira Santos

CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO


BRASILEIRO .......................................................................... 89
Daniele Regina Pontes

A EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E OS


LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA
PARA O MEIO RURAL ........................................................... 113
Pedro Ivan Christoffoli

UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO


DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO
DA COOPROSERP .................................................................. 155
Adilson Korchak, José Augusto Guterres

PARECER: PROJETO DE LEI N.º 7.009/06 ............................... 187


Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em
Direito da Universidade Federal do Paraná – NDCC/UFPR

PARECER: TRANSFERÊNCIA DE COTA PARTE DE COOPERATIVA ... 205


Eduardo Faria Silva, José Antônio Peres Gediel

7
RESENHA ............................................................................. 211
Felipe Drehmer, Ricardo Prestes Pazello

INDICAÇÃO DE LEITURAS ....................................................... 233

PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA –


UFPR
MESTRES .............................................................................. 237
MESTRANDOS ....................................................................... 240

8
COOPERATIVISMO – HISTÓRIA
E HORIZONTES*

Rui Namorado**

RESUMO: Este texto reflete sobre o futuro RESUMEN: Este texto reflexiona sobre el
esperado para o cooperativismo, futuro esperado para el cooperativismo,
considerando o seu código genético, bem considerando su código genético, bien
como os aspectos marcantes de sua como los aspectos marcantes de su
trajetória histórica. Como realidades trayectoria histórica. Con realidades
socialmente significativas, as práticas sociales significativas, las prácticas
cooperativas firmaram-se nas primeiras cooperativas ocurren en las primeras
décadas do século XIX, assumindo décadas del siglo XIX, asumiendo
particular relevância na Inglaterra, França, particular relevancia en Inglaterra,
Alemanha, Itália, Bélgica, em especial nos Francia, Alemania, Italia, Bélgica, en
dois primeiros países. Entendido o especial en los dos primeros países.
cooperativismo como uma síntese e uma Entendido el cooperativismo cómo una
tensão entre pragmatismo e utopia, entre síntesis y una tensión entre pragmatismo
a utilidade imediata e a alternativa y utopía, entre la utilidad inmediata y la
prospectiva, a idéia de um horizonte alternativa prospectiva, la idea de un
cooperativo implica uma permanente horizonte cooperativo implica una
abertura aos desafios concretos de cada permanente abertura a los desafíos
sociedade e uma ambição utópica concretos de cada sociedad y una ambición
sustentada quanto ao futuro. utópica sustentable cuanto al futuro.

PALAVRAS-CHAVE: cooperativismo; PALABRAS-CLAVE: cooperativismo;


trajetória histórica; horizonte cooperativo. trayectoria histórica.

* Este texto teve por base uma conferência proferida, em 29 de Agosto de 2006, em
Curitiba, no 1º Seminário de Direito Cooperativo, Políticas Públicas e Cidadania, realizado na
Universidade Federal do Paraná.

** Doutor em Economia (1994), na área do Direito Econômico, pela Faculdade de


Economia da Universidade de Coimbra. Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra; coordenador do Centro de Estudos Cooperativos da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra. Dentre suas recentes publicações, citam-se: “La sociedad cooperativa
europea. Problemas y perspectivas”, in Rafael Chaves, Gemma Fajardo y Rui Namorado
(coordinadores), Integración Empresarial Cooperativa, Valencia, CIRIEC-ESPAÑA, 2003; “A
Sociedade Cooperativa Europeia – problemas e perspectivas”, Coimbra, Oficina do CES n.º 189,
2003; “Cooperativismo e Economia Social – valorização de um espaço problemático (a propósito
do II Colóquio Ibérico de Cooperativismo e Economia Social)”, Cooperativas e Desenvolvimento, n.º
24, Lisboa, 2003; Horizonte Cooperativo – político e projecto”, Coimbra, Almedina, 2001.

9
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

1 INTRODUÇÃO

1.1. A distorção mediática, espelho da ideologia


dominante, tende a reduzir o cooperativismo a uma difusa
sombra de si próprio, sugerindo-o como um resíduo utópico
de uma época passada. Um simples olhar para os dados
estatísticos fornecidos pela Aliança Cooperativa Internacional
permitirá, no entanto, mostrar como essa imagem mediática
nos afasta da realidade.
De facto, um movimento social que envolve hoje, em
todo mundo, mais de setecentos milhões de cooperadores1
não pode ser confinado à marginalidade. É preciso, por isso,
fazer regressar o cooperativismo ao seu lugar, dando-lhe uma
importância que realmente o reflicta.
Vou usar neste texto a palavra cooperativismo como
se ela significasse o mesmo que a expressão fenómeno
cooperativo, embora seja possível reconhecer facilmente algumas
diferenças. A primeira tem, na verdade, desde logo, uma
conotação doutrinária e normativa mais nítida, reflectindo talvez
melhor a ideia de movimento e de dinâmica. A segunda parece
ter uma vocação descritiva mais acentuada. Mas a fungibilidade
entre ambas, quanto ao essencial, não me parece que possa
ser posta em causa.

1.2. Na história do cooperativismo vou valorizar


particularmente a sua génese, as suas raízes estruturantes,
procurando nos segmentos iniciais da sua trajectória histórica
os aspectos mais sintomáticos da sua evolução.
Quanto à procura do que há de mais esperançoso nos
horizontes que se oferecem como possíveis à evolução do

1 A consulta dos dados estatísticos fornecidos pela Aliança Cooperativa

Internacional (ACI), por meio do seu site ou das suas publicações oficiais,
permitirá confirmar facilmente esses números.

10
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

fenómeno cooperativo, darei o devido relevo à ambição utópica


inscrita na cooperatividade. Uma ambição utópica feita de uma
natural intimidade com o futuro e que não se deixa confinar ao
tipo de sociedade actualmente dominante.
Numa palavra, vou tentar compreender que futuro espera
o cooperativismo, dando toda a importância ao seu código
genético, bem como aos aspectos mais marcantes da sua
trajectória histórica até ao que podemos considerar a sua
maturidade. Mas não vou esquecer que verdadeiramente não
há um futuro de esperança para colher sem esforço, nem um
horizonte de pesadelo de que se não possa escapar. Entre os
futuros possíveis, acontecerá aquele que formos capazes de
construir, aquele de que o movimento cooperativo for capaz,
em sinergia com o esforço e a inteligência dos cooperativistas
e dos cidadãos.

1.3. Nesta introdução pode ser útil incluir como ponto


prévio, uma breve memória dos aspectos mais relevantes do
fenómeno cooperativo na actualidade.
1.3.1. Ele corresponde a uma vasta rede de organizações
empresariais, da mais variada dimensão, com incidência em
todos os sectores da actividade económica, envolvendo, como
já se disse, mais se 700 milhões de cooperadores, distribuídos
por todos os continentes.
1.3.2. Está repartido por mais de uma dezena de ramos
cooperativos, entre os quais podem ser destacados: o do consumo,
o de crédito, o agrícola, o da habitação, o da comercialização,
o da produção operária, o da cultura e o da educação.
1.3.3. Assume, como identidade distintiva universalmente
reconhecida, um conjunto de princípios, um leque de valores e
uma noção.
1.3.4. A sua energia propulsora advém de uma das
principais forças congregadoras das sociedades humanas – a

11
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

cooperação. Ou seja, estamos perante uma congregação de


práticas sociais centrada na cooperação.
1.3.5. O fenómeno cooperativo emergiu historicamente
como parcela do movimento operário, tendo-se diferenciado
no seu interior sem deixar de ser um dos seus pilares, o que o
ligou umbilicalmente ao capitalismo.
1.3.6. Tem uma relação complexa com o capitalismo,
pois pode rever-se nele, quer como uma compensação do que
no capitalismo seja mais insuportavelmente predatório, quer
como um foco de resistência à lógica dominante, quer como
um verdadeiro alfobre de alternatividade.
1.3.7. A sua diferenciação, autonomizando-o, consumou
e robusteceu a natureza empresarial das actividades por
ele implicadas.
1.3.8. É um fenómeno social multifacetado ou, se
quisermos, pode encarar-se: ou como um movimento social;
ou como um sector de propriedade dos meios de produção.
1.3.9. Por último, para o compreender em toda a sua
dinâmica, o fenómeno cooperativo pode ser visto como parcela
que se integra simultaneamente em várias constelações. Essas
constelações, tendo em comum o fenómeno cooperativo,
instituem-no como um campo de forças onde se conjugam
impulsos diversos. Impulsos de cooperação, pela natureza
cooperativa das práticas sociais em jogo; impulsos próprios do
movimento operário, por estarmos perante um dos seus pilares;
impulsos pela inserção na economia social, por estarmos perante
entidades que, claramente, a integram.

1.4. Como segundo ponto prévio, vamos propor uma


noção de cooperativa que esgote toda a sua amplitude,
valorizando o facto de estarmos perante uma entidade que:
• é uma síntese de associação e de empresa;
• baseia-se na cooperação e na entreajuda dos seus
membros;

12
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

• assume como determinantes a democracia interna e


a participação;
• não tem fins lucrativos;
• procura responder a necessidades e aspirações, quer
económicas, quer sociais, quer culturais;
• é autónoma e independente, em face de quaisquer
focos de poder que se lhe queiram impor de fora;
• tem capital e composições variáveis;
• é dotada de personalidade jurídica.

2 A COOPERAÇÃO, COMO RAIZ DO FENÓMENO COOPERATIVO

2.1. Destacar a raiz do fenómeno cooperativo está


longe de ser um simples ornamento conceptual, destinado a
dar cor a uma narrativa histórica. De facto, só assim poderemos
compreender a sua lógica mais funda. Só assim poderemos
valorizar adequadamente o seu princípio activo. Só assim
poderemos ancorar devidamente a sua especificidade
incontornável. Mas, fundamentalmente, só assim tornaremos
evidente que as práticas cooperativas não são uma prótese
doutrinária recente, introduzida circunstancialmente na história
pela imaginação de uns poucos e pela força das circunstâncias,
destinada a regressar rapidamente ao território perdido
das memórias.
De facto, na raiz do fenómeno cooperativo está a
cooperação,2 esse tecido conjuntivo das acções colectivas,
desde sempre presente nas sociedades humanas.
Como é sabido, houve um tempo em que as sociedades
humanas sobreviviam na medida em que os seus membros

2 Veja-se, no mesmo sentido, PINHO, 1962: 65 e ss.; e também 2004.

116 e ss.

13
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

cooperassem entre si. A cooperação era então uma verdadeira


condição de sobrevivência. Era a época de uma cooperação
livre entre iguais, como expressão directa de uma necessidade
colectiva de sobrevivência e progresso, que assim se revelava
como um elemento nuclear do tecido social.
Vieram depois as sociedades de exploração,
hierarquicamente diferenciadas, em que a colaboração produtiva,
necessária à sobrevivência da sociedade, se projectava também
como factor de enriquecimento de uma parte das sociedades à
custa da outra. A cooperação é agora funcional, decorrendo
em termos socialmente construídos, marcados pela distribuição
desigual do sobreproduto social, bem como por uma hierarquia
imposta que exprime e cristaliza essa desigualdade,
juridicamente legitimada e politicamente protegida.
Mas a cooperação livre, conquanto subalternizada, não
desapareceu por completo. Permaneceu latente, manifestando-se
ao longo dos séculos através dos mais diversos rostos e nos
mais dispersos lugares. Foram, de facto, muitos, os fenómenos
sociais localmente enraizados, que subsistiram como experiências
residuais e como expressões de uma energia cooperativa latente,
ao longo da história. Recordem-se as diversas formas de
organização comunitária da actividade agrícola, as múltiplas uniões
profissionais radicadas na solidariedade, os inúmeros fenómenos
associativos, tantas vezes religiosamente marcados.3
A título de exemplos, podemos recordar algumas dessas
entidades, tais como: as unidades colectivas agrícolas da
Babilónia; as associações artesanais do antigo Egipto, da Grécia
antiga e de Roma; as sociedades de crédito na antiga China;
as “guildes” medievais; o socorro mútuo comunal islandês,

3 Para um panorama sugestivo dessa problemática, pode consultar-se a


antologia organizada por Ugo BELLOCCHI, Il Pensiero Cooperativo dalla Bibia
alla Fine dell’ Ottocento.

14
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

anterior ao ano mil; o “mir” russo; a “ zadruga” da região balcânica;


as “fruitières” do Jura; os celeiros colectivos japoneses; os
“ejidos” mexicanos.4
É como se a cooperação livre tivesse sobrevivido ao
longo da história como uma energia latente, enquanto as
sociedades se estruturavam, com base nos grandes vectores
da colaboração forçada, da hierarquia e do conflito.
Como iremos ver, o movimento cooperativo moderno
rompeu com esse estado de latência do fenómeno cooperativo,
mas não conseguiu ainda arrancá-lo de uma subalternidade
que o coloca perante a pressão permanente da lógica e dos
valores dominantes.

3 A EMERGÊNCIA DO MOVIMENTO COOPERATIVA MODERNO

3.1. DIFERENCIAÇÃO DAS PRÁTICAS COOPERATIVAS

A emergência do movimento cooperativo moderno


traduziu-se na diferenciação das práticas cooperativas, através
de organizações específicas. Pode dizer-se que, como realidade
socialmente significativa, se afirmou nas primeiras décadas do
século XIX, assumindo particular relevância num pequeno
conjunto de países europeus – Inglaterra, França, Alemanha,
Itália, Bélgica – com destaque para os dois primeiros.
A cooperação instituiu-se como eixo deste novo conjunto
de organizações que intervieram na actividade económica,
gerando um tipo particular de empresa. Estruturadas com base
na cooperação entre os seus membros, deram-lhe centralidade
como o elemento que decisivamente as impulsionou.
Mutualizaram uma parte dos interesses dos seus membros,
pelo modo como aprenderam a prossegui-los.

4 Para aprofundar essa temática, podem ver-se: VERDIER (1974:3 e ss.),

MLADENATZ (1969:11 e ss.) e A.e B. DRIMER (1975:198 e ss.).

15
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Mas esta mutualização do prosseguimento de interesses


comuns não se manifestou como dinâmica isolada. Pelo
contrário, emergiu no quadro do movimento operário como
um dos seus elementos constitutivos. Afirmou-se como um
dos aspectos diferenciados da nebulosa associativa, através
da qual o movimento operário de início se materializou. De
facto, a forma associativa começou por incorporar todas as
manifestações do activismo operário, para posteriormente
amadurecer, diversificando-se em entidades claramente distintas
entre si.
Foi assim que surgiram o que alguns designaram como
os “três pilares do movimento operário”5: partidos políticos
operários, sindicatos e cooperativas.6 A centralidade destes
três pilares não impediu o associativismo de continuar como
um espaço aberto, onde cabiam todas as actividades culturais,
sociais e económicas, que não tivessem gerado tipos específicos
de organizações. Nalguns casos, ocorreu o que se pode considerar
ter sido uma diversificação interna do associativismo, como
aconteceu, por exemplo, com as associações mutualistas, com
as associações de instrução, com as associações recreativas,
com as associações culturais; por vezes, circunscritas a um
destes tipos de actividades, por vezes, assumindo várias, mas
sempre sem darem origem a um tipo de organização diferente
da associação.

3.2. A EXPERIÊNCIA DE ROCHDALE

Ponto fulcral da plena autonomização do fenómeno


cooperativo e consequente emergência de uma identidade

5Veja-se DESROCHE (1976:89 e ss.), que salienta o papel de JAURÉS


na difusão desta perspectiva.
6 Para uma clarificação do sentido da intervenção do movimento operário

nesses três planos, pode ver-se Edwin MORLEY-FLETCHER, 1986: XXXIII e ss.

16
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

cooperativa específica, tal como hoje a conhecemos, foi a


fundação, em Rochdale, pequena cidade inglesa dos arredores
de Manchester, da Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale.7
Se tomarmos como referência a Inglaterra, verificamos
que algumas cooperativas surgiram, ainda no século XVIII e
que muitas nasceram e morreram nas primeiras décadas do
século XIX.8 Assim, quando, em 1844, um grupo de operários
tecelões de Rochdale se reuniu para constituir a Cooperativa
dos Pioneiros de Rochdale, tinha atrás de si um longo período
de dinamismo social que, no campo cooperativo, se manifestou
através de uma impetuosa natalidade e de uma não menos
forte mortalidade cooperativa.9
Foi dessa experiência, mas também do modo como os
pioneiros sentiam as sequelas do capitalismo emergente, da
necessidade de lhes resistirem, da ambição irreprimível de
sonharem para além dele, que resultaram as regras que identificam
a sua invenção cooperativa.
Não foi, portanto, a imaginação privilegiada de um pequeno
grupo que gerou, como artefacto de génio, um conjunto
pragmático de regras que viria a revelar-se fecundo e futurante.
Sem retirar mérito à reflexão dos pioneiros, ela alimentou-se
de um abundante leque de experiências, a partir de um ponto
de vista bem determinado, o ponto de vista dos operários de
Rochdale, um ponto de vista inserido no movimento operário.
O êxito da Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale validou
a experiência e consagrou os princípios e as regras assumidos,

7 The Rochdale Society of Equitable Pioneers foi fundada em 1844.


Para se saber um pouco mais sobre ela, pode consultar-se a História dos Pioneiros
de Rochdale de G.J. HOLYOAKE; e ainda BEDARIDA (1972:321 e ss.), THORNES
(1988:27 e ss.) e HORNSBY (1988:61 e ss.).
8 Veja-se VERDIER, 1974:7.
9 Para enquadramento dessa problemática, pode ver-se BEDARIDA,

1972:257 e ss.

17
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

instituindo um paradigma cooperativo hoje, mais de 160 anos


depois, dominante à escala mundial. E isso só foi possível,
porque esse paradigma se revelou suficientemente flexível e
aberto, para incorporar ajustamentos, alterações e novidades;
mas também suficientemente consistente, para se renovar sem
se descaracterizar.
De facto, os princípios cooperativos oriundos de Rochdale,
viriam a ser meio século depois, em 1895, o eixo identificador
da cooperatividade, que, na fundação da Aliança Cooperativa
Internacional (ACI),10 permitiu fixar em concreto o âmbito da
nova organização. E seria a ACI que assumiria a tarefa de manter
viva a força e a eficácia desses princípios, textualizando-os
especifica e formalmente pela primeira vez em 1936,
reformulando-os em 1966 e dando-lhes, no quadro de uma
identidade cooperativa integralmente explicitada, o perfil actual
em 1995, quando celebrou o seu primeiro centenário.11

3.3. AS COOPERATIVAS E AS INTERNACIONAIS

Este início do trajecto do movimento cooperativo ocorreu


no âmbito da implantação do capitalismo como sistema
dominante, constituindo um dos aspectos do desabrochar do
movimento operário como resistência ao seu predomínio e às
suas mais agressivas pulsões predatórias.
As dinâmicas nacionais deste movimento, presentes
nos principais países europeus, foram gerando as condições
necessárias para a sua internacionalização. Assim, em 1864
foi criada a Associação Internacional dos Trabalhadores, que

10Para se saber mais sobre a vida dessa organização, até 1970, pode
ver-se, entre outros, WATKINS, 1971:passim.
11Para um estudo mais aprofundado da identidade cooperativa, podem
ver-se: MACPHERSON (1996: passim) e NAMORADO (1995:passim) e (2005:9
e ss.).

18
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

viria a ficar conhecida por 1ª Internacional, na qual foi clara a


proeminência dos franceses e dos ingleses, bem como a
influência ideológica de MARX.
Na 1ª Internacional, o fenómeno cooperativo corresponde
a um espaço sócio-organizativo demarcado, mas está longe de
ser o seu elemento propulsor. Nela se defrontam os seguidores
de MARX, os seguidores de PROUDHON e os anarquistas.12
A agudização das lutas sociais acentua a hegemonia dos
primeiros. Não ocupando as cooperativas o centro das clivagens
entre as correntes referidas, não deixavam contudo de ser
encaradas em termos diferentes, por cada uma delas. Sem as
rejeitarem como elementos coadjuvantes, os marxistas não
deixavam de lhes apontar limitações. Mas nas resoluções do
Congresso de Genebra, realizado em 1866, pode ler-se:
“reconhecemos o movimento cooperativo como uma das forças
transformadoras da sociedade actual, baseada no antagonismo
de classes”.13
A agudização do combate político e das lutas sindicais,
que teriam pouco depois uma expressão extrema e dramática
na Comuna de Paris (1870), secundarizaram indirectamente
as cooperativas, em virtude da natural proeminência dos
combates frontais nas situações de conflito agudo.
Entretanto, a 1ª Internacional entra em crise e acaba por
desaparecer em 1876, na Conferência de Filadélfia.14 Foi preciso
que passassem mais de doze anos, para que o movimento
operário readquirisse uma expressão política internacionalmente
organizada. De facto, a 2ª Internacional foi fundada em Paris,
apenas em 1889.

12 Cf. KRIEGEL,1972:616 e ss.


13 Cf. MARX,1973:21-22.
14 Cf. KRIEGEL,1968:30 e ss.

19
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Enquanto a primeira foi, no essencial, uma organização


de associações de diversos tipos, fundamentalmente encaradas
em pé de igualdade, a segunda assume-se, predominantemente,
como uma internacional de partidos políticos. De uma certa
paridade simbólica entre os vários tipos de estruturas do
movimento operário, passou-se para uma clara supremacia dos
partidos políticos.15
O partido político passa, portanto, a ser a forma dominante
do combate operário. Dominante, mas não exclusiva. JAURÉS
recorreria à sugestiva metáfora dos três pilares, para tornar
ostensivo o carácter multifacetado do movimento operário.
E para o socialista francês os pilares eram precisamente: os
partidos políticos operários, os sindicatos e as cooperativas.16
Mas não era pacífica esta visão abrangente do movimento
operário. Muitos se deixaram absorver pela actualidade urgente
da luta política, pelo imediatismo dos combates sindicais,
menosprezando a energia transformadora das cooperativas,
menos ostensiva e, por isso, claramente, menos evidente.17
Esta secundarização das cooperativas encorajou a atitude
simétrica que se manifestou dentro do movimento cooperativo.
Alguns sectores foram pugnando com intensidade crescente
pela completa independência das cooperativas, perante as outras
componentes do movimento operário, em especial e naturalmente,
em face da componente dominante, os partidos políticos.
A esta dialéctica perversa da repulsão que estimula a
vontade de independência, que por sua vez encoraja a repulsão,
somou-se, como expressão vizinha do mesmo problema, a

15 Cf. KRIEGEL,1974:564.
16 Vejam-se a propósito da teoria dos três pilares: DESROCHE (1976:89)

e HENRY (1987:227).
17 Cf. DESROCHE, 1976:87.

20
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

contraposição entre o cooperativismo e o socialismo. Na verdade,


sendo os partidos políticos operários, na sua quase totalidade,
organizações que tinham como objectivo o socialismo; e sendo
as cooperativas a expressão nuclear do cooperativismo – era
natural que assim acontecesse.

3.4. O CASO DA FRANÇA

Em França, o movimento operário foi particularmente


fustigado pelas pulsões fragmentárias acima referidas, por
vezes, aliás assinaladas por episódios explícitos que fizeram
data.18 De facto, em 1879, no Congresso Operário de Marselha
consuma-se a ruptura com o cooperativismo. E desde então
seria absolutamente nítida a diferenciação, mesmo organizativa,
de duas grandes correntes cooperativas: de um lado, os
socialistas, do outro, os autonomistas.19
Em 1885, viria a ser criada a União Cooperativa das
Sociedades Francesas de Consumo, sob a égide doutrinária de
Charles GIDE, cristão social, destacado economista e grande
paladino da República Cooperativa. Em 1895, constituir-se-ia
a Bolsa Socialista das Sociedades Cooperativas, ligada ao
movimento socialista, que viria a aderir á Aliança Cooperativa
Internacional, em 1902.20
Nos dois campos, foram-se afirmando posições favoráveis
à reunificação. Do lado socialista, revelaram-se como protagonistas
particularmente destacados desta corrente de opinião, Jean
Jaurés21 e Marcel Mauss.22 Do lado oposto, Charles Gide foi

18 Cf. HENRY, 1987:147.


19 Cf. REBÉRIOUX, 1974:148 e ss.
20 Veja-se MAUSS, 1977:187 e ss.
21 Cf. HENRY, 1987:198.
22 Cf. MAUSS, 1977:187 e ss.

21
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

particularmente tenaz a pugnar pela reunificação.23 Em 1912,


o Congresso de Tours foi o da reunificação. Como então afirmou
um dos dirigentes mais destacados, Eugène Fournière: “Todos
os socialistas devem ser cooperadores, não para servirem o
seu partido, mas para realizarem todo o socialismo que a
cooperação contém”.24

3.5. AINDA A INGLATERRA

Voltemos, entretanto, à Inglaterra para dar relevo a mais


dois ou três tópicos. Em primeiro lugar, merece destaque a
emergência da proposta de uma Comunidade Cooperativa
(Cooperative Commonwealth). Surgiu impregnada por uma
alternatividade contraposta ao capitalismo. Baseava-se em
três vectores estruturantes: difundir os princípios e ideais
cooperativos; organizar o trabalho cooperativo em todos os
sectores; promover a educação.25
Em segundo lugar, não pode deixar de se assinalar a
realização do Congresso Cooperativo de Newport (1908),
cujo principal objectivo foi o de instituir a representação
cooperativa na Câmara dos Comuns. A proposta acabou por
ser recusada, mas o debate havido deixou importantes
sementes para o futuro.
Em terceiro lugar, há que recordar a fundação do Partido
Cooperativo, em 1919, o qual viria a estabelecer um acordo
com o Partido Trabalhista, em 1927, com base no qual tem
tido desde então deputados seus, eleitos para a Câmara dos
Comuns, sob a égide do Partido Trabalhista.26

23 Veja-se GIDE, 1974:100-101.


24 Cf. FOURNIÈRE, 1910:77.
25 Veja-se HORNSBY, 1988:77.
26 Cf. COSTA,1956:56 e ss. e ainda HORNSBY, 1988:77 e ss.

22
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

Ilustram bem a atmosfera ideológica, que envolvia então


o cooperativismo britânico, as afirmações do destacado dirigente
cooperativo, J.Tweddell, quando disse: “a cooperação, o
sindicalismo e o socialismo são três movimentos sociais
guiados por um mesmo ideal de melhoria da sociedade”, já
que “enquanto o objectivo perseguido pelo sindicalismo é o de
combater o capitalismo, o da cooperação é o de o substituir”,
sublinhando que havia, cada vez mais, quem olhasse “de facto
o socialismo como a cooperação triunfante, o Estado socializado
como coroamento do edifício cooperativo”.27

3.6. O CASO DA BÉLGICA

Quanto à Bélgica, importa chamar a atenção para a


centralidade do Partido Operário Belga como constelação de
organizações, no âmbito da qual a componente cooperativa
começou por ser a mais forte, até que, nos anos vinte do
século passado, a proeminência se deslocou para a componente
sindical.28
Daí resultaram dois tipos de consequências. Em primeiro
lugar, a estruturação do movimento cooperativo viria a obedecer
a eixos politico-ideológicos. Ao lado da cooperação socialista,
radicada no Partido Operário Belga, emergiu um movimento
cooperativo de raiz católica.
Em segundo lugar, não se colocou como problema prático
o risco de uma instrumentalização das cooperativas por focos
de poder exterior, embora integrados no movimento operário,
uma vez que pela sua força eram elas que podiam aspirar a
uma posição hegemónica, e não o contrário.29

27 Cf. TWEDDELL,1909:19.
28 Vejam-se DROZ, 1972:541; REBÉRIOX, 1974:322; PUISSANT,

1988:323.
29 Cf. PUISSANT, 1988:315.

23
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

3.7. O CASO DA ITÁLIA

No caso italiano, há que salientar o facto de o movimento


cooperativo se ter estruturado a partir de eixos político-
ideológicos ainda mais marcados.30
A componente socialista teve a sua expressão mais
relevante na Lega Nazionalle delle Cooperative, que foi uma
das organizações fundadoras da Aliança Cooperativa
Internacional.31 A inserção das cooperativas no movimento
operário foi bem ilustrada pelo facto de as cooperativas poderem
aderir enquanto colectivos, quer ao Partido Operário Italiano
(1885), quer ao Partido Socialista Italiano (1892).32
Também no fim do século XIX, surgiu como movimento
autónomo o cooperativismo católico,33 ainda hoje predominante-
mente expresso na Confecooperative.

3.8. O CASO DA ALEMANHA

Para concluir este brevíssimo percurso, através dos


principais lugares de origem do movimento cooperativo
moderno, é importante falar da Alemanha. Com um forte
movimento sindical, com o partido socialista que hegemonizou
a 2ª Internacional, o Partido Social-democrata Alemão (SPD),
a componente cooperativa foi claramente a menos relevante
da constelação operária.34

30 Surgiram assim quatro organizações cooperativas de âmbito nacional:

Lega Nazionalle delle Cooperative e Mutue, a AGCI (Associação geral das


cooperativas italianas), a Confecooperative (Confederação das Cooperativas
Italianas) e a UNCI (União nacional das Cooperativas Italianas).
31 Veja-se BRIGANTI,1988:200 e ss.
32 Cf. TREZZI, 1982:166; ZANGERI, 1987:166.
33 Cf. GUICHONET, 1974:269; ANCARANI, 1984:35.
34 Veja-se DROZ, 1972:408.

24
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

Em contrapartida, fora do movimento operário, o


cooperativismo agrário e camponês teve na Alemanha uma
especial pujança. Tendencialmente mais imediatista, procurou
prosseguir os interesses económicos dos respectivos membros,
conformando-se implicitamente com a perenidade do capitalismo.
Nele se destacaram, como figuras tutelares e pioneiras,
mas de tendências diferentes, Schulze-Delitzch e Raiffeisen.35
O primeiro, de orientação liberal, centrou-se particularmente
na cooperação de crédito, envolvendo artesãos e pequenos
comerciantes. O segundo, conservador de inspiração cristã,
apostou especialmente na intervenção nos meios rurais, também
com destaque para a cooperação de crédito.36

3.9. CONCLUSÃO

3.9.1. Com esta selecção de relances sobre o trajecto


inicial do movimento cooperativo, procurou tornar-se nítida a
pertença do movimento cooperativo ao movimento operário,
evidenciar-se como nele se enraizaram as experiências
cooperativas. Procurou mostrar-se como se entrelaçaram
tensões e problemas, como se teceu a autonomia da
cooperatividade sem a separar das suas raízes; ou seja, de
como a autonomia das cooperativas não suscitou a sua exclusão
da constelação que foi o movimento operário.
3.9.2. Neste contexto, vale a pena recordar o simbólico
ano de 1910, que merece uma particular referência por nele
terem decorrido dois importantes congressos internacionais,
cujas decisões têm a ver com o que estivemos a tratar.
Em Copenhague, decorreu o Congresso da 2ª Internacional,
onde foi reconhecida a autonomia do movimento cooperativo

35 Cf. EISENBERG, 1986:148 e ss.


36 Vejam-se ainda: DRIMER (1975:245) e DOWE (1988:27).

25
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

e a conveniência da unidade das forças cooperativas dentro de


cada país.
Em Hamburgo, decorreu o Congresso da Aliança
Cooperativa Internacional, que saudou expressamente a
resolução do Congresso Socialista, assumindo a oposição entre
o ideal cooperativo e o capitalismo.37
3.9.3. De tudo o que se acaba de dizer, resulta que a
pertença do movimento cooperativo ao movimento operário,
no sentido de ter tido nele a sua génese, de ter o seu código
genético por ele marcado, conduziu o cooperativismo a uma
conexão íntima com o socialismo.
A importância, quer dessa génese, quer dessa conexão,
não devem fazer esquecer que houve e há experiências
cooperativas socialmente muito distantes do movimento operário
e alheadas da luta pelo socialismo, mas que, no entanto, não
renegaram a matriz cooperativa consubstanciada nos princípios
de Rochdale.
A inserção das cooperativas no movimento operário e a
sua conexão com o socialismo estão longe de implicar uma
harmonia permanente e de conduzir a uma relação linear entre
elas e os outros tipos de organização oriundos desse movimento.
A matriz “rochdaleana” da identidade cooperativa reflecte
bem essa génese, não chocando com a conexão mencionada.

4 CONTRIBUTOS PARA A PROCURA DE UM HORIZONTE


COOPERATIVO

4.1. INTRODUÇÃO

4.1.1. O primeiro contributo que pode ser dado na busca


desse horizonte é o de nos interrogarmos sobre o sentido

37 Vejam-se: HENRY (1987:270) e WATKINS (1971:93).

26
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

que pode ter procurar atingir um horizonte cooperativo, ou


seja, procurar pensar o cooperativismo, valorizando o conceito
de horizonte.38
Olhar para o futuro das cooperativas, para o futuro do
movimento cooperativo, encarando-o como um horizonte de
renovação e de esperança, significa que se subalterniza a noção
de projecto cooperativo, por se considerar que é demasiado
fechada e redutora, e até excessivamente homogeneizante.
Nesse sentido, pode dizer-se que o conceito de projecto tem
uma vocação menos pluralista e de menor abertura do que o de
horizonte, estando mais sujeito a um excesso de voluntarismo,
que sucumba à facilidade de se esquecer do real.
Mas esse olhar significa também que o capitalismo não é
o fim da história, pelo que há muito se vem gerando dentro de
si próprio um pós-capitalismo.
E significa ainda que o fenómeno cooperativo se inscreve
no futuro como uma probabilidade ou, pelo menos, como uma
forte possibilidade, vocacionado para qualificar, apressar e até
antecipar esse futuro.
4.1.2. Se o cooperativismo realizar o essencial das suas
potencialidades históricas, incorporar-se-á decerto no pós-
capitalismo, como uma das suas partes integrantes. Em que
termos e em que medida, é o que poderemos imaginar, a partir
da realidade presente, do trajecto histórico que nos trouxe até
aqui e da ambição utópica a que não queremos renunciar.
Deve salientar-se que as potencialidades futurantes do
movimento cooperativo são naturalmente condicionadas pelo
seu código genético, pelo que não podem ser o resultado de
uma imaginação aleatória. Por isso, compreender-lhe a génese

38 Em 2001, saiu um livro de minha autoria, cujo título foi, precisamente:

Horizonte Cooperativo – política e projecto. Aí, nas páginas 5 e ss., pode


encontrar-se uma síntese dessa perspectiva.

27
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

e o sentido histórico, tal como se procurou fazer, é um elemento


decisivo para a qualificação da perspectiva futurante de um
horizonte cooperativo. Neste sentido, pode afirmar-se que é a
importância da imaginação cooperativa que valoriza o seu código
genético, o qual, reciprocamente, acaba por ser uma das mais
relevantes condições da eficácia dessa imaginação.
4.1.3. Para se situar e compreender a razão de ser da
ideia actual de um horizonte cooperativo, vale a pena recordar
três aspectos da história do século passado.
O fenómeno cooperativo foi instrumentalizado e
secundarizado, no quadro do modelo soviético.
A social-democracia e o socialismo democrático europeus
desconsideraram, na prática, a componente cooperativa.
O papel das cooperativas no processo de descolonização
e do desenvolvimento pós-colonial foi exíguo.
É certo que não se gerou, em nenhum dos três casos,
uma atitude anti-cooperativa, ostensiva e generalizada, tendo
até, pelo contrário, existido uma atmosfera de razoável simpatia.
Mas, na prática, foi recusado ao movimento cooperativo qualquer
papel estruturante e estratégico.
É certo que emergiu na doutrina cooperativa o conceito
de sector cooperativo como elemento necessário a uma
economia mista.39 Mas, sem menorizar a sua importância, até
como elemento mediador na emergência do conceito de
horizonte cooperativo, não se está perante algo de relevo
comparável ao dos três tópicos acabados de referir.

4.2. SENTIDO DE UM HORIZONTE COOPERATIVO

4.2.1. Para compreender melhor o sentido de um


horizonte cooperativo, deve valorizar-se o que há de específico

39 Veja-se FAUQUET, 1979:passim.

28
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

nas cooperativas. Anima-as um princípio activo que não é o


lucro, sendo por isso movidas por uma lógica própria.
Representam, em si mesmas, um enriquecimento cultural,
quer dos cooperadores enquanto indivíduos, quer delas próprias
enquanto experiências organizativas de um tipo particular. De
facto, a cooperatividade, embora valha pelos resultados a que
conduz, ou pelas externalidades solidárias que suscite, vale
também como experiência vivida, como reflexo e elemento de
propulsão endógena da mudança. Liga-a uma sinergia natural
às dinâmicas de natureza solidária. Qualifica a solidariedade,
afastando-a do assistencialismo.
4.2.2. Por isso, na actual fase da globalização capitalista,
as cooperativas vivem para um horizonte de resistência, estando
vocacionadas para uma globalização contra-hegemónica,
solidária, não predatória, emancipatória.40
A esta luz, é central a relação entre cooperativismo e
capitalismo. Pode dizer-se que o cooperativismo não poderá
dar todos os seus frutos, não poderá impregnar a sociedade
plenamente com a sua lógica, na vigência do sistema capitalista.
Nessa medida, o pleno desabrochar do cooperativismo implica
um pós-capitalismo. Por outras palavras, para se alcançar
plenamente um horizonte cooperativo é necessário ter-se
chegado a um pós-capitalismo.41
Naturalmente, não é esta uma posição pacífica no quadro
da doutrina cooperativa. Opõe-se-lhe a ideia de que o verdadeiro
sentido do cooperativismo é o de ser uma componente interna

40 Uma excelente ajuda para uma plena compreensão e enquadramento

da problemática da globalização, pode encontrar-se em Boaventura de Sousa


SANTOS, Os processos de globalização (p. 31-106), 1º Capítulo do livro
Globalização – fatalidade ou utopia?, (2001) por si organizado, que é o primeiro
volume da série A Sociedade Portuguesa perante os Desafios da Globalização.
41 Valorizando um outro ângulo de abordagem desta problemática, veja-se

PINHO, 1966:passim.

29
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

do próprio capitalismo, um factor de equilíbrio, pela função


compensatória que desempenha.
A sua génese, a sua lógica e a sua energia alternativa
tornam esta hipótese pouco sustentável, se for encarada como
hipótese exclusiva. No entanto, nada impede que se veja no
cooperativismo um elemento de compensação imediata de
algumas das consequências mais penalizadoras do capitalismo
e simultaneamente um alfobre de um futuro diferente. Aliás, a
cooperatividade é, em grande medida, uma combinação subtil
entre pragmatismo imediato e ambição utópica.
Neste sentido, o cooperativismo é uma síntese e uma
tensão entre pragmatismo e utopia, entre a utilidade imediata e
a alternatividade prospectiva. Ao propô-lo como horizonte pós-
capitalista, está a valorizar-se esta última vertente, tal como
ao sustentar-se a sua inserção completa no capitalismo se está
a valorizar a sua vertente pragmática e imediatista (ou, talvez,
a tentar reduzi-lo ao imediatismo, para o separar do futuro).
4.2.3. Também não parece convincente olhar para o
horizonte cooperativo como alternativa global ao capitalismo,
que disputa ao socialismo o preenchimento completo do pós-
capitalismo. Toda a sua história o afasta desta hipótese, já
que as vias que poderiam conduzir até aqui deixaram há muito
de ter quem as percorresse.42
Mais sentido parece ter, encará-lo como um dos aspectos
e um dos vectores de um horizonte socialista,43 principalmente
se assumirmos a procura deste último como um processo
complexo de permanente democratização da sociedade, distante
da exclusividade do protagonismo do Estado como seu

42 A propósito da conexão entre socialismo e cooperativismo, pode

ver-se SÉRGIO, 1947 e 1948: passim; e ainda NAMORADO, 2001:7 e ss.


43 Em 28 de janeiro de 1992, foi publicado no Jornal de Letras (Lisboa),

um texto meu, cujo título foi: Horizonte Socialista – valores, princípios, estratégia.

30
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

propulsor. Ou seja, se virmos no trajecto para um horizonte


socialista um processo de transformação endógena da sociedade
em que as práticas cooperativas assumem a dupla face de
procura do futuro e de uma das suas vivências antecipadas.
Se o vivermos como um processo de permanente irradiação
da igualdade, bem como da criatividade dos indivíduos e das
organizações; como um processo de permanente humanização
da sociedade, como o culminar de uma ecologia política.
4.2.4. Se o horizonte socialista for o rosto historicamente
afirmado do pós-capitalismo, do qual nos separa um processo
de amadurecimento democrático prolongado, isso implica
necessariamente o recurso ao reformismo como método de
transformação social.
Ora, o cooperativismo harmoniza-se bem com o reformismo.
O movimento cooperativo é um elemento aproveitável por qualquer
estratégia reformista, por implicar uma lenta sedimentação de
realizações sociais e económicas.
E assim se encontra mais um elemento de convergência
entre o cooperativismo e o socialismo, reforçando-se a ideia
de que o horizonte cooperativo é um elemento insubstituível
de um horizonte socialista.44
4.2.5. Num balanço final podemos pois afirmar que, se
o caminho para este horizonte não é apenas uma tarefa do
Estado, é natural que um protagonismo particular seja assumido
pelas entidades e pelas práticas que, não sendo públicas,
traduzem uma resistência à lógica capitalista dominante.
Se esse caminho for percorrido com base numa estratégia
reformista, a componente cooperativa insere-se nesse tipo de
estratégia com naturalidade.

44 Como exemplo de uma perspectiva diferente quanto à relação entre

cooperativismo e socialismo, pode ver-se LAVERGNE, 1971:passim.

31
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Se o horizonte socialista implica uma democracia nos


próprios processos produtivos, no próprio protagonismo
empresarial, então as cooperativas são um exemplo prático
desse tipo de funcionamento democrático.
Se esse horizonte reflecte também uma economia
social amadurecida e uma economia solidária em expansão,
as cooperativas integram esses conjuntos e participam
nessas dinâmicas.
Assim, conceber o horizonte cooperativo como aspecto
do horizonte socialista, inscreve-se adequadamente no
desenvolvimento histórico, não contraria as lógicas em jogo,
nem embaraça as dinâmicas em causa.

5 CONCLUSÃO

Procurei apresentar uma perspectiva a partir da qual se


pode valorizar o horizonte cooperativo como meta histórica e
como referência estratégica, ciente de que estive longe de
esgotar os temas abordados e de que podem ter escapado
tópicos relevantes. Nesta circunstância, espero ter conseguido,
pelo menos, agitar ideias e aventar hipóteses que valha a pena
explorar.
Entretanto, como conclusão de tudo o que disse, julgo
útil salientar que a ideia de um horizonte cooperativo implica
uma permanente abertura aos desafios concretos de cada
sociedade e uma ambição utópica sustentada quanto ao futuro.
Mas esta ousada ambição só ficará protegida de pulsões e
impulsos dissipatórios, se funcionar em completa consonância
com a identidade cooperativa, consubstanciada nos valores e
princípios assumidos pela Aliança Cooperativa Internacional.

32
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

BIBLIOGRAFIA

ANCARANI, Giovanni (1984), “Le Istituzioni Cooperative nella Storia della


Società Italiana”, in La Cooperazione per un Progetto della Società Italiana,
Milão, Franco Angeli.

BEDARIDA, François (1972), “Le socialisme anglais de 1848 à 1875”,


in Histoire Générale du Socialisme, (T.1), Paris, PUF.

BEDARIDA, François (1972), «Le socialisme en Angleterre jusqu’en


1848", in Histoire Générale du Socialisme (T.1), Paris, PUF.

BELLOCCHI, Ugo (org.)(1986), Il Pensiero Cooperativo dalla Bibia alla


Fine dell’ Ottocento, (Vols.I, II 3 III), Regio Emilia, Tencostampa.

BRIGANTI, Walter (1988), «I Rapporti fra I Cooperatori Italiani e Stranieri


e in Particolare fra la Lega Nazionale delle Cooperative e l’ACI», in Il
Movimento Cooperativo nella Storia d’Europa, Milão, Franco Angeli Editore.

COSTA, Fernando Ferreira da (1956), O Movimento Cooperativo Britânico,


Lisboa, Edição do Autor.

DESROCHE, Henri (1976), Le Projet Coopératif, Paris, Les Éditions Ouvrières.

DOWE, Dieter (1988), «Le unioni di cooperative commerciali, agrarie e di


consumo in Germania nel XIX e XX secolo», in Il Movimento Cooperativo
nella Storia d’Europa, 14Milão, Franco Angeli Editore.

DRIMER, Alicia Kaplan de e Bernardo DRIMER, (1975), Las Cooperativas –


Fundamentos – Historia – Doctrina, (2ª Ed.), Buenos Aires, Intercoop.

DROZ, Jacques (1972), “Les débuts du socialisme belge”, in Histoire


Générale du Socialisme (T.I), Paris, PUF.

DROZ, Jacques (1972), “Les origines de la social-démocratie allemande”,


in Histoire Générale du Socialisme (T.1), Paris, PUF.

14EISENBERG, Christiane (1986), «Il movimento cooperativo tedesco


(1850-1914): fattori di sviluppo economici e sociopolitici», in Le imprese
Cooperative in Europa, Pisa, Nistri-Lischi.

FAUQUET, Georges (1979), O Sector Cooperativo, Lisboa, Livros Horizonte.

FOURNIÈRE, Eugène (1910), L’Unité Coopérative, Paris, Marcel Rivière.

GIDE, Charles (1974), El Cooperativismo, Buenus Aires, Intercoop.

GUICHONNET, Paul (1974), «Le Socialisme italien des origines à 1914»,


in Histoire Générale du Socialisme vol.2), Paris, PUF.

33
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

HENRY, André (1987), Serviteurs d’Idéal – (T.1), Paris, Centre Fédéral/


FEN.

HOLYOAKE, Jorge J. (1973), Historia de los Pioneros de Rochdale,


Saragoça, AECOOP.

HORNSBY, Malcom (1988), “La cooperazione nel Regno Unito – 1886-


1986”, in Il Movimento Cooperativo nella Storia d’Europa, Milão,
Franco Angeli.

14JAURÉS, Jean (1977), “L’unité coopérative”, Archives Internationales


de Sociologie de la Coopération et du Développement, n.º 41-42, Paris.

KRIEGEL, Annie (1968), Las Internacionales Obreras, Barcelona, Ediciones


Martínez Roca.

KRIEGEL, Annie (1972), “L’Association Internationale des Travailleurs


(1864-1876)”, in Histoire Générale du Socialisme, (T. 1), Paris, PUF.

KRIEGEL, Annie (1974), «La IIe Internationale (1889-1914)», in Histoire


Générale du Socialisme (T. 1), Paris, PUF.

LAVERGNE, Bernard (1971), Le socialisme à visage humain (l’ordre


coopératif), Paris, PUF.

MACPHERSON, Ian (1996), Princípios Cooperativos para o Século XXI,


Lisboa, INSCOOP.

MARX, Karl (1973), “O Cooperativismo”, in Cooperativismo e Socialismo,


Coimbra, Centelha.

MAUSS, Marcel (1977), “Rapport sur les relations internationales”,


Archives Internationales de Sociologie dela Coopération et du
Développement, n.º 41-42, Paris.

MLADENATZ, Gromoslav (1969), Historia de las Doctrinas Cooperativas,


Buenos Aires, Intercoop.

MORLEY-FLETCHER, Edwin (1986), «Certezza per rischiare, competere


per cooperare: una introduzione», in Cooperare e Competere (vol. I), Milão,
Feltrinelli.

NAMORADO, Rui (1992), “Horizonte Socialista – valores, princípios,


estratégia”, Jornal de Letras, 28/01/1992, Lisboa.

NAMORADO, Rui (1995), Os Pri14ncípios Cooperativos, Coimbra, Fora


do Texto.

NAMORADO, Rui (2000), Introdução ao Direito Cooperativo, Coimbra,


Almedina.

NAMORADO, Rui (2001), Horizonte Cooperativo, Coimbra, Almedina. 14

34
COOPERATIVISMO – HISTÓRIAS E HORIZONTES

NAMORADO, Rui (2005), Cooperatividade e Direito Cooperativo, Coimbra,


Almedina.

PINHO, Diva Benevides (1962), Dicionário de Cooperativismo, São Paulo,


Universidade de São Paulo.

PINHO, Diva Benevides (1966), A Doutrina Cooperativa nos Regimes


Capitalista e Socialista, São Paulo, Livraria Pioneira Editôra.

PINHO, Diva Benevides (2004), O Cooperativismo no Brasil – da vertente


pioneira à vertente solidária, São Paulo, Editora Saraiva.

PUISSANT, Jean (1988), “La cooperazione in Belgio: una speranza


parzialmente delusa”, in Il Movimento Cooperativo nella Storia d’Europa,
Milão, Franco Angeli.

REBERIOUX, Madeleine (1974), “Le socialisme belge de 1875 à 1914”,


in Histoire Générale du Socialisme, (T.2), Paris, PUF.

REBÉRIOUX, Madeleine (1974), “Le Socialisme français de 1871 à 1914”,


in Histoire Générale du Socialisme, (T.2), Paris, PUF.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.) (2001), Globalização-fatalidade


ou utopia?, Porto, Edições Afrontamento.

SÉRGIO, António (1947), Alocução 14 aos Socialistas, Lisboa, Editorial


Inquérito.

SÉRGIO, António (1948), Confissões de um Cooperativista, Lisboa,


Editorial Inquérito.

THORNES, Robin (1988), “Change and continuity in the Develpment


of Cooperation, 1827-1844”, in New Views of Co-operation, Londres,
Routledge.

TREZZI, Luigi (1982), Sindicalismo e Cooperazione Dalla Fine


Dell’Ottocento All’Avento del Fascismo, Milão, Franco Angeli.

TWEDDEL, J. (1909), «La Représentation Coopérative au Parlement», in


Coopération et Socialisme en Angleterre, Paris, Librairie des Sciences
Économiques et Sociales Marcel Rivière.

VERDIER, R. (1974), Quelques Jalons de l’Histoire Coopérative,


Genebra, OIT.

WATKINS, William Pascoe (1971), L’Alliance Coopérative Internationale –


1970, Londres, ACI.

WATKINS, William Pascoe (1977), El Movimiento Cooperativo International,


Buenos Aires, Intercoop.

ZANGHERI, Renato (1987), «Nascita e primi sviluppi», in Storia del


movimento cooperativo in Italia, Turim, Giulio Einaudi editore.

35
36
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO:
EXPERIENCIA COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

Ainhoa Larrañaga*

RESUMO: O presente texto tem por RESUMEN: El presente texto tiene por
objetivo apresentar brevemente a origem objetivo presentar brevemente cual ha
da Experiência Cooperativa de Mondragón sido el origen de la Experiencia Cooperativa
(ECM) e quais são os desafios atuais do de Mondragón (ECM) y cuales son los
movimento cooperativo. Depois, exporá retos actuales del movimiento cooperativo.
os elementos mais estacáveis da legislação Después, expondrá los aspectos más
cooperativa vasca, destacando que o dito relevantes de la legislación cooperativa
instrumento legal oferece elementos que basca, destacando que el dicho instrumento
tornaram mais fácil criar uma rede forte legal ofrece elementos que han hecho más
de cooperativas que, sem ferir a autonomia fácil crear una red fuerte de cooperativas
de cada uma, soube unir forças e que, sin herir la autonomía de cada una, ha
aproveitar as potencialidades de cada sabido aunar fuerzas y aprovechar las
empreendimento, embora tenha criado potencialidades de cada emprendimiento,
um cooperativismo criticável em certos aunque ha creado un tipo de cooperativismo
aspectos. com aspectos criticables en ciertos aspectos.

PALAVRAS-CHAVE: cooperativa; Movimento PALABRAS-CLAVE: cooperativa; Movimiento


Cooperativo de Mondragón. Cooperativo de Mondragón.

* Investigadora de Lanki, Mondragón Unibertsitatea.

37
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

‘No hemos de seguir pensando que los trabajadores han


de ser siempre ciudadanos de segunda categoría, (…)
sino que hay que darles acceso a la propiedad de los
bienes económicos, de los capaces de reproducirse, al
objeto de que disfruten de los resultados de su propia
austeridad y sacrificio’.

Don Jose Maria Arizmendiarreta (DJMA)

INTRODUCCIÓN

La presentación de hoy tiene como objetivo exponer


brevemente cual ha sido el origen de la Experiencia Cooperativa
de Mondragón (ECM) y principalmente, me detendré en los
retos actuales del movimiento cooperativo. Por otro lado
expondré cuales son los elementos más destacables de la
legislación cooperativa vasca; ley que viene a dar respuesta,
entre otras, a las necesidades del grupo Mondragón Corporación
Cooperativa (MCC).
La ley 4/93 de Cooperativas de Euskadi (modificada por
la le 1/2000 de modificación de la Ley de Cooperativas de
Euskadi) se puede considerar la mejor ley de cooperativas de
todo el estado español. Pienso, que es una ley que está a
caballo entre las legislaciones cooperativas tradicionales
(latinoamericanas principalmente) y el Estatuto de la Sociedad
Cooperativas Europea.
Para finalizar esta breve introducción, me gustaría recalcar,
que la ley ha ofrecido instrumentos a la ECM, para poder
desarrollar mejor su proyecto empresarial; el grupo cooperativo
encuentra en la LCE elementos que han hecho más fácil crear
una red fuerte de cooperativas , que manteniendo su autonomía
han sabido aunar fuerzas y aprovechar las potencialidades de
cada cooperativa. Por otro lado, se ha creado un tipo de

38
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

cooperativa que aunque tiene aspectos criticables, puede facilitar


la creación de cooperativas fuera del País Vasco. Los diferentes
tipos de socios que contempla la ley también han ayudado al
cooperativismo vasco, ya que han posibilitado la participación
de otros protagonistas en el proyecto.

1 HISTORIA Y RETOS ACTUALES DE LA ECM

Actualmente Mondragón Corporación Cooperativa (MCC)


es el primer grupo industrial en la Comunidad Autónoma Vasca
(CAV), tanto por sus ventas como por el número de trabajadores,
y el séptimo en el Estado español, en base a la variable de la
cifra de ventas, así como una de las realidades cooperativas
más importantes y estudiadas en el ámbito internacional.
Se trata de una realidad socio-económica configurada
por más de 150 empresas que desarrollan actividades muy
diversas. La corporación agrupa una cooperativa de crédito,
una mutua de previsión social, un grupo de empresas
industriales y de distribución con negocios de diversa naturaleza,
así como otras entidades dedicadas a la formación e
investigación. Por otra parte, la mayor parte de las sociedades
que la integran son cooperativas, pero también existen otro
tipo de sociedades como pueden ser fundaciones, sociedades
anónimas o sociedades limitadas.
El alma mater de la Experiencia Cooperativa de Mondragón
fue Don Jose Maria Arizmendiarreta (1915-1976). Sus últimos
años después de una larga e interesante trayectoria de vida,
los pasó en Mondragón, compaginando las labores parroquiales
y sociales con la colaboración en iniciativas empresariales. Su
pensamiento bebió de diferentes movimientos y corrientes como
pueden ser la religión, la filosofía, la sociología, la economía o
la política.

39
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Cuando Don Jose María llega a Mondragón, la localidad


sufría las consecuencias de una guerra civil en la que la situación
describía un panorama desolador: muertos, exiliados, heridos
y mutilados, hambre…
Don José María no se limitó a criticar y denunciar, sino
que hizo propuestas y las puso en marcha (prueba de ello es la
Experiencia Cooperativa de Mondragón); fue pensador y actor
al mismo tiempo.
Los conceptos clave del pensamiento de DJMA, los
podríamos enumerar de la siguiente manera:
• Persona y comunidad.
• Auto-emancipación, auto-organización y autogestión.
• Equilibrio entre la racionalidad tecno-económica y la
racionalidad ético-social.

Su estrategia era la de transformar la conciencia y, a partir


de ahí, transformar las estructuras, a través de la formación, el
trabajo, la solidaridad, la cooperación y la participación. Todos
ellos conceptos interrelacionados e interdependientes.
La primera cooperativa del movimiento, fue la escuela
profesional que se inauguró en octubre de 1943, y más tarde
vendría la primera cooperativa industrial ULGOR (hoy en día
Fagor Electrodomésticos).
Entre los años 1955 a 1963 se crearon seis cooperativas
industriales Ulgor, Funcor, Arrasate, Lana, Urssa y Vicon; una
entidad financiera, Caja Laboral Popular / Lankide Aurrezki Kutxa
y una entidad de cobertura social, Lagun Aro.
Posteriormente vinieron años de gran creación y
promoción cooperativa, para luego tener que pasar años de
fuerte crisis económica.

RETOS A FUTURO

Vamos a señalar los cambios acaecidos desde los orígenes


de la experiencia y las consecuencias que han tenido en la
identidad cooperativa del grupo.

40
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

En los primeros años del cooperativismo de Mondragón,


podemos decir que en el contexto político reinante, la
experiencia era un islote democrático; hoy en día, al contrario
es un espacio más. El fortalecimiento de lo público ha
conllevado, un estado del bienestar que cubre nuestras
necesidades, en aquel entonces, eran necesarias las redes de
autoayuda. Por otro lado, de un contexto de autarquía hemos
pasado a una situación en la que la globalización nos impone
retos a veces difíciles de gestionar. En relación a darle respuesta
a las necesidades que existían, era muy eficaz el sistema
cooperativo (estaba todo por hacer: responsabilidad social,
participación de los trabajadores…); hoy resulta más difícil de
justificar (las necesidades están cubiertas). Hemos pasado de
una cultura de fuerte militancia ideológica, ha una sociedad
donde reina el individualismo.
En cuanto a los cambios ocurridos en las tendencias
estructurales, podemos citar las siguientes: debilitamiento de
la pedagogía cooperativa, debilitamiento de los asideros
ideológicos, fortalecimiento de la lógica económico-empresarial
y de la tecnocracia, y además debemos señalar que se está
dando una indiferenciación con el resto del mundo empresarial.
Procesos concretos identificados como retos en las
cooperativas son: apertura del abanico salarial, ralentización
de la promoción cooperativa, el aumento de los trabajadores
eventuales y no socios, el proceso de internacionalización y el
enfriamiento democrático.
Para finalizar quisiera volver a repetir que en general,
vivimos un proceso de indiferenciación entre la empresa
capitalista y la cooperativa. Las empresas de capital están
impulsando políticas participativas en la gestión y en la
propiedad: le están dando una gran importancia al tema de la
responsabilidad social. Si a eso le sumamos los retos de las
cooperativas que acabamos de citar, vemos que cada vez es

41
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

más urgente una reflexión a cerca de lo que somos, lo que no


somos, a donde vamos…
A modo de conclusión podemos decir que las asignaturas
pendientes de la ECM, son las siguientes:
• Crecer económicamente pero aplicando criterios
democráticos; en la era de la globalización es cada
vez mayor la brecha que separa economía y la
política-democracia
• Crecer aplicando criterios sociales; es decir, teniendo
en cuenta el bienestar de los cooperativistas, el respeto
a su vida privada y al tiempo libre, la no explotación
de los trabajadores asalariados…

2 ELEMENTOS DESTACABLES DE LA LEY 4/1993, COOPERATIVAS


DE EUSKADI

Antes de nada me gustaría señalar que la LCE ha sido un


referente claro para otras legislaciones cooperativas del estado
español. La ley satisface básicamente el en ocasiones difícil
equilibrio entre mantener la identidad cooperativa y abordar
los retos empresariales con una cobertura legal sin la cual
hubieran tenido dificultades de encaje y desarrollo para el
desempeño de su actividad de forma eficiente. La ley objeto de
análisis fue modificada por la Ley 1/2000, de 29 de junio, de
modificación de la ley de cooperativas. Está última, entre otras
modificaciones introdujo la figura de socio de duración
determinada, que más tarde analizaremos.
La competencia en materia cooperativa corresponde a la
Comunidad Autónoma del País Vasco. La competencia
legislativa, nos ha ofrecido la oportunidad de hacer una ley
que responde de manera óptima a las necesidades del grupo
cooperativo de Mondragón. Puede haber quién diga que es

42
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

una ley que ha querido contentar a MCC, dejando al margen,


necesidades de cooperativas pequeñas (agrícolas) u otras
cooperativas que no pertenecen al grupo.
Junto a la capacidad de legislar contamos con un Registro
de Cooperativas situado en el Departamento de Trabajo y
Seguridad Social del Gobierno Vasco. El hecho de que el
órgano rector (protectorado) se encuentre en el País Vasco, ha
posibilitado que la relación y el funcionamiento sean más fluidas
y cercanas. E incluso, un tema que consideramos de gran
importancia, ha hecho que las relaciones tanto verbales como
escritas se hayan podido materializar en euskera (lengua vasca).
Por todo lo anteriormente expuesto, pensamos que en la
historia de la legislación cooperativa vasca ha sido y es de vital
importancia el haber tenido la competencia en materia
cooperativa en la CAV.
En la elaboración de la ley, la influencia del grupo
cooperativo de Mondragón ha sido cuantitativa y cualitativamente
muy importante. La ley ha venido dando respuesta a los retos
que se le planteaban al grupo y esa ha sido la manera en la ley
ha madurado.
Sería interesante analizar, cual es la vía que últimamente
esta tomando la LCE, e incluso valorar cuales están siendo las
aportaciones que desde MCC, se le están haciendo al Estatuto
de Sociedades Cooperativas Europeas. Cuestiones ambas que
considero de vital importancia, a la hora de mantener el antes
citado equilibrio entre la identidad cooperativa y los retos
empresariales que plantean.
En las páginas que siguen a continuación, voy a destacar
los puntos de la ley, que creo interesantes. Y dejaremos para
más adelante, el estudio de otros aspectos que no se han tratado
pero que son de vital importancia a la hora de ofrecer instrumentos
legales, con el objetivo de vitalizar el cooperativismo.

43
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

REQUISITOS PARA LA CONSTITUCIÓN DE COOPERATIVAS

Si observamos la evolución de la ley en cuanto a los


requisitos necesarios para la constitución de la cooperativa,
debemos constatar que las iniciativas últimas han venido
encaminadas a flexibilizar y sobre todo, a facilitar la constitución
de cooperativas.
La Ley 1/2000 ha introducido entre otras dos modificaciones
muy importantes en cuanto a la constitución. Ha reducido el
número mínimo de socios de cinco a tres; este requisito venía
siendo durante años un inconveniente que dificultaba la
constitución de la cooperativa, puesto que se daban casos en
los que no se conseguía reunir el mínimo de cinco y no
prosperaba el intento de creación de la cooperativa.
En el caso de las cooperativas de segundo grado, se
exige, que entre los socios fundadores dos sean cooperativa.
Como consecuencia de esta reducción, vino otra relativa
al capital social mínimo, que pasó de seis mil euros a tres mil.
Estas dos modificaciones han hecho que sea mucho más fácil
la creación de las cooperativas en la CAV.
Las demás modificaciones introducidas por la ley, en las
que no nos vamos a extender también han venido ha facilitar
el camino de las cooperativas, tanto al inicio de la andadura
como en su posterior funcionamiento.

SOCIOS

En el grupo cooperativo de Mondragón nos encontramos


con cooperativas que cuentan con diferentes clases de socios,
y cada uno de estos socios colabora en el proyecto de manera
diferente, siendo la aportación de cada uno de ellos
imprescindible para el éxito de cada una de las cooperativas.
El socio que aporta su trabajo es el ‘socio de trabajo’. Es
la aportación de su trabajo la condición que le hace ser partícipe

44
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

de la empresa, y es en la mayoría de los casos quien mayor


peso y responsabilidad adquiere.
Dice la ley:

‘en las cooperativas de primer grado que no sean de trabajo


asociado, y en las de segundo o ulterior grado, los Estatutos
podrán prever los requisitos por los cuales los trabajadores
podrán adquirir la cualidad de socios de trabajo, consistiendo
su actividad en la prestación de su trabajo personal en
la cooperativa’.

Existe en la ley un limite relacionado con el número máximo


de trabajadores asalariados que puede haber en una cooperativa.
Este límite ha sido modificado con la introducción de la figura
del socio de duración determinada. Debemos señalar que a
veces las cooperativas tienen serias dificultades para respetar
el límite impuesto por la ley.
En cuanto al la cobertura social de los socios de trabajo,
debemos decir que la ley ofrece la posibilidad de que los socios
de trabajo estén o en el Régimen General de la Seguridad
Social o en el Régimen Especial de Autónomos. La opción
tanto por un tipo de cobertura o por el otro, la debe de hacer
toda la empresa, es decir no son opciones individuales. Pero
en la gran mayoría de las cooperativas del grupo, además de
estas opciones existe la cobertura de Lagun Aro (entidad de
previsión social), aunque en la actualidad este atravesando un
periodo de transición un tanto especial.
El ‘socio usuario’ es quien utiliza los servicios o bien
consume los productos que ofrece la cooperativa. La
participación del usuario es importante en la medida en la que
suele ser el mejor cliente de la empresa, por lo que interesa
tenerle en los órganos de decisión de la cooperativa. Esta
clase de socio adquiere verdadero protagonismo en las
cooperativas de enseñanza. En la actualidad existen cooperativas

45
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

de enseñanza que bien pueden ser ‘de trabajo asociado, ‘de


consumo’ o ‘integrales’, y en este tipo de centros el papel de
los usuarios (padres o alumnos), es primordial. Incluso se dan
casos en el que el peso del centro lo llevan ellos.
Aunque con menor nivel de compromiso está la figura
del ‘socio colaborador’. En este caso hablamos de aquellas
personas, públicas o privadas, que, sin poder realizar plenamente
el objeto social cooperativo, pueden colaborar en la consecución
del mismo. El conjunto de estos socios, salvo que sean
sociedades cooperativas, no podrá ser titular de más de un
tercio de los votos, ni en la Asamblea General ni en el Consejo
Rector. A veces puede resultar interesante la figura del
colaborador cuando la cooperativa no es muy fuerte pero hay
instituciones cercanas que interesa que colaboren.
Existe además la figura del ‘socio inactivo’. Cuando
alguien por cualquier causa justificada, y con la antigüedad
mínima que los estatutos establezcan, dejen de utilizar los
servicios prestados por ó a la cooperativa, podrán ser
autorizados para mantener su condición de socios. A parte de
los casos de jubilación suele ocurrir cuando alguien con un
vínculo afectivo con la cooperativa suele querer mantener su
condición de socio.
Por último, cabe hablar de la última tipología introducida
por la Ley 1/2000, es decir del ‘socio de duración determinada’.
La Ley 1/2000 da la siguiente redacción al artículo 4,
que habla de esta figura:

‘La pertenencia del socio a la cooperativa tendrá carácter


indefinido.
No obstante, si lo prevén los Estatutos y se acuerda en el
momento de la admisión, podrán establecerse vínculos sociales
de duración determinada. Los derechos y obligaciones propios
de tales vínculos serán equivalentes a los de los demás socios
y serán regulados en los Estatutos (….)

46
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

Esta nueva clase de socio fue aplaudida por el movimiento


cooperativo, en cuanto que ofrecía la posibilidad de hacer socio
a un trabajador por cuneta ajena, pero con carácter temporal.
Por lo que ofrecía la oportunidad, de una vez transcurrido un
período como máximo de cinco años, romper el vínculo societario.
Fue criticado a su vez por autoridades administrativas,
alegando que con esta figura lo único que se conseguía era
alargar la temporalidad de los trabajadores. Además, una vez
transcurrido el período estipulado en los estatutos de cada
cooperativa, no hacía falta alegar ninguna causa para rescindir
el vínculo societario con la cooperativa. La situación del socio
temporal era bastante precaria, en el sentido que en el período
transcurrido en la cooperativa no se había cotizado para poder
obtener la prestación de desempleo. Por lo que una vez fuera
de la cooperativa no tenía posibilidades de cobrar el paro.
Para concluir con el comentario de esta figura, podemos
decir que la valoración que hacemos a día de hoy es distinta
según la utilización que se haya hecho de los socios de duración
determinada. Ha habido cooperativas que han hecho un buen
uso de la figura y la han utilizado como verdadero período de
prueba. Pero también es verdad, que ha habido quien ha
abusando de la temporalidad que ofrecía la figura.

TIPOS DE COOPERATIVAS

En cuanto a las diferentes tipos de cooperativas, señalar


que son muchas las clases de cooperativas que existen en
Euskadi pero únicamente nos detendremos en el análisis de la
‘cooperativa mixta’, por ser una de las grandes singularidades
que ofrece la ley.
El artículo 136 de la LCE dice así:
1. ‘Son cooperaivas mixtas aquellas en las que existen socios
minoritarios cuyo derecho de voto en la Asamblea General se
podrá determinar, de modo exclusivo o preferente, en función

47
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

el capital aportado, que estará representado por medio de


títulos ó anotaciones en cuenta, sometidos a la legislación
reguladora del mercado de valores’.

2. En estas cooperativas el derecho de voto en la Asamblea


General respetará la siguiente distribución:
a. Al menos el cincuenta y uno por ciento de los votos se
atribuirá, en la proporción que definan los Estatutos, a
socios cooperadores.
b. Una cuota máxima, a determinar estatutariamente, del
cuarenta y nueve por ciento de los votos se distribuirá en
partes sociales con voto, que, si los Estatutos lo prevén,
podrán ser libremente negociables en el mercado.

3. En el caso de las partes sociales con voto, tanto los derechos


y obligaciones de sus titulares como el régimen de las
aportaciones se regularán por los Estatutos y, supletoriamente
por lo dispuesto en la legislación de sociedades anónimas para
las acciones.

Si nos remitimos a lo dispuesto en el artículo de la LCE,


vemos que la cooperativa mixta posee una parte cooperativa,
que siempre tiene que ser mayoritaria, junto a otra parte, que
según dice el artículo, se regula en base a la legislación de
sociedades anónimas. La cooperativa mixta ha venido a cubrir
la necesidad que las cooperativas tenían para inyectar capital
en la empresa. Aunque el recorrido de esta figura es breve
todavía, podemos valorar como aspecto positivo la posibilidad
que ofrece para mantener el poder de decisión en manos de la
parte inversora.
En los casos en los que una cooperativa crea una empresa
con un alto esfuerzo económico es normal, que en los primeros
años de andadura no se quiera perder el poder de decisión en
la empresa. Por lo tanto, suele interesar mantener una mayoría
en manos de quien ha realizado la inversión. Esta figura ha
posibilitado que aunque en un futuro pase la cooperativa a

48
LEGISLACIÓN Y COOPERATIVISMO: EXPERIENCIA
COOPERATIVA DE MONDRAGÓN

manos del trabajador, los primeros años, manteniendo la forma


de cooperativa (sin tener que adquirir una forma societaria de
capitales), quede la capacidad de decisión mayoritaria en manos
de la cooperativa matriz.
Desde mi punto de vista aún reconociendo que es una
forma híbrida de cooperativa, puede facilitar la creación de
cooperativas. Habría que valorar que aunque parte de la empresa
se rige por medio de la legislación capitalista siempre impera la
parte cooperativa, y puede ser una buena opción para crear
cooperativas en las empresas filiales de MCC, que siempre
encuentran impedimentos en las legislaciones extranjeras.
Han quedado muchos puntos de la ley por analizar. Temas
pendientes cara a futuro podrían ser: el régimen económico y
fiscal, todo lo relativo a la relación de trabajo de los socios, los
órganos sociales de la cooperativa, la regulación de la ley en
cuanto a grupos cooperativos, empresas participadas,…
Para acabar y en cuanto al régimen fiscal de cooperativas
se refiere, cabe decir que existe un régimen privilegiado para
las cooperativas, en cuanto entidades sin ánimo de lucro.
Incluso hace cinco años se regulo una nueva figura, la
cooperativa de ‘utilidad pública’ para la que el régimen viene a
ser el mismo que para las fundaciones, es decir el régimen
fiscal que mejor protege las figuras no capitalistas, y entidades
sin ánimo de lucro.

49
50
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’:
UMA CRÍTICA MARXISTA

Claus Germer*

RESUMO: Este artigo constitui uma crítica RESUMEN: Este artículo constituye una
às concepções de economia solidária crítica a las concepciones de economía
de Paul Singer, concentrando-se em solidaria de Paul Singer, concentrándose
dois aspectos, considerados essenciais, en dos aspectos, considerados esenciales,
tanto do ponto de vista teórico quanto tanto del punto de vista teórico cuanto
histórico: o primeiro diz respeito à histórico: el primero dice respecto a la
concepção fantasiosa da história das lutas concepción fantasiosa de la historia de
dos trabalhadores pelo socialismo como las luchas de los trabajadores por el
uma história do desenvolvimento de uma socialismo como una historia del
economia solidária; o segundo está desarrollo de una economía solidaria; el
voltado ao confronto da concepção da segundo se vuelve al confronto de la
cooperativa de produção como forma concepción de la cooperativa de producción
típica do modo de produção solidário como forma típica del modo de producción
com as concepções dos autores solidario con las concepciones de los
clássicos do marxismo sobre o papel autores clásicos del marxismo acerca del
do cooperativismo. papel del cooperativismo.

PALAVRAS-CHAVE: economia solidária; PALABRAS-CLAVE: economía solidaria;


marxismo; papel do cooperativismo. marxismo; papel del cooperativismo.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento


Econômico da UFPR – Universidade Federal do Paraná. Curitiba (PR), Brasil.

51
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

INTRODUÇÃO

A crise mundial iniciada nos anos 1970 e a inflexão


neoliberal que se seguiu, a partir do início da década seguinte,
produziram taxas elevadas e persistentes de desemprego e índices
crescentes de pobreza na maioria dos países capitalistas
desenvolvidos, mas principalmente nos países da periferia. No
campo dos movimentos sociais, com o refluxo momentâneo
dos projetos socialistas a partir da desagregação da União
Soviética, difundiram-se propostas de reforma social com base
na solidariedade mútua e no associativismo dos pobres,
configurando um certo retorno às concepções limitadas da fase
inicial das lutas operárias surgidas nas primeiras décadas do
século 19. Ao mesmo tempo, partidos de diversos matizes de
centro-esquerda cresceram eleitoralmente como oposição aos
governos neoliberais, mas, ao serem eleitos como reação popular
aos problemas sociais causados pelo neoliberalismo,
demonstraram não possuir projetos alternativos concretos e
procuraram encobrir esta deficiência com a instituição de políticas
emergenciais de atendimento a desempregados e pequenos
produtores autônomos e informais. Essas políticas emergenciais
oficiais somaram-se e (ou) fundiram-se, em alguma medida, com
as iniciativas associativas espontâneas surgidas no movimento
social, constituindo uma corrente heterogênea de propostas e
iniciativas concretas sob o título genérico de ‘economia solidária’.
No interior desta corrente surgem tentativas de teorizar
a ‘economia solidária’ não apenas como um conjunto de
iniciativas emergenciais destinadas a amenizar os efeitos de
problemas sociais, mas como embriões de uma forma de
organização social alternativa ao capitalismo, ignorando a crítica
marxista. No Brasil as iniciativas capituláveis como integrantes
da ‘economia solidária’ têm se expandido significativamente,
tanto na forma de iniciativas sociais espontâneas como de

52
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

políticas oficiais. Entre os autores que se destacam como


intérpretes deste heterogêneo campo, Paul Singer diferencia-se
pela tentativa de teorizar a economia solidária com base em
alguns elementos da teoria social marxista, concebendo-a
como uma forma social alternativa ao capitalismo sob o título
especificamente marxista de novo ‘modo de produção’.
Este artigo constitui uma crítica às concepções de Singer,
concentrando-se em dois aspectos, considerados essenciais,
tanto do ponto de vista teórico quanto histórico: em primeiro
lugar, à concepção fantasiosa da história das lutas dos
trabalhadores pelo socialismo como uma história do
desenvolvimento da economia solidária; em segundo, confronta-
se a concepção da cooperativa de produção como forma típica
do ‘modo de produção solidário’, com as concepções dos
autores clássicos do marxismo sobre o papel do cooperativismo.
É preciso alertar para o fato de que os escritos de Singer
sobre a ‘economia solidária’ possuem características que tornam
difícil a crítica. Por um lado, o autor não se esforça em precisar
os fundamentos teóricos das suas teses e propostas e dos
conceitos que utiliza. O autor faz uso de conceitos marxistas
sem se ater ao seu sentido original e sem chamar a atenção do
leitor para o sentido alterado que lhes dá. Por outro lado,
Singer muda de opinião sobre pontos específicos do tema, de
um escrito a outro, sem aparentemente preocupar-se em evitar
afirmações contraditórias e, quando incorre nelas, não adverte
para a mudança de opinião nem explica os seus motivos.

O ASPECTO HISTÓRICO

Singer parece empenhado em reescrever a história das


lutas dos trabalhadores pelo socialismo, nos últimos 200 anos,
como se ela constituísse uma história do desenvolvimento

53
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

progressivo da ‘economia solidária’, em especial da cooperativa


de produção, sua forma típica, segundo o autor.1 O elemento
histórico verdadeiro desta versão é que as lutas anticapitalistas
dos trabalhadores tiveram início há quase 200 anos, isto é,
nas primeiras décadas do século 19. Mas não é verdade que a
formação das cooperativas tenha sido a forma de luta única
ou predominante, ou que a luta pela formação de cooperativas
de produção tenha constituído o eixo central das lutas do
proletariado contra o capitalismo a partir desta época até os
dias de hoje. A fim de dar destaque ao equívoco histórico
no qual Singer incorre, é necessário expor, mesmo que
sumariamente, as grandes fases que podem ser identificadas
na história da luta do proletariado mundial contra o capitalismo.
A primeira fase estende-se aproximadamente do início
do século 19 até 1848. Abstraindo a resistência espontânea
milenar dos explorados de todos os tempos contra os seus
opressores, as lutas dos trabalhadores contra o caráter
especificamente capitalista da exploração sofrida iniciaram-se
na primeira metade do século 19. Como todo início, tiveram
uma base estreita e imediatista. Os trabalhadores ainda não
haviam tomado consciência da sua identidade como classe
social distinta das demais e de cujas condições objetivas de
existência emergia um projeto próprio de sociedade, oposto
ao capitalismo. Neste início os trabalhadores não se dedicaram
apenas a formar cooperativas. Entre os fatos detacados do
período a história registra a sua reação instintiva destruindo

1 SINGER, Paul. “Economia solidária: um modo de produção e


distribuição”. In: SINGER, Paul e SOUZA, André Ricardo. A economia solidária
no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto,
2003, p.13. “A ‘economia solidária’ é o projeto que, em inúmeros países há
dois séculos, trabalhadores vêm ensaiando na prática e pensadores socialistas
vêm estudando, sistematizando e propagando” (Ibidem, p. 14). A história real
contradiz claramente esta fantasiosa opinião.

54
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

máquinas, que consideravam culpadas pelo infortúnio do


desemprego, e as primeiras tentativas de formação de
sindicatos. O fenômeno cooperativista, nesse período,
apresenta-se sob duas formas. Por um lado, era o subproduto
das lutas práticas dos trabalhadores, que ocupavam fábricas
falidas e tentavam convertê-las em cooperativas, como reação
defensiva diante do desemprego causado pelas crises
industriais, enquanto, por outro lado, constituía a base de
utopias sociais elaboradas por intelectuais brilhantes (como
Fourier e Saint-Simon) e mesmo por industriais de prestígio
(caso de Owen). Essa primeira fase da luta pelo socialismo é
a fase do socialismo utópico, expressão com a qual Marx e
Engels caracterizaram as propostas de reforma social então
surgidas e que expressavam as aspirações pessoais de
indivíduos bem intencionados, ao invés de constituírem
expressões teóricas das tendências de mudança surgidas
espontaneamente no desenvolvimento real da sociedade.
Singer, parecendo querer antecipar-se à crítica baseada nessa
caracterização de Marx e Engels, afirma que ‘a economia
solidária não é a criação intelectual de alguém...’, mas é, ao
contrário, ‘uma criação em processo contínuo de trabalhadores
em luta contra o capitalismo’.2
Segundo Singer, esse período constituiria a “fase inicial”
da história da ‘economia solidária’, que denomina
“cooperativismo revolucionário”,3 que “já se arvorava como
modo de produção alternativo ao capitalismo”.4 Singer parece
não distinguir as iniciativas práticas dos trabalhadores das

2 Idem, p. 13.
3 SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação

Perseu Abramo, 2002, p.35.


4 Idem, p. 33.

55
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

propostas teóricas de intelectuais preocupados com o


agravamento da questão social. Esta opinião causa estranheza,
uma vez que o cooperativismo desse período foi antes utópico
do que revolucionário, como o demonstram as concepções
dos seus mais destacados pregadores na época, Fourier e
Owen. 5 Seria um equívoco deduzir o suposto caráter
revolucionário dessas cooperativas do fato de uma parte delas
ser constituída em fábricas ocupadas pelos trabalhadores.
Apesar de importantes, esses processos consistiam antes em
reações defensivas dos trabalhadores em situações críticas do
que em desdobramentos de projetos conscientes de socialização
de meios de produção. Nessa primeira fase, com efeito, a luta
contra o capitalismo era concebida como uma luta travada no
campo estritamente econômico, o que se pode atribuir, por
um lado, ao desconhecimento, por parte dos trabalhadores,
da conexão entre a esfera econômica e a da ideologia, da
política, da cultura e, no ápice do estrutura social, do poder
social concentrado no Estado e monopolizado pela classe
proprietária dos meios de produção. Por outro lado, isto pode
ser atribuído, em certa medida, à separação ainda existente
entre as lutas práticas dos trabalhadores e as elaborações de
caráter utópico, por parte de intelectuais.6
A segunda fase, que se inicia em 1848, caracteriza-se
pelo fato de que o proletariado intervém no processo social
como classe consciente da sua própria identidade social e
política. Nessa fase o proletariado, como classe, supera as
limitações iniciais, graças à fusão das lutas práticas dos

5MACKENZIE, N. Breve historia del socialismo. Barcelona: Editorial


Labor, 1969, p.26-7, 32-35.
6A relevância desse aspecto da questão foi desenvolvida por Lênin em
Vladimir Ilitch Lênin. Que fazer? In: LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras Escolhidas,
vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.

56
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

trabalhadores com as lutas teóricas de intelectuais socialistas,


dando origem ao socialismo moderno, baseado na ciência da
história e na estrutura e movimento reais da sociedade. Sobre
essa nova base as manifestações dos trabalhadores puderam
ultrapassar os limites estreitos das reivindicações econômicas
imediatas. Passou o proletariado, passo a passo, a ocupar espaço
próprio na arena propriamente política de luta pela redefinição
do caráter e dos destinos da sociedade como um todo.
O proletariado fez sua primeira aparição na cena histórica, como
classe independente, nas revoluções burguesas de 1848.7
É significativo observar que, a partir desse momento,
alterou-se o papel desempenhado no processo da luta de classes
pelos projetos de emancipação dos trabalhadores, elaborados
no início do século e restritos ao âmbito da produção, ignorando
o papel determinante do poder social da classe proprietária
concentrado no Estado. As propostas utópicas, baseadas no
cooperativismo como eixo central converteram-se, a partir de
então, objetivamente, em obstáculos ao avanço da luta
pelo socialismo, uma vez que desviavam os esforços dos
trabalhadores da esfera significativa da luta pelo poder de
Estado, fator decisivo para a transformação social real.
A importância desse aspecto da questão evidencia-se no fato
de que a classe proprietária e o Estado, que na fase anterior se
opuseram violentamente às propostas cooperativistas dos
socialistas utópicos, mudaram de posição ao perceber o seu
caráter limitado em relação à nova dimensão adquirida pela
luta de classes na fase socialista, e passaram a adotar algumas
propostas cooperativistas da fase anterior.8 Abriu-se então

7 MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: MARX,

Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.
8 “Quando Robert Owen, logo depois do primeiro decênio deste século,

não só defendeu teoricamente a necessidade de uma limitação da jornada de

57
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

uma fase de disputa, no interior da classe trabalhadora, entre


o caminho das lutas meramente econômicas, concentradas no
cooperativismo e autolimitadas pela ampla superioridade
competitiva do grande capital, e as lutas na esfera superior da
ideologia, da cultura e da política, visando à conquista do
poder de Estado. O primeiro caminho, representado pelo
anarquismo (Proudhon, Bakunin e Kropotkin), pelo oportunismo
lassalliano caudatário do Estado, e finalmente pelo reformismo
no campo marxista (Bernstein e Kautsky), foi contundentemente
criticado por Marx e Engels, e por Rosa Luxemburgo e Lênin,
que cunhou o termo ‘economicismo’ para caracterizar a corrente
marxista russa do final do século 19, que postulava que os
trabalhadores deveriam limitar-se às lutas econômicas, deixando
as lutas políticas aos profissionais.9
A inauguração da fase moderna de luta pelo socialismo,
a partir de 1848, deu origem a mais de um século de conquistas
políticas dos trabalhadores, em nível mundial, a partir do
primeiro episódio significativo, que foi a Comuna de Paris, em
1871, primeira experiência histórica de governo dos
trabalhadores. Seguiu-se a expressiva expansão eleitoral dos
partidos social-democratas europeus, com destaque para o
alemão, no fim do século 19 até a Primeira Guerra Mundial,

trabalho, mas também introduziu realmente a jornada de 10 horas em sua


fábrica em New-Lanarck, isso foi ridicularizado como utopia comunista, assim
como sua ‘união de trabalho produtivo com a educação das crianças’, como
também as empresas cooperativas dos trabalhadores, fundadas por ele. Hoje
em dia [década de 1860 – CMG], a primeira utopia é lei fabril, a segunda
figura como frase oficial em todas as Factory Acts [Leis Fabris – CMG] e a
terceira [as cooperativas de trabalhadores – CMG] já serve até como camuflagem
para farsas reacionárias” (MARX, Karl. O Capital. v. I, t. 1. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 236, nota de rodapé 191, confrontado com Karl Marx.
Das Kapital, Band I. Frankfurt/M: Ullstein Materialien, 1981, p. 263-4, itálicos
acrescentados).
9 LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que fazer? In: LÊNIN, Vladimir Ilitch. Obras

Escolhidas, vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980.

58
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

incluindo-se nesse período a revolução russa de 1905. O fim


da Primeira Guerra Mundial, com as revoluções russa, alemã e
húngara e a vitória da revolução russa, marcou o início da
terceira fase histórica do socialismo moderno, a fase da sua
realização prática, concebendo-se o socialismo, nuclearmente,
como conquista do poder de Estado pelo proletariado, no plano
político, e no plano econômico como abolição da propriedade
privada dos meios de produção e instituição da propriedade
social, e como substituição do mercado pelo planejamento
integrado da produção e da distribuição. Além disso, o
socialismo ultrapassou as fronteiras nacionais e converteu-se
em um movimento mundial que incendiou as esperanças dos
explorados em todo o mundo e revelou as possibilidades de
libertação real do explorados contidas no projeto do socialismo
moderno resultante da fusão das lutas téoricas e práticas dos
trabalhadores a partir da segunda metade do século 19.
Em contraste com isso o cooperativismo, núcleo estratégico
do projeto de ‘economia solidária’, segundo Singer, a despeito
da sua relevância como sintoma do nascimento do embrião da
nova sociedade, em nenhum momento foi capaz de catalisar
um processo significativo de mudança social dirigido pela classe
trabalhadora. Ao contrário de representar a continuidade de
um processo crescente de lutas dos trabalhadores (‘é uma
criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra
o capitalismo’), a tentativa de restabelecer o cooperativismo
como centro da luta dos trabalhadores pelo socialismo, nos
dias de hoje, constitui um retrocesso às limitadas ações anti-
capitalistas dos trabalhadores na sua infância como classe
social.10 Acima de tudo induz a classe trabalhadora a lutar por

10 Singer reconhece este caráter da sua proposta, mas obviamente a


encara como vantagem: “A economia solidária [deve-se supor que o autor se
refere ao cooperativismo – CMG] foi concebida pelos ‘utópicos’ como uma

59
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

soluções fantasiosas, conduzindo-a a uma forma de luta que


uma longa e trágica história revelou ineficaz.11 O surto de
propostas utópicas nos moldes da ‘economia solidária’, assim
como a proliferação de seitas salvacionistas, reflete o momento
de crise e desesperança pelo qual passa a classe trabalhadora
mundial atualmente, e nesse sentido repete o ocorrido em todos
os períodos de crise prolongada do capitalismo, caracterizados
por grande desemprego e desespero dos trabalhadores, cuja
capacidade de resistência nestes momentos é significativamente
diminuída, proporcionando terreno fértil para a difusão de
soluções milagrosas e oportunistas. O momento atual é ainda
mais dramático devido à inferioridade momentânea do socialismo
revolucionário, decorrente do fim da primeira fase histórica
das lutas do proletariado pelo socialismo, iniciada em 1848 e
concluída dramaticamente com a derrota, por fatores internos
e externos, do socialismo soviético.

nova sociedade que unisse a forma industrial de produção com a organização


comunitária da vida social. (...) Trata-se duma concepção de socialismo que
dominou a infância e a adolescência do movimento operário europeu e que
nunca desapareceu inteiramente, mas foi ofuscada pela perspectiva da ‘tomada
do poder’ seja pelo voto, após a conquista do sufrágio universal, seja pela
força, após a longa série de revoluções armadas vitoriosas, inaugurada pelo
Outubro soviético” (SINGER, Paul, 2002, p. 115-6). A vitória das revoluções
socialistas parece não comover o autor.
11 É a seguinte a avaliação de Lenin sobre o papel das cooperativas na
luta pelo socialismo: “Por que eram fantasiosos os planos dos antigos
cooperativistas, desde Robert Owen? Porque eles sonhavam em converter
pacificamente a sociedade contemporânea em socialismo sem levar em
consideração problemas tão fundamentais como a luta de classes, a conquista
do poder político pela classe trabalhadora, a abolição das leis da classe exploradora.
É por este motivo que temos razão ao encarar como inteiramente fantasioso este
socialismo ‘cooperativista’, e como romântico e mesmo banal o sonho de
transformar inimigos de classe em colaboradores de classe e a guerra de classes
em paz de classes... por intermédio da mera organização da população em
sociedades cooperativas” (LÊNIN, Vladimir Ilitch, 1923. On cooperation. Lenin
Collected Works, Volume 33, s/d., p. 467-75. http://www.marxists.org/archive/
lenin/works/1923/jan/06.htm, extraído em 20/4/05, tradução livre).

60
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

A difusão da ‘economia solidária’ pode ser interpretada


como um sintoma do recesso momentâneo da consciência de
classe do proletariado, cujo espaço é ocupado pela propagação
de ideologias pequeno-burguesas, apoiadas nos mecanismos
de difusão do sistema dominante. Não se pode descartar a
hipótese de que a adoção de iniciativas de ‘economia solidária’
como política oficial, em diversos países e inclusive por
organismos internacionais, corresponda ao interesse de
neutralizar o ímpeto revolucionário revelado pelo proletariado
mundial durante mais de um século a partir de 1848. A adoção
da ‘economia solidária’, em lugar da disputa pelo poder de
Estado, como estratégia de transição para o socialismo,
consistiria no abandono do terreno em que as condições de
luta são relativamente mais favoráveis aos trabalhadores, por
um terreno no qual são amplamente desfavoráveis. Os
trabalhadores deixariam de concentrar a sua ação na ampla
arena da política, em que, como classe social, avultam
numericamente em relação à diminuta expressão da classe
capitalista,12 restrita a menos de 5% da população em todos
os países capitalistas significativos,13 para atuar em estreita
faixa na arena da luta econômica, em que os trabalhadores
seriam em primeiro lugar pulverizados em pequenos grupos,
nas cooperativas, tanto regionalmente quanto em termos de
segmentos de mercados, e em segundo lugar seriam lançados

12 “A única força social dos trabalhadores é o seu número. Mas a força

do número é quebrada pela desunião. A desunião dos trabalhadores é gerada e


perpetuada pela sua inevitável concorrência entre eles mesmos” (MARX, Karl.
1866. Instruktionen für die Delegierten des Provisorischen Zentralrats zu den einzelnen
Fragen [Instruções aos delegados do Conselho Geral Provisório da Associação
Internacional dos Trabalhadores]. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Werke,
Band 16. Dietz Verlag: Berlin, 1975, p.190-199. (http://www.mlwerke.de/me/
me16/me16_190.htm, extraído em 21/5/05, tradução livre).
13 LABINI, Paolo Sylos. Ensaio sobre as Classes Sociais. Rio de Janeiro:

Zahar, 1983.

61
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

a um terreno – o da concorrência econômica –, em que se


encontram em esmagadora inferioridade em relação à classe
capitalista, pois neste terreno o que conta não é a expressão
demográfica ou populacional, mas a escala e a qualidade
do capital e dos meios de produção, ao lado dos vínculos
tecnológicos e financeiros, monopolizados pela classe capitalista.
Na medida que o socialismo é um projeto do proletariado
como classe e em oposição ao capitalismo como projeto da
classe capitalista, o socialismo só pode ser concebido como
um sistema não-capitalista. Com efeito, na formulação marxista
o socialismo baseia-se na propriedade social, ou coletiva, ou
comum dos meios de produção, como o oposto da propriedade
privada, e no planejamento integrado da economia como o
oposto do mercado. Na medida que a concepção de ‘economia
solidária’, formulada por Singer, se opõe explicitamente a estes
dois pilares do socialismo,14 deve-se forçosamente concluir
que a ‘economia solidária’ não é um projeto socialista e não
reflete, portanto, os interesses do proletariado como classe.

A COOPERATIVA DE PRODUÇÃO E O MARXISMO

Como já exposto, Singer afirma que a “cooperativa de


produção” é a “unidade típica da economia solidária”15 e que a
luta pelo cooperativismo constituiu a linha de continuidade
histórica das “lutas anticapitalistas” dos trabalhadores desde
então. À parte o infundado desta última afirmação, como se
procurou demonstrar na primeira seção deste artigo, Singer
não forneceu qualquer definição da “cooperativa de produção”,
apesar de constituir o centro da sua concepção de ‘economia

14 SINGER, 2003, p. 18; 2002, p. 111.


15 SINGER, 2003, p. 13; 2002, p. 9; 90.

62
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

solidária’, nem do conceito mais amplo de “cooperativismo” e


do seu desenvolvimento histórico. Levando em conta o que se
pode considerar o conjunto das vagas idéias que compõem a
sua concepção de ‘economia solidária’, é-se induzido a concluir
que esta omissão conceitual não é casual, mas impõe-se como
condição para conferir um mínimo de plausibilidade àquela
concepção. A fim de colocar isto em evidência, é preciso
revisitar, embora sumariamente, o processo histórico de
desenvolvimento do cooperativismo, por um lado, e a sua
subdivisão em segmentos diferenciados, por outro.
O cooperativismo surgiu desde cedo no capitalismo mas,
como é habitual, desenvolveu-se, ao longo do tempo, das
formas simples iniciais à forma de um setor complexo e
heterogêneo atualmente, e isso ocorreu sob o impacto da luta
de classes.16 O cooperativismo formou-se a partir de duas
diferentes origens: por um lado, a partir da formação de
associações de pequenos capitalistas, que evoluíram para a
forma de cooperativas empresariais. Estas nunca foram
organizadas na esfera da produção, mas apenas para a realização
de operações complementares à produção, principalmente na
comercialização e no processamento final de algumas matérias-
primas, principalmente agrícolas. A motivação da formação
dessas cooperativas é puramente comercial, com o objetivo de
reduzir custos individuais nas operações complementares
realizadas em grande escala.
A segunda origem do cooperativismo foi a reação de
trabalhadores assalariados, principalmente operários industriais,
à piora contínua das suas condições de vida, em contextos de
conflito político explícito com a classe capitalista, o que conferiu

16O cooperativismo tem também um papel importante nos países que,


após a Revolução Socialista Russa, iniciaram a construção do socialismo. Este
aspecto do tema não será, porém, abordado neste artigo.

63
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

a essas cooperativas nítido caráter militante. Também neste


caso há duas variantes que diferem qualitativamente. Por um
lado, as cooperativas de consumo, nas quais a cooperação
não se dá na produção, e os associados, na sua maioria,
beneficiam-se da cooperativa apenas como consumidores.
Quando bem-sucedidas, estas cooperativas expandiram-se,
em diversos casos, a ponto de adquirir empresas capitalistas
convencionais fornecedoras dos principais meios de consumo,
sem no entanto convertê-las em cooperativas.
A segunda variante de cooperativas formadas por
trabalhadores assalariados são as fábricas-cooperativas, nas
quais os cooperados são os próprios trabalhadores da empresa.
As fábricas-cooperativas surgiram a partir do início do século
19, geralmente resultantes da tomada, pelos trabalhadores,
do controle de fábricas falidas em períodos de crise industrial.
As fábricas-cooperativas, como cooperativas de produção,
distinguem-se radicalmente, no que diz respeito ao seu
significado histórico, de outras cooperativas, também de
produção, mas que reúnem pequenos produtores autônomos
em decadência, de que são exemplos as cooperativas de
artesãos. A diferença fundamental é que as primeiras ilustram
um processo de tomada, pelos trabalhadores, de unidades de
produção tecnicamente avançadas, que constituem o resultado
do desenvolvimento capitalista e o ponto de partida do
socialismo, ao passo que as últimas nada mais são do que
esquemas paliativos destinados a prolongar a agonia dos seus
infelizes integrantes. É impossível dissertar sobre o papel
histórico do cooperativismo de produção sem levar em
consideração esta distinção essencial.
As fábricas-cooperativas foram o tipo de cooperativa
que menos se desenvolveu, pela razão óbvia de que nela os
próprios trabalhadores assumem o controle pleno da empresa
e da produção, no estágio mais avançado da produção

64
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

capitalista, o que torna evidente e público que os capitalistas


não são indispensáveis para a realização da produção, e explica
a hostilidade que sempre mereceu na sociedade burguesa.
Foi este tipo de cooperativa que mereceu a atenção dos autores
clássicos do marxismo. Isto permite compreender o motivo
pelo qual a cooperativa-símbolo do chamado ‘movimento
cooperativista’ moderno, exaltado por Singer, não seja a
fábrica-cooperativa mas a cooperativa de consumo ou
de comercialização.
Esta introdução é necessária a fim de localizar com
precisão a interpretação dos autores clássicos do marxismo
sobre a natureza do cooperativismo. A omissão das distinções
expostas é uma deficiência grave da abordagem de Singer,
mas é o que lhe permite falar em cooperativismo de modo
genérico e renunciar a qualquer tratamento teórico do fenômeno
cooperativista, colocando em pé de igualdade cooperativas de
diferentes tipos e juntando a elas os pequenos produtores
autônomos e pequenos capitalistas falidos, ao lado de
iniciativas meramente assistenciais destinados a trabalhadores
desempregados.17 Com isso perde-se completamente o sentido
histórico do fenômeno. O fato de que considera a cooperativa
de produção a forma típica da ‘economia solidária’ não corrige
esta deficiência, uma vez que não a define e lhe falta todo
fundamento teórico.
Marx e Engels interessaram-se pelo fenômeno
cooperativista na medida que representava a emergência
de elementos de uma nova estrutura social em gestação,
apoiando-se coerentemente na sua interpretação teórica do
capitalismo como modo de produção em processo histórico de
desenvolvimento na direção da sua superação. Por essa razão

17 SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas.

São Paulo: Contexto, 1998, p. 122-5; 131-9.

65
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

o seu interesse concentrou-se nas fábricas-cooperativas, e


apenas secundariamente nas cooperativas de consumo.18 O que
Marx considerou a característica mais relevante das fábricas-
cooperativas foi o fato de que elas demonstraram, pela primeira
vez, que os próprios trabalhadores podiam assumir o controle
da produção, e isto não com base nas formas de produção em
pequena escala e tecnicamente ultrapassadas, mas nos padrões
mais avançados de escala e técnica, como se pode observar
na passagem seguinte:

as “fábricas-cooperativas (...) demonstraram que a produção


em grande escala e em consonância com o avanço da ciência
moderna [itálicos acrescentados – CMG] pode ser realizada
sem a existência de uma classe de patrões (masters) que
utiliza o trabalho de uma classe de ‘mãos’ (hands) [mãos,
operários – NT]; [demonstraram também – CMG] que, para
produzir frutos, os meios do trabalho não precisam ser
monopolizados como meio de dominação e de exploração
contra o próprio operário; e que (...) o trabalho assalariado é
apenas uma forma social transitória e inferior, destinada a
desaparecer diante do trabalho associado (...).19

18 Marx afirma que “Falamos do movimento cooperativista,


especificamente das fábricas-cooperativas” (MARC, Karl, 1864a. Inauguraladresse
der Internationalen Arbeiter-Assoziation [Manifesto de lançamento da Associação
Internacional dos Trabalhadores]. In: MARX, Karl e ENGELS Friedrich. Werke,
Band 16. Dietz Verlag: Berlin, 1975, p. 5-13. (http://www.mlwerke.de/me/
me16/me16_005.htm, extraído em 5/2/05, tradução livre), acrescentando
posteriormente: “recomendamos aos trabalhadores dedicarem-se de preferência
a associações produtivas do que a associações de consumo. Estas últimas afetam
apenas a superfície do sistema econômico atual, as primeiras o atacam nos seus
fundamentos” (MARX, 1866).
19
MARX, 1864a, (confrontado com Karl Marx (1864b). Manifesto de
lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores. In: MARX e ENGELS,
s/d, p. 319). Em escrito posterior Marx pronunciou-se de modo idêntico:
“Reconhecemos o movimento cooperativista como uma das forças motrizes
para a transformação da presente sociedade, que repousa sobre contradições
de classe. O seu grande mérito reside em mostrar, na prática, que o sistema

66
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

Mas essa avaliação positiva não levou Marx a ignorar o


quadro global em que as fábricas-cooperativas estão imersas,
caracterizado pela subjugação dos trabalhadores aos
capitalistas, como classes sociais, e as contradições
que disto resultam e os seus efeitos tanto interna quanto
externamente. Ao contrário de Singer, não as erige em
representantes imediatos de um novo modo de produção, uma
vez que não concebe este como um corpo estranho que se
expande gradualmente ao lado do modo de produção dominante,
como parece ocorrer na confusa exposição de Singer. O novo
modo de produção se manifesta na própria estrutura do modo
de produção vigente, na forma de mudanças qualitativas em
aspectos essenciais deste, transfigurando-o crescentemente,
até o momento da ruptura. Não há dois corpos sociais lado
a lado, mas um mesmo corpo social em processo de
transfiguração, que não é mais inteiramente o antigo mas ainda
não é o novo. Como todo modo de produção novo nasce no
interior do antigo, a fase de transição entre o capitalismo e o
socialismo deve necessariamente caracterizar-se pelo surgimento
de formas contraditórias, das quais as fábricas-cooperativas
são exemplos.20 A concepção de Marx sobre o cooperativismo

vigente de subjugação do trabalho ao capital, despótico e causador de miséria,


pode ser substituído pelo sistema republicano e enriquecedor da associação de
produtores livres e iguais” (MARX, 1866, itálicos no original). Deve-se notar
que por ‘movimento cooperativista’ Marx entende o movimento das fábricas-
cooperativas, conforme citação de nota de rodapé anterior.
20 “As próprias fábricas-cooperativas dos trabalhadores são, no interior

da antiga forma, a primeira ruptura da antiga forma, embora naturalmente por


toda parte, em sua organização real reproduzam e tenham que reproduzir todos
os defeitos do sistema existente” (MARX, Karl. Das Kapital, Band III. Frankfurt/
M: Ullstein Materialien, 1980, p. 419, confrontado com Karl Marx. O Capital,
v. III, t. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1984 p. 334). Isto significa que as
cooperativas, embora representem um rompimento com a ‘antiga forma’
dominante, não constituem ainda uma ‘nova forma’, mas apenas uma forma
híbrida ou contraditória, aspecto inteiramente ignorado na análise de Singer.

67
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

como forma contraditória, no entanto, aplica-se plenamente


apenas às fábricas-cooperativas, pois é nelas que os
trabalhadores assumem o controle das forças produtivas
desenvolvidas pelo capital como pressupostos de um novo
modo de produção.21
Assim, para Marx, apesar do caráter coletivo da
propriedade dos meios de produção, nas fábricas-cooperativas,
implicar que “(...) a antítese entre capital e trabalho dentro das
mesmas está abolida”, isto ocorre sob uma forma capitalista,
portanto contraditória, isto é, “inicialmente apenas na forma
em que os trabalhadores, como associação, sejam seus próprios
capitalistas, isto é, apliquem os meios de produção para valorizar
seu próprio trabalho”.22
Por outro lado, Marx também não ignorou as reações
externas ao surgimento das fábricas-cooperativas:

“(...) a experiência do período decorrido entre 1848 e 1864


provou acima de qualquer dúvida que, por melhor que seja em
princípio, e por mais útil que seja na prática, o trabalho
cooperativo, se mantido, dentro do estreito círculo dos esforços
casuais de operários isolados, jamais conseguirá deter o
desenvolvimento em progressão geométrica do monopólio,
libertar as massas, ou sequer aliviar de maneira perceptível o
peso de sua miséria. É talvez por essa mesma razão que

21 Corallo assinala que “a cooperativa aparece, no texto de Marx, como

uma forma essencialmente contraditória”, prisioneira da lógica do capital, por


um lado, mas abolindo internamente a relação de exploração da força de
trabalho, por outro (CORALLO, Jean-François. Coopérative. In: LABICA, Georges
et BENSUSSAN, Gérard. Dictionnaire critique du marxisme. Paris: Quadrigne /
PUF, 1999, p. 244-5). O autor amplia o horizonte da análise ao notar que o
caráter contraditório da cooperativa mantém-se no socialismo, mas em sentido
inverso: “a cooperativa não seria mais elemento de socialismo em um ambiente
capitalista, mas elemento de capitalismo em um ambiente socialista”. Enfoque
semelhante encontra-se na análise de Lênin (LÊNIN, 1923).
22 MARX, 1984, p. 334.

68
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

aristocratas bem intencionados, porta-vozes filantrópicos da


burguesia e até economistas penetrantes passaram de repente
a elogiar ad nauseam o mesmo sistema cooperativista de
trabalho que tinham tentado em vão cortar no nascedouro,
cognominando-o de utopia de sonhadores, ou denunciando-o
como sacrilégio e socialistas. (...) Conquistar o poder político
tornou-se, portanto, a tarefa principal da classe operária”.23

Por outro lado, as fábricas-cooperativas não podem ser


analisadas isoladamente, mas como um elemento de uma
totalidade, de modo que os mudanças que se manifestam nelas
refletem mudanças no modo de produção e não apenas nelas.
Nesse sentido, Marx coloca as cooperativas em pé de igualdade
com as sociedades anônimas como formas contraditórias,
sintomas de uma nova realidade emergindo no interior do
capitalismo.24 O que as identifica é que em ambas a gestão da
produção separa-se da propriedade privada dos meios de
produção: as fábricas-cooperativas e as sociedades anônimas
são administradas por gerentes indicados por proprietários
coletivos e não individuais, mas ambas permanecem prisioneiras
da lógica do capital, como capitalistas coletivos que são. Isto
significa que a expropriação da classe capitalista, traço essencial
do socialismo, inicia-se de modo espontâneo no interior do
capitalismo, ao invés de representar uma aberração que ameaça
a continuidade normal da produção, convertendo-se ao contrário
em condição desta continuidade.
Esta passagem ilustra à perfeição a concepção da
mudança social, por Marx, como um fenômeno que emerge

23 MARX, 1864b, p. 319-20. Singer opina em sentido contrário (SINGER,

2002, p. 93; 112).


24 “As empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas-
cooperativas devem ser consideradas formas de transição do modo de produção
capitalista ao modo associado, só que, num caso, a antítese é abolida
negativamente, e no outro, positivamente” (MARX, 1984, p. 335).

69
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

espontaneamente, e das leis jurídicas como expressões dessas


mudanças e não como suas causas.25 No presente caso, Marx
indica que a conversão da propriedade privada em propriedade
coletiva é gerada pelo desenvolvimento do próprio capitalismo
e não pela vontade arbitrária da classe trabalhadora. Com efeito,
segundo Marx, o socialismo caracteriza-se pela abolição da
propriedade privada não devido à sua preferência subjetiva
pela propriedade social, mas porque o próprio desenvolvimento
do capitalismo promove, gradualmente, a expropriação de toda
propriedade privada, que finalmente subsiste apenas como
suporte jurídico ultrapassado de uma classe privilegiada e
destituída de função social objetiva. Numa primeira fase a
expansão do capital implica a expropriação dos produtores
diretos e a expansão absoluta do trabalho assalariado na
sociedade; na fase seguinte a difusão da sociedade anônima
implica a expropriação dos capitalistas individuais e a instituição
da propriedade coletiva dos meios de produção, embora restrita
à classe capitalista. Isto significa que aos poucos a propriedade
privada individual dos meios de produção desaparece, substituída
pela propriedade coletiva da classe capitalista. Nesta altura, a
propriedade privada individual sobrevive apenas, ironicamente,
entre pequenos produtores decadentes, como ruínas de uma
era socialmente ultrapassada. E é sobre estas ruínas que Singer
pretende que esteja sendo erigido um novo e mais avançado
modo de produção.
No entanto, na medida que a forma jurídica capitalista da
propriedade subordina de modo determinante todas as formas
divergentes dela, as formas coletivas só podem desenvolver

25 As fábricas-cooperativas “mostram como, em certo nível de

desenvolvimento das forças produtivas materiais e das suas correspondentes


formas sociais de produção, de um modo de produção desenvolve-se e irrompe
de maneira natural um novo modo de produção” (Idem, p. 335).

70
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

as suas potencialidades depois que a forma privada individual


tenha sido abolida, o que só pode ocorrer, no entanto, no
contexto de uma mudança social global do modo de produção.
O cerne do modo de produção reside no caráter de classe do
poder de Estado, cujo componente essencial é a forma jurídica
da propriedade. A defesa e garantia desta é a função central
do Estado nas sociedades divididas em classes. Como se expôs
acima, a forma jurídica da propriedade apenas expressa, na
esfera jurídica, as relações de produção objetivamente geradas
pela configuração geral das forças produtivas. Como estas,
porém, se desenvolvem gradualmente, geram ao desenvolver-
se novas formas de apropriação, que aos poucos entram em
conflito com a forma jurídica vigente da apropriação, de modo
que a vigência desta passa a funcionar como obstáculo ao
desenvolvimento das novas relações de produção e
conseqüentemente das forças produtivas que lhe dão origem.
O domínio da propriedade privada como forma jurídica geral da
propriedade no capitalismo exerce precisamente este efeito de
bloqueio sobre as novas formas que, no interior do capitalismo,
são sintomas das mudanças mais profundas em curso.
Conseqüentemente, para que estas se materializem, é necessário
que a forma jurídica vigente da propriedade privada seja abolida,
mas como ela é assegurada pelos instrumentos de força social
concentrados no Estado, é a natureza do poder de Estado que
é decisivo e necessita ser alterado como pre-condição da
instituição do novo modo de produção. Marx manifesta isso
claramente, sem por isso menosprezar o papel representado
pelas fábricas-cooperativas como sintomas da emergência de
novas realidades na base da estrutura social:

“Mas o sistema cooperativista, limitado às formas elementares


[no original zwerghaften: nanicas – CMG] que os escravos
assalariados podem desenvolver através dos seus esforços
privados, jamais transformará a sociedade capitalista. Para

71
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

converter a produção social em um sistema abrangente e


harmonioso de trabalho livre e cooperativo, são necessárias
mudanças sociais gerais, mudanças nas condições gerais da
sociedade, que só poderão ser realizadas através da
transferência do poder organizado da sociedade, isto é, do
poder de Estado, das mãos dos capitalistas e proprietários de
terras aos próprios produtores”.26

CONCLUSÕES

As principais conclusões que este artigo permite enunciar


são as seguintes:
1) A ‘economia solidária’ não é, ao contrário da pretensão
de Singer, uma “criação em processo contínuo de trabalhadores
em luta contra o capitalismo”. Em seus textos sobre o tema, o
autor foi incapaz de identificar o processo real de
desenvolvimento das lutas dos trabalhadores contra o
capitalismo, a partir das incipientes formas iniciais até a sua
forma mais desenvolvida do socialismo moderno. O que os
trabalhadores em luta contra o capitalismo criaram, em quase
duzentos anos de uma história riquíssima, foi em primeiro
lugar o conceito rigoroso do socialismo como objetivo, cuja
essência é a abolição da propriedade privada dos meios de
produção e a instituição da propriedade coletiva, e, em segundo
lugar, a necessidade da conquista do poder de Estado como
precondição essencial. E não somente criaram os conceitos,
como os levaram à prática, a partir da vitória da Revolução de
1917, em diversos países do mundo, demonstrando a
viabilidade histórica da conquista do poder de Estado pelos
trabalhadores e a instituição da propriedade social dos meios
de produção.

26 MARX, 1866.

72
A ‘ECONOMIA SOLIDÁRIA’: UMA
CRÍTICA MARXISTA

2) A cooperativa de produção, tida por Singer como


protótipo da ‘economia solidária’, embora tenha surgido, ao
lado da sociedade anônima, como sintoma de uma nova realidade
emergente no interior do capitalismo, é incapaz, como a própria
sociedade anônima, de constituir uma via de superação do
capitalismo. Os clássicos do marxismo elaboraram uma análise
detalhada e precisa do significado, das possibilidades e dos
limites destas cooperativas no capitalismo, com a qual a
abordagem de Singer conflita em todos os aspectos.

73
74
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA
SOLIDÁRIA: OS EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES
PARA A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO
BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Eloíza Mara da Silva*


Fernanda de Oliveira Santos**

RESUMO: Este artigo pretende estudar RESUMEN: Este artículo pretende estudiar
as implicações das bases principiológicas las implicaciones de los fundamentos de
da Economia Solidária (Ecosol) ante a la Economía Solidaria (Ecosol) ante la
legalidade, a qual estão submetidos os legalidad, la cual están sometidos los
empreendimentos autogestionários e emprendimientos autogestionarios y
solidários debtro do Estado Democrático solidarios dentro del Estado Democrático
de Direito Brasileiro. Com isso, visamos de Derecho brasileño. Con esto, visamos
sobrelevar as imbricações entre legalidade destacar las imbricaciones entre legalidad
e legitimidade, ou seja, o intercruzamento y legitimidad, o sea, el entrecruzamiento
entre Direito e Economia Solidária. de Derecho y Economía Solidaria. Para
Para tanto, ressaltaremos a relevância tanto, resaltaremos la relevancia de los
dos padrões normativos: os princípios padrones normativos: los principios
jurídicos, assim como dos eixos centrais jurídicos, así como de los ejes centrales
do ideário da Ecosol: os princípios del ideario de la Ecosol: los principios
ideológicos. Destacaremos, também, a ideológicos. Destacaremos también la
legitimidade dos movimentos populares legitimidad de los movimientos populares
envolvidos na Ecosol para que os mesmos envueltos en la Ecosol para que los
despontem como agentes legítimos à mismos despunten como agentes
participação dos momentos do Direito, legítimos a la participación de los
tanto legislativo quanto jurisdicional. movimientos de Derecho, tanto legislativo
cuanto jurisdiccional.
PALAVRAS-CHAVE: Legitimidade; Legalidade
e princípios da Economia Solidária. PALABRAS-CLAVE: Legitimidad; Legalidad
y principios de Economía Solidaria.

* Bolsista formadora da Intecoop/UFJF. e-mail: senhoritaeloiza@msn.com

** Coordenação de Assuntos Jurídicos Intecoop/UFJF. e-mail:


f_osantos@yahoo.com.br

75
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

1 ABORDAGEM PRELIMINAR

A temática da Economia Solidária (Ecosol) encontra


terreno inóspito quando tratada pela Dogmática Jurídica, uma
vez que, se a razão da constituição desse movimento é, do
ponto de vista da inclusão social, encarada como fonte
alternativa de geração de trabalho e renda; por isso, urge que o
ordenamento jurídico e, principalmente, os órgãos legislativos
dêem à Ecosol disciplina adequada.1
Acreditamos que as bases ideológicas e principiológicas
da caminhada do movimento da Economia Solidária, como
força legitimadora em prol da sociedade, têm como condução
o vértice da legalidade responsável, dentro do ordenamento
jurídico posto, pela justa condução desse instrumento no Estado
Democrático de Direito Brasileiro. Colocamos, então, à tona a
viabilidade e a efetividade dos princípios da Ecosol ante o Direito,
seja na esfera legislativa, seja na jurisdicional.
Nesse diapasão, focalizaremos no presente artigo o binômio:
Direito e Economia Solidária sob a análise dos princípios norteadores
desta e da legalidade e jurisdicionalização daquele, sobretudo,
apontando o filtro da legalidade pelo qual os movimentos
sociais passam frente aos padrões normativos vigentes.
Nosso horizonte teórico escolhido para o presente
estudo é o pensador alemão Jürgen Habermas, em especial
seu estudo sobre direito e moral, texto em oposição a Max
Weber, por meio da seguinte pergunta: ¿Como es posible la
legimitadad a través de la legalidad?.2 Segundo essa ótica,

1 Ressaltamos a máxima da igualdade enunciada por Alexy, qual seja,

“tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual” não da


forma de uma exigência dirigida a uma forma lógica das normas, mas, como
exigência relacionada com o seu conteúdo, ou seja, não no sentido de uma
igualdade simplesmente formal, mas, de fato, uma igualdade material.” Cfr.
In. Teoria de los derechos fundamentales. p.387
2 In: Facticidade y Validez: complementos y estudos previos.

76
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

será proposta e estudada a posição dos princípios da Ecosol


em conexão os princípios jurídicos, desse modo, legitimando,
portanto, as reivindicações por uma justiça social na atuação
dos empreendimentos autogestionários.

2 O FILTRO DA LEGALIDADE: É EFICAZ A ORDEM NORMATIVA


PARA OS EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS?

O avanço do movimento da Economia Solidária torna-se


uma realidade indiscutível dentro das relações sociais hodiernas,
seja pela latente necessidade de novas relações de trabalho,
pela possibilidade alternativa de geração de trabalho e renda,
pela dinâmica cultural posta e principalmente pela necessidade
de defesa dos grupos sociais e pelo interesse econômico que
os informa. Nesse diapasão, impõem-se ao estudioso do Direito
algumas reflexões no que concerne ao fenômeno associativo e às
formas ou tipos socialmente desenhados perante o comando
legal vigente que, possivelmente, regra essas formas associativas.
A política de Economia Solidária, projeto de desenvolvimento
integral que visa à sustentabilidade, à justiça econômica,
social, cultural e ambiental e à democracia participativa,3 surge
como alternativa de equacionar, no que tange ao trabalho, a
precarização das relações de trabalho e combater o desemprego,
que, nas palavras de Singer,4 este é “apenas a manifestação
mais visível de uma transformação profunda da conjuntura
do emprego.”
Assim, sinalizamos que a Economia Solidária, em meados
da década de 1990, surge em um contexto de crescente
desemprego e precarização das relações de trabalho. Como fonte

3 In: http://www.mte.gov.br/Empregador/Economia Solidária


4 In: Em defesa dos direitos dos trabalhadores. Site idem.

77
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

alternativa de equacionar esse fenômeno, surge a possibilidade


de geração de renda e trabalhado pelo cooperativismo, malgrado
ser a Lei das Cooperativas5 datada de 1971, cenário totalmente
diverso da década quando surge a movimento da Ecosol.
Há, nesse sentido, um hiato e uma flagrante
descontextualização, em face do caráter temporal, entre o texto
normativo do cooperativismo e a luta travada pelo movimento
de Ecosol. Indaga-se, a legalidade que regra a Política Nacional
do Cooperativismo tem tratado adequadamente as chamadas
cooperativas populares, legitimadas pelo movimento de
Economia Solidária? Eis o entrave: esses grupos não se amoldam
aos dispositivos legais vigentes, tal como a Lei Nacional do
Cooperatismo. Tem-se, assim, o fenômeno do cooperativismo
popular6 a forma associativa mais razoável para as instituições
sociais, desenhadas para atender aos interesses da Economia
Solidária. Ocorre que os princípios da Ecosol e, sobretudo, os
interesses desses grupos populares não se limita aos ditames
da Lei n.º 5.764/71,7 instituidora do Estatuto das Sociedades
Cooperativas, ainda que alguns de seus dispositivos se
assemelhem na prática aos delineadores dos empreendimentos
de economia solidária, como, por exemplo, a autogestão.
Ressaltamos, ainda, que mesmo com o advento do Código
Civil, instituído pela Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002,
tão situação não foi equacionada, nem dirimida.

5 Lei n.º 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional

de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá


outras providências.
6Não podemos deixar de mencionar outras formas jurídicas presentes
nos empreendimentos da Ecosol, como, por exemplo, as associações; embora
o modelo de cooperativas represente a organização para o trabalho preponderante
no movimento.
7 In: Facticidade y Validez: complementos y estudos prévios, p. 536.

78
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Numa visão racionalista e formal, Max Weber assinala


que o Direito pode ser visto com aquilo que o legislador político
estabelece como direito conforme procedimento institucionalizado.
Ocorre que o filtro da legalidade, através do qual os empreendimentos
de economia solidária passam, deve ser eficaz de tal forma
que a força legitimadora dos anseios desta fonte alternativa
de relações de trabalho vá ao encontro da legalidade, a qual
estão invariavelmente submetidos. De fato, surge o ponto
para verificação e questionamento: Os preceitos normativos
instituídos pelo legislador ordinário têm dado disciplina adequada
a esses empreendimentos?
Tal com enuncia Habermas,8 a função regulativa de
uma sociedade torna-se cada vez mais complexa, vez que a
necessidade de um aparato estatal ativo que concomitantemente
regula e controla cresce a cada dia. Ocorre que para as chamadas
cooperativas populares o Estatuto Nacional das Cooperativas –
Lei n.º 5.764/71 representa um entrave na estruturação e no
funcionamento destes grupos. Inclusive, podemos afirmar que
para os empreendimentos de economia solidária torna-se urgente
uma alternativa eficaz de arsenal legislativo atento às reais
necessidades desse movimento.
Devemos buscar uma igualdade de tratamento material e
não meramente formal. Na perspectiva de Robert Alexy,9 a
máxima da igualdade não significa nem que o legislador tenha
que colocar todos na mesma posição jurídica, nem que se
tenha em mente que todos possuem as mesmas propriedades
naturais e se encontram na mesma posição, constituindo, assim,
a vertente da igualdade de resultados. Nas palavras de Kelsen10

8 In: HABERMAS, p. 536.


9 In: Teoria de los derechos fundamentales p. 385.
10 Apud MELLO. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p.11.

79
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

o tema se reveste da mesma maneira quando em suas


considerações diz: “que a igualdade dos sujeitos na ordenação
jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes
devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em
particular nas leis expedidas com base na Constituição.”
Numa reinterpretação dessas assertivas, à luz do filtro
legal pelo qual submetem-se os empreendimentos solidários,
pode-se afirmar que por meio das leis públicas, abstratas e
gerais, deve-se assegurar, por exemplo, os direitos sociais
instituídos na Magna Carta aos trabalhadores inseridos nesses
empreendimentos. Esse filtro da legalidade para os grupos da
Ecosol passa por um obstáculo criado pela incapacidade do
formalismo jurídico perante a riqueza dos casos concretos, tal
como as propostas da Economia Solidária, em especial do
Cooperativismo Popular.
Na verdade, quando invocada para dirimir essas novas
demandas sociais do cooperativismo popular, a legislação em
vigor mostra-se insuficiente, por não comportar as demandas
e por sua ineficiência em acompanhar a diversidade de novas
demandas sociais e, sobretudo, indicar soluções diferenciadas.
Os entraves do filtro da legalidade não só ocorrem na Lei
de Cooperativas, percebe-se, principalmente pela vivência dos
trabalhos com grupos do cooperativismo popular, a mesma
situação quando se discute a participação das cooperativas
nos processos de licitação dos órgãos públicos, Lei n.º 8666/
1993 e até mesmo na força inoperante das recentes leis de
fomento à Economia Solidária, como no Estado de Minas Gerais.
De fato, a dificuldade quando da concretização do Direito
é patente. É um desafio selecionar, mediante as normas jurídicas
vigentes, a melhor decisão diante de casos complexos. O que
não se pode compreender no Estado Democrático de Direito
são pronunciamentos jurisdicionais que não destaquem, sob o

80
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

prisma da relevância social e da justiça social, os enunciados


das vertentes principiológicas da Ecosol: a Cooperação, a
Autogestão, a Atuação econômica e Solidariedade.

3 COMO É POSSÍVEL A LEGITIMIDADE DOS PRINCÍPIOS DA


ECOSOL MEDIANTE A LEGALIDADE?

O movimento de Economia Solidária busca em suas bases


ideológicas o discurso propulsor de suas lutas na sociedade
brasileira. Discurso que notadamente se consubstancia nos
princípios norteadores dessa caminhada em busca de vida digna
para os trabalhadores subempregados e desempregados, que
tanto desejam a geração de trabalho e renda via sua emancipação
das relações laborais clássicas de subordinação da mão de
obra trabalhadora.
Hoje é dado lugar de destaque aos princípios jurídicos na
concretização (interpretação/aplicação) do Direito, devido à
exigência de padrões normativos que atendam à complexidade
e à celeridade das relações sociais, que a cada dia ingressam
com maior freqüência no aparelho Judiciário; fenômeno esse
entendido como judicialização,11 que hoje tanto observamos
nos conflitos políticos, nas demandas por justiça social, nas
cobranças de prestações positivas pela Administração Pública,
todas levadas ao Poder Judiciário para serem dirimidas.

11 Esse fenômeno pode ser definido como: “Todo um conjunto de práticas

e de novos direitos, além de um continente de personagens e temas até


recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos (...) os novos objetos
sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedades
contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da justiça.
(...) É da agenda igualitária e da sua interpelação por grupos e indivíduos em
suas demandas por direitos, por regulação de comportamentos e reconhecimento
de identidades, mesmo que um plano exclusivamente simbólico, que tem
derivado o processo de judicialização das relações sociais.” Cfr. In: A
judicialização da política e das relações sociais no Brasil. pp. 149-150.

81
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Esse lugar de destaque pode ser constatado nas palavras


do pensador alemão Jürgen Habermas, quando ele diz12:

“Hay que tener presente que los discursos jurídicos,


cualquiera sea su modo de vinculación al derecho vigente, no
pueden moverse en u universo cerrado de reglas jurídicas
unívocamente fijadas. Esto es algo que se sigue de la propia
estructuración del derecho moderno en reglas y principios”
(grifo nosso)

Essa estruturação da qual ele fala está presente na obra


do jusfilósofo Ronald Dworkin. Crítico implacável e rigoroso das
escolas positivistas e utilitaristas, Dworkin – baseando-se na
filosofia de Rawls e nos princípios do liberalismo individualista –
é um dos principais expoentes críticos do positivismo e do
utilitarismo, em sua teoria geral do Direito, ele constrói sua
argumentação antitética em embasamentos morais e filosóficos.
Dworkin é o principal expoente da filosofia jurídica
anglo-saxônica; ele, em sua Teoria do Direito traz uma
substancial discussão sobre a posição dos princípios, rebatendo
ferrenhamente as versões positivistas de John Austin e H. L.
A. Hart, porque, ambas são insuficientes para decisão de casos
difíceis, elas diante das complexidades desses sucumbem em
razão da “textura aberta” do padrão regra que ambos adotam
em suas teorias; desse modo o momento de aplicação/
interpretação do Direito se traduziria como um exercício de
poder discricionário do juiz, sem o crivo da racionalidade jurídica
indispensável ao Estado Democrático de Direito.
Essa debilidade reside no encapsulamento do universo
jurídico em um único padrão normativo: o de regras; devido a
isso, Dworkin se lança à construção teórica de outros padrões
possíveis: os de princípio e os de política, por exemplo. Para

12 In: Facticidad y Validez: complentos y estudios previos, p. 545.

82
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

ele a distinção entre princípios e regras é uma distinção lógica.


Ambos são conjuntos de normas (standards) que apontam
para decisões particulares sobre obrigações jurídicas numa
particular circunstância, mas se diferenciam no caráter da direção
que apontam. As regras são aplicáveis na forma do tudo-ou-
nada, ou seja, são disjuntivas, aplicam-se ou não se aplicam
ao caso.
Por sua vez, os princípios, embora sejam também
proposições como as regras, não indicam uma conseqüência
legal que automaticamente se segue quando as condições dadas
se realizam. Um princípio apresenta uma razão que aponta
para uma direção, porém, não exige uma decisão específica
naquele mesmo sentido (apontado); importante frisar que sua
não aplicação ou aplicação abrandada não o invalida, isto é,
não o exclui do ordenamento jurídico. Isso por que ele tem
uma dimensão de peso (dimension of weight) ou importância;
desse modo, se duas regras estão em conflito, uma não poderá
ser válida; já os princípios, será aplicado aquele que tiver maior
peso ou importância naquela circunstância.
Diante disso, podemos imaginar que a relevância dos
princípios jurídicos para Direito assemelha-se à dos princípios
ideológicos da Ecosol. Entretanto, não podemos incorrer numa
concepção luhmaniana de sistemas cerrados e autônomos,
devemos superar o paradigma13 da teoria dos sistemas, cujo

13 Jürgen Habermas critica o sistema jurídico autopoiético luhmaniano

e seu auto-encerramento, segundo ele: “ El derecho, que acaba reduciéndose a


un sistema autopoiético, queda despojado, desde eses punto de vista sociológico
distanciador y extrañante, de todas sus connotaciones normativas y, en
última instancia, de las connotaciones referidas a la autoorganización de una
comunidad jurídica. Bajo la descripción de sistema autopoiético, el derecho,
narcisísticamente marginalizado, sólo puede reaccionar a sus propios problemas,
que a lo sumo podrán venir ocasionados desde fuera. De ahí que no pueda ni
percibir ni elaborar problemas que afectan al conjunto del sistema social.” Cfr.
In: Facticidad y Validez, p.115.

83
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

grande expoente na sociologia do Direito foi Niklas Luhmann,


e perseguir o intercruzamento entre o Universo Jurídico e o
Movimento de Economia Solidária. Essa intersecção deve incluir
uma agenda igualitária na qual a sociedade possa materializar
suas reivindicações, sua urgência por justiça social. Contudo,
não podemos sublimar, de uma hora para outra, nosso déficit
de cidadania, acreditar que nossa Constituição efetivará por si
só seu perfil de Carta Magna Cidadã. De acordo com Vianna14:
“Na sociedade brasileira, um caso de capitalismo retardatário
e de democracia política incipiente, a presença expansiva do
direito e de suas instituições, mais do que indicativa de um
ambiente social marcado pela desregulação e pela anomalia,
é a expressão do avanço da agenda igualitária em um contexto
que tradicionalmente, não conheceu as instituições da
liberdade. Neste sentido, o direito não é “substitutivo” da
Republica, dos partidos, do associativismo – ele apenas ocupa
um vazio, pondo – se no lugar deles, e não necessariamente
como solução permanente. Décadas de autoritarismo
desorganizaram a vida social, desestimularam a participação,
valorizando o individualismo selvagem, refratário à cidadania
e à idéia de bem-comum.”

A construção de uma plataforma política para Ecosol tem


como pressuposto o ingresso dos movimentos populares na
Esfera Pública Democrática Brasileira, de modo que a reivindicação
dessa agenda igualitária contribua, seja o passo fundamental,
para seu ingresso como pessoas deliberativas capazes de
influenciar os momentos15 de produção do Direito: legislativo e
jurisdicional. O movimento16 de Economia Solidária desponta

14 In: A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, p. 150.


15 In: Eficácia e inalinabilidad, p. 971.
16 Acreditamos que o Movimento da Ecosol deve aperfeiçoar-se nos

mecanismos Jurídicos e desse modo despontar como agente hábil à luta pelos

84
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

como pessoa deliberativa que tem exigido sua normatividade


emergente, a positivação de seus direitos, sobretudo aqueles
guarnecidos em seus princípios basilares. É central nessa
agenda que se resolva o descompasso entre o direito oficialmente
estatuído e o formalmente vigente, que se reconheça essa
normatividade emergida das relações sociais que envolvem os
trabalhadores dos empreendimentos autogestionários.
Esses trabalhadores são atores sociais legítimos àqueles
momentos porque conhecem os fatos da experiência direta e
cotidiana da Ecosol; por outro lado, os funcionários do Estado
apenas têm acesso a papéis e processos, na rotina da burocracia
estatal, que ainda se alimenta da relação de tipo paternal ou
assistencialista entre as classes dirigentes e o povo, subjulgando
ao papel passivo, de cliente das prestações estatais.
O pensador alemão Jürgen Habermas, em seu texto
“¿Como es posible la legimitadad a través de la legalidad?”,
questiona Max Weber, em especial sua concepção positivista
do direito como dominação legal, a fim de demonstrar que a
legitimidade do Direito extravasa os contornos e as qualidades
formais do mesmo, porque ela está umbilicalmente atrelada à
Moral, algo que não se coaduna com a concepção weberiana.
Weber não contemplava a legitimidade da legalidade
em um sentido prático moral, porque entendia que o núcleo
moral do Direito formal burguês se apresentava sob a
roupagem de orientações valorativas alijadas dessa dominação
burocrática racional.
Esse tipo de dominação, sob os moldes da teoria
weberiana, estava fechada para as exigências materiais dos
destinatários das normas, isto é, os postulados éticos de justiça

seus direitos. Nesse sentido, faz-se importante o comentário de Unger: “a


esquerda deveria reinterpretar em vez de abandonar a linguagem dos direitos”,
Cfr. In: Política, p.20.

85
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

e dignidade humana estavam excluídos do formalismo do Direito.


O paradigma17 do Estado Social se contrapõe a esse modelo
liberal burguês das leis abstratas e gerais, na medida em que
atribui ao Poder Legislativo a responsabilidade de intervir de
modo transformador na sociedade mediante as redistribuições
de matérias compensatórias.
A proposta habermasiana é de superação da cisão entre
Moral e Direito, a legitimidade da legalidade não se explica
recorrendo à racionalidade autônoma do Sistema Jurídico,
delineada por Max Weber, ao contrário ela advém do
intercruzamento entre eles. Afinal, as características formais
do Direito só oferecem razões legitimadoras, argumentos da
ordem de um discurso prático, à luz de princípios de conteúdo
moral. Nesse sentido podemos dizer que os princípios da Ecosol
não apenas servem de discurso legitimador dos movimentos
populares que os arregimenta, eles podem servir também de
razões legitimadoras, como eixos morais dos marcos normativos
referentes à Economia Solidária.

5 PONTUAÇÕES FINAIS

O destaque da Economia Solidária no cenário nacional


pode ser observado, por exemplo: nas Políticas Públicas para
o Trabalhador Brasileiro agora institucionalizadas, com contornos
estatais, na criação da SENAES – Secretaria Nacional de
Economia Solidária; nas discussões e nos debates sobre os
rumos dos empreendimentos autogestionários dentro dos
fóruns brasileiro e estaduais de Ecosol têm articulado e
organizado os grupos populares envolvidos nessa realidade;
nas Universidades Públicas, por meio das ITCPs (Incubadoras

17 Cfr. In: Facticidad y Validez, pp.469-532.

86
A LEGITIMIDADE DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: OS
EIXOS PRINCIPIOLÓGICOS DOS GRUPOS POPULARES PARA A LEGALIDADE NO ESTADO
DEMOCRATICO DE DIREITO BRASILEIRO – PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Tecnológicas de Cooperativas Populares), que tem incubado


esses grupos populares a fim de cumprir seu compromisso de
levar à sociedade suas atividades de extensão comprometidas
com o êxito da Ecosol, como marco alternativo e diferenciado
à geração de trabalho e renda.
Diante dessa visibilidade, o Direito em seus momentos
tanto legislativo quanto jurisdicional, não pode se esquivar
dessa nova realidade tão diferente das relações patronais
clássicas, com que seus operadores estão acostumados a lidar.
Do mesmo modo, os atores sociais comprometidos com a
Ecosol devem assumir sua posição como pessoas deliberativas
legítimas à esfera publica argumentativa donde nascerão os
norteadores jurídicos e políticos compromissados com o seu
cotidiano autogestionário e solidário.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentals. Madrid: Centro de


Estudios Constitucionales, 1993.

BAYÓN, Juan Carlos. Eficacia e inalienabilidad. Madri, Revista Doxa –


Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 15, pp.971-991,1994.

BRASIL. Lei 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional


de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas,
e dá outras providencias. Brasília, DF: Senado, 1971.

BRASIL. Lei 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Constituição (1988).


Constituição da República Federativa. Brasília. DF: Senado, 1988.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e conceito de sistema


na Ciência do Direito. Tradução A. Menezes Cordeiro. 2.ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério; tradução e notas Nelson


Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FARIA, José Eduardo (Org.). A crise do direito numa sociedade em


mudança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.

87
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e justiça: a função social do judiciário.


São Paulo: Ática, 1989.

FORUM BRASILEIRO DE ECONOMIA SOLIDARIA. Site: www.fbes.org.br

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. Sobre el derecho y el Estado


Democrático de Derecho em términos de teoría del discurso.Tradução:
Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 2001.

HESSE, K. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz


Villalon. 2.ed. Madrid: Centro de Estudos Constitulionales, 1992.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, tradução de João Baptista Machado,


4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MELLO. C. A. B. de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São


Paulo: Malheiros, 2003.

MINAS GERAIS. Lei 15028 de 20 de janeiro de 2004. Institui a Política


Estadual de Fomento à Economia Popular Solidária no Estado de Minas
Gerais – PEFEPS. Belo Horizonte, MG, 2004.

NAVARRO, Evaristo Prieto. Algunas consideraciones sobre las relaciones


entre derecho e integración social en el último Habermas. Revista Doxa
Cuadernos de Filosiofia del Derecho, números 15-16, 1994.

PECZENIK, Aleksander. Los principios jurídicos según Manuel Atienza y


Juan Ruiz Manero. Revista Doxa Cuadernos de Filosiofia del Derecho,
n.12, 1992, pp.327-331.

RODRÍGUEZ, Cezar. La decision judicial: El debate Hart – Dworkin. Bogotá:


Siglo del Hombre Editores: Faculdade de Derecho, Universiadad de los
Andes, 1997.

SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária. Site:


www.mte.gov.br/Empregador/EconomiaSolidaria.

UNGER, Roberto Mangabeira. Política – os textos centrais: a teoria contra


o destino. São Paulo: Boitempo; Santa Catarina: Editora Argos, 2001.

VIANNA, Luiz Werneck. A Judicialização da política e das relações sociais


no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

88
C O N F I G U R A Ç Õ E S
CONTEMPORÂNEAS DO COOPERATIVISMO
BRASILEIRO

Daniele Regina Pontes*

RESUMO: Este texto tem por objetivo RESUMEN: Este texto tiene por objetivo
esboçar uma tipologia das organizações esbozar uma tipología de las organizaciones
que se autodefinem como cooperativas, que se autodefinen como cooperativas,
inseridas no contexto brasileiro, insertadas em el contexto brasileño,
considerando a natureza e os objetivos considerando la naturaleza y los objetivos
das organizações coletivistas, em de las organizaciones colectivistas, en
especial das cooperativas de produção. especial de las cooperativas de producción

PALAVRAS-CHAVE: cooperativismo PALABRAS-CLAVE: cooperativismo


brasileiro; cooperativas de produção. brasileño; cooperativas de producción.

* Mestre em Direito Cooperativo e Cidadania pelo Programa de Pós-


graduação em Direito – UFPR. Integrante do Núcleo de Direito Cooperativo e
Cidadania da UFPR. Cooperada da AMBIENS SOCIEDADE COOPERATIVA.
Professora do Curso de Direito da UNIBRASIL.

89
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

1 COOPERATIVISMOS

A história das cooperativas tem início na história da ação


de agentes conscientes da necessidade de transformação da
organização e das relações produtivas. A formação inicial de
organizações coletivistas de trabalho1 buscava construir condições
necessárias à emancipação dos trabalhadores submetidos à
exploração imposta pelo sistema de produção capitalista.
Inseridas em um universo hostil à sua implementação,
considerada a perspectiva de sua concepção emancipatória
original, foi descolada de um projeto político específico e
transformada em um instrumento de organização produtiva e
em um modelo societário que poderia abarcar uma série de
intenções. Desde o enfrentamento e a contraposição ao modelo
vigente caracterizado pela exploração da classe trabalhadora,
passando pela pacífica convivência reformista de uma suposta
melhoria das condições suportadas pelos trabalhadores, as
cooperativas, como instrumento, passaram a se constituir em
mais uma forma de manutenção do capital monopolista,
expropriador dos trabalhadores, com o gravame de esconder e
legitimar sua existência e ação pela utilização da denominação
“cooperativa”, em legislações, como é o caso de sua conformação
no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, reforçando a sua
inserção no universo do capital, chegou a se transformar
também em mais uma forma de terceirização, em muitos casos
chegando a ser utilizada como forma de lesar trabalhadores.
Longe de afirmar-se como expressão máxima do
socialismo ou do capitalismo, mas, difundida em vários países
inclusive no Brasil, as cooperativas historicamente foram e

1 A expressão “organização coletivista de trabalho“ foi utilizada por

José Ricardo de Faria que a conceituou como “associação produtiva autogerida


pelos seus trabalhadores”. (FARIA, 2003, p.22)

90
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

continuam sendo alvo de políticas governamentais específicas.


O que significa dizer que, mesmo não se configurando como
categoria central das relações materiais de produção, é parte
integrante da contraditória rede de inter-relações econômicas e
sociais estabelecidas na sociedade da mercadoria, ora fortalecendo
e reproduzindo as condições existentes, ora contribuindo para a
produção de uma nova forma de sociabilidade.
O que se pretende demonstrar neste texto é o conjunto
de aspectos que permitem estabelecer as diferenças entre as
formas de cooperativas, a partir da identificação da finalidade
e da natureza orgânica dessas organizações, considerado o
contexto em que se inserem.

2 TIPOLOGIA DAS COOPERATIVAS

A definição sobre a finalidade das cooperativas está


relacionada ao objeto principal que é desenvolvido por essas
organizações, o que significa dizer, a sua atividade fim. A natureza
orgânica é definida a partir do conteúdo das cooperativas, da
essência dessas organizações. Nesse sentido, são observados:
(i) o projeto político; (ii) processo e organização do trabalho e,
(iii) das relações de trabalho.
A forma, assim como a natureza orgânica, e a finalidade
dessas cooperativas se apresenta intimamente relacionada aos
projetos políticos que as constituem. Dessa forma, a tipologia
permite reconhecer também os elementos que sustentam essas
propostas de ação política.

2.1 COOPERATIVAS: FINALIDADE

De acordo com a finalidade, as cooperativas podem ser


identificadas e divididas da seguinte forma: (i) cooperativas de
produção de bens e (ou) serviços; (ii) cooperativas de consumo
e (iii) cooperativas de crédito.

91
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

A cooperativa de produção é uma associação de pessoas


que tem como finalidade a produção coletiva de bens ou serviços
e o retorno dos resultados de tal produção apropriado pelos
próprios trabalhadores.
O trabalho realizado nessas cooperativas pode ser
resultado de um trabalho que foi inicialmente realizado
individualmente por cada cooperado e que é transformado, em
um segundo momento, coletivamente no âmbito da cooperativa,
ou todo o processo de produção pode ser coletivizado, na
forma de cooperativa.
Na organização desse processo de trabalho, os
trabalhadores, utilizando meios de trabalho, operam a
transformação de coisas (corpóreas ou incorpóreas), que
resultam em produtos que contêm trabalho.
O produto do trabalho pode ser materializado na forma
de bem ou de serviço, tendo em vista que sob o capital, o que
está se produzindo é uma mercadoria, que, como define Marx,
(2002) “é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa
que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas,
seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do
estômago ou da fantasia.” (MARX, 2002, p. 57)
As cooperativas de produção2 de bens e (ou) serviços
podem se apresentar, ainda, sob três formas: (i) cooperativas
de produção e/ou serviços; (ii) cooperativas mistas e (iii)
cooperativas integrais.
As cooperativas de produção de bens e (ou) serviços
apresentam como finalidade apenas a venda dos produtos,
resultado da produção de seus trabalhadores, e, por esse
motivo, podem ser consideradas cooperativas simples.

2 Paul Singer entende que “a cooperativa de produção é a modalidade

básica da economia solidária”. (SINGER, 2002, p. 84)

92
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

As cooperativas mistas apresentam como finalidade


preponderante a venda de produtos, que podem ser fruto da
produção dos trabalhadores cooperados e de outros
trabalhadores que convivem com os cooperados em uma relação
de assalariamento, sendo que tais cooperativas agregam também
às suas atividades compras em comum beneficiando seus
cooperados na aquisição de bens ou serviços. Essas cooperativas
são bastante expressivas no Brasil e se apresentam, principalmente,
no ramo das cooperativas agropecuárias.
São consideradas cooperativas integrais aquelas que se
apresentam como uma organização social comunitária, em que
a comunidade se organiza em cooperativa para produzir em
conjunto, prioritariamente, os produtos para seu próprio
consumo, comercializando o excedente.
As cooperativas integrais não se constituem em mero
instrumento de coletivização do trabalho, mas ampliam o
pressuposto da coletivização para uma série de bens que acaba
por constituir um patrimônio geral da comunidade.
No Brasil, existem alguns exemplos de cooperativas
integrais vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra – MST. Em pesquisa realizada por J.R.V.de Faria
(2003), a Cooperativa de Produção Agropecuária União do
Oeste Limitada – Cooperunião, criada em 1990, demonstra a
finalidade de sua constituição a partir da sua trajetória

o grupo ligado ao MST tinha uma proposta de produção


coletiva (...). Em 1992, foi formada a primeira equipe de
trabalho unificada que atuava na apicultura. Ocorre em 1994,
a filiação das famílias do grupo de vinte e cinco à Cooperunião
e a coletivização das máquinas e da produção de grãos. Em
1995, todo o processo de trabalho foi unificado e a terra foi
concedida para uso da cooperativa e os bens passaram para a
propriedade coletiva. (FARIA, 2003, p. 127-128)

93
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Além das cooperativas de produção que agregam o


consumo dos cooperados, aparecem as cooperativas que são
constituídas exclusivamente com a finalidade de ser uma
“associação dos consumidores para melhorar sua condição de
compra de bens e serviços”. (FARIA, 2003, p. 26-27)

As compras são feitas em comum de artigos de consumo para


seus cooperantes. (...) Durante muitas décadas esse ramo ficou
muito limitado a funcionários de empresa, operando a prazo,
com desconto na folha de pagamento. No período altamente
inflacionário essas cooperativas perderam mercado para as
grandes redes de supermercado e atualmente estão se
rearticulando como cooperativas abertas a qualquer consumidor.
(FIGUEIREDO, 2000, p. 52)

Ainda, quanto à finalidade, é possível verificar que há


mais um tipo específico de cooperativa – as cooperativas de
crédito. Essas apresentam como finalidade proporcionar, pela
mutualidade, assistência financeira aos seus cooperados.
O funcionamento dessas cooperativas ocorre mediante
autorização e fiscalização do Banco Central do Brasil, por serem
equiparadas às demais instituições financeiras. A lei lhes proíbe
que adotem o nome banco. No entanto, guardam alguns pontos
em comum com essas instituições financeiras. (FIGUEIREDO,
2000, p. 52-53)
Cabe ressaltar que algumas cooperativas agropecuárias
agregam, à produção e ao consumo, suas próprias cooperativas
de crédito.
Há uma tendência recente de abertura de cooperativas
de crédito, na perspectiva da Economia Solidária, essas
cooperativas vêm sendo denominadas cooperativas de crédito
solidárias ou cooperativas de crédito comunitárias. De acordo
com Paul Singer (2002), para que essas cooperativas sejam
solidárias, é necessário “que os trabalhadores que as operam
profissionalmente sejam sócios delas”. (SINGER, 2002, p. 85)

94
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

3 COOPERATIVA: NATUREZA ORGÂNICA

A análise relativa à natureza orgânica das cooperativas


está centrada na observação de três aspectos, quais sejam:
(i) o projeto político; (ii) processo e organização do trabalho e
(iii) as relações de trabalho.
De acordo com J.H. de Faria (2004), considera-se
processo de trabalho o conjunto das operações realizadas pelos
sujeitos trabalhadores, individual ou coletivamente, de forma
organizada, com a finalidade de produção de mercadorias.
Chama-se organização do trabalho a forma pela qual o processo
de trabalho encontra-se estruturado. Chamam-se relações de
trabalho as interações objetivas e subjetivas que os sujeitos
estabelecem entre si durante o processo de trabalho. (FARIA,
2004, p. 26)
A partir do estabelecimento desses critérios de análise,
relativamente à natureza orgânica das cooperativas, foram
observadas três formas: (i) cooperativas sob o comando dos
produtores diretos; (ii) cooperativas sob o comando do capital e
(iii) cooperativas sob o comando do trabalho precarizado,
dividindo-se esta última em: cooperativas de trabalho precarizado
e cooperativas de trabalho precarizado “ad hoc” (fraudulentas).

3.1 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DOS PRODUTORES


DIRETOS

Esse tipo específico de cooperativa tem como origem os


projetos idealizados pelos socialistas utópicos.
Nessa conformação específica, trabalhadores se associam
com o intuito de produzir bens ou serviços, formando, dessa
forma, cooperativas de trabalhadores associados.
A organização e as relações de trabalho nessas cooperativas
apresentam três aspectos relevantes à sua conformação:
“(i) gestão democrática; (ii) controle do processo de produção

95
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

pelos trabalhadores e (iii) distribuição do resultado proporcional


ao trabalho realizado”. De acordo com J.R.V.de Faria (2003),
os elementos dispostos anteriormente não caracterizam essas
cooperativas, no caso de serem observados individualmente.
Apenas a observação do conjunto desses elementos caracteriza
essa forma de cooperativa. (FARIA, 2003, p. 40)
Apesar de as cooperativas, no Brasil, serem a única forma
jurídica que comporta as especificidades mencionadas, alguns
autores reconhecem na prática, distorções jurídicas, em que
empresas de feição tipicamente capitalista observam tais preceitos,
como é o caso das empresas controladas por trabalhadores.3
Pode-se considerar que a cooperativa assume essa
configuração quando é “democraticamente gerida pelo conjunto
dos trabalhadores, que exercem o controle efetivo sobre o
processo de produção e distribuem o resultado proporcionalmente
ao trabalho realizado.” (FARIA, 2003, p. 41)
Os detentores do controle sobre o processo de produção,
neste caso, são os próprios trabalhadores, sendo que este
controle se exerce sobre a concepção do produto, seja este
bem ou serviço, e compreende todas as fases de execução até
a realização do seu valor, na forma de produto. Consideram-se,
neste aspecto, a apropriação de todos os elementos necessários
ao processo de trabalho que, como define Marx (2002),
“desempenham papéis diferentes na formação do valor dos
produtos”. (MARX, 2002, p. 235)
Considera-se a “distribuição do resultado proporcional
ao trabalho realizado quando o valor produzido e realizado é
distribuído na proporção do tempo e da natureza do trabalho
social dos agentes de produção.” (FARIA, 2003, p. 119)

3 Empresas capitalistas que entram em processo falimentar e os


trabalhadores assumem a gestão e a produção da empresa. São denominadas
empresas autogestionárias.

96
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

Quanto à gestão, pode-se entender que “uma organização


é democrática quando cada um dos seus associados participa
e é responsável pelas ações desta gestão, com condições de
acesso e domínio da informação gerencial em todos os seus
níveis”. (FARIA, 2003, p. 120)
Para Singer (2002), as cooperativas de trabalho coletivo
são as verdadeiras cooperativas de trabalho, pois o trabalho é
realizado coletivamente pelos cooperados dentro do espaço da
cooperativa, ou seja, a execução da atividade é realizada pelos
cooperados na própria cooperativa e o produto do trabalho é
dos cooperados. (SINGER, 2002, p. 84)
Os cooperados têm autonomia sobre a forma de execução
do trabalho e sobre o seu resultado e são coletivamente
proprietários e possuidores dos meios de produção.
Mas, ainda dentro dessa categoria, pode haver duas
formas de realização do trabalho, a primeira que já foi
mencionada, em que os trabalhadores realizam suas atividades
em conjunto, na própria sede da cooperativa, e a segunda em
que os trabalhadores necessariamente realizam a maior parte
das atividades individualmente, o que não modifica a
caracterização dos cooperados como produtores diretos, mas
muitas vezes esses cooperados são confundidos com
trabalhadores autônomos. Isso ocorre, por exemplo, em
cooperativas de transporte em que o cooperado realiza a maior
parte de suas atividades fora da sede da cooperativa.
J.R.V. de Faria (2003) demonstra no Quadro 1 a seguir,
os princípios da autogestão nas unidades produtivas que são
equiparadas nesse trabalho às cooperativas sob o comando
dos produtores diretos.

97
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

QUADRO 1 – PRINCÍPIOS DA AUTOGESTÃO NAS UNIDADES PRODUTIVAS


E SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS.

PRINCÍPIOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS


Grau de participação, Questões nas
Participação na
quais participa e Nível organizacional
gestão
em que ocorre a participação.*
(Planejamento,
Reprodução da configuração
Decisão e Controle)
organizacional**
Responsabilidade Grau de responsabilidade
na gestão Questões sobre as quais é responsável
Gestão
(Planejamento, Nível organizacional sobre o qual é
democrática
Decisão e Controle) responsável
Grau de acesso
Acesso Nível organizacional
da informação
Informação
Grau de domínio
Domínio Nível organizacional
da informação
Relações de propriedade econômica:
controle sobre o que é produzido,
inclusive sobre a capacidade de dispor
dos produtos.
Propriedade real:
Controle do Agentes da produção:
relações técnicas e
processo de Relações de trabalho manual e
sociais de produção
produção*** posse: controle trabalho mental
sobre como é Meios de produção:
produzido meios de trabalho e
objetos de trabalho
Propriedade legal: cotas de participação no patrimônio
Distribuição do Tempo de trabalho
resultado Natureza do trabalho social
proporcional ao
Participação no aumento do patrimônio
trabalho realizado
* BERNSTEIN, Paul. Necessary elements for effective worker participation in decision-
making. In: LINDENFELD, F. e ROTHSCHILD-WITH, J. (Org.). Workplace democracy
and social change. Boston: Porter Sargent, 1982. p.51-81.
** Cf. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. A democracia é
contextual, pois depende da configuração social. A reprodução desta configuração no
processo de tomada de decisão, implica na correta identificação dos atores sociais e de
suas relações.
*** Cf. definição de FARIA, Jose Henrique de. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas
unidades produtivas. Curitiba: Criar, 1987.
FONTE: FARIA (2003, p. 121)

98
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

3.2 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DO CAPITAL

Apesar da contradição relativa ao próprio conceito de


cooperativa, uma parte das cooperativas brasileiras de produção
assumiu forma análoga à das empresas capitalistas tradicionais.
Significa dizer que o processo, a organização e as relações de
trabalho nessas cooperativas são tipicamente capitalistas.
J.H. de Faria (2004) define essas três situações no
capitalismo da seguinte forma:
O processo de trabalho é tipicamente capitalista quando a
finalidade da produção é a geração e apropriação de valor
excedente (trabalho não pago) pelo capital, que o aliena do
trabalhador. A organização capitalista de trabalho refere-se à
forma como o capital estrutura o processo de trabalho, através
da divisão técnica e social, do estabelecimento de uma
hierarquia gerencial e de um sistema disciplinar específico.
As relações de trabalho sob o comando do capital referem-se
aos contratos, ao assalariamento, às relações sindicais e às
interações entre as estratégias gerenciais e as atividades
objetivas e subjetivas que os sujeitos trabalhadores estabelecem
no processo de trabalho. (FARIA, 2004, p. 26)

A incorporação desses preceitos pelas cooperativas


empresariais é bastante clara, aparecendo inclusive nos
discursos de seus dirigentes. Relativamente à incorporação de
técnicas de administração nas cooperativas, Rodrigues, em
1998, já se manifestava quanto às regras que deveriam nortear
as cooperativas.
Existe um aspecto fundamental na boa administração nos dias
de hoje – a habilidade em tomar decisões rapidamente.
Certamente essa é uma área sensível para as cooperativas,
dadas as características do processo democrático de decisão.
(...) Há, entretanto, uma forma de promover um rápido processo
decisório de forma que seja compatível com a democracia.
Em vez de votar em pessoas nas eleições cooperativas,

99
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

deveríamos votar em programas. Em vez de votar em pessoas


porque são honestas, sérias e competentes, deveríamos votar
em pessoas que tenham uma clara idéia do que necessitam
realizar. Eleito de forma democrática, o líder pode tomar as
decisões sem sentir a necessidade de consultar os membros
que lhe concederam o mandato. Essa abordagem enfatiza a
liderança cooperativa. (...) O novo papel do líder é convencer
os associados a seguir determinado caminho, e, então, como
um bumerangue, auxiliá-los no alcance de suas metas. (...)
O líder legítimo da cooperativa deve estar preparado para
realizar mudanças, além de ter outras qualidades. Por que
mudar? Mudar para se livrar de funcionários, cooperados,
líderes e cooperativas ruins. Considerando o ambiente
competitivo, não temos condições de manter elementos
negativos que destroem a imagem das cooperativas. Nós temos
de ser como Jesus, que expulsou os vendilhões do Templo.
(RODRIGUES, 2002, p.2-3)

Nesse discurso, Rodrigues (2002) apresenta o


cooperativismo clássico brasileiro, direcionado a acatar todas
as regras necessárias à acumulação tipicamente capitalista,
incluindo o processo, a organização e as relações de trabalho
específicas desse sistema.
Nesse sentido, é possível observar as seguintes
características nas cooperativas de essência empresarial
tipicamente capitalista:

(i) o trabalhador exerce suas atividades sob o controle do


capitalista, que é o proprietário de seu trabalho pelo tempo
contratado. Assim, o trabalho é realizado sob a vigilância
do capitalista; (ii) o produto do processo do trabalho não
pertence ao produtor direto, ao trabalhador, mas ao capitalista.
O capitalista, ao comprar a força de trabalho, incorpora o
próprio trabalho aos elementos que constituem o produto, e o
resultado do trabalho, o produto, portanto, é propriedade
do contratante da força de trabalho. A força de trabalho é

100
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

consumida como mercadoria que o capitalista comprou quando


este a coloca em movimento, acrescentando-lhe os meios de
produção. (FARIA, 2004, p. 27)

O processo de trabalho considerado em sua forma


capitalista é absolutamente reproduzido nos empreendimentos
aqui definidos como “cooperativas sob o comando do capital”,
tendo em vista que cumpre as duas condições essenciais a
sua conformação.
Os produtores diretos dessas cooperativas são trabalhadores
assalariados. Os cooperados compram a força de trabalho
desses trabalhadores, que exercem suas atividades sob o
controle direto ou indireto dos cooperados, sob as condições
estabelecidas na venda da força de trabalho (jornada de trabalho,
metas e demais formas possíveis e atuais de consumo da
força de trabalho e da produção de mais-valia). A definição
sobre qual finalidade deve orientar a produção dos trabalhadores
é dada pelos cooperados. Os meios de produção utilizados
pelos trabalhadores são de propriedade dos cooperados.
O produto, resultado do dispêndio da força de trabalho do
produtor direto, pertence aos cooperados. E, por fim, a força
de trabalho dos produtores diretos é consumida como
mercadoria, quando colocada em movimento, utilizando os
meios de produção dispostos à concretização das atividades
previamente definidas, por quem as comprou – os cooperados.
Nessas cooperativas, os cooperados formam o grupo
de proprietários dos meios de produção e do resultado do
trabalho – produto –, da atividade executada por trabalhadores
assalariados. Portanto, assumem as mesmas condições e
características do capitalista de um empreendimento
tradicionalmente orientado pelo comando do capital.
Não há relevância, sob esse aspecto, na conformação
do quadro relativo ao capitalista. Significa dizer que, o que
diferencia essas “cooperativas” das empresas capitalistas

101
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

tradicionais é a relação que existe entre os cooperados e


a cooperativa. Relativamente à legislação vigente, essa
organização é considerada como cooperativa, porque cumpre
os requisitos legais estabelecidos na legislação. Inclusive, porque
a legislação cooperativista prevê a contratação de trabalhadores
assalariados, para a realização das atividades meio e das
atividades fim.
A organização do trabalho nessas cooperativas é similar
ao das empresas capitalistas tradicionais, em que existem
empregadores e empregados. Nesse caso, especificamente,
os empregadores se apresentam sob a figura de um grupo de
cooperados. Como é o caso, por exemplo, das cooperativas
agropecuárias ou de cooperativas de produção de serviços ou
das cooperativas médicas em que as atividades meio são, em
regra, realizadas por trabalhadores assalariados.
Tais cooperativas podem ser denominadas também como
cooperativas empresariais. Essas cooperativas apresentam as
seguintes características:

(i) grande parte dos produtores diretos são trabalhadores


assalariados; (ii) os cooperados são responsáveis pela gestão,
ou a gestão é realizada por técnicos contratados; (iii) a
distribuição da renda e das sobras por cooperado é proporcional
ao “movimento ou a expressão econômica” realizada por cada
cooperado, ao contrário das cooperativas de produção sob o
comando dos produtores diretos.

Tais características podem ser observadas nos exemplos


a seguir tratados:

Cooperativa Coamo – Administração


Com 3,7 mil funcionários e 17,5 mil agricultores associados, a
Coamo baseia sua administração no tripé cooperados-diretoria-
funcionários. A perfeita integração entre eles tornou a Coamo
uma das maiores cooperativas agrícolas da América Latina.

102
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

Duas vezes por ano, a diretoria se reúne com os cooperados


no campo para debater os problemas da sociedade e as
tendências de mercado que afetam ou podem afetar o setor.
(COOPERATIVA COAMO, 2004)

Cooperativa Cocamar – Responsabilidade Social


A Cocamar sabe que a cidadania corporativa é a base para a
continuidade de seu crescimento e desenvolvimento. Por isso,
mantém a atenção voltada para seus colaboradores e
comunidade em geral, investindo ainda na conservação do meio
ambiente em favor das gerações futuras.
A atuação social é investimento para a Cocamar, atividade
organizada e voltada para a busca de resultados. A criação
de um Instituto de Responsabilidade Social e outro de
Difusão Tecnológica, destinados à operacionalização de
programas nos municípios de sua área de atuação, confirmam
esta tendência. Para o desenvolvimento dessas atividades
foi criado internamente um departamento – COCAMAR
SOCIAL – que coordena os programas desenvolvidos. A criança,
o adolescente e a comunidade, através das entidades
assistenciais, são os principais públicos a quem se destinam
à maioria dos programas em consonância com o bem estar
da comunidade interna, colaboradores e associados.
(COOPERATIVA COCAMAR, 2004)

Como é de notar, essas cooperativas reproduzem os


modelos vigentes de empresas capitalistas tradicionais, inclusive
na forma de se expressar, como, por exemplo, denominando
trabalhadores empregados como colaboradores. Além desse fato,
a questão referente à gestão democrática está adstrita aos
cooperados, sendo que se restringe em determinadas situações
a uma democracia meramente representativa. O controle do
processo de produção e da gestão está concentrada nas mãos
dos cooperados-empregadores e o resultado é distribuído aos
cooperados, proporcionalmente às trocas econômicas realizadas.

103
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

3.3 COOPERATIVAS SOB O COMANDO DO TRABALHO


PRECARIZADO

Devido à utilização indiscriminada da expressão cooperativa


de trabalho, para designar cooperativas absolutamente diversas,
ou seja, desde cooperativas de produção de bens ou de serviços,
ou cooperativas de trabalhadores que vendem força de trabalho,
ou mão-de-obra ou até cooperativas fraudulentas, é necessário
conceituar aqui o sentido dado a essa expressão.
A denominação cooperativa de trabalho diz respeitos às
cooperativas em que o trabalho fim é realizado pelos próprios
cooperados, independentemente da natureza do produto do
trabalho, seja ele um bem ou um serviço.
O conceito aqui utilizado, para designar o termo –
cooperativa de trabalho precarizado – é referente à cooperativa
formada por trabalhadores auto-organizados, que, privados da
propriedade dos meios de produção, vendem a força de trabalho
por meio da cooperativa. Dessa forma, a cooperativa de trabalho
constitui-se, em regra, como forma de precarização do trabalho.
Mas não se configura como cooperativa fraudulenta, pois a
cooperativa não está submetida ao capitalista, mas aos
trabalhadores, coletivamente em relação à sua gestão e,
individualmente, durante o período de execução de seus trabalhos.
Nessas cooperativas, também denominadas cooperativas
de mão-de-obra, o resultado do trabalho pertence sempre ao
contratante da cooperativa.
As cooperativas aqui designadas como cooperativas de
trabalho precarizado ad hoc (fraudulentas), são aquelas que
foram constituídas formal ou informalmente pelo capitalista, e
que se encontram subordinadas a este. Assim, a constituição
dessas cooperativas apresenta como objetivo única e
exclusivamente a precarização do trabalho.

104
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

Paul Singer (2004) utiliza a denominação, “cooperativas


de trabalho” para as cooperativas que estão sob o comando
do trabalho precarizado, em suas duas formas. O autor explica
a origem dessas cooperativas. “A cooperativa de trabalho
surgiu como forma conveniente de substituição de trabalho
assalariado regular por trabalho contratado autônomo. (...),
quando se trata de mudar o status legal dum grande grupo
de trabalhadores, a contratação coletiva sob a forma cooperativa
deve ser mais conveniente”. Ainda, explicando a origem dessas
cooperativas, argumenta:

empresas criam cooperativas de trabalho, com seus estatutos


e demais apanágios legais, as registram devidamente e depois
mandam seus empregados se tornarem membros delas, sob
pena de ficar sem trabalho. Os empregados são demitidos,
muitas vezes de forma regular, e continuam a trabalhar como
antes, ganhando o mesmo salário direto, mas sem o usufruto
dos demais direitos trabalhistas. Estas são as falsas
cooperativas também conhecidas como cooperfraudes e
outros epítetos. São cooperativas apenas no nome, arapucas
especialmente criadas para espoliar os trabalhadores forçados
a se inscrever nelas. (SINGER, 2004)

Relativamente à outra forma de apresentação das


cooperativas, designadas pelo autor também como cooperativas
de trabalho:

A outra origem das cooperativas de trabalho resultado de


iniciativas de trabalhadores marginalizados, sem chance de
obter emprego regular ou ainda em perigo de perder o trabalho
que têm. Este é, por exemplo, o caso dos trabalhadores de
empresas em crise, que se organizam em cooperativas ora
para tentar recuperar a sua ex-empregadora (comprando-a
com seus créditos trabalhistas e eventualmente com
financiamento) ora para disputar o mercado de serviços
terceirizados, tendo como arma sua proficiência profissional.

105
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Formam também cooperativas de trabalho trabalhadoras e


trabalhadores muito pobres, que sobrevivem vendendo seus
serviços individualmente e tentam obter melhores condições
de ganho unindo-se em cooperativas de trabalho. Estas
cooperativas são obviamente verdadeiras, frutos da livre
vontade dos que nelas se associam que não espoliam
ninguém e são criadas como armas na luta contra a pobreza.
(SINGER, 2004)

As cooperativas de trabalho agregam cooperados


que exercem atividades similares à dos empregados em
empresas capitalistas. O trabalho é realizado fora do ambiente
da cooperativa, normalmente no local definido pelo contratante.
A diferença essencial entre essas cooperativas e as
cooperativas de produção de bens e serviços é que, no primeiro
caso, a cooperativa vende o resultado do trabalho do conjunto
de cooperados, ou seja, vende o produto do trabalho, a mercadoria,
que pode se apresentar na forma de bem ou serviço, enquanto
no segundo caso, a cooperativa não vende o resultado do
trabalho dos cooperados, mas faz a intermediação, a venda da
própria força de trabalho de cada cooperado ao capitalista.
Assim, as cooperativas de trabalho ou de mão-de-obra
operam na lógica definida pela CLT, que trata do trabalho
assalariado. Três elementos configuram o trabalho assalariado,
de acordo com a legislação brasileira: (i) subordinação; (ii)
pessoalidade; (iii) não eventualidade no trabalho fornecido.
Verificadas essas condições, a relação de trabalho que se
estabelece é a de emprego.
Tendo em vista que as cooperativas de trabalho cumprem
os requisitos definidores do conceito de trabalho assalariado,
mas que por serem cooperativas, os contratantes estão
teoricamente dispensados do pagamento obrigatório dos
direitos trabalhistas assegurados na CLT, há nesse sentido à
precarização do trabalho.

106
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

É importante salientar que existe uma diferença fundamental


entre as cooperativas de trabalho e as cooperativas fraudulentas.
No primeiro caso, existe de fato a organização de trabalhadores,
sendo que estes se auto-agenciam vendendo a sua força de
trabalho, mas existe, mesmo em grau muito pequeno, certa
autonomia referente às decisões quanto à cooperativa.
Relativamente ao processo e à organização do trabalho,
não há qualquer diferença na atividade realizada pelo cooperado
ou na atividade realizada pelo empregado. Mas, quanto às
relações de trabalho, entre capitalista e trabalhador há uma
sutil diferença. O vínculo de subordinação estabelecido não é
o mesmo, apesar de ser muito próximo, inclusive porque, nesse
caso, não se trata da relação entre capitalista e trabalhador
individual, mas entre capitalista e trabalhadores organizados
em um coletivo.
Isso poderia significar certo avanço para os trabalhadores,
no caso de estes receberem, no mínimo, o valor equivalente
ao pago pelo capitalista ao trabalhador assalariado, considerados
todos os direitos assegurados a este último. Assim, os
trabalhadores estariam menos submetidos às definições dos
capitalistas e teriam mais condições para se organizar.
O que vem ocorrendo é que, na maioria dos casos, os
trabalhadores estão sendo prejudicados com a desvalorização
do seu trabalho, pela negação do recolhimento referente aos
encargos sociais. O que significa dizer que os capitalistas estão
retendo uma parte maior do valor referente ao resultado do
trabalho desse trabalhador, aumentando o grau de exploração
sobre a força de trabalho.
Essa questão é preocupante, tendo em vista que os
trabalhadores estão sendo cada vez mais pressionados pelas
práticas de precarização do trabalho, não só das cooperativas
de trabalho, mas das inúmeras formas de subcontratação,
terceirização e informalidade. E, em uma disputa extremamente

107
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

desigual, as condições de reivindicação de valorização do


trabalho estão edificadas em bases muito frágeis.
A defesa dos direitos sociais dos trabalhadores, como
direitos humanos, que vêm sendo defendida por Paul Singer
(2004) é constitucional, a questão está em como se efetivar
tais direitos. Afinal, o reconhecimento dos direitos humanos,
em geral, não tem sido acompanhado pela sua efetiva proteção.
Por fim, considera-se que as especificidades referentes
às cooperativas brasileiras, quanto à finalidade e à natureza
orgânica, podem ser traduzidas no quadro a seguir:

QUADRO 2 – TIPOLOGIA DAS COOPERATIVAS.

Finalidade Produção
Consumo Crédito
Natureza Orgânica Bens Serviços
Cooperativa de Produtores Associados*
Cooperativa Empresarial**
Cooperativa Cooperativa de Trabalho
de Trabalho Cooperativa de Trabalho
Precarizado Precarizado "ad hoc"
* Podem ser mistas ou integrais as cooperativas de produção de bens e serviços que de
acordo com a definição relativa à natureza orgânica, são cooperativas de produtores
associados, ou seja, aquelas que se constituem sob o comando dos produtores diretos.
** Podem ser mistas as cooperativas de produção de bens ou serviços que seguindo os
critérios relativos à natureza orgânica são cooperativas empresariais, pois se constituem
sob o comando do capital.

4 DESMITIFICAÇÃO DO “SISTEMA ÚNICO”

A compreensão sobre as relações que se estabelecem,


hoje, na sociedade, parte da observação daquilo que foi
historicamente construído, das transformações ocorridas, das
práticas sociais e das condições materiais que a humanidade
vem produzindo. Como afirma Castel, “o presente não é só o
contemporâneo. É também um efeito da herança, e a memória
de tal herança nos é necessária para compreender e agir hoje.”
(CASTEL, 2001, p.23)

108
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

Esse texto apresentou como objetivo a criação de uma


tipologia das cooperativas brasileiras, partindo do reconhecimento
da sua essência social, econômica e política, e das diferentes
perspectivas que vêm orientando a aplicação generalizada dessa
denominação a organizações que apresentam princípios e
objetivos diferenciados, e, em alguns casos, até antagônicos
em relação aos objetivos originais da criação de cooperativas.
O intuito de trabalhar na formulação de marcos conceituais
e de uma tipologia das cooperativas decorreu especialmente
da observação relativa à manifesta impropriedade de institutos
jurídicos, na abordagem concreta da realidade vivenciada por
essa pluralidade de organizações, que foram designadas como
cooperativas, desconsiderando-se a natureza que apresentam.
Assim, um dos pontos centrais do tratamento jurídico das
cooperativas passa pelo reconhecimento da diversidade relativa
à finalidade e à essência dessas organizações.
A retomada atual do conceito “cooperativa” é relevante,
tendo em vista que estes empreendimentos pautam debates
bastante importantes no país, por conta de vários fatores
concorrentes, sendo que entre eles aparecem com mais evidência
três fatores: (i) a flexibilização de direitos e a precarização nas
condições do trabalho, que se refletiram, entre outras situações,
na constituição de um grande número de cooperativas,
denominadas, como visto anteriormente, cooperativas de
trabalho, em que os trabalhadores estão submetidos a uma
drástica redução de seus direitos, comprometendo, em conjunto
com as demais formas de precarização do trabalho, os direitos
sociais assegurados em intensas disputas políticas anteriores,
o que denota um retrocesso tanto do ponto de vista do direito
como das condições socioeconômicas da classe trabalhadora
brasileira; (ii) no plano político, as cooperativas foram retomadas
como um projeto econômico de desenvolvimento do Estado, e
apesar das diferentes formas de cooperativas e, das condições

109
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

materiais e objetivas que estas apresentam do ponto de vista


da realização do desenvolvimento de seus projetos políticos,
procurou-se consolidar um espaço desigual, mas aberto à
discussão, propostas e reivindicações destas organizações, e,
por fim, (iii) a legislação cooperativista está sendo rediscutida,
pois, o conteúdo da Lei n.º 5764 de 1971 está defasado em
relação às determinações expressas na Constituição Federal
de 1988 e, ainda, o tratamento destinado às cooperativas no
Novo Código Civil, abriu espaço para a discussão de
modificações centrais no antigo sistema, o que tem suscitado
vários questionamentos sobre o tema.
Nesse sentido, a busca por estabelecer diferenças
relevantes em relação a tais organizações, observadas as
suas peculiaridades e inserção em um sistema maior, apresenta
como objetivo primordial a desconstrução da “unidade” no
cooperativismo brasileiro que explicita a apropriação hegemônica
dessa categoria de análise por um determinado grupo social.
Há, portanto, uma expressiva tentativa de eliminar ou sufocar
manifestações diferentes que se encaixam na mesma categoria,
de acordo inclusive, com o conteúdo definido pela legislação
brasileira. A produção científica e literária que vem discorrendo
sobre o cooperativismo brasileiro tem, em geral, apresentado
suas teses com base nessa aparente realidade, ou seja, há
uma produção razoável de textos que partem de um
pressuposto formal. Assim, o pressuposto do texto apresentado
aqui pretendeu romper com a superficialidade que reside na
manutenção de uma lógica-discursiva que nega as diferenças
essenciais que residem na identidade, principalmente, das
organizações que mantiveram o sentido original do termo,
deturpado e reapropriado no contexto brasileiro com um sentido
que serve, em regra, aos interesses de uma elite econômica de
feição tradicionalmente capitalista.

110
CONFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DO COOPERATIVISMO BRASILEIRO

Com a análise apresentada, é possível perceber que existem


projetos políticos em disputa e que as cooperativas são um
dos instrumentos de manutenção de uma ordem vigente ou da
transformação desta mesma ordem e esta opção está diretamente
relacionada à finalidade proposta pela cooperativa considerada
em conjunto com a natureza orgânica nela apresentada.
A recuperação da expressão cooperativa está relacionada
a uma concepção emancipatória e transformadora da realidade,
e esta transformação somente tem lugar nas cooperativas de
produção em que os próprios trabalhadores comandam o
processo de produção e se apropriam do resultado do seu trabalho.

REFERÊNCIAS

ALIANÇA COOPERATIVA INTERNACIONAL. http://www.ica.coop/ica/pt,


25/05/2004

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:


OAB, 2003.

BRASIL. Lei n.º 5764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política


Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades
cooperativas e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1971.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do


salário. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

COOPERATIVA CASTROLANDA. http://www.castrolanda.com.br/


inst_gestao.htm,13/07/2004

COOPERATIVA COAMO. http://www.coamo.com.br/,13/07/2004

COOPERATIVA COCAMAR. http://www.cocamar.com.br/empresa/


cocamor.htm, 13/07/2004

FARIA, José Henrique de. Economia Política do Poder: as práticas do


controle nas organizações. Curitiba: Juruá, 2004. (no prelo)

FARIA, José Henrique de. Relações de poder e formas de gestão. 2.ed.


Curitiba: Criar Edições/FAE, 1987.

FARIA, José Ricardo Vargas de. Organizações coletivistas de trabalho:


autogestão nas unidades produtivas. Dissertação de mestrado em
administração da UFPR. Curitiba, 2003.

111
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

FIGUEIREDO, Ronise de Magalhães. Dicionário Prático de Cooperativismo.


Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

FLEURY, Maria Teresa Leme. Cooperativas agrícolas e capitalismo no Brasil.


São Paulo: Global, 1983.

GALLASSINI, J. A. Cooperatismo de qualidade e resultados. Campo


Mourão: Jornal Coamo, http://www.coamo.com.br/jornalcoamo/dez01/
opiniao.html, 12/7/2004

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 20.ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2002.

RODRIGUES, Roberto. Anotações para um discurso no Congresso da


CCA (Canadian Co-operative Association). http//www.ica.coop/ica/pt/
ptwinmpeg.html, 28/08/2002

SINGER, Paul. Cooperativas de trabalho. http://www.mte.gov.br/temas/


economiasolidaria/textosdiscussão/conteudo/cooperativasdetrabalho.asp,
12/07/2004.

SINGER, Paul. Sindicatos, cooperativas e socialismo. São Paulo: Fundação


Perseu Abramo, 2003.

SINGER, Paul. A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In:


Sousa Santos (Org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não
capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. 2.ed.


Petrópolis: Vozes, 1999.

112
A EVOLUÇÃO RECENTE DA
QUESTÃO AGRÁRIA E OS LIMITES DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL*

Pedro Ivan Christoffoli**

RESUMO: O estudo analisa as políticas do RESUMEN: El estudio analiza las políticas


governo Lula para o meio rural e procura del gobierno Lula para el medio rural y
desvendar, por detrás das intenções e dos procura desvendar, por detrás de las
discursos, as estratégias colocadas em intenciones y de los discursos, las
cena. Busca demonstrar que se gestou estrategias colocadas en escena. Busca
no governo uma aliança que abandona demostrar que se gestó en el gobierno
a construção histórica representada una alianza que abandona la construcción
pelo Partido dos Trabalhadores como histórica representada por el Partido de
ferramenta de luta e organização social los Trabajadores como herramienta de
dos trabalhadores e de sua histórica aliança lucha y organización social de los
e priorização dos excluídos do campo. Os trabajadores y de su histórica alianza y
dados indicam a migração de um governo priorización de los excluidos del campo.
de corte classista, comprometido com as Los dados indican la migración de un
bandeiras reivindicatórias históricas dos gobierno de corte clasista, comprometido
trabalhadores, para um governo de corte con las banderas reivindicatorias
populista, ancorado na construção de um históricas de los trabajadores, para un
bloco conservador em que se configura gobierno de corte populista, fundado en
uma aliança da parcela hegemônica do PT la construcción de un bloco conservador
e do sindicalismo com o grande capital. en que se figura una alianza de parcela
hegemónica del PT y del sindicalismo con
PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas;
el grande capital.
questão agrária; Governo Lula.
PALABRAS-CLAVE: políticas públicas;
cuestión agraria; Gobierno Lula.

* O presente artigo foi redigido no ano de 2005 porquanto alguns dados


podem apresentar defasagem.

** Doutorando em Desenvolvimento Sustentável (UnB); membro da equipe


técnica da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil –
CONCRAB.

113
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

INTRODUÇÃO

O processo recente de luta pela reforma agrária no Brasil


resultou em mais de meio milhão de famílias assentadas ao
longo dos últimos 10 anos. Tal processo se dá como resultado
da ação de inúmeros atores: o Estado, as igrejas e, principalmente,
pela pressão dos movimentos sociais de trabalhadores rurais,
como o MST, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, a CONTAG
e outros.
Como resultado das lutas e da fermentação social, o povo
brasileiro vem construindo, desde o fim da ditadura, experiências
organizativas nos campos social, econômico e ambiental, e na
democratização do poder local, que muito contribuíram para a
vitória eleitoral do projeto democrático popular capitaneado
por Lula.
A luta pela construção de um novo modelo de agricultura e
de sociedade, enraizados na realidade concreta brasileira, em que
se dá o embate de classes sociais e se manifestam os modelos
antagônicos, tem no agronegócio e no modelo alternativo baseado
na agricultura camponesa as suas duas principais vertentes.
O agronegócio organizado em grandes unidades
produtivas altamente intensivas em capital,1 geradoras de
produtos para exportação, calcado num modelo tecnológico

1 O modelo capitalista se viabiliza não somente por meio das grandes

unidades, mas também a partir de pequenas unidades produtivas em termos de


tamanho, mas intensivas em termos de emprego de capitais, via a incorporação
de insumos, maquinários, recursos genéticos, visando obtenção de elevada
produtividade, na produção organizada em função do mercado, principalmente
de exportação. Nessa categorização, muitas unidades produtivas de tamanho
pequeno, que se utilizam de elevados investimentos em capital e ou empregam
trabalho assalariado e produção modernizada, se encaixam no modelo do
agronegócio, ainda que ideologicamente, alguma parcela desse segmento possa
ser agrupada junto aos setores de “trabalhadores para o capital”, especialmente
os muitos agricultores integrados à indústria do fumo, da seda, aos frigoríficos
de aves e suínos etc.

114
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

com processos cada vez mais artificializados (uso de variedades


geneticamente manipuladas, de insumos dependentes de
energia não-renovável, contaminantes dos recursos hídricos e
destruidores dos solos e das florestas). E a agricultura
camponesa, que se gesta nas barracas de lona preta das
ocupações de terra, nos assentamentos, nas comunidades
quilombolas, que se alia aos conhecimentos indígenas
ancestrais, aos pólos remanescentes da agricultura familiar e
das comunidades tradicionais, enfim, que luta para sobreviver
ao avanço do modelo dominante, numa luta de guerrilha
tecnológica, de resistências culturais, de greves de fome
paradigmáticas, contra a opressão da “falta de alternativas”.
A atuação do Estado brasileiro historicamente tem sido
a de fomentar o desenvolvimento capitalista no campo,
criando as bases para sua instalação e consolidação, desde
os anos 1950-60. A efervescência social dos movimentos
sindical e popular levou a um questionamento desse modelo
e à eleição de Lula como parte de um projeto popular, de
democratização do Estado, e de reconstrução da nação brasileira
em outros moldes.
Passados três anos do governo Lula, começam a surgir
dados que permitem ir construindo elementos de análise sobre
as estratégias adotadas, as alianças priorizadas e os resultados
alcançados pelo governo, e sua vinculação com a estrutura de
classes e os projetos em disputa no meio rural brasileiro.
O presente estudo analisa o governo Lula em suas
políticas para o meio rural e procura desvendar, por detrás das
intenções e dos discursos, os arranjos e as estratégias colocadas
em cena. Busca-se demonstrar que se gestou no governo uma
aliança que coloca por terra a construção histórica representada
pela construção do Partido dos Trabalhadores como ferramenta
de luta e organização social dos trabalhadores, e de sua histórica
aliança e priorização dos excluídos do campo. O que se constata

115
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

é que a política conduzida ao longo dos últimos anos representou


uma “virada de mesa” contra os interesses populares,
supostamente vitoriosos nas últimas eleições presidenciais.
Os dados delineiam a migração de um governo de corte
classista, comprometido com as bandeiras reivindicatórias
históricas dos trabalhadores, para um governo de corte
populista, ancorado na construção de um bloco conservador,
em que se configura uma aliança da parcela hegemônica do PT
e do sindicalismo, com o grande capital. Tal aliança inesperada,
incompreendida e pouco clara para a maioria dos militantes
sociais, aparece travestida por um discurso da busca de
confiança e governabilidade para o mandato de um novo “pai
dos pobres”, numa reedição de um getulismo sem as políticas
nacionalistas e sem inclusão social, num populismo caricato,
onde a mão mais fraca afaga os pobres enquanto a mancheia
atende aos interesses do grande capital.
Nessa “virada de mesa” histórica depois da derrota eleitoral
de 2002, a burguesia financeira e em particular a agrária não
só conseguem manter sua dominação histórica como também
ampliam o leque de políticas disponíveis que, na agricultura,
possibilitaram a ampliação do território sob seu controle, o maior
acesso aos fundos públicos de financiamento e a retomada
da hegemonia sobre o conjunto da sociedade, em termos de
representação ideológica do modelo agrícola.

O CAMPO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A


AGRICULTURA NOS ANOS 1990

Os governos Collor e FHC aplicaram, desde a década de


1990, políticas neoliberais que contribuíram para desmontar
as instituições e políticas voltadas aos pequenos agricultores,
e que exerciam, desde a etapa final do regime militar, um papel
de estímulo e apoio a uma parcela desse segmento. Durante o

116
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

governo Collor iniciou-se um processo drástico de redução


das barreiras à importação de produtos agrícolas. A idéia era
expor a economia brasileira à competição internacional de forma
a fortalecê-la no longo prazo. Essa receita fazia parte de um
conjunto de políticas neoliberais propostas pelo que ficou
conhecido como o Consenso de Washington.
O resultado foi um aumento nas importações de alimentos
e matérias-primas, que passaram a representar fator essencial
de controle da inflação, levando à depressão dos preços agrícolas
(a “âncora verde” do Plano Real). Com o aumento de competição
derivada das importações, dezenas de milhares de pequenos
produtores se viram inviabilizados, produções como a de
algodão decresceram,2 e mesmo nos produtos em que houve
aumento do consumo, derivado da estabilização da economia,
a maior fatia desse mercado em crescimento foi abocanhada
por produtos importados.

2 Mais tarde ocorre o ressurgimento da cultura do algodão, mas já não


mais em pequenas unidades familiares, localizadas na região sul-sudeste do
país, como era comum até meados dos anos 90, e sim baseada em grandes
unidades de produção na região centro-oeste do país.

117
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

A figura anterior demonstra o efeito da abertura comercial


sobre a importação de produtos agrícolas, particularmente os
originários do Mercosul, onde o crescimento das importações
de produtos agrícolas in natura e industrializados foi da ordem
de 150% em termos de valor. Esse crescimento,3 no período
inicial do Plano Real, deriva em grande medida da política de
estabilização econômica e da valorização cambial da moeda
brasileira adotadas pelo governo FHC (BRANDÃO, REZENDE E
MARQUES, 2005; MELO, 2005). Em 1999, fruto do abandono
da política do câmbio fixo em relação ao dólar, as importações
recuam, mantendo, porém, um patamar superior ao período
anterior ao plano real.
Em paralelo à abertura de importações, dá-se o
desmantelamento das políticas de Estado para a agricultura,
com base na tese neoliberal de que o mercado deveria dar
conta da regulação econômica. Nesse período foram extintos
ou literalmente desmantelados diversos organismos e políticas
públicas direcionadas à agricultura:
a) o serviço brasileiro de extensão rural (SIBRATER/
Embrater) foi desmontado, restando apenas algumas
unidades enfraquecidas nos estados agrícolas mais
ricos. Esse sistema havia servido para abrir caminho
à implantação do modelo produtivo da revolução verde
(de interesse das transnacionais produtoras de
sementes, máquinas e insumos) e de unidades

3 “A partir de outubro de 1994, os preços agrícolas iniciam uma trajetória

de queda que se estendeu por quase um ano. [...] Em 1994, foram importadas
3 milhões de toneladas de grãos, das quais um terço de arroz, 1,5 milhão de
milho e 300 mil toneladas de feijão preto e em cores. Note-se que essas
importações ocorreram não obstante a existência de volumosos estoques públicos
[...]. Isso, aliás, foi uma característica de todo o período 1992/94, deixando
clara a inconsistência entre a política agrícola adotada e a economia aberta...”.
(RESENDE, 2000, p. 23)

118
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

agroindustriais em regime de integração (suínos, aves,


fumo, leite, bicho da seda etc.). Com esse modelo já
estruturado e com a montagem de um sistema privado
de assistência técnica (na verdade um sistema de
imposição de pacotes tecnológicos e de venda de
insumos), não havia mais necessidade do sistema
público de ATER para atender aos interesses do grande
capital. Assim procedeu-se a seu desmonte;
b) O Estado se retirou da política de garantia de preços e
das compras de produção, em vista de formação de
estoques. As políticas de apoio à sustentação de
preços agrícolas, de abastecimento urbano, e de
armazenagem, foram desmobilizadas, praticamente
anulando a capacidade de estocagem pública no país
(via desmonte e privatização da rede da CONAB);
c) A política de garantia de preços mínimos, coerente
com o exposto anteriormente, foi gradualmente
desarticulada e os preços alinhados aos mercados
internacionais, reduzindo-se a margem de manobra
para políticas agrícolas autônomas por parte do
governo brasileiro.4
d) A pesquisa agropecuária, estruturada em torno do
sistema Embrapa, foi um apoio fundamental para a
implantação da moderna agricultura de grande escala,
contribuindo para a consolidação das bases tecnológicas
do agronegócio.5 Desde o início dos anos 90, passa

4 Adotou-se a política de alinhamento aos preços internacionais de

commodities. Com isso o Brasil passa de exportador a importador líquido de


diversos produtos agrícolas, muitos dos quais adquiridos a preços subsidiados
dos países de origem, (caracterizando dumping).
5 De fato, foi por ex. a Embrapa quem viabilizou tecnologicamente o

plantio de soja na região norte e nordeste do país, atividade produtiva


grandemente responsável, junto com a pecuária extensiva, pela devastação
florestal da Amazônia e dos Cerrados.

119
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

por processo gradativo de aproximação com o capital


privado, como a Monsanto, inicialmente por meio de
contratos lesivos envolvendo transferência de recursos
genéticos e tecnologia. Em paralelo, mediante a redução
orçamentária e direcionamento da empresa para
geração de caixa via contratos privados. De outro lado,
limitando ações para desenvolvimento de tecnologias
agroecológicas, voltadas ao segmento dos pequenos
agricultores e às comunidades rurais tradicionais.
e) A política fundiária promoveu uma reforma às avessas,
com a apropriação de 20 milhões de hectares de terras
públicas por latifundiários nas regiões de fronteira agrícola.

A herança deixada pelo ciclo neoliberal de FHC e Collor,


revela os paradoxos e as contradições do meio rural brasileiro:
o desmonte das políticas públicas; a concentração de terras e
riquezas, com uma produção recorde de produtos agrícolas
para exportação; miséria e fome nos campos, e êxodo rural
rumos às favelas e à marginalidade.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O MEIO RURAL NO PERÍODO LULA

O governo Lula adota diversas iniciativas de recomposição


de políticas públicas voltadas para a população mais pobre do
meio rural. Algumas dessas políticas estão em grande medida
consolidadas, como o Pronaf e os programas de renda mínima,
enquanto outras se encontram em fases iniciais de implantação.
Suas ações podem ser enquadradas em três situações: a) a
recuperação de políticas públicas tradicionais que haviam sido
desmanteladas pelos governos anteriores; b) a ampliação de
instrumentos já existentes (dando a eles uma característica
diferenciada); c) as políticas inovadoras de promoção da cidadania
no meio rural.

120
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

Dentre as políticas públicas tradicionais que foram


recuperadas estão: a) Crédito rural – Pronaf – ampliação da
base beneficiada e do montante de recursos repassados;
b) programa de ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural.
Abrangência para atendimento direto e indireto a 1,6 milhão
de agricultores; c) a política de assentamentos; d) a política de
armazenagem e formação de estoques reguladores, com base
na compra de produtos da agricultura familiar.
Quanto às políticas públicas ampliadas, temos: a) o PAA –
Programa de Aquisição de Alimentos – que aplicou R$ 200
milhões e beneficiou 100 mil produtores em 2005, além de
desenvolver mecanismos inovadores de compra direta da
agricultura familiar vinculados a programas de segurança
alimentar; b) Seguro Agrícola – Inovou introduzindo mecanismos
de garantia de renda aos agricultores familiares; c) o programa
Luz para Todos.
Em relação às políticas públicas de promoção da cidadania
tivemos: a) a criação do Programa Fome Zero, centrado na
Bolsa família, com mais de 7 milhões de famílias beneficiadas;6
b) os programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA),
Alfabetização, e Pronera (57 mil educandos beneficiados em
2004); c) o reconhecimento de direitos e a demarcação de terras
indígenas e quilombolas; e) a campanha de documentação de
mulheres agricultoras; e f) o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil – PETI, com cerca de 1 milhão de crianças atendidas.
Os números dos diversos programas são positivos,
especialmente quando comparados ao descaso dos governos
anteriores, demonstrando um redirecionamento de políticas

6 O Bolsa Família, havia atingido até março de 2005 quase 60% (6,5

milhões), do total de 11,2 milhões de famílias pobres no país (estimadas com


base na PNAD/2001, do IBGE), com 3,4 bilhões de reais investidos em 2003,
e 4,8 bi em 2004. Desse montante uma parcela significativa das famílias
localiza-se no meio rural.

121
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

públicas para o meio rural. No entanto, essas ações continuam


sendo concebidas como políticas periféricas e compensatórias.
Ou seja, ainda que as políticas públicas acima analisadas
contribuam para atenuar a crise social no meio rural, não trazem
reversão estrutural à miséria e à fome. Elas impactam sobre as
condições de vida das pessoas, de uma forma pontual e
provisória. Não conseguem beneficiar em especial os segmentos
mais pobres do campesinato, de forma permanente, permitindo
sua ascensão a um patamar superior de reprodução das
condições de vida. Isso somente seria possível mediante a
implementação de medidas estruturais, como a reforma agrária.
A questão central, portanto, é se as políticas estruturantes
têm sido aplicadas e se são adequadas e suficientes para
promover uma inflexão no modelo de desenvolvimento no meio
rural brasileiro. Caso contrário, políticas pontuais e compensatórias
terão apenas efeito conjuntural, desaparecendo com o final
dos programas.
É com essa preocupação que iremos centrar a análise
mais detalhada sobre dois programas de governo, o crédito
rural e a reforma agrária, pela sua abrangência, potencial de
impacto e relevância política.

O FINANCIAMENTO RECENTE DA AGRICULTURA NO BRASIL E O


FORTALECIMENTO DO AGRONEGÓCIO

O número de pequenos agricultores no Brasil situa-se


em torno de 4 milhões de famílias, com uma área total ocupada
de 107 milhões de hectares, e 14 milhões de pessoas ocupadas,
ou 86,6% de toda população economicamente ativa (PEA) no
meio rural e cerca de 18% do total da PEA brasileira.
No entanto, historicamente, a maior parcela dos recursos
públicos para financiamento das atividades agrícolas tem sido

122
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

destinada aos grandes proprietários. Esse padrão não se alterou


no governo Lula, como será demonstrado na sequência.

A tabela indica que o acesso aos recursos para


financiamento, aspecto essencial para viabilização da produção
agropecuária, se dá de forma desproporcional, tendo os grandes
fazendeiros o acesso a um montante elevado dos recursos
disponíveis (73,8% do total), em proporções muito acima do
valor produzido (61%) ou dos empregos gerados no meio
rural (25,3%).
Dados sobre o financiamento da agricultura nos primeiros
anos do governo Lula indicam que essa tendência se manteve.
Houve aumento significativo dos recursos e da cobertura
direcionados à agricultura familiar, contudo em proporção
insuficiente para reverter a tendência histórica. Para confirmarmos
essa hipótese, será preciso analisar a dinâmica de financiamento
do Pronaf.

O FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR

De acordo com dados do MDA, o financiamento à


agricultura familiar mais do que dobrou nos três primeiros anos
do governo Lula.

123
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Ocorreu um forte aumento no volume de crédito destinado


à agricultura familiar. O montante de recursos financiados mais
do que triplicou, junto com o número de agricultores beneficiados
pelo crédito, tendo havido aumento na cobertura do Pronaf
em relação ao conjunto de agricultores familiares:

124
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

O número de contratos de custeio do Pronaf saltou de


677 mil em 2002 para 1,02 milhão em 2004. Os contratos
de investimento subiram de 275 mil em 2002 para 551 mil
em 2004. O número de famílias que nunca havia tido acesso a
crédito do Pronaf e o obtiveram pela primeira vez foi entre
600 a 700 mil (MDS, 2005; MDA, 2005c). O número de contratos
apresentou crescimento em todas as regiões do país, em especial
no Nordeste, subindo de 953 mil em 2002 para 1,570 milhão
em 2004. Além disso, o aumento do valor bruto disponível
para o Pronaf durante o governo Lula foi de 200%.
Contudo, o peso do Pronaf sobre o total do crédito rural
do Brasil representa apenas 15% do valor total do crédito
disponibilizado. Ou seja, ainda que a evolução dos contratos
seja positiva, os dados demonstram as limitações estruturais
da estrutura fundiária e das relações de poder no agro nacional.
Isso pode ser constatado tanto em termos de cobertura total
de agricultores familiares beneficiados como em termos do
montante de recursos destinados e seu peso relativo sobre o
total disponibilizado para o segmento agrícola.
Apenas 38% do total de pequenos agricultores brasileiros
conseguiu ter acesso ao crédito.7 Além disso, cerca da metade
dos recursos foi aplicada na Região Sul do país (45,7% dos
recursos e 37,2% dos beneficiários, somando 584.594

7 Partindo-se do número de 4,139 milhão de estabelecimentos familiares

no Brasil, e considerando-se que cada agricultor familiar tenha feito apenas um


único contrato (há um percentual significativo que realizou mais de um contrato
no ano – p.ex. fez um contrato para financiar a safra de inverno e outro para a
safra de verão; ou um contrato para custeio e outro para investimento), no
ano-safra atual teríamos uma cobertura máxima de 38% dos agricultores familiares
brasileiros (1,57 milhões de contratos). (FONTE: dados do MDA, 2005b;
SPAROVEK, 2003; e elaboração do autor). O percentual identificado pelo Censo
Agropecuário em 1996 foi de cerca de 4% de cobertura (sem repetição) de
acesso ao crédito às unidades menores que 200ha (OLIVEIRA, 2004).

125
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

contratos), o que mostra uma concentração regional na


destinação do Pronaf. Os dados das demais regiões também
mostram a cobertura insuficiente e viesada, desse que acabou
sendo o principal instrumento do governo Lula para a agricultura:
• região Nordeste: 18,5% dos recursos e 36,9% dos
contratos;
• região Sudeste: 17,4% dos recursos aplicados e 14,6%
dos contratos;
• região Norte: 12,1% dos recursos,
• região Centro-Oeste: ficou com a menor participação –
6,4% dos recursos e 3,5% dos contratos.

Em resumo, as políticas adotadas são insuficientes para


enfrentar a situação de pobreza e miséria no meio rural brasileiro.
Mesmo com o aumento no volume de recursos direcionados à
agricultura familiar, a maioria dos pequenos agricultores foi
excluída do acesso ao crédito, ficando à margem do dinamismo
recente na agricultura brasileira. Pelo menos 62%, ou dois
em cada três pequenos agricultores ficou à margem do processo
de financiamento oficial para a agricultura e, portanto, das
possibilidades de melhorar de patamar produtivo.
A análise desses dados reforça a tese que a política do
governo Lula para o meio rural é insuficiente para o enfrentamento
da pobreza e miséria. Em sendo assim, programas de corte
compensatório, como o bolsa família têm de ser acionadas,
tendo em vista a inadequação das medidas creditícias, e
principalmente, pela não realização das políticas estruturantes,
como a reforma agrária.

126
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

O AGRONEGÓCIO COMO PRIORIDADE

Se os assentamentos e a agricultura camponesa tiveram


prioridade restrita no governo Lula, o mesmo não se pode dizer
dos grandes proprietários. O segmento representado pelos
grandes estabelecimentos constitui a base social e produtiva
principal do agronegócio.8 Responde pela maior parcela da área
plantada e crescentemente pelo principal volume de produção
agropecuária no país, ainda que gere poucos empregos.

8 O conceito estabelecido inicialmente por GOLDBERG foi, no Brasil,


reconfigurado e apropriado politicamente por setores ligados ao latifúndio e
grandes empresas capitalistas, que o utilizam para barganhar conquistas no
Estado brasileiro. Consideram toda produção agropecuária e agroindustrial como
compreendida pelo agronegócio, mascarando as diferenças socioeconômicas e
interesses diferenciados existentes entre os diversos segmentos sociais no meio
rural. Alguns pesquisadores (OLIVEIRA, 2004; GUILHOTO, cit. em MDA, 2005a)
e os movimentos sociais do campo, procuram, restabelecer conceitualmente
essa diferenciação, de forma que os interesses e resultados da Agricultura
Familiar, dos assentados e das comunidades tradicionais, sejam considerados à
parte da agricultura patronal. Portanto, utilizamos aqui o conceito de agronegócio
com o sentido de agrupamento de interesses políticos e econômicos ligados
aos latifundiários e ao grande capital financeiro e agroindustrial. É representado
politicamente pela agricultura patronal, tendo à sua frente organizações como
OCB, CNA, SRB, UDR, Bancada Ruralista no Congresso Nacional etc.

127
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Os dados apresentados utilizam como ponto de corte


as áreas acima de 200 hectares, para caracterizar as unidades
de tipo patronal, ainda que esse valor referencial encubra,
especialmente nas regiões sul, sudeste e nordeste, unidades
menores que poderiam ser classificadas como unidades
produtivas de tipo capitalista e, portanto, dentro da base
produtiva do agronegócio.
Durante o governo Lula, o financiamento para esse setor –
grandes proprietários de terras e agronegócio – experimentou
forte expansão. Apesar de envolver uma pequena parcela dos
produtores do meio rural, o volume de recursos disponibilizado
salta de R$ 22 bi para R$ 44,1 bilhões. O agronegócio respondeu
imediatamente, com aumentos de produção e de exportações.

Esses recursos, em grande medida, foram direcionados


diretamente a grandes grupos empresariais, organizados
nacionalmente e que articulam as principais cadeias produtivas
existentes na agricultura brasileira. São os eixos dinâmicos de
acumulação e expansão capitalista na agricultura. Como exemplo
da concentração de recursos em alguns desses grupos, seguem
dados referente às empresas financiadas pelo Banco do Brasil,
principal agente financeiro para a agricultura no país.

128
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

Os dados, ainda que parciais, demonstram a diferente


priorização do crédito concedido pelo governo federal aos dois
segmentos da agricultura. O Pronaf, num universo de 1,7
milhões de contratos, recebeu valor de 5,8 bilhões de reais,
pouco a mais que o financiamento dado a 12 grandes empresas
do agronegócio. Se adicionarmos, nesse mesmo período, o
programa Moderfrota, do BNDES, em que foram financiados
outros R$ 5,1 bilhões para renovação da frota de tratores e
colheitadeiras, teremos a dimensão do problema. Com esses
recursos, em 2004 foram adquiridos 97,8 mil tratores e 26,2
mil colheitadeiras.9 Esse movimento traz impactos no aumento
na produtividade do trabalho na agricultura, especialmente no
setor capitalista, já que máquinas novas e mais modernas

9 O que representa um percentual de renovação de 12% em relação ao


total de 800 mil tratores existentes em 1996 (último dado disponível) e 20,85%
das 125.607 máquinas colheitadeiras existentes no mesmo período.

129
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

resultam em ganhos de produtividade. O endividamento


resultante também faz com que esses agricultores se vejam
impelidos a produzir nas próximas safras, ainda que deteriorem
os preços dos produtos agrícolas.10
Portanto, o aumento da disponibilidade de recursos
do crédito rural aos grandes fazendeiros foi de mais de 100%.
O reflexo do crescimento dos recursos disponibilizados pelo
governo, mais os preços favoráveis no mercado internacional,
resultaram no crescimento da produção agropecuária, o que é
demonstrado pela expansão da produtividade e das áreas
cultivadas com lavouras, pastagens e culturas permanentes.
Centenas de milhares de hectares de áreas marginais ao
processo produtivo passaram a ser incorporadas, principalmente
para a produção de soja. A área plantada de soja teve uma
explosão no triênio 2001-2004, com expansão média anual
de 13,8%. Essa expansão foi quatro vezes superior à média
registrada nos 10 anos anteriores. (BRANDÃO, REZENDE e
MARQUES, 2005). Enquanto no período de 1990 a 2001, a
área plantada com soja cresceu apenas nas regiões Centro-
Oeste e Norte/Nordeste, no período recente, cresce em todas
as regiões do Brasil. O principal fator explicativo para essa
expansão é a elevação dos preços do produto no mercado
internacional, combinado com a alteração da política cambial
no início do segundo mandato de FHC.
O modelo produtivo da segunda revolução genético-
mecânica (combinando a biotecnologia – transgênicos – e a
incorporação de máquinas mais produtivas e sofisticadas
tecnologicamente, agricultura de precisão etc.) se expande

10 Esse fenômeno, já identificado por BRANDÃO, RESENDE e MARQUES

(2005), resulta do fato que as dívidas rurais muitas vezes são feitas com base
em produto físico como equivalente financeiro, e também porque, para pagar
as dívidas financeiras, é necessário produzir excedentes comercializáveis.

130
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

por todo o país, incorporando desde áreas “internas11” aos


latifúndios no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, chegando até áreas
“externas” de cerrado nordestino e da ante-sala da floresta
amazônica. A produção agrícola cresce de forma significativa,
levando o Brasil a consolidar-se como um dos maiores
produtores e exportadores de produtos agrícolas do mundo.
Isso trouxe impactos na balança de pagamentos do país e na
geração de divisas.
O Brasil exportava em 1964, ano do golpe militar, um
total de US$ 1,43 bilhões. Em 1984 exportava US$ 27 bilhões
e em 1989 chegou a US$ 34,3 bilhões. Em 2003 as
exportações chegaram a US$ 73 bi, dos quais 41,9% com
produtos agrícolas e 8,1 bilhões apenas com produtos do
complexo soja. Nesse mesmo ano o saldo comercial da balança
agrícola respondeu por um superávit de US$ 24,8 bilhões,
respondendo também por 37% dos empregos do país. No
período de maio/04 a abril/05 o superávit na balança de
pagamentos do agronegócio somou US$ 35,62 bilhões com
as vendas externas superando os 40 bilhões de dólares –
recorde histórico anual (OLIVEIRA, 2004; SAFATLE e PARDINI,
2004; MAPA, 2005).
Parece ter sido essa constatação que levou o governo
Lula a priorizar a aliança com o agronegócio. Analisando as
condições de geração de excedentes exportáveis capazes de
assegurar o pagamento das dívidas interna e externa, o governo

11 Referimo-nos à existência de uma fronteira agrícola “interna” aos

latifúndios improdutivos, no sentido de que eram áreas até então não incorporadas
ao processo produtivo, sendo mantidas como reserva especulativa, à espera de
valorização das terras para negócio. Contudo, parte desse avanço “interno”
também se deu pelo deslocamento e substituição de outros cultivos. Com a
valorização da soja e outras commodities, ocorre uma incorporação de áreas
internas aos latifúndios ao processo produtivo, inserindo-as no mercado
agropecuário. A soja viabilizou, portanto, a extração de renda da terra mesmo
em áreas marginais em que, nos últimos 15-20 anos isso era inviável.

131
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

decide assegurar a expansão da capacidade produtiva desse


segmento, em vista das condições favoráveis do mercado
internacional de commodities. Isso explicaria o porquê da cúpula
governista ter secundarizado teses históricas do partido e jogado
a questão da transformação das estruturas fundiárias para fora
da “agenda real” de governo.
Também explica a aliança com o segmento capitalizado
dos produtores familiares, priorizando políticas de crédito
rural, ao invés de mudanças estruturais, que beneficiariam o
proletariado e o semiproletariado rural. Em sendo assim,
qualquer ação que pudesse representar perturbação da ordem
política e social exigidas pelo capital, seriam prontamente
censuradas e combatidas, ainda que não com a mesma
truculência dos governos anteriores.
Contudo, há um outro ângulo de abordagem sobre a
realidade agrária. Conforme o prof. Ariovaldo Oliveira (2004),
há uma mitificação em torno da dinamicidade do agronegócio,
visando proteger a ineficácia das grandes unidades produtivas,
acima de 2.000 hectares. Procura-se ocultar as diferenças
existentes no meio rural, de forma a incorporar no conceito
operacional de agronegócio, indicadores referentes a segmentos
da agricultura familiar. Pelos cálculos do professor, a produção
familiar e das médias unidades é a principal contribuinte em
termos de volume e valor de produção dos principais produtos
alimentares e também da maioria dos produtos de exportação
em nosso país. Dados oficiais reforçam essa tese.

132
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

A agricultura em unidades pequenas e médias representa,


portanto, uma parcela significativa da produção brasileira, mas
é contabilizada como se fosse produção do agronegócio, cuja
aliança política central se dá com o grande latifúndio em
subordinação financeira às transnacionais do setor.
Com isso, um segmento de trabalhadores rurais altamente
produtivo e que ocupa cerca de 1/3 das terras agrícolas do
país é utilizado como massa de manobra para interesses dos
grandes fazendeiros e do capital agroindustrial. Esse segmento
que poderia objetivamente se aliar aos pequenos agricultores e
sem-terra, em vista de reformas estruturais na agricultura, fica
refém de um discurso ideológico que distorce suas demandas
de políticas públicas.
Além de exercer a hegemonia ideológica sobre o conjunto
da sociedade, a expansão física e econômica do agronegócio
resulta – uma vez se esgotando a fronteira agrícola e dada a
irreprodutibilidade da terra – em diminuição da área apropriada
pela agricultura familiar-camponesa, e por outros segmentos
populares, como os povos e comunidades tradicionais (indígenas,
seringueiros, quilombolas etc.). Esse aspecto revela outra frente
em que a atuação do governo federal tem sido débil e leniente
em relação aos impactos negativos do agronegócio.
O crescimento do latifúndio vem se dando principalmente
via apropriação de terras públicas, como o aumento de
desmatamentos e da produção agrícola nas regiões de fronteira
(norte do MT, cerrados e floresta amazônica). A expansão
acelerada da fronteira agrícola nessas regiões vem provocando
deslocamento de populações tradicionais, desmatamentos e
queimadas, bem como aumento dos conflitos pela posse da
terra, com a apropriação irregular de terras pelo latifúndio.12

12 Um efeito dessa expansão tem sido o incremento dos casos de violência

(assassinato de trabalhadores rurais, agentes religiosos e funcionários públicos)

133
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Desde 1988 foram devastados cerca de 313 mil


quilômetros quadrados, numa taxa média de 18,5 mil Km² ou
1,85 milhões de hectares/ano (MMA, 2005). No último ano,
houve redução no ritmo de desmatamento, o que pode ter
ocorrido tanto por aumento da eficiência dos instrumentos
legais de coerção como principalmente pelo efeito da redução
dos preços de produtos agrícolas, como é o caso da soja, o
que teria reduzido a reserva financeira e a pressão pela ocupação
de terras já abertas e “amansadas” anteriormente.13 Os estados
onde mais ocorrem desmatamentos são os de fronteira agrícola.
Mato Grosso é o estado onde mais se desmata no país, seguido
pelo Pará, Rondônia e Amazonas (MMA, 2005).
Nas regiões de expansão de fronteira, onde a presença
do Estado é reduzida e desorganizada, sintomaticamente
também é onde se observa abertamente, sem disfarces, a face
destruidora e opressora do agronegócio: a grilagem de terras
públicas; a devastação ambiental; o aumento nos conflitos
pela posse e uso da terra (mais de 800 assassinatos na luta
pela terra apenas no Estado do Pará); o desrespeito aos direitos
trabalhistas e de cidadania; e a ocorrência de forma sistemática
e funcional de trabalho escravo14 (CACCIAMATI e AZEVEDO,
2002; MTE, 2001; e FERREIRA, 2005).

e corrupção de agentes estatais (cartórios, funcionários do Ibama e do Incra


etc.) em vista de obter favorecimentos ilegais e regularizar situações ilegítimas,
obtidas através da força e ao arrepio das leis.
13Exemplo dessa situação é a redução nos preços e a paralisação dos
negócios de terras ocorrido no início de 2006 no Estado do Mato Grosso. Os
preços do hectare de terra sofreram queda média de 45% do valor (em alguns
casos houve quedas de R$ 8,75 mil para R$ 2,5 mil por hectare). (Fonte: 24
horas News, 2006)
14Quanto ao trabalho escravo, verifica-se uma relação de simbiose
entre a expansão da fronteira agrícola, o fortalecimento do agronegócio e a
recriação de práticas antigas e hediondas de exploração dos trabalhadores.
FERREIRA (2005), citando dados do MTE, informa que de 1995 até julho de

134
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

AÇÕES ESTRUTURAIS PARA REVERSÃO DA POBREZA NO


CAMPO – RITMO E FINANCIAMENTO DA REFORMA AGRÁRIA

Talvez o aspecto mais emblemático do impasse de rumo


político, vivido pelo governo Lula, seja a reforma agrária. O Brasil
é considerado um dos países mais desiguais do planeta. No meio
rural, 2% dos proprietários de terra detêm cerca de 50% das
terras, enquanto mais de 4 milhões de famílias camponesas
sobrevivem em condições precárias, passando necessidades,
fome e miséria.
Essa extrema desigualdade levou ao surgimento de diversos
movimentos sociais que lutam pela terra e pela reforma agrária.
Dessa luta, ao longo dos últimos 25 anos, foram desapropriados
cerca de 7.000 latifúndios, convertidos em assentamentos de
reforma agrária, reunindo mais de 830 mil famílias assentadas,
ou cerca de 20% do total de estabelecimentos da agricultura
familiar no Brasil. Eles já representam, portanto, uma parcela
expressiva e crescente da população brasileira no meio rural
(IPEA, 2003, p.95).
O público beneficiário potencial para a reforma agrária
situa-se em torno de 4 milhões de famílias rurais.15 O público
diretamente mobilizado pela reforma pode ser dimensionado

2004, foram libertados 11.969 trabalhadores rurais em situação análoga ao


trabalho escravo, em quase 700 autuações de fazendeiros. Quase a metade
desse número (5.224) ocorreu no Estado do Pará, seguido por Mato Grosso
(2.345) e Bahia (1.139). Como pode ser visto, o fenômeno de escravização de
trabalhadores não é isolado e muito menos está sob controle.
15 Essa estimativa desconsidera uma parcela da população localizada

nas periferias urbanas, expulsas do campo nas décadas precedentes, e que


aceitariam uma oportunidade para viver do trabalho na terra. Existem estudos
indicando esse interesse no retorno de famílias urbanizadas para o meio rural.
O próprio movimento social vem organizando, nos últimos anos, um número
crescente de famílias desempregadas e moradores de periferia nas lutas pela
terra, ainda que este percentual represente uma ampla minoria (menos de
20% das famílias acampadas). Para alguns desses estudos ver PIRES, 2003; e
MORAES SILVA, 2005;

135
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

pelas famílias organizadas em ocupações de terra (oficialmente


em torno de 200 mil famílias), considerando-se as que se
encontram nos acampamentos e ocupações de terras espalhados
pelo país.
Historicamente, os assentamentos rurais foram constituídos
sem assegurar o apoio adequado à instalação das famílias
(moradia, energia elétrica, estradas, p.ex.), sem cumprir com
os requisitos legais ambientais exigidos (resultando num passivo
de mais de 4 mil assentamentos sem licenciamento ambiental)
e sem se preocupar em viabilizar as condições produtivas.
Conforme levantamento coordenado por Sparovek (2003) em
4340 assentamentos em todo o país, configura-se um descaso
dos sucessivos governos com relação à implantação de infra-
estruturas adequadas para as famílias assentadas.
Em relação à qualidade de vida, os fatores mais precários
foram: a) acesso ao atendimento de saúde em caso de
emergências; b) acesso à água de boa qualidade; c) acesso ao
ensino médio; d) a falta de tratamento do esgoto doméstico.
Além disso, constatou-se que: 25% das famílias com filhos
em idade escolar não tinham acesso às escolas; apenas 67%
dos lotes tinham acesso à energia elétrica (na Região Norte
apenas 27% dos assentamentos); o transporte público das
áreas dos projetos até a sede dos municípios é precário, na
maioria dos casos.
Esse descaso se explica, do ponto de vista político, pela
falta de prioridade do enfrentamento da miséria do meio rural,
mas também pela estratégia de destruição das organizações
dos trabalhadores rurais, pois diversos governos, e em especial
o governo FHC, buscaram a criminalização dos movimentos
sociais e das suas organizações econômicas, combinando ações
de perseguição legal-judicial e de inviabilização econômica.
Procurou-se estruturar políticas que tirassem dos
movimentos sociais a condição de mediação e a legitimidade

136
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

da representatividade da base sem-terra16: Inscrição para a


reforma agrária via correios, programas de reforma agrária de
mercado, privatização dos serviços de ATER; privatização dos
trabalhos prévios à instalação dos PAs (elaboração dos planos
de desenvolvimento dos assentamentos – PDAs, demarcação,
e topografia); discriminação contra o assentamento de famílias
ligadas ao MST; criminalização das ações de ocupação de
terras; inviabilização de vistoria de latifúndios ocupados pelos
trabalhadores; impedimento ao assentamento de lideranças das
ocupações de latifúndios etc.

AÇÕES DO GOVERNO LULA EM RELAÇÃO AO ASSENTAMENTO


DE TRABALHADORES RURAIS

Ainda que o governo Lula tenha freado os ataques diretos


às organizações de trabalhadores por parte dos organismos de
repressão do governo federal, isso não impediu que a ação de
Estado seguisse na rota de criminalização e destruição dos
movimentos sociais (CPMI da terra, Judiciário conivente com o
latifúndio, militarização da questão agrária via as Polícias Militares
estaduais, infiltração de espiões nos movimento sociais etc.).
Além disso, na questão que se constitui no eixo central
de qualquer política de enfrentamento da questão agrária,
visando à desconcentração do poder e da propriedade via
desapropriação de latifúndios, o governo Lula marcou passo.
Herdando uma legislação anti-reforma agrária à qual não quis
enfrentar, e um aparato institucional sucateado17 e desqualificado

16 Para esse fim buscou inclusive estratégias de cooptação de intelectuais

e militantes da questão agrária, alguns dos quais gentilmente e sem grandes


problemas de consciência, adotaram posturas ativas de agrado ao poder.
17 No início de 2004 o Incra contava com 5.300 servidores, contra demanda
estimada de 10 mil. Em Março de 2006, apenas 471 novos servidores haviam
sido contratados, sendo que outros 1.300 estavam com o concurso em andamento.

137
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

por décadas de desmonte, e insistindo em uma política de


aliança com os setores modernizados da agropecuária, o governo
Lula se mostrou incapaz de fazer frente aos desafios colocados
pela luta de classes no campo brasileiro. Ainda mais grave, o
governo federal, para responder às críticas de inação no campo
da reforma agrária, adota procedimentos semelhantes aos
desacreditados métodos utilizados no governo FHC.
De acordo com dados oficiais, nos três primeiros anos
do governo foram assentadas 235.055 famílias.

Diversos estudiosos da questão agrária, além dos


movimentos sociais, se manifestaram com preocupação e
descrédito perante os indícios de falta de consistência conceitual
e estatística quanto ao número de famílias assentadas, divulgados
pelo governo, especialmente referentes ao ano de 2005.
Vários pesquisadores afirmam que o governo Lula recria,
num novo sentido, a fórmula da colonização adotada pelo regime
militar e mantida pelo governo FHC. Isso se dá pela concentração
de famílias assentadas em terras públicas (69.182 em 2005)
principalmente localizadas na Região Norte do país (região pré-
amazônica). Outra parcela significativa das famílias contabilizadas
como novos assentamentos (31.373 famílias) são de beneficiários
alocados em projetos de assentamento criados anteriormente a
2005, ou seja, estão sendo computadas famílias que repõem
lotes abandonados em projetos antigos, como se fossem novos
assentamentos (BRASIL DE FATO, 2005).

138
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

O fato é que ao não enfrentar a questão das desapropriações


de terras já em mãos do latifúndio, as medidas do governo
não promovem desconcentração fundiária, não reduzem o poder
do latifúndio, e portanto, restringem o processo de democratização
da propriedade da terra em nosso país e os impactos daí
derivados para a própria democracia brasileira.
Ainda que se desconsiderasse toda essa contestação em
relação aos números divulgados, o ritmo da reforma seguiria
preocupante. Nessa velocidade, o Brasil terá de conviver por
décadas ainda com lutas sociais e com a pobreza e miséria no
meio rural. Aparentemente, o governo Lula aderiu à estratégia
recuada, de esperar que as famílias sem-terra sejam
gradativamente expulsas rumo às cidades, enfraquecendo a
pressão pela reforma.

AS CONDIÇÕES E FINANCIAMENTO DOS ASSENTAMENTOS

Além do não-cumprimento das metas de assentamentos,


o esvaziamento da questão agrária no governo Lula pode ser
visto no tema crédito. Com o número de famílias assentadas
crescendo nos últimos anos, ainda que em ritmo lento, criou-se
uma situação paradoxal: o valor financiado foi reduzido. Os
recursos direcionados para assentados da reforma agrária
sofreram redução nos três primeiros anos do governo Lula.
Os contratos de financiamento para os assentados
(grupos A e A-C do Pronaf) foram reduzidos entre 2002 e
2004, passando de 55.610 para 54.825 contratos. Os valores
absolutos e relativos também sofreram redução: em termos
absolutos, o crédito para os assentados reduziu-se de 592,8
milhões para 499,3 milhões de reais. Os dados referentes a
2005, ainda que incompletos, indicam a continuidade dessa

139
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

tendência, com a redução no número total de contratos e no


volume de recursos contratados.18
Em termos relativos essa queda no repasse de recursos
para os assentamentos foi ainda maior: de uma participação
relativa de cerca de 18% dos recursos para o total da Agricultura
Familiar em 2002, o crédito para os assentamentos minguou
para menos de 9% em 2004. Essa queda é mais significativa
se lembrarmos que, hoje, os assentados representam cerca de
20% do total de agricultores familiares e que nos anos iniciais
de assentamento se requer um volume maior de recursos para
a instalação de atividades produtivas nos lotes.
Como entender esses movimentos? Eles ocorrem por
uma simples razão: o governo Lula, ao não priorizar a política
de Reforma Agrária, contribuiu para manter os assentamentos
à margem das políticas de inclusão creditícia e agravou alguns
problemas já existentes. Esses dados indicam uma escolha
estratégica equivocada no enquadramento dos assentamentos
na lógica do Pronaf, desconsiderando a condição especial de
um processo de reforma agrária e a reivindicação histórica do
MST, que defende a criação de um programa específico de
crédito para a reforma agrária, em vista das especificidades
desse segmento social.
Com a redução dos recursos alocados e a não-resolução
das dívidas anteriores, cresce a inadimplência e, portanto, a
exclusão dos agricultores assentados a novos créditos. Essa
situação foi gerada por um conjunto de fatores:

18 Informações não oficiais do INCRA indicam que o volume de recursos

repassados aos assentamentos nesse ano se reduza à faixa dos R$ 300 milhões,
e que o número de parceleiros aptos a receber crédito, mas que não conseguiram
acessá-lo é da ordem de 114 mil famílias.

140
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

I. transferência de deficiências estruturais dos assentamentos


para o crédito de custeio/investimento (em muitos
assentamentos o recurso destinado para investimento
produtivo teve que ser direcionado para construção de
moradias, implantação de energia elétrica etc.);
II. sucessivas perdas de colheitas, sem cobertura de seguros;
III. atraso na liberação dos recursos (perdendo prazos de plantio
e reduzindo as colheitas, p.ex.);
IV. qualidade e cobertura inadequadas da Assistência Técnica
(baixa qualidade dos projetos de desenvolvimento e do
assessoramento sócio-técnico);
V. inexistência de políticas de apoio à comercialização e garantia
de preços mínimos;
VI. inviabilidade produtiva estrutural de alguns lotes ou até
mesmo de assentamentos inteiros.

O resultado é a elevação gradativa do percentual de


agricultores inadimplentes, inviabilizados de acessar o crédito.
Apesar de um discurso favorável à reforma agrária, o governo
Lula, na prática, implementou medidas que restringiram19 o
acesso dos agricultores assentados ao crédito individual.
Tampouco se procurou viabilizar a criação de mecanismos de
estímulo à cooperação nos assentamentos, conforme demandas
apresentadas pelos movimentos sociais.
Denota-se, portanto, um quadro de insensibilidade do
governo, aparentemente mais fortemente localizado no
Ministério da Fazenda e em setores do MDA, em retomar o

19 Essa política restritiva foi justificada inúmeras vezes, por argumentos

depreciativos à capacidade produtivo-gerencial e à boa fé dos agricultores


assentados e suas lideranças, em discursos que seriam bem recebidos em
qualquer círculo de extrema direita ou de latifundiários, o que, ao menos,
sinaliza uma oportunidade de trabalho para certos quadros do atual governo,
numa eventual derrota eleitoral em 2006.

141
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

processo de institucionalização de políticas públicas que


promovam a reforma agrária, a recuperação dos assentamentos
antigos e a estruturação em novas bases de um novo modelo
de assentamentos.

IMPACTO SOBRE O MODELO PRODUTIVO E ORGANIZATIVO NOS


ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA

A reforma agrária não avançou, conforme visto, seja em


termos quantitativos, seja qualitativos. A promessa do governo
Lula de que os assentamentos seriam feitos com qualidade,
em níveis nunca vistos anteriormente em nosso país, foi esquecida
e relegada a eventuais discursos ou a programas pontuais.
Um dos aspectos centrais que potencializam a qualidade
da reforma agrária diz respeito ao formato organizativo adotado
pelas famílias na organização da produção, uma vez que esse
aspecto contribui para o desenvolvimento social, bem como
para a distribuição mais eqüitativa dos resultados econômicos.
Os assentamentos somente podem ter perspectiva de
sustentabilidade com a constituição de sólidas organizações
cooperativas e associativas. A política pública de RA deve,
portanto, incluir entre suas ações prioritárias o estímulo à
estruturação e ao fortalecimento de entidades associativas
autônomas pelos trabalhadores assentados.
Com a “reforma agrária de qualidade” andando a passos
lentos, combinada a dificuldades legais e financeiras nas
cooperativas existentes, e com políticas tímidas de organização
social nos assentamentos novos, conformou-se um quadro de
desestímulo à constituição de cooperativas ou outras formas
associativas nas áreas reformadas.
As dívidas das cooperativas antigas, desde o desmonte
do programa de crédito especial para os assentados (Procera),
a redução no repasse de recursos aos assentamentos e com a

142
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

lenta recuperação da cobertura e qualidade dos serviços


de assistência técnica, bloquearam o surgimento de novas
iniciativas de cooperação nos assentamentos. Eventuais
iniciativas implantadas no período têm respondido mais à inércia
de demandas espontâneas dos trabalhadores do que a uma
política ofensiva dos movimentos sociais (MST em particular)
ou do estímulo propiciado por eventuais políticas públicas.
Dados da Confederação das Cooperativas de Reforma
Agrária – CONCRAB, e dos diversos levantamentos realizados
em trabalhos de pesquisa nos assentamentos, indicam que
menos de 10% das famílias assentadas se vinculam a
organizações econômicas associativas cooperativadas, ficando,
portanto, à mercê de atravessadores, ou até mesmo isoladas
dos mercados locais-regionais.
Sparovek (2003:106) analisou a organização e articulação
social nos assentamentos ainda no período do governo FHC.
Identificou que as organizações associativas se concentram em
atividades reivindicatórias voltadas a serviços e benefícios sociais
(educação, saúde, estradas...). “A organização visando obter
benefícios coletivos para a produção foi bem menor do que
aquela observada para aspectos reivindicatórios. Parcerias visando
conseguir benefícios para a comercialização e (ou) produção
agrícola foram registrados em 9% dos PA’s e as parcerias
ligadas a benefícios sociais ocorreram em 57% dos casos”.
Schmidt et. alii. (1998) haviam encontrado dados
semelhantes, em censo realizado anteriormente, em nível nacional,
identificando que 52,85% dos assentados participavam de
associações e 7,65% de cooperativas (índice que sobe a 30%
na Região Sul). Pesquisa de Leite et allii. (2004), realizada em
aglomerados regionais congregando 181 assentamentos, num
total de 15.000 famílias, mostra que 20% delas adotaram
sistemas mistos de produção nos lotes (parte individual e parte
em cooperação), ao passo que 78% adotaram o sistema

143
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

individual-familiar. A pesquisa também identificou a presença


de associações em 78% dos PAs e as cooperativas em 13%.
Os dados são consistentes em mostrar que o associativismo
nos assentamentos tem característica mais voltada à
representação política, ainda que em certa parcela assuma
condição mista, que mescla a representação com a realização
de atividades econômicas. Esses dados mostram que as
políticas referentes à reforma agrária em nosso país têm
abordado marginalmente a organização das famílias assentadas,
e contribui para explicar resultados modestos em termos de
mudança socioeconômica.

ANÁLISE

Uma questão colocada pelo presente trabalho diz respeito


ao entendimento sobre qual a lógica subjacente às políticas
públicas e às alianças adotadas pelo governo Lula. Como um
governo de extração popular, ancorado nas lutas históricas da
classe trabalhadora brasileira e signatário de um compromisso
com a reforma agrária, pode ter iniciativas tão tímidas e
contraditórias em relação à questão da terra e dos assentamentos?
Isso seria derivado de dificuldades que obrigaram o governo a
rearranjos táticos? Ou decorre de opção estratégica?
O período recente de luta pela terra mostra uma evolução
importante no número de famílias acampadas. Houve lutas e
pressões populares, mas os dados mostram que o governo
não reagiu (ao menos não no sentido de avançar a reforma
agrária). Isso confirma uma percepção existente no movimento
social de que só o crescimento da luta social trará mudanças
na correlação de forças na sociedade e, portanto, na realização
da reforma agrária e na melhoria das condições de vida do povo.
A falta de compromisso do governo Lula em relação à
reforma agrária se materializa:

144
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

• no baixo número de famílias assentadas por processos


de desapropriação ao longo dos três anos;
• na redução dos recursos creditícios para os
assentamentos;
• na não-reversão do sucateamento do INCRA;
• nos atrasos na liberação de recursos e na insuficiência
orçamentária (contingenciamento; escassez de
recursos para cumprimento das metas);
• na não-constituição de um programa específico de
crédito para a reforma agrária;
• na resistência à inclusão das famílias acampadas no
programa bolsa família;20
• na solicitação por quadros do governo para que o
movimento reduzisse as ocupações de latifúndios;
• no questionamento à pressão e às críticas públicas à
lentidão do processo etc.;
• no não-enfrentamento às restrições políticas à luta
social pela RA, como a questão da MP das “invasões”
• na não-revisão dos índices de produtividade (para fins
de desapropriação).

A reforma agrária não se viabiliza sem a constituição de


áreas reformadas (territórios onde se redistribuam terras do
latifúndio, e que concentrem massivamente os assentamentos
e as ações de políticas públicas), sem apoio em infra-estruturas
sociais e produtivas básicas, sem crédito suficiente e adequado
(o que implica criar um programa especial para os
assentamentos), na ausência de serviços públicos essenciais

20Ou melhor, na falta de vontade política em adaptar esse programa às


condições dos acampamentos, o que em certo sentido indica um não-
reconhecimento da cidadania dessas famílias, mas também parece sugerir
uma intencionalidade em desestimular a organização e luta pela terra;

145
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

(ATER, comercialização, seguro, saúde, educação etc.) e sem


o fomento e fortalecimento às organizações associativas.
Essas são condições básicas para propiciar o ganho potencial
representado por políticas redistributivas.
Houve, no governo atual, a secundarização das políticas
estruturantes, da perspectiva de mudança social, em detrimento
de políticas pontuais compensatórias, para atenuar um possível
sentimento de revolta popular. Fez-se uma opção por ir
congelando e neutralizando as pressões do movimento social
nos diversos campos enquanto, no palácio, os arranjos e
acordos foram feitos com os inimigos históricos da classe
trabalhadora camponesa.
Apesar de o governo afirmar que a reforma agrária seria
focada na qualidade – contrapondo-se ao abandono das famílias
assentadas pelo governo FHC –, na prática isso não alterou a
dinâmica dos novos assentamentos e muito menos dos antigos.
Faltou ousadia para implementar ações inovadoras.21
Esses fatos não ocorreram de forma isolada, tendo havido
inúmeras concessões aos interesses do grande capital
(agronegócio), em paralelo às ações retardatórias das conquistas
sociais. Isso caracteriza uma opção de não-enfrentamento
estrutural da situação de miséria e pobreza rural. Um recuo
político ante a correlação de forças da luta de classes na
agricultura. Optou-se por não enfrentar o latifúndio atrasado,
os grileiros, os capitalistas agrários que descumprem legislação
trabalhista, ambiental etc. Deu-se prioridade política ao agronegócio
(via crédito, aprovação de leis como a dos transgênicos, e de

21 O movimento de trabalhadores rurais apresentou demandas para que

se recompusesse, p. ex., o crédito especial para famílias assentadas nos programas


de reforma agrária. Um programa nesses moldes foi extinto ainda no governo
FHC como parte de sua estratégia para desmontar os assentamentos como base
social e econômica para o MST. A lógica adotada foi destruir o movimento
social, ainda que para isso fosse necessário inviabilizar os assentamentos.

146
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

biossegurança, na renegociação e subsídio à rolagem de dívidas,


na regulamentação do programa do biodiesel que favorece as
iniciativas empresariais etc.).
Com isso o governo Lula não consegue, p.ex., enfrentar
a expansão predatória do capital na fronteira agrícola via grilagem
de imensas áreas, numa dinâmica de reforço à concentração
de terras, de degradação ambiental e desrespeito aos direitos
sociais dos trabalhadores (assassinatos de trabalhadores,
trabalho escravo, descumprimento da legislação trabalhista no
meio rural etc.).
Em relação ao segmento empobrecido do campesinato,
optou-se pela expansão de programas de crédito como o Pronaf,
que são insuficientes em termos de cobertura e volume de
recursos, bem como não são adequados para enfrentar questões
e distorções estruturais na propriedade da terra. Pequenos
agricultores, sem-terra ou com pouca terra, na maioria das vezes
situados abaixo da linha de pobreza e com produção insuficiente
para sua subsistência, não melhoram de situação apenas com
acesso ao Pronaf, ainda mais nos seus moldes atuais.
O Pronaf é adequado ao segmento mais capitalizado de
pequenos agricultores (não mais do que 1/3 do total), que
têm relações regulares com o mercado, têm acesso a terras
melhores ou mais bem localizadas, que conseguem produzir
excedentes comercializáveis com regularidade. Ora, essa não
é a realidade da maioria da população rural hoje.
Para esses segmentos empobrecidos há dois tipos de
políticas clássicas combinadas: reforma agrária massiva e crédito
fortemente subsidiado, de forma a permitir a elevação dessas
unidades produtivas a um patamar mínimo de produtividade
do trabalho, de forma a gerar excedentes comercializáveis,
gerando processos sustentáveis ao longo do tempo. Isso implica
a discussão adicional de três elementos: a existência de
assistência técnica (com remuneração e condições de trabalho

147
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

estáveis e minimamente atrativas); a adoção de tecnologias


agroecológicas; e o estímulo à organização associativa desses
agricultores, de forma a gerar sinergias e fomentar iniciativas
autônomas de organização do processo produtivo. Contudo,
quase nada disso foi implementado.
Ou seja, o governo buscou aplicar uma estratégia de
convivência pacífica entre os dois modelos agrícolas, o do
agronegócio e da pequena agricultura (na linha “paz e amor”
com a classe dominante, adotada ainda na campanha eleitoral).
Essa tese, para ser admitida, teria que desconsiderar que a
produção agrícola se desenvolve via controle da terra (controle
direto, pela propriedade, ou indireto, pelo arrendamento), como
principal fator de produção, como locus onde se materializa o
processo produtivo e onde se enraízam as relações socioculturais.
Portanto, no mundo real, com o crescimento do agronegócio,
necessariamente levou à redução do espaço político e geográfico
da Agricultura Familiar e da Reforma Agrária.
Que a esperança de transformações no campo brasileiro
iria se defrontar com as estruturas patrimonialistas e ditatoriais
de poder que sempre se mantiveram intactas na história de
nosso país (HOLLANDA, 2003) já era conhecido por qualquer
militante social. Contudo, a novidade parece consistir no
estabelecimento de uma aliança do governo Lula com esse
setor atrasado do latifúndio e com os segmentos dinâmicos
do capital agrário, que se transmutaram em uma versão
modernizada e mais palatável, que agora disputa o imaginário
da nação como se fosse um projeto portador de futuro para a
nação: o agronegócio.
Os dados apresentados demonstram que as opções de
políticas agrícola e agrária adotadas pelo governo Lula trouxeram
benefícios marginais (ainda que positivos) aos segmentos mais
pobres da população contrabalançados por um forte apoio à
expansão produtiva do agronegócio. Ao apoiar o lado “positivo”

148
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

do agronegócio, Lula desconsidera seus estreitos vínculos


políticos e institucionais com estruturas seculares de opressão
e destruição. Desconsidera as duas faces da moeda com a
qual negocia.
Suas políticas contribuíram para o fortalecimento e
expansão desse modelo produtivo insustentável, num cenário
em que os movimentos sociais e o movimento da cidadania
vêm questionar o conjunto de políticas macroeconômicas e
setoriais que o governo Lula implementa. Na visão de um
amplo leque de movimentos sociais e ambientais, o que está
em jogo é a consolidação de um modelo destruidor do meio
ambiente e que promove a desagregação social das comunidades
tradicionais e dos pequenos agricultores, acelera a concentração
de terras e riqueza, promovendo a expulsão da população
pobre para as favelas urbanas, contribuindo ainda mais para
agravar o quadro de violência e terror enfrentado pela população
das grandes cidades brasileiras.
É possível identificar uma trajetória paulatina de abandono
de um projeto classista de governo, rumando cada vez mais
para um projeto neopopulista, sustentado na figura carismática
de Lula (um novo “pai dos pobres”?) ancorado por uma política
econômica que não rompe com o neoliberalismo e que assegura
lucros extraordinários ao setor financeiro e às transnacionais.

CONCLUSÃO

O presente estudo procurou abordar a evolução recente


da questão agrária no Brasil, focalizando as alianças e ações
desencadeadas pelo governo Lula, buscando contribuir para
identificar o eixo e o rumo dessas políticas. Identificou-se uma
coerência entre um discurso político rebaixado no campo da
luta de classes (“Lulinha Paz e Amor”), privilegiando opções
de estabelecimento de alianças com segmentos da burguesia

149
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

agrária, com vistas a assegurar a convivência “pacífica” entre


o capital e trabalho no campo e a governabilidade institucional.
Essa aliança tem resultado em ganhos importantes para
o agronegócio, tanto no ambiente macroeconômico como nos
espaços institucionais (controle de dois ministérios importantes
e regulamentação de várias leis conforme aos interesses do
capital agrário), além de, num primeiro momento, frear a
radicalização dos movimentos sociais e congelar as iniciativas
de reforma na estrutura agrária.
Até o início de 2006 essa aliança obteve resultados
satisfatórios, mas indica demonstrar seu esgotamento, na
medida em que fica claro para um segmento social cada vez
mais amplo que as políticas compensatórias são limitadas e
buscam apenas e tão-somente frear o descontentamento social
com a falta de mudanças estruturais reais.
Outros aspectos a se considerar são as alterações no
cenário macroeconômico (supervalorização do câmbio, queda
nos preços agrícolas internacionais, contradição entre as políticas
de interesse do capital financeiro internacional e as do
agronegócio etc.) que vêm complicar a conformação do embrião
desse bloco histórico conservador. A postura dos movimentos
sociais também pode interferir nesse equilíbrio delicado, ao
aumentar a pressão e radicalização, conforme visualizado nas
recentes mobilizações do MST e da Via Campesina que
recolocam na ordem do dia o cumprimento das promessas
feitas pelo governo Lula e questionam o modelo agrícola adotado
no país.
Mantido o cenário atual fica claro que as políticas
governamentais seguirão com medidas pontuais de caráter
compensatório, sem impacto relevante na quantidade e qualidade
dos assentamentos, sem enfrentar o domínio oligárquico e
patrimonialista do latifúndio atrasado, e colocando mais impulso
na expansão do agronegócio exportador, concentrador de terra,
de renda e promotor da destruição ambiental.

150
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

Esse segundo cenário irá resultar nos próximos anos em


mais exclusão social, com aumento do êxodo rural e da
criminalidade e miséria nas periferias urbanas. Uma situação
que só não se configurará em fortes explosões sociais, caso
as políticas assistencialistas compensatórias forem mantidas e
ampliadas a patamares nunca vistos em nosso país, junto com
aumento das ações repressivas em larga escala.
Cabe agora às forças populares avançar na construção de
opções estratégicas de reascenso para esse cenário tão complexo,
construindo alternativas reais que possam ser colocadas em
campo na disputa contra-hegemônica na sociedade.
A história nos chama à responsabilidade. Atenderemos?

REFERÊNCIAS

1. AGÊNCIA BRASIL. Soja empurra pecuária para área de florestas. In:


Jornal Tribuna do Interior. Campo Mourão, 22/03/2005.

2. AGROANALISYS, n.7, v.25. São Paulo: Fundação Getulio Vargas,


julho 2005.

3. BRANDÃO, Antonio S. P., REZENDE, Gervásio e MARQUES, Roberta


W. Crescimento agrícola no período 1999-2004, explosão da área
plantada com soja e meio ambiente no Brasil. Texto para discussão
num. 1062. Rio de Janeiro: IPEA, janeiro de 2005.

4. BRASIL. Governo Federal. 30 meses. Prestação de contas do governo


federal 2005. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/
prestandocontas/relatorio_30_completa.pdf>. Acesso em: 15 out.
2005.

5. _______. http://www.brasil.gov.br/ind_econ.htm. 2005b.

6. BRASIL DE FATO. In: <http://www.brasildefato.com.br/v01/


impresso/151/nacional/materia.2006-01-21.2872185637>
Acessado em abril de 2006.

7. CACCIAMATI e AZEVEDO, 2002.

8. CAPOBIANCO, João Paulo. Secretário vê vitória contra a devastação.


São Paulo: Folha de São Paulo. p.16. 04/05/2005.

151
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

9. CHRISTOFFOLI, Pedro Ivan. O desenvolvimento de cooperativas de


produção coletiva de trabalhadores rurais no capitalismo: limites e
possibilidades. Curitiba: UFPR, dissertação de Mestrado em
Administração. 2000.

10. MELO, Fernando Homem de. A abertura comercial e o papel dos


aumentos de produtividade na agricultura brasileira. Disponível em:
<www.ifb.com.br/documentos/hdemelo.pdf>. Acessado em: 15
out. 2005.

11. FERREIRA, Brancolina. Desenvolvimento Rural: reforma agrária,


PRONAF e PAA. DISET/IPEA. 2005.

12. FIPE, NEAD e MDA. PIB das cadeias produtivas da agricultura familiar
em 2005. Internet. (documento em pdf).

13. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 2003.

14. IPEA. Políticas Sociais. Acompanhamento e Análise. Anexos


Estatísticos., n. 6. Brasília: IPEA, Fev.2003. p. 95-96.

15. KAIPER, Carlos H. Depoimento nas jornadas contra o trabalho escravo.


Mimeo. 2004.

16. LEITE, Sérgio et. allii. Impactos dos Assentamentos. Brasília/São


Paulo: IICA/NEAD/Ed. Unesp. 2004.

17. MALAGOLLI, Guilherme A. Evolução Comercial da Indústria Brasileira


de Alimentos. Disponível em: <www.abphe.org.br/congresso2003/
Textos/Abphe_2003_18.pdf>. Acesso em: 15 out. 2005

18. MAPA. Superávit e exportações do agronegócio batem recorde nos


últimos 12 meses.In: Brasília: OCB informativo eletrônico num. 626,
10/05/2005.

19. MATTEI, Lauro. Agricultura familiar e turismo rural: evidências


empíricas e perspectivas. Disponível em: <http://www.nead.org.br/
index.php?acao=artigo&id=20%20>. Acesso em: 13 out. 2005.

20. MDA. Agricultura familiar já representa 10,1% do PIB, informa


pesquisa da FIPE. In: <http://www.jornadadeagroecologia.com.br/
default.asp>. 2005a.

21. _____.Balanço PRONAF 2004/2005. Brasília: MDA. 2005b.

22. _____. Plano Safra 2005/2006. Brasília: MDA, 2005c.

23. MDS (Brasil). PRONAF muda o campo com crédito para os pequenos.
Disponível em: <http://www.njobs.com.br/fome0/conteudo/html/
04_fortalecimento_01.htm>. Acessado em: 15 out. 2005.

152
EVOLUÇÃO RECENTE DA QUESTÃO AGRÁRIA E
OS LIMITES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DO GOVERNO LULA PARA O MEIO RURAL

24. MMA. Plano de ação para prevenção e controle do desmatamento na


Amazônia. Disponível em <http://www.mma.gov.br/doc/ tendencias_
desmatamento2004 _2005.pdf>. Acessado em: 15 out. 2005.

25. MORAES SILVA, Maria Aparecida de. A terra no imaginário dos


migrantes temporários. Disponível em: <http://www.nead.org.br/
index.php?acao=artigo&id =39&titulo=Artigo+do+Mês>. Acesso
em: 15 out. 2005.

26. MPA. Único elemento novo para o plano safra 2004/05 é o volume
de recursos. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/
pt/blue/2004/07/285087.shtml>. (Acessado em abril 2005).
Postado em 02/07/2004.

27. MTE. A experiência do grupo especial de fiscalização móvel. Brasília:


2001.

28. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. São Paulo.

29. PIRES, Lana Magaly. O fruto proibido e o pão. Uma etnografia do


assentamento do Contestado no Paraná. São Paulo: PUC, Tese de
Doutoramento, 2003.

30. RESENDE, Gervásio C. de. Política de preços mínimos na década de


90: dos velhos aos novos instrumentos. Rio de Janeiro: IPEA, 2000.

31. SAFATLE, Amália e PARDINI, Flavia. Grãos na Balança. Carta Capital.


30/08/2004.

32. SCHMIDT, Benício V. Os assentamentos de reforma agrária no Brasil.


Brasília: Ed. UnB, 1998.

33. SPAROVEK, Gerd. A qualidade dos assentamentos da reforma agrária


brasileira. São Paulo: Páginas e Letras, 2003.

153
154
U M P A N O R A M A D O
COOPERATIVISMO NO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

Adilson Korchak*
José Augusto Guterres**

RESUMO: Este texto faz uma breve RESUMEN: Este texto hace una breve
análise das vicissitudes da aplicação do análisis de las vicisitudes de la aplicación del
cooperativismo dentro do Movimento dos cooperativismo en el Movimiento de los
Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST em Trabajadores Rurales Sin Tierra –
nível nacional, para, na seqüência, focalizar MST – en el nivel nacional, para, en la
um projeto cooperativista específico, que secuencia, enfocar un proyecto
é Cooperativa de Produção e Serviços de cooperativista específico, que es la
Pitanga Ltda.- COOPROSERP, localizado Cooperativa de Producción y Servicios de
no Assentamento Novo Paraíso, em Pitanga Ltda. – COOPROSERP, ubicada en
Boaventura de São Roque-PR. el Asentamiento Novo Paraíso, en
Boaventura de São Roque-PR.
PALAVRAS-CHAVE: Cooperativa de
produção; MST; COOPROSERP. PALABRAS-CLAVE: Cooperativa de
producción; MST; COOPROSERP.

* Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito


Cooperativo e Cidadania.

** Advogado, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas


Populares – RENAP, mestrando em Direito pela UFPR.

155
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

INTRODUÇÃO

A fim de fortificar os laços entre teoria e prática, que


devem imprescindivelmente uni-las se enxergamos no cotidiano
a necessidade e no horizonte a possibilidade de câmbios
estruturais na sociedade em prol de mais igualdade, dignidade e
justiça, o trabalho que se apresenta faz uma breve análise das
vicissitudes da aplicação do cooperativismo dentro do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST em nível nacional,
e posteriormente centra foco num projeto cooperativista
específico, que é o da Cooperativa de Produção e Serviços de
Pitanga Ltda. – COOPROSERP, localizado no Assentamento
Novo Paraíso, em Boaventura de São Roque-PR.
Com isso, não há a intenção de tomá-lo como modelo,
nem de apresentá-lo como generalização dos demais projetos
de cooperação do Movimento; ao contrário, há o reconhecimento
de que se trata de um fenômeno bastante particular, num universo
em que grassam experiências plurais em que se abre um enorme
leque quanto às formas de funcionamento, e em que, não
obstante, o insucesso infelizmente não é raridade.
Daí a importância de, em certo momento, ultrapassar a
análise em macroescala da história e das tendências do
cooperativismo no MST, a partir do aprofundamento em
realidades específicas, destacando as causas do êxito deste
ou daquele projeto, sem, contudo, omitir-se perante erros e
contradições que mereçam uma crítica radical. Esta é a
contribuição teórica possível e somente a partir dela se dará a
concreta superação e fortalecimento de um sistema alternativo
à acumulação e exploração capitalistas.

1 O MST E O COOPERATIVISMO

Antes de tudo, é mister elucidar a visão aqui adotada


com relação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –

156
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

MST, tendo por assentada a completa impossibilidade de uma


investigação científica “neutra”, “imparcial”. De outra banda,
claro está que não se pode academicamente lançar-se numa
cega e acrítica exaltação de determinado projeto político, donde
se conclui pela necessidade de manter um elevado grau de
objetividade. O que se quer ressaltar, enfim, é a necessidade
de coerência e honestidade ao deixar transparecer sem melindres
o posicionamento político que perpassa este trabalho, engajado
que é a um projeto de transformação social contra a exploração
humana, sem esconder-se sob uma falsa capa de cientificismo.1
Neste sentido, demonstrando que a adesão e a construção
teórica a respeito de um projeto político popular não se dá
aleatoriamente e de forma inconseqüente, cabe aludir que diante
de tamanha concentração de terras e marginalização social
durante seus quinhentos e poucos anos, a luta pela terra no
Brasil só poderia ter exatamente a sua idade.2 Contudo, é da
segunda metade do século passado para cá que os movimentos
camponeses vêm se articulando de forma mais organizada e
com mais clareza de seus objetivos, sendo que o central é a
reforma agrária.3

1 Paulo Freire apresenta uma passagem interessante sobre a pretensão

de neutralidade do homem frente a sua realidade: “(...) A neutralidade frente


ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se
tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um
‘compromisso’ contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que
se dizem neutros. Estão ‘comprometidos’ consigo mesmos, com seus interesses
ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um
compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível”. (FREIRE, Paulo.
Educação e mudança. p. 19.)
2 Para iniciar o estudo sobre essa temática, vale conferir: MORISSAWA,

Mitsue. A luta pela terra e o MST. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
E para um estudo mais detido sobre a histórica exclusão do direito à terra no
Brasil: STEDILLE, João Pedro. (Org.). A questão agrária no Brasil. v.5. São
Paulo: Expressão Popular, 2005.
3 Sobre o amadurecimento da luta camponesa no Brasil: MOURA, Clóvis.
Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destruição do Belo
Monte ao aparecimento do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2000.

157
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Precede o estudo do histórico e dos rumos do


cooperativismo no MST a sua contextualização e a elucidação
de sua legitimidade. Em suma, trata-se de um movimento social
que visa pressionar o Estado a implementar as políticas públicas
que ele mesmo se propõe. Com efeito, a Constituição Federal
prevê que é livre a associação de pessoas para fins pacíficos,
sendo o MST, portanto, um movimento legítimo de denúncia
da desigualdade social e de reivindicação de direitos
fundamentais já positivados na Constituição Federal, como a
igualdade e a dignidade. Entre as políticas públicas reivindicadas,
como dito, figura a reforma agrária, mas se podem elencar
também as que se referem ao meio ambiente equilibrado, à
soberania alimentar, às relações equânimes entre os gêneros,
e outros tantos, sempre com vistas à dignidade humana.
Prova da legalidade e da legitimidade do MST são os
constantes diálogos mantidos entre este movimento e o Poder
Público, em todas as suas esferas e em todo o território nacional,
sendo pacífico este entendimento inclusive no Poder Judiciário.4
Já quanto à origem e formação das cooperativas de
trabalhadores rurais, cabe aludir que, assim como a luta pela
terra, elas são fruto da extrema desigualdade social historicamente
vigente no Brasil, cujos sucessivos governos, ao não cumprirem
o seu papel de erradicar a pobreza no país, deixam apenas
duas opções a seu povo: viver na marginalidade ou se organizar
para reivindicar e promover seus direitos. A formação de
cooperativas por trabalhadores rurais inicialmente excluídos do
direito à terra transparece a tomada da segunda opção por

4 Neste sentido, é emblemática a seguinte decisão, entre outras tantas

exaradas Brasil afora: “Movimento Popular visando a implantar a reforma agrária


não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão
da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da
República. A pressão popular é própria do Estado Democrático de Direito”
(STJ. HC n.º 5.574/SP. Rel. Min. William Patterson) (grifamos).

158
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

seus integrantes, inseridos então numa nova fase de sua luta,


que é a de se sustentar a partir da terra conquistada.
Assim, no início da década de 1990 se começa a construir
dentro do MST o “Sistema Cooperativista dos Assentados –
SCA” (explicado com mais detalhes adiante), no intuito de se
avançar com a cooperação agrícola. Defendia-se que as
Cooperativas de Produção Agropecuária – CPAs, um dos tipos
principais de cooperativas dentro do Movimento, seriam uma
etapa superior da organização coletiva da terra, do trabalho e
do capital.

1.1 AS PRIMEIRAS COOPERATIVAS E A NOVA LINHA DE COMBATE

Após os primeiros anos de sua fundação, no início dos


anos 1980, logo se percebeu no MST que não somente a
conquista da terra deveria ser alcançada mediante a cooperação,
mas também haveria de superar-se a cultura individualista do
camponês no momento da produção, uma vez que esta se
constitui na única saída possível para a classe explorada, para
que sua luta não seja em vão. Em outras palavras, percebeu-se
que seria insuficiente a simples obtenção de lotes individuais
para os integrantes do MST, uma vez que assim não possuem
condições de concorrer no mercado em igualdade de condições
com os demais produtores. Daí é que surge no V Encontro
Nacional o lema “Ocupar, Resistir, Produzir”, fazendo alusão às
primeiras cooperativas ligadas ao MST que estavam nascendo,
sobretudo no ramo de cooperação Agropecuária (CPAs).5 Estas,

5 “As CPAs foram implantadas como experiência de cooperação no


MST a partir de 1989, e despontam como uma forma superior de organização
da produção. Na verdade, uma CPA não se diferencia muito de um grupo
coletivo ou de uma associação coletiva na sua essência, e muito menos na sua
constituição. O que difere é a personalidade jurídica porque ao ser registrada
como uma empresa cooperativista será regida pela legislação cooperativista
brasileira”. (CERIOLI, Paulo; MARTINS, Adalberto. Caderno de cooperação n.º 5:
sistema cooperativista dos assentados. p. 70.)

159
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

entretanto, por uma série de razões, principalmente por


demandarem grandes estruturas numa fase em que ainda não
se tinha a experiência necessária para lidar com elas, em poucos
anos entraram numa fase de graves crises:6

No mesmo ano de 1993, começou o período da Crise. Uns


passaram a acreditar que o SCA tinha sido um equívoco; outros
afirmam que é uma crise de crescimento. As CPAs passam
por profundas rupturas, dividem-se. O desafio é para onde e
como avançar. Assim constatou-se um dos grandes limites: a
administração. Como resposta é criado o Curso Técnico
em Administração de Cooperativas (TAC). Em junho de 1993
inicia-se a primeira turma.

Em meados de 1990, então, começou-se a apontar como


caminho para sair das primeiras crises do cooperativismo no
MST a criação das Cooperativas de Prestação de Serviços –
CPS’s e Cooperativas de Prestações de Serviços Regionais –
CPSR’s,7 que foram impulsionadas pela liberação de recursos
federais para estruturação dos Assentamentos e Cooperativas
da Reforma Agrária, em especial o “Teto II”, que, por sua vez,

6 Para um estudo mais detalhado sobre os debates e surgimento das

cooperativas no MST, assim como as contínuas necessidades de reformulação


de sua estrutura e articulação, com descrição dos principais eventos e
documentos sobre o tema, verificar: CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada.
p.28-34.
7 “(...) a Cooperativa de Prestação de Serviços (CPS) dedica-se

basicamente à comercialização (organizar o processo de compra e venda de


insumos, da produção e de bens de consumo para os associados), da assistência
técnica, do serviço de máquinas, da formação política e da capacitação técnica,
da organização da produção (definição da estratégia de desenvolvimento da
região, definição de linhas de produção), da implantação de unidades de
processamento (...) para beneficiar a produção dos assentados”. As CPSR’s,
por sua vez, têm a mesma competência, porém envolvem vários assentamentos,
em vários municípios (...). (CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p.67.)
Outra principal forma de cooperativa de assentados da reforma agrária é a
Cooperativa de Produção e Prestação de Serviços – CPPS.

160
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

foi uma conquista dos movimentos populares do campo para


que os assentados da reforma agrária, junto com a terra,
recebessem também algum subsídio inicial. Isso coincidiu,
naquele momento, com um alargamento da discussão que
ocorria dentro do Movimento, a respeito da necessidade do
cooperativismo como instrumental de seu projeto político de
Reforma Agrária e construção de um novo tipo de sociedade.
Veja-se, por exemplo, que:

Em dezembro de 1994 aconteceu o Seminário Nacional sobre


“A perspectiva da cooperação no MST”, baseado nos textos
preparatórios “A crise nas CPAs e coletivos”. No mesmo mês
sai o texto “Perspectivas da Cooperação no MST”. O SCA
avançou no entendimento das seguintes questões:
a) O que massifica a cooperação nos assentamentos são as
formas não produtivas (prestação de serviços).
b) As CPAs continuam sendo a forma superior de organização
e estratégicas para o MST e portanto devem ser constituídas
em condições muito bem definidas. Apesar disto elas não
massificam a cooperação.
c) O que determina a possibilidade não é mais o tamanho do
lote (terra) e sim a sua localização, modelo tecnológico, volume
de capital e mercado. Enfim, o que orienta e organiza a
cooperação é o capital e não a terra.
d) A introdução de agroindústrias nos assentamentos é
estratégico para o desenvolvimento econômico dos
assentamentos e de todo o interior do país, envolvendo a
juventude e agregando valor à mercadoria produzida.
e) Não haverá desenvolvimento autônomo nos assentamentos
sem a presença do Estado, e neste caso, de um Estado
controlado e dirigido pela classe trabalhadora. O Estado
desempenhará um papel indutor da cooperação, via crédito,
assistência técnica e pesquisa.
f) Está descartada a possibilidade da “acumulação primitiva”
de capital nos assentamentos, determinando aos assentamentos

161
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

a necessidade de disputar através da luta política a mais


valia social.8

Investiu-se, assim, um considerável montante de recursos


e energia dos militantes na criação e no desenvolvimento desse
tipo de cooperativas (CPSs). Por meio delas, intentava-se
massificar a cooperação dentro do Movimento, em busca de
uma superação dos limites de envolvimento das famílias
assentadas tanto na produção coletiva quanto na comercialização.
Posteriormente, viu-se que o alcance de tais objetivos é ainda
muito mais complexo, e essas primeiras cooperativas também
vieram a mostrar várias deficiências e limitações.
De qualquer maneira, não se pode negar que houve muitos
avanços com as cooperativas regionais. Foi sensível a melhora
nas estruturas dos assentamentos, o que permitiu um reforço
nas ações do Movimento, consistindo, portanto, num passo
importante e, via de conseqüência, num grande susto para a
elite agrária brasileira, vez que o número de ocupações de
latifúndios deu um grande salto, espalhando-se por todos os
cantos do país.
A resposta imediata implicou a sofisticação da luta pela
terra, visto que, além de os conflitos no campo se acirrarem,
foi a partir daí que as forças políticas contrárias à reforma
agrária passaram a estudar o MST com mais diligência,
montando estratégias e táticas mais organizadas na tentativa
de frear seu crescimento e avanço. É nesse período que se
inicia uma campanha difamatória às iniciativas de organização
de pessoas jurídicas aliadas ao MST, como associações e
cooperativas. Nem por isso, contudo, o Movimento deixou
de fortalecer-se a cada ocupação realizada, mobilização,
encontro, aliança com outros movimentos sociais e,

8 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 33-34.

162
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

principalmente, qualificação de seu quadro de militantes. Era


bastante visível na prática, enfim, a relação dialética da luta
de classes, em que cada pólo respondia imediatamente à
investida do outro. Como, aliás, continua ocorrendo.
Na linha de atacar as pessoas jurídicas do Movimento,
visando minar sua sustentabilidade, delinearam-se duas formas
principais, quais sejam, o uso intensivo dos meios de comunicação
hegemônicos na tentativa de denegrir ou desgastar a imagem de
dirigentes e do próprio MST, bem como a utilização de subterfúgios
jurídicos visando obstar transferências de recursos públicos
aos assentamentos e entidades jurídicas. Cumpre mencionar
que ambas se perpetuam como práticas comuns, sem perspectiva
de cessar, uma vez que tanto o campo midiático como o
jurídico, da institucionalidade, da burocracia, são exatamente
onde melhor transitam os inimigos da reforma agrária.
No caso da mídia, porque é notória a absoluta falta de
democratização de seus veículos, que, não obstante se tratem
de concessões públicas, são claramente utilizados em prol de
interesses privados e estão concentrados nas mãos de poucas
famílias ou grupos empresariais brasileiros, altamente influentes
no cenário político do país, com o agravante de possuírem
estreitíssimas relações com o capital internacional. No caso da
legalidade, porque o maior papel do Direito no Estado Moderno
é garantir o funcionamento e a fluidez do sistema econômico
fundado na propriedade privada e “livre” circulação de
mercadorias,9 de modo que quem mantém seus privilégios

9 Não se pretende com tal afirmação uma defesa de um modelo


determinista de estruturação social em que o Direito se mostra tão somente
como resultado da base econômica. Pelo contrário, dentro mesmo do pensamento
marxista, na esteira de István Mészáros, por exemplo, reconhece-se que “os
vários fatores legais não são unilateralmente determinados pela base material,
mas agem também como determinantes poderosos no sistema global de
interações complexas”. Desconstruir, contudo, a “ilusão jurídica” é tarefa de

163
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

graças ao lucro gerado dentro deste sistema dispõe, por óbvio,


do instrumental político-jurídico para fazer o embate dentro
dele. Como se vê, portanto, trata-se de uma luta em que
definitivamente não há equivalência de armas.
Com o paulatino corte dos recursos inicialmente
aportados, sentiu-se, logo em seguida, uma diminuição da
força do Movimento, que naquele momento não dispunha ainda
de uma capacidade técnica e organizativa capaz de dar conta
dos problemas que se foram apresentando. Com efeito, pairava
entre os dirigentes, principalmente os do setor de produção,
um certo comodismo, uma sensação de que aquelas conquistas
de investimentos públicos tinham vindo para ficar. Hoje se
pode arriscar a dizer que, até certo ponto, houve ingenuidade,
ou subestimação das forças da elite agrária brasileira. De
qualquer modo, o fato é que a conquista política de projetos,
contratos e convênios com o poder público não foi acompanhada
de uma adequada estruturação do setor de produção e formação
de um quadro técnico-militante suficientemente apto a suprir
as necessidades que iam se acumulando.
Recordando que em nível federal essa época (governo
de Fernando Henrique Cardoso) foi também marcada pela
política governamental de repressão policial e militar aos
movimentos sociais, com claro aval dos meios de comunicação,
o MST foi alvo de um desgaste político bastante grande, de
modo que se tornava ainda mais nebulosa a saída para a crise
financeira que se instalava. Assim, de modo geral, muitas

caráter urgente: “A rejeição marxiana da ‘ilusão jurídica, segundo a qual ‘a lei


se baseia na vontade, e, de fato, na vontade divorciada de sua base real – na
vontade livre’, atende ao objetivo de identificar a natureza real do sistema
jurídico, precisamente no sentido de compreender e, em última análise, controlar
as determinações reais que emergem do próprio sistema jurídico e afetam as
atividades de todos os indivíduos”. (MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e
ciência social. p. 208-209.)

164
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

cooperativas acabaram fechando ou se desfazendo de parte


de suas estruturas para que pudessem liquidar dívidas,
diminuindo sensivelmente sua atuação.
Um outro problema que se instalou nesta fase de
crescimento das CPSs e CPRSs, é que não raramente passou
a haver uma confusão entre cooperativas regionais e Secretarias
do MST: várias estruturas de cooperativas estavam também a
serviço do trabalho de base, implicando uma sobreposição às
atividades do próprio Movimento. Isso gerou problemas para
as instâncias de coordenação e direção do MST, na medida
em que cada região, a partir das estruturas das cooperativas,
vinha passando a atuar de forma desvinculada do todo da
organização, indo, portanto, de encontro ao princípio de Unidade
que vigora no Movimento, que é um dos principais motivos de
sua força.
Tal problema se mostrava decorrente do raciocínio de
que quanto mais recursos cada região individualmente
conseguisse captar, mais crescimento e desenvolvimento haveria
de suas estruturas, o que deveria refletir, conseqüentemente,
no avanço dos objetivos do MST.
Ocorre, porém, que isso definitivamente não contempla
seus objetivos, na medida em que sem a indispensável unidade
e direcionamento político das cooperativas, que só o movimento
social é capaz de proporcionar, acaba-se por simplesmente
reproduzir em cada assentamento a lógica mercantil do sistema
agrícola hegemônico, historicamente excludente e alicerçado
na “revolução verde”,10 totalmente contrário, portanto, à matriz
agroecológica e camponesa difundida pelo MST. 11

10 Trata-se da implementação de novas técnicas estrangeiras na


agricultura a partir dos anos 1950, em grande parte adaptações de tecnologias
de guerra (exemplos: agroquímicos e tratores, oriundos, respectivamente, de
armas químicas, como o Napalm, desenvolvido pela empresa Monsanto, e

165
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

1.2 EM BUSCA DO APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA


COOPERATIVISTA DOS ASSENTADOS

Visando à solução para médio e longo prazo dos problemas


de capacitação de militantes para trabalhar com o SCA, foram
sendo abertas turmas específicas para eles em especialidades
pertinentes às necessidades da realidade:

tanques de guerra); tal implementação, que em sua quase totalidade se mantém,


tinha por base o latifúndio e a monocultura, de modo a manter a estrutura
fundiária do país, visando a produção em larga escala de comodities para
exportação. Efeitos imediatos foram o êxodo rural e os conseqüentes problemas
sociais das grandes metrópoles, a lastimável perda de saberes culturais de
camponeses e povos tradicionais, assim como a absoluta dependência dos
“pacotes tecnológicos” de grandes corporações internacionais, cujo controle
sobre a alimentação e saúde da população mundial é cada vez maior. San
Martin observa que não é à toa que o auge da “revolução verde” no Brasil
coincide com a ditadura militar, e com profunda indignação constata a respeito
das migrações que então se intensificaram como nunca: “É a mesma imagem
estampada no desespero do garoto com malária nos confins de Rondônia, do
bóia-fria desgraçado nas quebradas do Paraná, do pedreiro ex-sitiante no coração
de São Paulo, ou do que seja: é a imagem e o resultado disso que o conluio das
elites, que a demência tecnocrática chamou um dia de ‘modernização’ da
agricultura brasileira”. (SAN MARTIN, Paulo. Agricultura suicida: um retrato
do modelo brasileiro. p. 12.)
11 A proposta é o desenvolvimento da agricultura familiar com ênfase

na aplicação de técnicas agroecológicas, de modo a possibilitar a subsistência


e a permanência das famílias no campo, assim como o menor impacto ambiental
possível – na medida em que o uso de agrotóxicos é incrivelmente diminuído,
senão extirpado, e a manutenção da biodiversidade se constitui numa peça-
chave, tanto quanto a autonomia frente às empresas de insumos agrícolas e a
solidariedade entre os camponeses. Desta forma as famílias fixam-se na área
rural e produzem alimentos em primeiro lugar para si próprias, ou seja, não
passam a integrar as fileiras de miseráveis que superlotam as grandes cidades
brasileiras; o excedente, produzido de modo ecologicamente correto e
inegavelmente mais saudável do que os produtos convencionais, é comercializado
a preços justos para a população local, por canais de economia solidária. Muito
embora isso não gere vultuosas rendas às famílias e ao poder público, este
modelo consegue resolver uma série de problemas sociais e ambientais que
afligem praticamente todo o mundo contemporâneo, os quais sem uma reforma
estrutural se configuram em problemas absolutamente insolúveis. Para
aprofundamento deste assunto: SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da
natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001. GUTERRES, Ivani.
Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres. São Paulo: Expressão
Popular, 2006.

166
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

(...) em janeiro de 1995 é fundado o Instituto Técnico de


Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, ITERRA, em
Veranópolis, RS, e nele a Escola Josué de Castro. A sua
finalidade era assumir o curso TAC e o Magistério em vista de
formar militantes e técnicos para o MST e também para a
capacitação da mão-de-obra na área de agroindústria.
Em 1996, o SCA inicia o debate sobre a massificação da
cooperação no crédito. Definiu-se por acompanhar a
Cooperativa de Crédito já constituída em Cantagalo, PR
(CREDITAR). São feitas discussões em Sarandí, RS, para a
constituição de uma segunda (CRENHOR).12

E, a fim de resolver os problemas internos de desmobilização,


bem como articular uma defesa aos ataques proferidos pela elite
agrária, a partir de muito estudo e debate, começou a ser construída
no MST uma nova forma de organicidade, da qual não cabe a
este breve trabalho se ocupar, mas que a ele cumpre pelo menos
registrar seu caráter eminentemente democrático-participativo,
em que as decisões são encaminhadas sempre de forma coletiva
e sem hierarquizações, contemplando as discussões feitas desde
a base dos acampamentos e assentamentos, assim como
garantindo a equanimidade das relações entre os gêneros.13
Na esteira dessa nova organicidade do MST, que vinha
sendo debatida havia bastante tempo, cuja implantação foi
definida como linha política no IV Congresso Nacional do MST,
em 2000, e que constantemente vem sendo rediscutida,
convém focalizar o modo como vem sendo trabalhado o
cooperativismo em suas instâncias.
No II Seminário Nacional sobre as perspectivas
da Cooperação no MST, em 1997, houve, então, o

12 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 34.


13 Sobre a atual organicidade do MST: BOGO, Ademar (Org.). Método
de trabalho e organização popular. São Paulo: ANCA, 2005.

167
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

redimensionamento do SCA, a partir de reflexões acerca de


seu papel dentro do Movimento. Dessarte, o que até determinado
período se denominava “Setor de Produção”, passou a ser o
“Sistema Cooperativista dos Assentados”, com uma mudança
que vai muito além de uma nova roupagem, atribuindo-lhe
objetivos táticos e estratégicos bem definidos, e com a clareza
de ser um instrumento do Movimento, sem se confundir com
ele e respeitando seus princípios.
Demais disso, assim como cada uma das cooperativas
ligadas ao Movimento, foi imbuído do dúplice caráter de ser
um “elemento Político” e, ao mesmo tempo, uma “Empresa
Econômica”, vez que deve, por um lado, atuar na conscientização
e politização da base, mobilizando-a e articulando-a para as
lutas políticas e econômicas, e, por outro, visar a organização
da produção, o crescimento econômico, o desenvolvimento, e
a melhoria da qualidade de vida dos assentados. “Enfim, as
cooperativas devem colocar à disposição da luta a sua infra-
estrutura, recursos e pessoal para a mobilização e luta política
em vista da reforma agrária e da transformação da sociedade.
E, ao mesmo tempo, não se descuidar dos aspectos produtivos,
administrativos e gerenciais em vista de uma boa eficiência
econômica”.14
Portanto, contribuindo para a construção e implementação
da estratégia do MST, o SCA é o setor responsável por:
“estimular e massificar a Cooperação Agrícola dentro dos
Assentamentos, em suas várias formas, integrando neste
processo os assentados individuais”; assim como pela
“organização de base dos assentados, pela organização da
produção, da tecnologia, da transformação ou agroindústria,
pela boa aplicação do crédito rural, pela comercialização e,

14 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Obra citada. p. 12.

168
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

também, pela mobilização social dos assentados frente à política


agrícola do governo, à política econômica, e pelas condições
básicas dos assentamentos”.15
Vale frisar que tais objetivos são decorrentes de uma
visão muito particular do cooperativismo pelo MST, desde um
ponto de vista contra-hegemônico, como se vê a seguir:
Os assentados devem buscar uma cooperação que traga
desenvolvimento econômico e social, desenvolvendo valores
humanistas e socialistas. A cooperação que buscamos deve
estar vinculada a um projeto estratégico, que vise a mudança
da sociedade. Para isto deve organizar os trabalhadores,
preparar e liberar quadros, ser massiva, de luta e de resistência
ao capitalismo.
Para nós a cooperação não é vista apenas pelos objetivos sócio-
políticos, organizativos e econômicos que ela proporciona. Ela
é, para nós, uma ferramenta de luta, na medida em que ela
contribui com a organização dos assentados em núcleos de
base, a liberação de militantes, a liberação de pessoas para a
luta econômica e, principalmente, para a luta política.16

Por seu caráter popular e contra-hegemônico, vê-se que


o MST afirma seu cooperativismo como sendo de oposição
diante da política econômica neoliberal e, via de conseqüência,
do cooperativismo tradicional. Quanto à primeira, porque tem
consciência da impossibilidade de uma Reforma Agrária efetiva
dentro do atual modelo econômico: “É inconcebível o resgate
da dignidade dos sem-terra e do povo trabalhador dentro da
sociedade capitalista, pois ela sobrevive da exclusão do povo
trabalhador, para concentrar o capital (terra e renda) nas mãos
de alguns”.17 E quanto cooperativismo tradicional, porque

15 CERIOLI, P; MARTINS, A. Idem. p. 9.


16 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 22.
17 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 11.

169
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

inserido na mesma lógica mercantil e totalizante das grandes


empresas do agronegócio, buscando suprimir as iniciativas
autônomas de trabalhadores rurais, seja mediante sua cooptação,
seja sua destruição.

O cooperativismo tradicional está vinculado, nos estados, às


OCEs e, no país, à Organização das Cooperativas do Brasil
(OCB), que se propõe a ser a única representante de todas as
cooperativas. Somos oposição a este modelo.
O cooperativismo que nos propomos a construir defende a
autonomia de organização e representação. O desafio é
construir o próprio modelo do MST: que abarque as diferenças
regionais, que aponte um modelo tecnológico alternativo.
Reconhecemos a Confederação das Cooperativas de Reforma
Agrária do Brasil Ltda. (CONCRAB) como a representante de
todos os segmentos de cooperativas e demais unidades de
produção em áreas de Reforma Agrária.18

Finalmente, é interessante observar como o Sistema


Cooperativista dos Assentados se posiciona ante a tarefa
histórica que lhe é proposta pelo MST, sistematizando, diante
disso, seus objetivos sociopolíticos da seguinte maneira:

a) Ser uma forma de resistência ao capitalismo: não ter a


ilusão de que organizando economicamente os assentamentos
conseguiremos nos libertar da exploração capitalista, por isto
devemos continuar lutando.
b) Vincular-se a um projeto estratégico de mudança da
sociedade, e, portanto, de luta.
c) Transformar a luta econômica em luta política e ideológica.
d) Provar que a reforma agrária é viável, não só do ponto de
vista da justiça social, mas também do ponto de vista do
desenvolvimento econômico.

18 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Ibidem.

170
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

e) Servir de exemplo, de propaganda e de alianças na


sociedade para que se unam na luta pela reforma agrária.
f) Aumentar o poder de barganha e pressão dos assentados
diante do Governo.
g) Acumular forças para a transformação da sociedade.
h) Criar melhores condições de vida para as famílias
assentadas: habitação, luz elétrica, saúde, educação, cultura,
e sempre ir melhorando.
i) Formar e capacitar quadros políticos e técnicos para o MST
e para o conjunto da luta dos trabalhadores.
j) Contribuir para a construção do Homem Novo e da Mulher
Nova. Pessoas responsáveis, politizados, culturalmente
desenvolvidos, solidários e fraternos uns com os outros.19

Alimentando, portanto, a esperança de que a transformação


é possível, visto que demonstra isso em seu dia-dia, e
qualificando o quadro de militantes do MST, não apenas em
nível técnico, mas também ético e moral, possibilitando-lhes
o que Gramsci chamaria de “catarse”, ou seja, a sublimação
dos interesses econômicos imediatos do camponês para seu
engajamento na realização concreta de uma utopia coletiva,
o SCA se mostra como uma ferramenta cada vez mais
imprescindível não apenas na modificação das instâncias
objetivas da realidade, como o trabalho e o consumo, mas
também na vivência de novos valores pelos assentados e
associados, travando uma importantíssima disputa, então, onde
o capitalismo finca raízes das mais poderosas, vale dizer, na
subjetividade humana.
Salientando as ressalvas tecidas na Introdução, o ponto
seguinte visa trazer à lume uma entre tantas experiências que
ocorreram no contexto esboçado até aqui. Reconhecendo uma

19 CERIOLI, P.; MARTINS, A. Idem. p. 13.

171
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

vez mais que se trata de um caso bastante particular, sem


necessária semelhança com outros Brasil afora, é preciso,
contudo, anunciar que a escolha não foi feita de forma
totalmente casual, na medida em que se está falando da primeira
CPA do país, cuja história foi acompanhada de perto – por
estar presente desde os primeiros acampamentos, da infância
até os dias de hoje – pelo primeiro autor anunciado no cabeçalho
deste texto.

2 O ASSENTAMENTO NOVO PARAÍSO E A COOPROSERP

2.1 HISTÓRICO DO ASSENTAMENTO

O MST do Paraná, com a intenção de organizar a produção


de forma coletiva nos assentamentos de Reforma Agrária,
passou a forjar, em 1989, a possibilidade de realização das
primeiras experiências de organização de Cooperativas de
Produção Agropecuária – CPAs. Assim, naquele ano surgiu o
primeiro laboratório experimental no Assentamento Santo Rei
em Nova Cantu, o que consistia basicamente num curso cujo
objetivo era oferecer treinamento sobre agricultura aos
participantes, visando especialmente à organização da produção
de forma coletiva, na tentativa de conhecer e difundir as
vantagens obtidas na produção, no trabalho e na vida social
das famílias que estivessem organizadas em uma CPA.
Integrando esse laboratório estavam várias lideranças de
acampamentos, os quais tinham a incumbência de levar até
suas bases a proposta da formação de CPAs.
Fruto desse primeiro laboratório, então, a Cooperativa
de Produção e Serviços de Pitanga Ltda. (COOPROSERP) foi
fundada em 24 de agosto de 1989, originalmente formada
por dois grupos: o primeiro, de 27 famílias acampadas na
Fazenda Pinheiro, no município de Inácio Martins-PR; o segundo,

172
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

de 15 famílias acampadas na Fazenda Cavaco II, no município


de Cantagalo-PR.
Cabe mencionar, porém, que além do laboratório, outros
fatores também contribuíram para que os grupos mencionados
se lançassem com dedicação na proposta estudada e vivenciada
no laboratório. Isso porque as áreas que as famílias ocupavam,
segundo o INCRA, provavelmente seriam insuficientes para
assentar todas as famílias acampadas, fomentando ainda mais
a necessidade de cooperação, visto que lotes individuais não
poderiam ser disponibilizados em tamanho suficiente a cada
uma delas.
Além disso, pouco antes da organização do laboratório,
o MST do Paraná já havia definido uma área a ser ocupada
pelas famílias que optassem por organizar uma CPA, onde se
pretendia criar o primeiro modelo de cooperativas para todo o
país. As terras deste futuro assentamento eram devolutas e
de domínio do Estado, contudo vinham sendo literalmente
saqueadas sob a batuta do então deputado federal Otto Cunha,
que, por ter uma propriedade de 96 hectares no meio daquela
área, outorgava-se o direito de explorar o potencial madeireiro
dos 976 hectares circundantes. Na época havia grandes dúvidas
dentro do Movimento acerca da viabilidade de destinação dessas
terras para Reforma Agrária. Não obstante, como se vê no
item seguinte, a luta por elas valeu a pena.
Os pioneiros da região contam que se tratava de uma
área de muita riqueza natural, em que se encontrava uma
grande diversidade de árvores, como o pinheiro araucária, a
imbúia, o angico, entre outras. Prova disso é a existência de
uma cerraria naquela área, que infelizmente contribuiu para
que o solo se tornasse fraco e desprotegido.
A intenção, no fim das contas, era construir um
assentamento que servisse de experiência e modelo para o
MST; a proposta da coletivização já tinha um certo avanço,

173
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

sendo que o grupo vindo da Fazenda Cavaco II já desenvolvia


o trabalho de lavoura coletiva há dois anos, o que reforçava a
idéia de construir passo a passo o “assentamento dos sonhos”,
juntando as forças das famílias.

2.2 UM POUCO MAIS SOBRE A OCUPAÇÃO E IMPLANTAÇÃO


DO ASSENTAMENTO

Apesar das dúvidas iniciais, decidiu-se pela necessidade


de ocupação daquele (ex) latifúndio conhecido como Fazenda
Cunha, que ocorreu no dia 19 de agosto de 1989,20 com a
vinda das famílias Sem Terra da Fazenda Pinheiro, município
de Inácio Martins, e, dois meses depois, das famílias acampadas
na Fazenda Cavaco II, município de Cantagalo.
A criação do assentamento, porém, como se esperava,
não foi tão simples. Seu processo de legalização, que foi
realizado de uma forma bastante peculiar, sem passar para o
domínio do INCRA, começou a caminhar somente a partir de
1992, de modo que até então as famílias passaram por intensas
dificuldades, dado que não havia liberação de qualquer recurso
para o acampamento. Além disso, eram freqüentes as ameaças
de despejo, as condições de moradia nos barracos eram
péssimas, e como se isso tudo não bastasse, o acampamento
enfrentava uma séria escassez de alimentos.
A partir de 1992, com a perspectiva de legalização do
assentamento, alguns benefícios foram conseguidos para os
acampados, por meio de projetos específicos, como o que foi
elaborado e assinado pela Igreja Católica local, para empréstimo
visando à compra de nove vacas leiteiras, com a finalidade de

20 A Cooproserp, portanto, foi fundada apenas cinco dias depois, conforme

registra sua primeira Ata.

174
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

obter leite como fonte de alimento para consumo. Nesse mesmo


período, apesar das dificuldades, a discussão sobre a
cooperativa vinha avançando: decidiu-se pela organização do
sistema de moradia em agrovila, mesmo enquanto só havia
barracos de lona; foi construído um refeitório comunitário e
uma ciranda infantil, para educação das crianças e para liberação
das mulheres para que participassem das atividades da cooperativa.
Com isso, a CPA ia aos poucos tomando forma, inclusive
mediante a divisão de setores de trabalho, entre os quais: de
lavoura, pecuária, serviços, lazer etc. A partir daí, também se
estabeleceu entre as famílias acampadas uma jornada de trabalho
de oito horas diárias, com planejamento e distribuição das tarefas
todos os dias de manhã, menos domingo, após a “formatura”.21
Com a legalização da área, portanto, a Cooproserp teve
um avanço em suas atividades. Quando isso ocorreu, porém,
devido à enorme gama de dificuldades relatadas, uma série de
descontentamentos de famílias já haviam aflorado, culminando
na desistência por parte de algumas do projeto de produção
coletiva, visto que nos primeiros momentos as atividades
prioritárias eram a correção do solo e limpeza da área para o
plantio das primeiras safras.
Cabe mencionar que o ano de 1990 foi um dos mais
críticos, pelo baixo resultado da colheita da primeira safra
coletiva, unida à rigidez das normas estabelecidas pelo
acampamento. Conflitos internos se agravaram, e um grupo
de 18 famílias resolveu se afastar da agrovila, instalando-se
numa outra parte da área subdividida, e passando a trabalhar
de forma individualizada.

21 Trata-se de uma forma de exteriorizar e vivenciar a simbologia do

MST, consistindo, comumente, no hasteamento da Bandeira do Movimento e


na execução de seu hino.

175
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

2.3 ORGANICIDADE DO ASSENTAMENTO APÓS A LEGALIZAÇÃO


E NOVOS DESAFIOS

Durante o processo de legalização da área, em 1992,


que ao final foi conseguida mediante um acordo proposto pelo
MST ao governo do Estado, com participação do Instituto
Ambiental do Paraná – IAP, este defendia que o assentamento
deveria ser totalmente coletivo, devido às próprias condições
da área, pois a análise feita é que seria praticamente impossível
sobreviver de forma individualizada numa terra totalmente
desgastada e explorada, cujo potencial de produção estava
muito aquém das demais propriedades da região.
O grupo que inicialmente havia deixado a proposta coletiva
decidiu mais tarde que formaria também um grupo de trabalho
coletivo, mas não em conjunto com a Cooproserp; a solução
encontrada foi de fazer uma divisão no assentamento, restando
dois grupos coletivos. Fundou-se, assim, ainda no ano de
1992, por iniciativa desse segundo grupo, a Associação dos
Trabalhadores Organizados na Agricultura – Astroagri, de modo
que o uso da terra passou a ser totalmente coletivo, ficando
dividido da seguinte forma: a parte pertencente para a Astroagri,
proporcionalmente a 11 famílias; e a parte da Cooproserp,
proporcional a 31 famílias. Em suma, o assentamento ficou
com duas agrovilas.22
Ao invés de estabilizar definitivamente a situação do
assentamento, tais medidas implicaram ainda algumas
mudanças. A postura política e ideológica de algumas famílias
a respeito da cooperação se alterou diante da realidade que
então se apresentava. Umas, que haviam deixado a agrovila,
reintegraram-se à Cooproserp; outras perceberam que não se
adaptariam ao trabalho coletivo, ao que a única solução foi a

22 No final de 2006, porém, os assentados da Astroagri resolveram

passar a produzir individualmente.

176
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

transferência delas para outros acampamentos, continuando


sua luta por um “pedaço de chão”.
É desse período a elaboração do Estatuto e do Regimento
Interno da Cooperativa. Além disso, a partir de setembro de
1992, iniciou-se na Cooproserp, a pedido dos assentados em
conjunto com a direção do MST, o curso de “Formação e
Integração à Produção – FIP”, integrado por ambos os grupos
do Assentamento Novo Paraíso. O objetivo do FIP era qualificar
os assentados para o cooperativismo, mediante a formação de
uma consciência organizativa e empresarial (sem descuido dos
aspectos políticos) para que se pudesse prosseguir com maior
clareza e eficiência no trabalho coletivo. Percebeu-se animação
e estímulo frente ao projeto que vinha se concretizando após
tantos problemas.
No ano de 1993, todavia, a Cooperativa se deparou
com mais um problema relacionado ao descontentamento das
famílias com o modo de produção do qual estavam fazendo
parte. Ela estava contanto, então, com apenas 15 famílias
associadas, sendo que nove tinham interesse em sair do projeto.
A solução encontrada pela Cooproserp e pela direção do MST
foi a de elaborar um mapeamento de famílias de outros
assentamentos que topassem a proposta coletiva, para que
trocassem seus lotes. De um assentamento em Nova Cantu
vieram, então, 11 famílias para morar no assentamento e se
integrar à Cooperativa.
Com esse reagrupamento, foi preciso uma nova mudança
na estrutura física do assentamento: inicialmente a agrovila era
formada por lotes de 2 hectares; com a reestruturação, cada um
passou a medir 12x30m²; e os associados passaram a produção
doméstica de pequenos animais ao patrimônio da cooperativa.
Como mencionado, a legalização do assentamento propiciou
muitas conquistas. Pode-se citar a instalação de luz elétrica, a
compra de equipamentos elétricos, como uma ordenhadeira
mecânica, e, entre outras, a construção de uma Escola de 1ª à

177
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

4ª série (que antes já existia, porém com uma “estrutura” de


chão batido e lona preta), viabilizando o estudo não só das crianças
do assentamento, mas também de crianças da vizinhança.
Ainda no ano de 1993, o INCRA e o IAP (órgão do Estado
que ficou responsável pelo assentamento) realizaram um
“Projeto de Desenvolvimento Agropecuário”, com a contribuição
de um técnico agrícola associado à Cooperativa. Sua implantação
começou em 1994, e partiu de um diagnóstico que identificava
as linhas produtivas a serem implantadas ou melhoradas. Demais
disso, com um estudo das viabilidades de absorção e
comercialização da produção do assentamento, foram criadas
pequenas unidades de agroindústrias, como um abatedouro e
uma unidade de malharia.
Com isso, a área passou a ser melhor aproveitada,
“otimizada” no dizer de alguns, aumentando algumas lavouras,
diminuindo ou suprimindo outras. Cresceu o plantio de milho,
soja e erva-mate; introduziram-se atividades como fruticultura,
piscicultura, ovinocultura, apicultura; houve intensificação
da bovinocultura leiteira e suinocultura. E, intentando o
aprimoramento técnico para o funcionamento destas atividades,
passaram a ser aplicadas técnicas de conservação de solos,
manejo, adubação, melhoramento dos plantéis, além da atividade
de reflorestamento.
Os primeiros recursos recebidos do governo por meio
do Projeto de Desenvolvimento Agropecuário foram destinados
para algumas construções e melhoramento de estruturas, como
estábulo, cercas, malharia, entre outros. E pelo Programa de
Crédito Especial da Reforma Agrária – Procera,23 financiou-se a

23 O Procera foi organizado a partir de 1986, fruto de uma das reivindicações

dos assentados do MST ao governo Sarney. Os recursos tinham como base o


Finsocial, Programa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social –
BNDES, sendo que posteriormente passou a ser gerenciado pelo Banco do Brasil e
Banco do Nordeste. Hoje encontra-se substituído pelo PRONAF.

178
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

compra de calcário, horas-máquina para melhoramento e


conservação de solos, implementos, maquinário, material para
construção de silos, matrizes leiteiras e suínas, entre outras.
Cada atividade se realizava conforme a disponibilidade
de mão-de-obra na Cooperativa, níveis de necessidade de cada
setor de trabalho, além dos recursos financeiros. A estrutura
organizativa da cooperativa passa então a ser organizada
basicamente a partir dos diferentes setores, que são ao mesmo
tempo núcleos de trabalho e de discussão (de planejamento,
avaliação e de assuntos gerais). Quinzenalmente, ocorrem as
Assembléias Gerais da Cooperativa, que aprecia as discussões
que chegam à sua pauta, encaminhando o assunto, se necessário,
para votação.

ORGANOGRAMA DA COOPROSERP

A partir do momento em que o trabalho passa a ser


organizado dessa maneira, começa a ganhar mais visibilidade e
resgata a confiança dos assentados em relação à Cooperativa;
sem dúvida, também, a confiança dos agricultores vizinhos e
do comércio local.
Ainda tratando das linhas gerais da história do
Assentamento Novo Paraíso e da Cooproserp, é interessante
notar a contingência da validade de determinadas medidas,
como, por exemplo, a implementação do refeitório coletivo

179
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

criado em 1992. Com a melhoria da qualidade de vida no


assentamento, foram surgindo polêmicas sobre isso, girando
em torno do preço das refeições, da qualidade etc., pelo que
se resolveu, em 1996, desmontá-lo. As atividades da formatura
(explicada anteriormente), também foram suprimidas na mesma
época, possivelmente pela atenuação do rigor do trabalho.
Esta, porém, foi retomada em 2001, de forma mais simplificada,
somente com a conferência dos setores e com a distribuição
das tarefas do dia conforme o planejamento quinzenal e aprovado
pela Assembléia.
Há que se enfrentar ainda muitos problemas, decorrentes
ora da situação da área, ora das decisões que vão sendo
tomadas. Por exemplo, pode virar motivo de insatisfação a
prioridade dada a determinado investimento em maquinário em
detrimento da remuneração dos associados; enquanto isso,
por outro lado, há que se pesar que, por não ser pertencente
ao INCRA, uma série de créditos destinados à Reforma Agrária
não podem chegar ao Assentamento. Um caso como esse
leva obrigatoriamente os cooperados a debaterem e buscarem
uma solução, aperfeiçoando, assim, os mecanismos de
participação daquele microcosmo. Nem todos possuem
amadurecimento político suficiente para perceber o significado
do que estão realizando por meio de atos corriqueiros como
esse, o de uma assembléia para decidir o destino de determinada
verba; pode ser também que muitos não se sintam aptos a
gerir coletivamente seus próprios destinos, preferindo a
salvaguarda de alguém a determinar que ações exatamente
devem ser tomadas. A todo momento situações como estas
se apresentam e devem ser encaradas, tornando ainda mais
premente a necessidade de respeitar-se os princípios do
cooperativismo, tais como a livre adesão, administração
democrática, autonomia e independência, entre outros,
balizando assim a conduta do corpo coletivo.

180
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

A estrutura do Assentamento e da Cooperativa está muito


melhor que outrora, e isso é inegável. Contudo, é necessário
reconhecer a necessidade de avanços maiores, tendo claro o
papel da COOPROSERP como instrumento de luta por uma
Reforma Agrária ampla e espaço de prática de um novo tipo
societário. Neste sentido é que deve vir à tona o questionamento
sobre medidas a serem tomadas tendo como horizonte a “utopia
possível” do MST. Nesta incessante busca, nos últimos dois
anos está sendo tentada, dentro do Assentamento, a transição
da agricultura convencional para a orgânica e a agroecológica.
Por enquanto ainda não é possível a produção para comercialização
com total autonomia perante os pacotes tecnológicos oferecidos
pelo “mercado”. Não obstante, definiu-se como tarefa de
primeira importância que os produtos voltados ao consumo
dos assentados sejam produzidos sem agrotóxicos, o que já
se realiza plenamente. Trata-se de um pequeno mas importante
passo rumo à superação do problemático modelo de agricultura
atualmente hegemônico.
Há que se registrar, ainda, a constante rotatividade de
famílias associadas à Cooperativa. Com o tempo viu-se que isso
seria uma constante, considerando as características do povo
camponês, os aspectos culturais eminentemente individualistas
da contemporaneidade, assim como a imprescindibilidade de
um forte senso de disciplina e organização exigido de cada
associado por um projeto coletivista. Para lidar com isso,
desenvolveu-se um sistema próprio para aceitação de novos
associados. Cada pretendente firma sua intenção de tornar-se
um cooperado numa ata de associação provisória, que valerá
pelo período de um ano; depois de subscritos, os novos
membros integram-se normalmente à rotina do trabalho coletivo,
e, vencido o prazo, procede-se a uma votação secreta entre
os associados, a fim de decidir definitivamente sobre a aceitação
dos pretendentes.

181
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Apesar da rotatividade constante, as famílias remanescentes


têm sempre mantido firme a convicção de que se deve alimentar
continuamente a chama da cooperação no Assentamento
Novo Paraíso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (OU NOVAS PERSPECTIVAS DA


COOPERAÇÃO NO MST)

À guisa de conclusão, no lugar de retomar os pontos


visitados por este artigo, parece mais conveniente buscar
imprimir nele a dinamicidade característica da luta popular atual
encabeçada pelo que se convencionou chamar de “movimentos
sociais”. Por isso, ainda que de forma muito superficial,
lançam-se algumas idéias acerca do que deve ser incorporado
pelo cooperativismo contra-hegemônico e de oposição praticado
no MST.
Um dos mais importantes feitos políticos para a efetivação
do projeto popular para o Brasil será, certamente, a transformação
dos espaços conquistados pelo MST em exemplos vivos de
superação da sociedade de exploração capitalista. Mais que isso,
cumpre que cada espaço conquistado pelos movimentos
populares, do campo ou da cidade, tenha por princípio de sua
organização a sobrevivência material e moral independente da
estrutura hegemônica, constituindo-se num espaço de resistência
que seja convidativo a todos os injustiçados.
Desponta como conclusão a de que a cooperação agrícola
entre trabalhadores rurais pode se constituir em instrumento
de construção de uma verdadeira democracia, de trabalho digno
e libertador, de valores igualitários e solidários, no campo
brasileiro, ainda que ilhados num mar de injustiça social. É tarefa
tática dos lutadores e lutadoras do povo a edificação de pontes
que interliguem essas ilhas e possibilitem a entrada de todas
as vítimas da predatória “economia de mercado”.

182
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

Com vistas nisso, merecem destaque algumas propostas


que vêm sendo discutidas no SCA. Primeiramente, cabe aludir
que neste setor, como no Movimento de uma forma ampla,
tem-se a clareza de que devem ser buscadas não somente nos
assentamentos, mas também nos acampamentos, as mais
diferentes maneiras de cooperação, para que aos poucos ela
se torne tão espontânea quanto a união verificada durante as
reivindicações e mobilizações para conquista e garantia de direitos.
Nesse sentido, urge que os acampamentos sejam
organizados de modo a depender o mínimo possível de ajudas
externas. Seguramente, após a conquista da terra os (então)
assentados terão a límpida certeza de que o trabalho cooperado
é muito mais vantajoso do que o individual, sobretudo como
instrumental de uma luta maior.
Nessa esteira, Ademar Bogo constata que o que leva os
assentados a cooperarem entre si são dois elementos, quais
sejam, a necessidade e a perspectiva de desenvolvimento
econômico.24 Uma das principais questões, portanto, é a de
utilizar tais elementos como geradores de conscientização
política na massa, demonstrando que o trabalho cooperado é
estratégico não somente para superação das necessidades mais
imediatas e desenvolvimento econômico, mas também para
supressão do modelo totalizante imposto globalmente, que
por essência é excludente.
Visando à massificação da cooperação no MST, desde
os acampamentos até os assentamentos, então, Bogo sugere
as seguintes medidas práticas: 1.º) Diminuir o tamanho do
lote individual, fazendo com que uma parte correspondente a
um módulo regional fique sendo uma área comunitária do
assentamento; 2.º) Selecionar desde o início quem não aceita

24 BOGO, Ademar. Perspectivas da Cooperação no MST. p.15.

183
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

a proposta do trabalho coletivo e realizar a distribuição dos


lotes individuais de acordo com a situação e localização das
áreas. Escolher a parte mais estratégica da área para o coletivo;
3.º) Deverá haver entre o assentamento e o Movimento, em
conjunto com o INCRA, uma espécie de contrato de exploração
da área. Por exemplo, se o assentado individual não cultivar o
lote em pelo menos cerca de 70%, este ficará disponível para
a parte comunitária do assentamento; 4.º) As formas de
cooperação não deverão iniciar com um número muito grande
de famílias.
E de fato esse é um tema que merece a atenção dos
militantes e estudiosos do cooperativismo. Estão se elaborando
medidas concretas a serem aplicadas com o fito de aprofundar
experiências que têm origem já há quase dois séculos. Com
efeito, além de reacender a utopia cooperativista, o debate sobre
o novo modelo de assentamentos busca a solução de graves
problemas históricos da política de Reforma Agrária brasileira,
cunhando novas formas na estátua burguesa da relação sujeito-
propriedade. O que se vive atualmente com isso, em suma, é a
reivindicação do reconhecimento por parte da sociedade e do
Estado de modos diferenciados de lidar com a terra, para muito
além de seu simples tratamento como mercadoria.
A aproximação das moradias e uma nova forma de divisão
da área, a organização dos centros comunitários, o planejamento
direcionado à cooperação sobre os investimentos e infra-
estruturas, poderão fazer com haja o início de uma nova, plural
e massificada experiência de cooperação no campo. É possível,
assim, que a organização da produção, da industrialização e
da comercialização de forma coletiva sejam efetivamente a base
de sustentação econômica dos cooperados e do MST, assim
como um grande pilar de seu projeto político.

184
UM PANORAMA DO COOPERATIVISMO NO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E O CASO DA COOPROSERP

REFERÊNCIAS

BOGO, Ademar. Perspectivas da Cooperação no MST. Bahia: 1994.

BOGO, Ademar. (Org.). Método de trabalho e organização popular.


São Paulo: ANCA, 2005.

CERIOLOI, Paulo; MARTINS, Adalberto. Caderno de cooperação n.º 5:


sistema cooperativista dos assentados. 2.ed. São Paulo: CONCRAB, 1998.

CHIAVON, Francisco Dal. A evolução da concepção de cooperação agrícola


do MST: 1989 a 1999 (Caderno da Cooperação Agrícola, 08). São Paulo:
Concrab, 1999.

GUTERRES, Ivani. Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres.


São Paulo: Expressão Popular, 2006.

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo:


Ensaio, 1993.

MIRANDA, Carlos. A produção econômica no assentamento Novo Paraíso,


Boa Ventura de São Roque: sua gestão. Monografia apresentada à
Universidade Estadual do Centro-Oeste UNICENTRO. Guarapuava, 1998.

MORISSAWA, Mitsue. A luta pela terra e o MST. 2.ed. São Paulo:


Expressão Popular, 2006.

MOURA, Clóvis. Sociologia política da guerra camponesa de canudos: da


destruição do Belo Monte ao aparecimento do MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2000.

MST. A Cooperação agrícola nos assentamentos (caderno de formação


20) São Paulo, SP: 1993.

PORTES, Juraci Oliveira de. Cooperativas de produção, questões Práticas


(caderno de formação 21). 3. ed. São Paulo: MST/Concrab, 1997.

RECH, Daniel. Cooperativas, uma alternativa de organização popular. Rio


de Janeiro: Fase, 1995.

SAN MARTIN, Paulo. Agricultura suicida: um retrato do modelo brasileiro.


2.ed. São Paulo: Ícone, 1987.

SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento.


Petrópolis: Vozes, 2001.

STEDILLE, João Pedro. (Org.). A questão agrária no Brasil. v.5. São Paulo:
Expressão Popular, 2005.

185
186
PARECER

CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE DO PROJETO DE LEI N.º 7.009/06


(COOPERATIVISMO DO TRABALHO – DEP. MEDEIROS)

Prezados:

Diante da possibilidade de votação do Projeto de Lei n.º


7.009/06 e de outros Projetos versando sobre cooperativas
de trabalho, ainda, neste final de ano de 2006, o Núcleo de
Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação
em Direito da Universidade Federal do Paraná-UFPR, realizou
avaliação dos Projetos e relatório síntese da reunião do dia 12
de dezembro de 2006, na sede da Organização das
Cooperativas do Estado de São Paulo. Dessa reunião
participaram as seguintes entidades: OCB, OCERJ, OCESP
(ramo das cooperativas de trabalho); UNISOL/CUT; MTE/
SENAES; CONCRAB; ITCP/USP; ANTEAG; NDCC/UFPR. As
contribuições abaixo se destinam a identificar o perfil e as
eventuais conseqüências do Projeto de Lei em pauta, para o
Cooperativismo Popular.
Inicialmente, cumpre destacar que o Projeto de Lei n.º
7.009/06 visa abranger cooperativas de trabalho (produção e
serviço) de dois tipos: a) as que terceirizam o trabalho; b) as
que não estão voltadas à terceirização.
As cooperativas de trabalho filiadas à OCB, que serão
reguladas pela Lei, na sua maioria, inserem-se no processo de
terceirização do trabalho e o artigo. 9º do Projeto menciona
que os serviços poderão ser prestados no estabelecimento do
contratante, tomador do serviço.

187
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Ao incluir as cooperativas terceirizadoras de trabalho, o


Projeto estabelece um patamar de direitos sociais trabalhistas
que fica abaixo daquele exigido pela CLT e pela legislação de
trabalho terceirizado (eventual ou temporário). Daí ser vantajoso
para os tomadores e cooperativas prestadores de serviço
terceirizado a assunção de algumas obrigações sociais, nos
moldes propostos pelo Projeto.
Além disso, as cooperativas rurais e urbanas, de serviço
e produção, que têm trabalho não tercerizado foram tratados
pelo Projeto como se tivessem trabalho terceirizado. Por isso
foi necessário propor que tais cooperativas constassem de
exceções à aplicação do artigo 7º do projeto como é caso da
CONCRAB e outras cooperativas, para as quais esse patamar
mínimo seria inaceitável, porque não existe nelas terceirização,
nem apropriação de trabalho pelo capital, eis que há cooperação,
autonomia coletiva, repartição dos ganhos. Assim, decorre
dessa diferenciação não realizada no Projeto, a necessária
exceção das cooperativas de reforma agrária, de “produção
artesanal”, catadores material reciclável, seringueiros,
garimpeiros, e cooperativas de outras comunidades e grupos
genericamente denominadas de “comunidades tradicionais”.
Essas exceções permitem, sim, a sobrevivência imediata
e temporária dessas cooperativas excepcionadas, mas a
aceitação do Projeto significa, em uma perspectiva mais ampla,
aceitar sem discussão de fundo a terceirização de mão de obra
retribuída em padrões inferiores. As cooperativas que
terceirizam o trabalho tornam-se lícitas ou “legais”.
A eventual aprovação do Projeto de Lei promoveria, em
médio prazo, o progressivo afastamento das cooperativas
excepcionadas do “cooperativismo oficial”. As exceções seriam
tratadas, logo a seguir, como cooperativas economicamente
frágeis, “de cunho social”, sendo destinatárias de políticas
públicas dirigidas à inclusão social e próximas do terceiro setor,
como preconiza o documento entregue ao final da reunião

188
PARECER

pela OCB, propondo a simplificação da forma societária


e cooperativa.
Algumas conseqüências, em médio prazo, seriam a nosso
ver: a) a manutenção da hegemonia do discurso cooperativista
e do controle das verbas pela OCB, a qual aglutinaria as
grandes cooperativas agrícolas empresariais; as cooperativas
de terceização de mão-de-obra (incluídas no Projeto), as
cooperativas de produção industrial (UNISOL/CUT); b) outro
bloco, fora da pauta cooperativista e sem acesso aos Recursos
do SESCOOP e do PRONACOOP, seria lançando para o campo
das políticas inclusivas e de recursos do MDS e seria constituído
pelas exceções. É claro que nesse possível panorama a
CONCRAB, por exemplo, teria um perfil diferenciado, embora
se encontre no rol das exceções.
O Projeto não contempla a possibilidade real de agrupar
as exceções de forma menos casuística, embora várias propostas
tivessem apontado para o critério de aglutinação das exceções
pelo valor da retirada dos cooperados.
Do mesmo modo, não se discutiu, profundamente, a
questão das cooperativas de técnicas ou profissionais liberais,
de assistência técnica (COTRARA, AMBIENS etc.), sendo que
para estas cooperativas seria importante precisar o sentido da
expressão “categoria profissional”, contida no inciso I, do artigo
7º, do Projeto. Esta discussão foi barrada, inúmeras vezes,
pela coordenação da reunião. Também não houve espaço para
discutir expressões e termos essenciais para a definição política
e jurídica do perfil do Projeto, tais como “compensação de
horas” (artigo 7º, inciso II), ou será “banco de horas”? ou
termo “eventuais” do artigo 7º, § 1º, do Projeto.
Mais grave foi a indefinição quanto ao § 4º do artigo 7º,
que se refere ao pagamento “in natura”, aspecto que foi
questionado, mas acabou por não figurar no quadro final de
sugestões organizado pela coordenação da reunião. Do mesmo
modo, não houve espaço para discutir a obrigatoriedade de

189
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

registro das cooperativas na Junta Comercial, questão que foi


considerada superada pela OCB, uma vez que essa organização
considera natural o registro nas Juntas Comercial de todas as
sociedades de cunho empresarial.
Outras questões importantes não foram tratadas, porque
a pauta era apenas para discutir as exceções ao inciso I, do
artigo 7º, do Projeto de Lei. Entre os pontos em aberto que
poderão ter reflexos importantes no futuro das cooperativas
de trabalho estão: a) mecanismos societários de manutenção
da autogestão cooperativista, tais como a periodicidade e o
quorumdas assembléias; b) a possibilidade, ou não, de pessoas
jurídicas participarem de cooperativas de trabalhadores. Este
tema não foi tratado, porque a OCB considera pertinente sua
regulação pela Lei Geral do Cooperativismo e pelo Projeto de
Lei n.º 171, do Senador Osmar Dias -PDT/PR. Contudo, o
Projeto de Lei em exame, ao tratar das cooperativas de trabalho,
deveria contemplar um dispositivo que impedisse as pessoas
jurídicas de serem sócias dessa espécie de cooperativas.
De extrema relevância foi a discussão a respeito da
ausência de critérios, no Projeto de Lei, para definir a composição
do comitê gestor do PRONACOOP. Após discussão acalorada
sobre o tema as sugestões não foram contempladas no relatório
final. Trata-se, enfim, de se aprovar de um Projeto sem se
saber quem irá gerir os recursos do PRONACOOP, quais as
forças políticas e sociais estariam representando as cooperativas
populares neste coletivo e qual a relação de equilíbrio entre
essas forças (OCB e o Governo Federal), tendo em vista o
desequilíbrio que se faz presente no SESCOOP, por exemplo.
Estas são as observações possíveis, diante da urgência,
da complexidade do processo legislativo e da carência de
detalhes de negociações que não são de domínio público.

Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania


do Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná – NDCC/UFPR

190
PARECER

ANEXO

PROJETO DE LEI

Dispõe sobre a organização e o


funcionamento das cooperativas de
trabalho, institui o Programa Nacional
de Fomento às Cooperativas de
Trabalho – PRONACOOP e dá outras
providências.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

CAPÍTULO I
DAS COOPERATIVAS DE TRABALHO

Art. 1.º A cooperativa de trabalho é regulada por esta Lei


e, subsidiariamente, pelas Leis n.º 5.764, de 16 de dezembro
de 1971, e n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Art. 2.º Cooperativa de trabalho é a sociedade constituída
por trabalhadores, visando o exercício profissional em comum,
para executar, com autonomia, atividades similares ou conexas,
em regime de autogestão democrática, sem ingerência de
terceiros, com a finalidade de melhorar as condições econômica
e de trabalho de seus associados.
Parágrafo único. A autonomia de que trata o caput deve
ser exercida de forma coletiva e coordenada, mediante a fixação,
em assembléia geral efetivamente representativa e democrática,
das regras de funcionamento da cooperativa e da forma de
execução dos trabalhos, nos termos desta Lei.
Art. 3.º A cooperativa de trabalho rege-se pelos seguintes
princípios:

191
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

I – preservação dos direitos sociais, do valor social do


trabalho e da livre iniciativa;
II – não-precarização do trabalho;
III – autonomia e independência;
IV – autogestão e controle democráticos;
V – respeito às decisões de assembléia, observado o
disposto nesta Lei;
VI – capacitação permanente do associado, mediante a
educação continuada e orientada a alcançar sua qualificação
técnico-profissional;
VII – participação na gestão em todos os níveis de decisão,
de acordo com o previsto em lei e no estatuto social; e
VIII – busca do desenvolvimento sustentável para as
comunidades em que estão inseridas.
Art. 4.º A cooperativa de trabalho pode ser:
I – de produção, quando seus associados contribuem
com trabalho para a produção em comum de bens e detêm os
meios de produção a qualquer título; e
II – de serviço, quando constituída por trabalhadores
autônomos para viabilizar a prestação de serviço acabado a
terceiros, desvinculado dos objetivos e atividades finalísticas
do contratante.
Parágrafo único. Considera-se serviço acabado aquele
que, previsto em contrato, é executado sem a presença dos
requisitos da relação de emprego.
Art. 5.º A cooperativa de trabalho não pode ser utilizada
para intermediação de mão-de-obra subordinada.
Art. 6.º A cooperativa de trabalho é constituída por, no
mínimo, cinco associados, observado o disposto nesta Lei.
Art. 7.º A cooperativa de trabalho deve garantir aos
filiados retiradas proporcionais às horas trabalhadas, não
inferiores ao piso da categoria profissional.

192
PARECER

Art. 8.º A cooperativa de trabalho deve observar as


normas de saúde e segurança do trabalho previstas na
Consolidação das Leis do Trabalho.
Art. 9.º O contratante da cooperativa de serviço responde
solidariamente pelo cumprimento das normas de segurança e
saúde do trabalho, quando os serviços forem prestados no
seu estabelecimento.
Art. 10. Para assegurar os direitos dos associados, a
cooperativa constituirá fundos específicos, com base na
receita apurada.

CAPÍTULO II
DO FUNCIONAMENTO DAS COOPERATIVAS DE TRABALHO

Art. 11. O estatuto social da cooperativa de trabalho


deve identificar o seu objeto.
Parágrafo único. É obrigatório o uso da expressão
“Cooperativa de Trabalho” na razão social da cooperativa.
Art. 12. Sem prejuízo da assembléia geral ordinária
anual, é obrigatória a realização de assembléias gerais, em
periodicidade não superior a noventa dias, nas quais serão
debatidos as contas da cooperativa, o resultado financeiro e
econômico, a gestão, a disciplina e a organização do trabalho.
§ 1.º O destino das sobras líquidas será decidido em
assembléia.
§ 2.º Os associados devem participar das assembléias
gerais, cabendo aos ausentes justificar eventual falta, sob pena
de sanção prevista no estatuto social.
§ 3.º As decisões das assembléias gerais serão
consideradas válidas quando contarem com a aprovação da
maioria absoluta dos associados.
§ 4.º A validade da ata de assembléia geral depende da
subscrição de, pelo menos, trinta por cento dos associados
presentes à assembléia, dispensado o registro.

193
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

§ 5.º Comprovada fraude ou vício nas decisões da


assembléia geral, serão elas nulas de pleno direito, aplicando-se,
conforme o caso, a legislação civil, penal e trabalhista.
Art. 13. A notificação dos associados para participação
da assembléia geral será pessoal e ocorrerá com antecedência
mínima de dez dias de sua realização.
§ 1.º Na impossibilidade de notificação pessoal, a
notificação dar-se-á por via postal, respeitada a antecedência
prevista no caput.
§ 2.º Na impossibilidade de realização das notificações
pessoal e postal, os associados serão notificados mediante
edital afixado na sede e em outros locais previstos nos estatutos
ou publicado em jornal de circulação na região da sede da
cooperativa, respeitada a antecedência prevista no caput.
Art. 14. É vedado à cooperativa de trabalho distribuir
verbas de qualquer espécie entre os associados, exceto a retirada
devida em razão do exercício de sua atividade profissional ou
retribuição por conta de reembolso de despesas comprovadamente
realizadas em proveito da cooperativa.
Parágrafo único. O descumprimento da disposição do
caput deste artigo seráconsiderado falta grave cometida pelo
beneficiário e por quem autorizou o pagamento, sendo devida
a devolução dos valores à cooperativa, com juros, atualização
monetária e multa de trinta por cento aplicada sobre o montante
do que foi pago indevidamente, sem prejuízo de outras sanções,
previstas no estatuto social e na Lei.
Art. 15. A cooperativa de trabalho pode fixar, em
assembléia, diferentes faixas de retirada.
§ 1.º Considera-se também retirada o adiantamento das
sobras líquidas, baseado em estimativa previamente aprovada
em assembléia geral.
§ 2.º No caso de fixação de faixas de retirada, a diferença
entre as de maior e menor valores não poderá exceder seis vezes.

194
PARECER

Art. 16. A utilização do capital integralizado deverá


observar o disposto no estatuto social e nas decisões das
assembléias gerais.
Art. 17. O conselho de administração será composto
por, no mínimo, três associados, eleitos pela assembléia geral,
para um prazo de gestão não superior a quatro anos, sendo
obrigatória a renovação de, no mínimo, um terço do colegiado.
Art. 18. A cooperativa de trabalho constituída por até
quinze associados pode estabelecer para o conselho de
administração composição distinta da prevista nesta Lei,
dispensada da constituição de conselho fiscal, de acordo com
o disposto no art. 56 da Lei n.º 5.764, de 1971.

CAPÍTULO III
DA FISCALIZAÇÃO E DAS PENALIDADES

Art. 19. A utilização de cooperativa de trabalho para


fraudar a legislação trabalhista acarretará a dissolução judicial
da sociedade, sem prejuízo das sanções penais, civis e
administrativas cabíveis.
Parágrafo único. São legitimados para propor a ação
de que trata o caput qualquerassociado e o Ministério Público
do Trabalho.
Art. 20. A verificação da existência dos requisitos da
relação de emprego, previstos nos arts. 2.º e 3.º da Consolidação
das Leis do Trabalho, implicará o reconhecimento do vínculo
de emprego entre:
I – o trabalhador e o tomador de serviços na cooperativa
de serviço; e
II – o trabalhador e a cooperativa na cooperativa de produção.
Parágrafo único. A cooperativa de serviço responde
solidariamente com o tomador de serviços pelas obrigações
trabalhistas.

195
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Art. 21. Cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego, no


âmbito de sua competência, a fiscalização do cumprimento do
disposto nesta Lei.
§ 1.º A cooperativa de trabalho que intermediar mão-de-
obra subordinada e os tomadores de seus serviços estarão
sujeitos à multa de R$ 1.113,00 (mil cento e treze reais) por
trabalhador prejudicado, dobrada na reincidência, a ser revertida
em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.
§ 2.º As penalidades serão aplicadas pela autoridade
competente do Ministério do Trabalho e Emprego, de acordo
com o estabelecido no Título VII da Consolidação das Leis
do Trabalho.
Art. 22. As irregularidades constatadas pela fiscalização
trabalhista e previdenciária, sem prejuízo da autuação, serão
comunicadas ao Ministério Público do Trabalho, ao Ministério
Público Federal ou ao Ministério Público dos Estados e do
Distrito Federal e Territórios.

CAPÍTULO IV
DO PROGRAMA NACIONAL DE FOMENTO
ÀS COOPERATIVAS DE TRABALHO – PRONACOOP

Art. 23. Fica instituído, no âmbito do Ministério do


Trabalho e Emprego, o Programa Nacional de Fomento às
Cooperativas de Trabalho – PRONACOOP, com a finalidade
de promover o desenvolvimento e a melhoria do desempenho
econômico da cooperativa de trabalho.
Parágrafo único. O PRONACOOP será constituído pelas
seguintes ações:
I – apoio à elaboração de diagnóstico e plano de
desenvolvimento institucional para as cooperativas de trabalho
dele participantes;
II – apoio à realização de acompanhamento técnico, por
entidade especializada, para fortalecimento financeiro e de
gestão, bem como qualificação dos recursos humanos;

196
PARECER

III – viabilização de linhas de crédito; e


IV – outras que venham a ser definidas por seu Comitê
Gestor no cumprimento da finalidade estabelecida no caput.
Art. 24. Fica criado o Comitê Gestor do PRONACOOP,
com as seguintesatribuições:
I – acompanhar a implementação das ações previstas
nesta Lei;
II – propor as diretrizes nacionais para o PRONACOOP;
III – propor normas operacionais para o PRONACOOP,
inclusive os critérios de inscrição; e
IV – receber, analisar e elaborar proposições direcionadas
ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador –
CODEFAT.
Parágrafo único. A composição, organização e funcionamento
do Comitê Gestor serão estabelecidos em regulamento.
Art. 25. O Ministério do Trabalho e Emprego poderá
celebrar convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos
que objetivem a cooperação técnico-científica com órgãos do
setor público e entidades privadas sem fins lucrativos, no âmbito
do PRONACOOP.
Art. 26. As despesas decorrentes da implementação do
PRONACOOP correrão à conta das dotações orçamentárias
consignadas anualmente ao Ministério do Trabalho e Emprego.
Art. 27. Os recursos destinados às linhas de crédito do
PRONACOOP serão provenientes do FAT.
Parágrafo único. O CODEFAT apreciará o orçamento anual
do PRONACOOP e disciplinará as condições de repasse de
recursos, de financiamento ao tomador final e de habilitação
das instituições que deverão assegurar a sua operacionalização.
Art. 28. Fica permitida a realização de operações de
crédito a empreendimentos inscritos no âmbito do PRONACOOP
sem a exigência de garantias reais, que podem ser substituídas
por outras alternativas a serem definidas pelas instituições

197
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

financeiras operadoras, observadas as condições estabelecidas


em regulamento.
Parágrafo único. São autorizadas a operar o PRONACOOP
as instituiçõesfinanceiras oficiais de que trata a Lei n.º 8.019,
de 11 de abril de 1990.

CAPÍTULO V
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 29. A cooperativa de trabalho constituída antes da


vigência desta Lei tem prazo de doze meses para adequar os
seus estatutos às disposições nela previstas.
Art. 30. A cooperativa de trabalho tem até trinta e seis
meses, a contar da publicação desta Lei ou de sua constituição,
para assegurar aos associados a garantia prevista no art. 7.º.
Art. 31. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 32. Fica revogado o parágrafo único do art. 442 da
Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 5.452, de 1.º de maio de 1943.

Brasília,

EM N.º 13/MTE

Brasília, 3 DE MAIO DE 2006

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

Submeto à elevada consideração de Vossa Excelência o


anexo anteprojeto de lei que dispõe sobre a organização e o
funcionamento das Cooperativas de Trabalho, institui o
Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho –
PRONACOOP e dá outras providências.

198
PARECER

2. O cooperativismo é um fenômeno social e econômico


cujas raízes históricas datam de meados do século XIX e tem
como lema a solidariedade econômica e social pelo trabalho
em comum.
Surge, historicamente, como alternativa ao emprego,
caracterizada pela coletivização da propriedade dos bens de
produção, autogestão coletiva e repartição coletiva dos
resultados da produção.
3. A Constituição da República Federativa do Brasil
determina, no § 2.º do artigo 174, que a lei apóie e estimule o
cooperativismo e outras formas de associativismo, ficando claro
que as cooperativas revelam-se como um instrumento de
desenvolvimento local e regional que permite o estabelecimento
de formas democráticas no espaço da produção e, por isso,
devem ser aprendidas como um valioso recurso no processo
de construção da cidadania.
4. Desde a publicação da Lei n.º 8.949/94, porém,
sérias ameaças ao cooperativismo e aos direitos trabalhistas
materializaram-se por meio da criação de cooperativas que, no
processo de terceirização largamente instalado nas empresas
brasileiras, vêm substituindo postos formais de emprego e
inserindo trabalhadores subordinados no mercado de trabalho,
tolhendo-lhes, todavia, o acesso aos direitos sociais. É a
mercancia da mão-de-obra que não cria oportunidades novas,
mas, ao contrário, torna precários os postos de emprego, de
forma nunca vista em nosso país.
5. A par da necessidade de se regulamentar adequadamente
o fenômeno de terceirização nas empresas, faz-se, premente,
o regramento do cooperativismo de trabalho que, como se sabe,
está na própria raiz das virtudes e dos problemas acima apontados.
6. A presente proposta visa a coibir as fraudes, vedando,
terminantemente, a intermediação de mão-de-obra sob o
subterfúgio das cooperativas de trabalho. Esta prática abusiva

199
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

vem se revelando como meio degradante de prestação de


trabalho, uma vez que o trabalhador presta serviços em
condições próprias de emprego, privado dos direitos reconhecidos
pela Constituição Federal e pela legislação trabalhista.
7. Estas cooperativas de intermediação de mão-de-obra
apresentam mera aparência de cooperativas, uma vez, não
obstante formalizem-se como tal, obedecendo aos requisitos
legais para tanto, substancialmente não o são, pois o trabalhador
“cooperado” que presta serviços pessoais e subordinados a
terceiros, nada mais é, senão empregado. Sua força de trabalho
transfere lucro aos tomadores, o que é compatível com o
vínculo de emprego, mas não com o cooperativismo. Trata-
se, portanto, de emprego precário, porque não protegido pelos
direitos sociais que lhe seriam inerentes.
8. A Organização Internacional do Trabalho, em
conferência realizada em julho de 2002, em Genebra, editou o
texto da Recomendação 193, cujo tema é o cooperativismo.
O item 8.1, b daquela Recomendação, assim estabelece:

“8.1) As políticas nacionais deveriam nomeadamente:


(...)
b) velar para que não se possam criar ou utilizar
cooperativas para iludir a legislação do trabalho nem para
estabelecer relações de trabalho dissimuladas, e lutar contra as
pseudo-cooperativas, que violam os direitos dos trabalhadores,
velando para que a legislação do Trabalho seja aplicada em
todas empresas.”

9. Esse item reflete a aspiração da comunidade


internacional no sentido de repudiar a alienação do trabalho
humano, desprotegida dos direitos universais historicamente
consagradas, e a utilização dos ideais cooperativistas como
um pretexto para aviltamento deste mesmo trabalho humano.

200
PARECER

10. Entretanto, as cooperativas de trabalho são uma


realidade incontestável, nos dias de hoje. Atuando de maneira
correta e dentro da lei, podem revelar importante alternativa
para geração de trabalho e renda às pessoas.
11. A presente medida legal parte do pressuposto,
amadurecido nos estudos teóricos do cooperativismo, de que
as formas de associação cooperativista de trabalho dividem-se
em duas vertentes, quais sejam a cooperativa de produção e a
cooperativa de serviço. A primeira caracteriza-se por um
processo em que os trabalhadores detêm os bens de produção
e, sob a forma de autogestão, oferecem ao mercado produtos
acabados. A segunda notabiliza-se pela cooperação de
trabalhadores para potencializar a sua capacidade de captação
de clientes e qualificação profissional, com intuito de oferecer
ao mercado serviço acabado e livre de ingerência de terceiros.
12. A proposta de lei ora apresentada tem a finalidade
de criar as condições jurídicas para proporcionar o adequado
funcionamento destas sociedades, de maneira a melhorar a
condição econômica e as condições gerais de trabalho de
seus sócios.
13. Para tanto, faz-se necessário reconhecer efetividade
dos modernos princípios que devem fundamentar e orientar o
funcionamento destas cooperativas. Neste sentido, a proposta
destaca aqueles considerados essenciais, cuja rigorosa
observância é condição para a existência de autênticas
cooperativas de trabalho.
14. O ordenamento jurídico, conforme previsto na
Constituição Federal, em seu Artigo 5º, XVIII, prevê que “a
criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas
independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal
em seu funcionamento”. O papel da lei, portanto, deverá ser o
de estabelecer os contornos para o correto funcionamento das

201
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

cooperativas, dispondo sobre as regras a serem adotadas para


se assegurar a aplicação dos princípios cooperativos.
15. A proposta de lei especial ressalva a preexistência
das leis gerais que versam sobre o tema, prevendo expressamente
a aplicação subsidiária da Lei Geral do Cooperativismo – Lei
n.º 5.764/71 e do Código Civil – Lei n.º 10.406/2002.
16. Cuida-se também da fixação do conceito jurídico de
cooperativa de trabalho, de onde se evidencia que os trabalhadores
deverão executar suas tarefas sem a ingerência de terceiros,
com autonomia, exercida de forma coletiva e coordenada, ou
seja, mediante a fixação, em assembléia geral efetivamente
representativa e democrática, das regras de funcionamento da
cooperativa e da forma de execução dos trabalhos.
17. A assembléia geral assume proeminência nunca antes
experimentada. Se a cooperativa afigura-se como a união de
esforços entre seus membros, deve-se evidenciar, na prática,
a affectio societatis. Isto significa que o funcionamento, de
fato, deva se dar como sociedade, exigindo-se, portanto, a real
participação de seus integrantes nos destinos do empreendimento.
Assim, a lei procura, de todas as maneiras e formas, prestigiar
a assembléia como sendo o grande momento de reunião dos
sócios para decidirem sobre seus interesses. As assembléias
gerais deverão ser efetivamente democráticas e representativas;
fixar as regras de funcionamento, a forma de execução dos
trabalhos e até uma garantia de uma retirada mensal não inferior
aos rendimentos auferidos por trabalhadores da categoria
profissional vinculada ao serviço prestado; realiza-se em
periodicidade não superior a noventa dias; contar com a real
participação dos sócios, cujo comparecimento será obrigatório;
e suas decisões, para serem válidas, deverão obter a aprovação
da maioria absoluta de seus integrantes. Além disto, a exigência
de convocação dos sócios por notificação pessoal garante o
caráter democrático e participativo das decisões assembleares.

202
PARECER

As atas devem ser assinadas por, no mínimo 30% (trinta por


cento) dos sócios e não há mais a necessidade de seu registro
no órgão competente.
18. Neste sentido, e com o objetivo de combater a
precarização do trabalho neste ambiente, determina-se que as
cooperativas de trabalho assegurem um conteúdo mínimo de
direitos aos seus cooperados, que serão custeados por fundos
específicos da própria cooperativa, formados a partir da receita
apurada. Reconhecendo o desafio econômico que a garantia
de tais direitos representará para algumas cooperativas, a lei
concede um prazo de até trinta e seis meses para que elas
assegurarem aos seus sócios a retirada mínima.
19. É preciso ainda promover o desenvolvimento e a
melhoria do desempenho econômico das cooperativas de
trabalho, a fim de garantir aos seus membros condições dignas
de trabalho e de remuneração. Para tanto, o projeto de lei
institui o PRONACOOP Programa Nacional de Fomento às
Cooperativas de Trabalho. Caberá ao PRONACOOP propiciar
instrumentos e ações de estímulo às cooperativas de trabalho,
permitindo-lhes melhorar continuamente o seu desempenho
econômico, mediante acompanhamento técnico, qualificação
de recursos humanos e oferta de linhas de crédito diferenciadas.
20. A lei vedará, ainda, a distribuição, entre sócios, de
taxas, comissões ou verbas de qualquer espécie, exceto a
retribuição devida em razão do exercício de sua atividade
como sócio, ou por conta de reembolso de despesas
comprovadamente realizadas em proveito da cooperativa. Visa
tal dispositivo a coibir fraudes e assegurar aplicação do princípio
da participação econômica dos membros de forma equânime,
sem distorções.
21. Propõe-se reduzir o número mínimo de sócios para
cinco, como incentivo à formação das pequenas cooperativas.

203
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

22. Distingue-se de maneira especial o tratamento que


passa a adotar para os pagamentos periódicos realizados aos
sócios das cooperativas. Observando seus resultados financeiros
e econômicos, poderão estas fixar diferentes faixas de retiradas,
com base em critérios a serem estabelecidos em assembléia.
As retiradas consistem na retribuição devida aos integrantes
da sociedade, de acordo com as tais faixas. E, visando impedir
as distorções, determinará que, em havendo tais faixas, a
diferença entre as de maior e menor valores não poderá exceder
a seis vezes.
23. A lei prevê, ainda, hipótese de ilícito administrativo
pertinente à utilização fraudulenta da cooperativa, no escopo de
coibir a utilização destas como formas nefastas de precarização
do trabalho e de burlar à legislação trabalhista. Neste mesmo
contexto, determina-se a possibilidade de dissolução judicial da
cooperativa utilizada como fraude à legislação trabalhista.
24. Enfim, o presente anteprojeto de lei tem como
objetivo a criação de um ambiente jurídico que possibilite o
desenvolvimento do verdadeiro cooperativismo de trabalho por
intermédio da existência de instrumentos jurídicos que afastem
a utilização desta forma de organização dos trabalhadores como
mecanismo de precarização da legislação laboral. Ao mesmo
tempo, busca-se garantir que o Estado impulsione por múltiplas
ações o crescimento dessas organizações de economia solidária.

Estas são, Senhor Presidente, as razões que justificam o


encaminhamento do presente anteprojeto de lei, que ora submeto
à consideração de Vossa Excelência, solicitando, ante o exposto,
o seu encaminhamento ao Congresso Nacional.

Respeitosamente,

Assinado eletronicamente por: Luiz Marinho

204
PARECER

Universidade Federal do Paraná – UFPR


Programa de Pós-graduação em Direito
Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania

Ementa: Sociedade cooperativa. Quotas-


partes do capital. Intransferibilidade a
terceiros. Artigo 1.094, inciso IV, do
Código Civil, e artigo 4º, inciso IV, da
Lei n.º 5764/71.

A Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES e


o Ministério das Minas e Energia – MME consultam a respeito
da legalidade da Proposta de Reformulação do Estatuto da
COOPERATIVA DE MINERAÇÃO DOS GARIMPEIROS DE
SERRA PELADA – COOMIGASP, vertida nos seguintes termos:

Art. 19. A quota-parte de cada cooperado é direito seu


devidamente escriturado no livro de matricula da COOMIGASP,
podendo o cooperado livremente vender, dispor ou doar no
todo ou em parte suas quotas.
Parágrafo único – a transferência de quotas-partes será
escriturada em formulário próprio, mediante termo que conterá
a assinatura do cedente, sendo emitido certificado de quotas,
assinado pelo presidente e secretário legalmente investidos
nas suas funções.

A questão merece a análise da legalidade e dos conceitos


jurídicos presentes na Proposta da Reforma Estatutária, sem
perder de vista o caráter sistemático da interpretação. Assim
sendo, em primeiro lugar, cabe citar a legislação que rege as
formas societárias em geral, Código Civil Brasileiro, que em
seu artigo 1.094, inciso IV, dispõe:

205
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Art. 1.094. São características das sociedades cooperativas:


[...]
IV – Intransferibilidade das quotas a terceiros estranhos à
sociedade, ainda que por herança.

Tal regra da legislação geral encontra correspondência


com o disposto no artigo 4º, inciso IV, da Lei Especial, n.º
5.764/71, que institui o regime jurídico das sociedades
cooperativas, verbis:
Art. 4º. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma
e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à
falência, constituídas para prestar serviços aos associados,
distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes
características:
[...]
IV – inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros
estranhos à sociedade.” (sem grifos no original)

Como se vê, tanto o Código Civil em seu artigo n.º


1.094, inciso IV, quanto à Lei n.º 5.764/71, em seu artigo
4º, inciso IV, proíbem, terminantemente, a seção das quotas-
partes do capital a terceiros estranhos à sociedade cooperativa,
tendo o Código Civil acrescentado que a transferências dessas
quotas não é permitida sequer por sucessão hereditária.
O professor da UFPR, Alfredo de Assis Gonçalves Neto
(Noções de Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira
LTDA, 2002, p. 128), comentando as características específicas
dessa espécie societária, a partir do conteúdo do artigo 1.094
do Código Civil de 2002, aponta como uma das particularidades
das cooperativas: “a impossibilidade de transferência das
quotas-partes do capital a terceiros estranhos à sociedade,
que nela só podem ingressar se atuarem no ramo e mediante a
subscrição de novas quotas-partes.” (sem grifos no original).

206
PARECER

Dentre as razões para tais disposições legais, proibindo


toda e qualquer forma de transferências de quotas, onerosa
ou gratuita, entre pessoas vivas ou em virtude da morte (por
sucessão hereditária), está a natureza pessoal das sociedades
cooperativas, em que cada sócio tem direito a um voto,
independente do número de quotas que detenha no capital da
sociedade e cujo benefício econômico (retirada) depende não
do capital representado pelas quotas, mas do volume das
operações efetuadas pelo sócio, em virtude de sua atividade
societária, na cooperativa, tudo como dispõem os artigos 4º,
incisos VII e 25, § 3º, de referida Lei n.º 5.764/71.
Decorre também da natureza pessoal da sociedade e da
valorização da atividade societária a indivisibilidade dos fundos
de reservas entre os sócios, como prevê o inciso VIII do mesmo
artigo 4º da Lei. Assim, o caráter pessoal do direito dos sócios
sobre suas quotas não resulta no poder de livre disposição
desse bem móvel, mas ao contrário, em uma limitação do
exercício de um dos elementos que constituem o conteúdo do
direito de propriedade, ou seja, o poder de disposição. Nesta
perspectiva, alegar-se que as quotas podem ser livremente
dispostas pelos sócios, para terceiros, é contrariar a lei geral e
especial, desconhecendo a natureza das sociedades
cooperativas, buscando sua transformação, ao arrepio da lei,
em sociedades de capital.
A partir disso, a compra e venda de quotas, além de
ilegal e de não surtir efeitos jurídicos, conforme já assinalado,
não tem o condão de inserir o seu adquirente na sociedade
cooperativa, como equivocadamente sugere o texto do
parágrafo único do artigo 19 da Proposta de Reforma
Estatutária, onde se lê:

Parágrafo Único – a transferência de quotas parte será


escriturada em formulário próprio, mediante termo que conterá

207
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

a assinatura do cedente, sendo emitido certificado de quotas,


assinado pelo presidente e secretário legalmente investido nas
suas funções.

Nesse tipo de sociedade, o “princípio da porta aberta”


não pode ser lido como a liberdade de ingresso, por meio da
aquisição do capital da empresa, mas sim por um processo de
aceitação no corpo societário, que exige a adesão aos fins
previstos no estatuto, requerendo, ainda, a análise desse
ingresso pela Assembléia Geral. Em outras palavras, é a
disposição de participar da atividade cooperativa e não a
disposição de adquirir quotas-partes em uma sociedade desse
tipo que permite o ingresso de alguém, na qualidade de sócio.
Waldírio Bulgarelli (As Sociedades Cooperativas e sua
Disciplina Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 55)
realiza a seguinte observação sobre a questão, ora em exame:

Compreende-se que nas sociedades cooperativas as quotas


sejam intransferíveis a terceiros, pois que diferentemente das
sociedades capitalistas, as sociedades cooperativas são
sociedades de pessoas, e suas ações não podem se transferir
simplesmente pela tradição. O sistema cooperativo neste
ponto é totalmente diverso; não há emissão de ações e seu
eventual resgate. [...] Tem-se permitido, apenas, nesse sentido,
a transferência de associado para associado, com a autorização
da Assembléia Geral. (sem grifos no original)

Sobre tal questão Walmor Franke (Direito das Sociedades


Cooperativas. São Paulo: Saraiva. 1973, p.14), ao tratar da
sociedade cooperativa, adverte:

É, pois, essencial ao próprio conceito de cooperativa que as


pessoas, que se associam, exerçam, simultaneamente, em
relação a ela, o papel de sócio e usuário ou cliente. É o que,
em Direito Cooperativo, se exprime pelo nome de princípio de

208
PARECER

dupla qualidade, cuja realização prática importa, em regra, a


abolição da vantagem patrimonial chamada lucro que, não
existisse a cooperativa, seria auferida pelo intermediário.

No mesmo sentido, é a opinião do jurista especializado


em Direito Cooperativo, Vergílio Frederico Perius (Cooperativismo
e Lei. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p.71), ao analisar a
qualidade de sócio e da função das quotas-partes, nas
sociedades cooperativas:

c – a natureza jurídica das quotas-partes, por serem


intransferíveis e inseparáveis dos associados e não serem
herdadas corresponde um vínculo jurídico de ordem pessoal,
não patrimonial, que se estabelece entre as cooperativas e os
associados. Mesmo havendo transferência das quotas-partes
com o necessário consentimento (Art. 26), não ocorre a
transferência da qualidade de associados para outro associado.
Com a morte do associado também não ocorre transferência
de capital aos herdeiros do de cujus, visto que a morte de pessoa
física excluí a qualidade associativa dessa pessoa (Art. 35, inciso
II) desse modo a qualidade nominativa das quotas-partes tira o
caráter especulativo do capital.” (sem grifos no original)

CONCLUSÃO

Diante do contido no artigo 1.094, inciso IV, do Código


Civil Brasileiro, e no artigo 4º, inciso IV, da Lei n.º 5.764/71, e
nas demais disposições da referida Lei Especial, que dão caráter
diferenciado às sociedades cooperativas, e, ainda, conforme se
retira da interpretação sistemática realizada com base nas obras
acima citadas, conclui-se pela absoluta ilegalidade dos termos
da proposta da reforma estatutária da COOPERATIVA DE
MINERAÇÃO DOS GARIMPEIROS DE SERRA PELADA –
COOMIGASP, trazida à apreciação do Núcleo de Direito
Cooperativo e Cidadania, do Programa de Pós-graduação em

209
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR, pela Secretaria


Nacional de Economia Solidária – SENAES e o Ministério de
Minas e Energia – MME.

SMJ, é o Parecer.

Eduardo Faria Silva – OAB/RS 50.629


Membro Pesquisador do Núcleo de Direito Cooperativo
e Cidadania da UFPR

Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel – OAB/PR 21.317


Coord. do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania da UFPR

210
RESENHA

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO: PEDAGOGIA(S)


DA PRODUÇÃO ASSOCIADA – LIA TIRIBA (IJUÍ-RS: EDITORA
UNIJUÍ, 2001)

Felipe Drehmer
Ricardo Prestes Pazello

O livro ora sob análise é o da professora da Faculdade


de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ),
Lia Tiriba, intitulado Economia Popular e Cultura do Trabalho:
pedagogia(s) da produção associada. Tendo Tiriba atuado como
educadora e assessora pedagógica no Sindicato dos
Metalúrgicos do Rio de Janeiro e dedicado boa parte de sua
carreira à empreita pesquisadora, o estudo resenhado é fruto
da vivência de sua autora e de seu comprometimento na tentativa
de compreender a relação entre a questão do trabalho, tão em
voga nos dias de hoje, e seu impacto no setor econômico,
notadamente o conhecido por economia popular, ainda que se
possa chamá-lo de economia solidária ou mesmo social. Tal
relação é mediada por sua peculiar forma pedagógica, intrínseca
que é a pedagogia ao agir humano, em especial o laboral.
A obra está dividida em cinco grandes partes, nas quais
a autora desenvolve sua compreensão tanto do mundo do
trabalho como da prática pedagógica que acompanha o
trabalhador em sua labuta. Dando ênfase à produção associada,

* Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania.

** Acadêmico de Direito da UFPR e membro do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania.

211
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

com o trabalho entendido nos moldes coletivos, Lia Tiriba


procurará percorrer o Desenvolvimento (des)humano e crise
do trabalho, delineando a base sobre a qual se assenta a
produção no sistema capitalista, claro ponto em que se vê que
o lucro é sobejo e que as relações de trabalho mais e mais se
precarizam; intentará discorrer também sobre a Economia
popular: sua reedição pelo trabalho e pelo capital, procurando
debater desde o conceito do que seja o “popular” até chegar a
um entendimento da expressão “economia popular”, seus
integrantes e dinâmicas; a seguir, prosseguirá sua análise
focando a Escola e outras escolas de produção de uma nova
cultura do trabalho, momento no qual se problematizará o
processo educativo na esfera laboral, visualizando-se a gestão
do trabalho e do conhecimento inserida numa nova cultura
de produção cuja primazia está na associatividade; também
buscará compreender A “pedagogia da fábrica” na versão dos
trabalhadores, buscando contrapor as entrevistas e os resultados
dos trabalhos empíricos à carga teórica anteriormente
fundamentada, almejando entender a densa rede de relações
estabelecidas entre os atores da economia popular associada
no interior do espaço de produção, sua relação com a comunidade
local, com os grupos de economia solidária e com as mais
variadas instituições que se propõem a interagir nesse âmbito;
e, finalmente, proporá um desfecho, abordando tema assaz
relevante, qual seja, Pedagogia(s) da produção associada: para
onde caminha a economia popular?, em que evidenciará que
as contradições do meio no qual se inserem os projetos
associativos de cunho popular não podem nos dar a certeza
de que ali está o novo germe da transformação social, embora
não desdenhe as potencialidades dos empreendimentos
como uma espaço pedagógico, pois constará empiricamente
a existência de transformações da relação dos trabalhadores
tanto no que diz respeito à suas necessidades materiais quanto
às imateriais.

212
RESENHA

Se pudéssemos encontrar um ponto de partida para


compreender o trabalho de Lia Tiriba, não nos constrangeríamos
em dizer que é ele o trabalho. O trabalho, aqui, exerce papel
central no desenrolar teórico, bem como nos seus devidos
prismas, no discorrer empírico que a obra aporta. Não poderia
ser diferente. Quando nos encontramos diante de um redemoinho
de discursos, os quais, ainda que aparentemente os mais
diversos, nada mais que consubstanciam o fim da sociedade
industrial, a partir do que o trabalho seria mera escatologia do
agir social, faz-se imprescindível a assunção de uma posição
nesse embate. E a posição de Lia Tiriba é clara: o trabalho é,
sim, fulcro da sociedade atual. Talvez não o seja para os além-
atlânticos olhos de homens que cada vez menos entram em
contato com a dura realidade de todo um mundo, senão esquecido,
tornado invisível, em sua miséria e em sua subordinação. Efeito
do sistema capitalista, é o que se costumou chamar de terceiro
mundo o protagonista dessa peça, em que sói ser qualificado
como coadjuvante: o trabalho.
Ainda que não seja esse o objeto de análise do texto,
quiçá se possa observar em suas entrelinhas a obnubilação
imposta por um discurso de hegemonia irradiado do centro do
mundo. Não é à toa, por exemplo, que a autora faz questão
de apresentar uma série de dados estatísticos, os quais
enrubesceriam qualquer ser vivo, principalmente os que se
dizem racionais. Mais de 800 milhões de famintos, 80% da
população mundial vivendo nos países ditos subdesenvolvidos,
1,3 bilhão de pessoas abaixo da linha da miséria e 1,2 bilhão
de pessoas sem água potável: uma metralhadora de números
que nos dá a dimensão de quão nefasta se nos afiguram as
condições de vida no planeta Terra. No entanto, a suposta
racionalidade, tão propalada no seio da modernidade, vigora
em um mundo que necessita da miséria para avançar e que faz
da liberdade um projeto individualista. Tem vez, nesse contexto,
o conjunto de técnicas que é sustentáculo do modo de produção

213
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

e o aparato ideológico que serve de receptáculo para o prosperar


dos ideais de liberdade de mercado, para o indivíduo, em
detrimento da esfera coletiva que opera na sociedade. Malsinada
e oprimida, egoísta e ambiciosa, anda a cabeça abstrata do
homem ideal no irreal mundo da sociedade do ócio e do intelecto.
Assim, o público só é visualizado no mercado, o político
nas esferas burocráticas, e a pobreza como que inerente ao
homem. Entrementes, o fim das utopias, o fim da história,
ensejaria a crise da sociedade do trabalho. É inegável, e este é
o entendimento da autora, que o trabalho vem encontrando
características diferenciadas conforme a história vai acontecendo,
mas “se de um lado, o trabalho muda seu desenho, sua
geografia, de outro, a contradição entre o capital e o trabalho
se mantém como fonte de desigualdades” (p.79). A crise do
trabalho, aliada ao fatalismo dos discursos hegemônicos,
astutos que são, daria cabimento à necessidade inescapável
da precarização do trabalho, de sua terceirização e de sua
desregulamentação, enfim, só achando meios cada vez menos
seguros ao trabalhador é que se conseguiria garantir-lhes a
subsistência. Contradição inultrapassável, desde logo se
verifica. A era que dissemina a tecnologia e o desenvolvimento
econômico tem de viver com as causas e efeitos da globalização
que imprescinde da flexibilização do trabalho: o trabalho entra
em crise, porque assim o determina a complexidade atual do
capitalismo e não porque o trabalho em si perdeu seu sentido.
Muito pelo contrário, o trabalhador ainda existe, ou melhor,
resiste, tenta sobreviver, a duras penas.
Não é para menos, portanto, que a autora causticamente
evidencie, em seu pensamento, analogias do tempo escravizado
e da exploração mais generalizada. As várias pobrezas humanas
são postas em sua nudez mais crua, ainda que de passagem:
individual, social e ambientalmente. O produtivismo e o
desenvolvimentismo são incompatíveis com um futuro sadio
de nossa sociedade. Só o reequilíbrio homem-natureza – junto

214
RESENHA

ao Sul-Norte e ao pobres-ricos – poderá permitir alguma


perspectiva de emancipação humana. Com verve marxista,
Tiriba assenta que “a nova base técnica não terminou com a
alienação do trabalho” (p.74). A tecnologia, entoada como
progresso humano pelas vozes beatas do sistema, nada mais
é que privilégio de um nicho da sociedade mundial, justamente
aquele que faz da exclusão social seu contraponto mais evidente.
E tanto assim é que o chamado tempo livre, para os trabalhadores
do Sul do mundo, nada mais se apresenta que desemprego à
flor da pele.
Propugnando uma renovação metodológica, ainda que
sem perder de vista a centralidade do trabalho, a autora tenta
percebê-lo nas esferas pública e privada, conforme a historicidade,
própria da atividade humana, assim o consagra. Busca, então,
um valor de uso para o trabalho, medido pelo seu tempo livre,
não como submissão ao capital, mas como vida, superando as
fetichizações muito peculiares do mundo do trabalho, como a
da tecnologia, do mercado, do capital e, claro, a do proletário.
É desse conjunto de idéias que vai se descortinando a
viabilidade, mesmo que erigida sob o crivo da crítica, do trabalho
por conta própria, em especial o que assim o é coletivamente.
Passando-se, pois, à tarefa de desanuviar o entendimento
do que seja uma tal possibilidade de trabalho, Lia Tiriba nos
remeterá a outra pilastra de seu livro, qual seja, a economia
popular. Antes, porém, de delinear suas configurações práticas,
irá ela se dedicar a uma sua visualização teórica, a fim de
dirimir dificuldades que desde logo se lhe apresentam.
Ao procurar discutir a questão econômica, Lia Tiriba se
depara com uma interessante problemática, qual a seja, a do que
quer dizer o “popular”. Mostrando que várias são as denotações
para o termo, esquadrinha-se nele o melhor signo para este nicho
da economia. A opção por uma tal discussão preliminar nos
leva a pensar, com a autora, que há superabundância de análises
críticas acerca da pobreza, fazendo-se mister a compreensão,
a mais acurada possível, do que seja a economia popular.

215
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

Com freqüência, o termo “popular” vem sendo igualado à


idéia de setor informal da economia. Ainda que possa haver
coincidência entre ambos os casos, não há identidade absoluta
entre os conceitos. A dicotomia formal-informal não suporta a
faticidade – que é nova, ressalte-se – própria da economia
popular em suas dimensões para além da análise de formalidade.
As instâncias jurídicas, exigidas pela burocracia estatal capitalista,
não são suficientes para explicar tal setor econômico. Não dando
conta de sua conceituação, o binômio formal-informal é entendido
como um fenômeno interdependente, ou seja, o formal e o
informal se apresentam como que numa complementaridade,
a partir do que a mera inserção da discussão do popular
verifica-se inócua.
Ainda nessa temática, a economia popular serve como
rótulo de diversos matizes de atuação social. Para extrair alguma
precisão da expressão “economia popular”, utiliza-se a autora
de três marcos teóricos: O. Nuñez, J. L. Coraggio e Razeto.
Para Nuñez, a economia popular engloba o que é alternativo
ao sistema capitalista, aportando-se em uma estratégia
participativa e autogestionária como projeto revolucionário. Para
Coraggio, a economia popular seria um dos subsistemas
econômicos (mais o empresarial e o público), distinguindo-se
pela multiplicidade de identidade e por sua organização
doméstica que não necessariamente é solidária. Por fim, para
Razeto – o autor seguido –, haveria de se visualizar a tipologia
da economia popular: a) soluções assistenciais; b) atividades
ilegais; c) atividades individuais informais; d) micro-
empreendimentos; e) organizações econômicas populares
(OEP’s). Esta última seria uma intersecção entre o popular e o
solidário, com seus característicos próprios. Parece claro que
a escolha deste marco teórico tem por fito a operacionalidade
que a idéia de organizações econômicas populares (OEPs) sugere.
Diferencia-se, pois, de algo que vem sendo preponderantemente

216
RESENHA

equiparado com a economia popular, que é a questão da


economia informal criminal.
É bom lembrar, igualmente, que os setores populares
também reproduzem a lógica de dominação, por ser este o
sistema em que se inserem. A despeito de, porém, o “popular”
também estar suscetível aos fenômenos de globalização e
massificação, é preferível ao termo “sociedade civil”, muito
utilizado, que reduz e homogeneíza a complexidade social
hodierna. Por isso se torna interessante distinguir os atores dos
agentes da economia popular. Estes últimos seriam, justamente,
aqueles que atuariam de fora, podendo-se enxergá-los como
os apoiadores dos grupos populares. Integram estes, por sua
vez, as classes-que-vivem-do-trabalho, independentemente de sua
legalização. Por isso as demais relações sociais, e não só a
economia, são tão pertinentes à discussão.
Aparentemente, a questão vernácula parece improfícua
no que pertine ao debate das dimensões sociais da economia
popular. No entanto, desde esse ponto de vista, pode-se lobrigar
a importância dos movimentos sociais como os novos atores
deste processo, matéria que a ciência política e a filosofia latino-
americanas vêm tratando com grande zelo. Diferentemente
dos agentes da economia solidária, com seus vários interesses
alocados na idéia ou não da emancipação humana, bem como
suas respectivas estratégias, os “movimentos sociais que vêm
optando pela ênfase no caminho ‘de baixo para cima’” (p.158),
são o caminho possível para uma aposta na autogestão,
pensando-se globalmente, ainda que com atuação local.
Constatados problemas fundamentais na sociedade –
baixos salários, desemprego, pobreza –, visualiza-se que as
soluções apresentadas pelos agentes externos são de múltipla
ideologia. Tais agentes configuram ONGs, partidos, sindicatos,
igrejas. A complexidade da economia popular reside no fato de
que plúrimos são tanto seus objetivos quanto seus interesses.
E, assim, questiona-se: os agentes, de fato, contribuem?

217
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

É preciso notar o que significa, para governos e empresários,


a economia popular. Quando se está inserido no contexto da
reestruturação produtiva não se pode negar que o cooperativismo
pode servir como ágil mecanismo do capitalismo. É certo que
há fomentos governamentais para surgimento de microempresas,
cooperativas e associações, mas o Estado o faz com o claro
enfoque empresarial, desnaturando a natureza alternativa de
tal ferramenta. Dessa forma, duas são as vias pelas quais se
pode caracterizar os empreendimentos populares: a autônoma
e a imposta pela globalização. Desde logo, pode-se perceber
certa esterilidade de determinados empreendimentos populares,
já que não se trata de crise do sistema de apropriação pelo
capital, mas sim sua readequação. Caracteriza-se, ainda, que
os agentes, em muito, atuam desfavoravelmente, como se
denota no assistencialismo e clientelismo de partidos políticos,
ONGs e igrejas, o que não invalida suas ações emancipatórias,
demonstrando seu papel contraditório.
Propõe Tiriba que os movimentos populares, em sua
construção contemporânea, absorvam a necessidade de
redefinição de seus rumos, buscando não só as reivindicações
sociais, mas também a transformação econômica, como um
todo, um conjunto de lutas sociais. Tendo, pois, como dado
“a presença real da economia popular nos países latino-
americanos”, não há porque deixar de constatar que, “seja
pela apropriação dos meios de produção, ou pela criação de
novas formas geradoras de trabalho e renda, muitos
trabalhadores compreendem não ser mais possível manter o
isolamento de suas experiências, sendo necessário articulá-las
mediante projetos comuns capazes de dar consistência à
economia popular, transformando-a na economia política dos
trabalhadores” (p. 162).
Uma tal economia política, no que pertine aos
trabalhadores, não pode, entretanto, prescindir da dimensão
educativa que lhe é própria. Isto devido ao fato de que o

218
RESENHA

capitalismo parte de uma contradição fundamental: o caráter


social da produção e o individual da apropriação dos bens; em
última análise, a dicotomia entre trabalho alienado e propriedade
privada. Sendo este o espectro com o qual o proletário se depara,
torna-se a luta em outras frentes, que não só a econômica,
inarredável, a qual só poderá ser otimizada pela questão
educacional, ainda que ela não seja o apanágio para os problemas
originados pelo capital. Por isso, não só se deve lutar pela
propriedade coletiva dos meios de produção, mas também por
uma sociedade democrática, participativa e autogestionária,
com apropriação dos fundamentos científico-tecnológicos.
Tendo em vista que a produção associada sempre sofrerá
com os limites impostos pelo capitalismo e considerando que a
educação do trabalhador sempre se dará sob a ótica do mercado
e não da emancipação, enquanto estiver atrelada ao Estado,
que na perspectiva da autora assume a característica de ser
um Estado de classe, é preciso notar que o processo educativo,
na opção pelo trabalho associado, deverá assumir o papel de
interlocução inextrincável entre teoria e prática. A partir de um
resgate do pensamento gramsciano, Tiriba conceberá a estrutura
de ensino-aprendizagem sob o viés da práxis operária, em que
o intelectual orgânico terá de sair da própria classe trabalhadora,
desmistificando a divisão inultrapassável entre trabalhos manual
e intelectual. Por toda relação hegemônica albergar uma relação
pedagógica, a elaboração crítica da consciência só se dará com
a unidade entre teoria e prática. Assim sendo, invoca-se a
experiência dos operários de Turim, com seus conselhos de
fábrica, pois lá os trabalhadores teriam atuado como gestores
políticos do processo produtivo, minorando a relação de alienação
do trabalhador para com o produto de seu trabalho. Nesse
viés, o trabalho cooperado é afirmado como contraponto
necessário do trabalho assalariado e a educação que lhe deve
acompanhar é a da formação técnico-política, sem embargo de

219
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

compreensão dos limites que são inerentes ao regime de


produção e reprodução capitalista.
O processo educativo que permeia a transformação das
relações cotidianas se refere, portanto, às práticas de trabalho
associado, aos processos de produção e socialização do
conhecimento e às capacidades solidárias e dialógicas dos atores
envolvidos. Uma relação dialética entre realidade objetiva e
realidade subjetiva se apresenta imprescindível para a construção
de uma práxis libertadora, pautada na superação da relação
oprimido-opressor. Além disso, a “educação como prática da
liberdade” se diferencia das “práticas de liberdade” por estas
se vincularem a uma libertação individual. Aquela, ao contrário,
nega a concepção de homem abstrato e transcendente baseando
sua reflexão, de forma crítica, no plano material concreto.
Assim, é fundamental às OEPs conceber o processo de trabalho
como um espaço pedagógico e de potencial tomada de consciência
dos trabalhadores associados. Centrar a transformação na
práxis produtiva como princípio educativo significa entender
que as perguntas que confrontam condições objetivas com
anseios subjetivos ocorrem no cotidiano da produção, não a
partir de cartilhas ou cursos programáticos. Além disso, soma-
se outra consideração: as dúvidas que surgem numa
organização popular associada não devem ser sanadas focando
apenas o campo técnico. Elas carecem de ser relacionadas
com o campo político de forma a buscar extrapolar os limites
instrumentais da racionalidade produtiva, ou, como escreve
Tiriba, “a educação dos trabalhadores precisa ser compreendida
como processo permanente e como resultado provisório de
ação/reflexão/ação” (p.220).
Para que o trabalhador consiga constituir-se como um
“intelectual de novo tipo”, diz a autora, precisa estar inserido
num meio em que consiga partir de um saber prático almejando

220
RESENHA

desenvolver os demais saberes e práticas sociais que extrapolam


suas funções técnicas, ou seja, “mais além da educação para
o trabalho ou educação no trabalho, o desafio está em buscar
a unidade entre práxis produtiva e práxis educativa” (p.227).
Nesse desafio, os educadores têm uma função presencial, não
necessariamente como trabalhadores associados, mas como
aqueles que, ao acompanhar os problemas cotidianos de uma
associação, podem contribuir sobremaneira na resolução de
conflitos internos e nas soluções construídas coletivamente,
que fortaleçam tanto a viabilidade econômica do empreendimento
quanto a fundamentação teórica e cultural do grupo. Temos,
então, a proposta de uma formação completa do ser humano
concebendo a cultura do trabalho como um sistema determinado
que se inter-relaciona com outras esferas sociais e enfrenta
relações de dominação que ultrapassam a relação capital-trabalho.
Como desde a introdução nos precavera Tiriba, inicia ela
a contraposição entre a teoria até aqui exposta e aquilo que no
trabalho de campo pôde constatar. Remetendo a trechos de
entrevistas feitas com trabalhadores e apoiadores dos
empreendimentos populares associados, a autora nos apresenta
a um universo de

“(...) 61 organizações econômicas populares – OEPs ali


localizadas [todas na região metropolitana do Rio de Janeiro]:
sua distribuição geográfica, número de trabalhadores, setores
e tipos de atividades que desenvolvem, personalidade
jurídica e seus vínculos com alguns parceiros que estimulam
a constituição de redes de solidariedade. A seguir, nos
aproximamos do cotidiano de cinco destas estratégias coletivas
de geração de trabalho e renda” (p.243).

Privilegiando os empreendimentos localizados nos cinturões


de pobreza ou que, embora situados em bairros nobres,
apresentassem baixos níveis de renda e escolaridade, Lia Tiriba

221
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

dividiu a análise em quatro eixos: a) Educação, organização e


gestão do trabalho; b) Relações de mercado; c) Redes de ação
coletiva; e d) motivações/expectativas dos trabalhadores.
Na cidade do Rio de Janeiro, existem cerca de 2.500.000
pessoas (segundo a FAFERJ1) que vivem em favelas. Dos
morros do Rio de Janeiro descem todos os dias “uma legião
de homens e mulheres e crianças na busca de trabalho” (p.247)
para conseguir comer ou satisfazer outras necessidades básicas,
num contexto em que não há diferenciação entre desemprego,
subemprego ou subtrabalho. É, pois, no suposto território
democrático e igualitário de uma grande cidade que se fundem
riqueza e pobreza, que se dá o estudo ora resenhado.
No que diz respeito aos objetivos dos empreendimentos,
Tiriba diferenciou-os em dois grandes grupos: geração de renda
e desenvolvimento comunitário. O primeiro se remete a grupos
que buscam satisfazer suas necessidades materiais de
sobrevivência e o segundo diz respeito à satisfação das
necessidades materiais, das necessidades imateriais e à rede
de atividades de cunho cultural que ele desenvolve com a
comunidade que o rodeia.
A viabilidade do empreendimento, questão primordial em
qualquer OEP, está ligada às parcerias estabelecidas com
instituições que “vêm apoiando e estimulando as iniciativas de
geração de trabalho e renda, tentando articulá-las política e
economicamente” (p.254). Nesse sentido, evidencia-se que
os empreendimentos pertencentes aos setores populares se
propõem a orientar-se pela lógica da reprodução da vida, não
de reprodução do capital. Obviamente, deve-se levar em conta
que as atividades dos setores populares não pertencem aos
setores estratégicos da economia e da utilização de alta

1 Federação das Associações das Favelas do estado de Rio de Janeiro.

222
RESENHA

tecnologia. Assim, é imprescindível a articulação com a


comunidade local e com as redes de ação coletiva, na busca
de fomentar a solidariedade e o incremento da economia popular,
o que pressupõe, em última instância, a comercialização das
mercadorias a partir do seu valor de uso, não do seu valor
de troca.
A procedência das ações coletivas escolhidas também é
apresentada. Elas trilharam diversos caminhos, originando-se
do movimento sindical, de associações de moradores, de
pastorais de trabalhadores, e com ou sem um apoio prévio de
movimentos populares. Apesar de essas dessemelhanças, é
característico das organizações econômicas populares não
disporem de nenhum capital inicial. Sinteticamente, a autora
classifica duas formas de iniciação de uma empresa popular
associada. Com o intuito de arrecadar fundos para a compra
de matéria-prima e maquinário, os trabalhadores fazem festas
e sorteios na comunidade. O empreendimento nasce, portanto,
“de baixo”. A outra forma de investimento é denominada “de
fora” e caracteriza-se pela intervenção de alguma instituição
que fomenta o empreendimento.
Segue, então, a questão da propriedade dos meios de
produção nos empreendimentos estudados. Verificam-se,
sucintamente, quatro formas diversas: a) propriedade coletiva
não estabelecida juridicamente não havendo individualização
do capital envolvido; b) propriedade individual administrada
coletivamente, embora o patrimônio e o lucro permaneçam
vinculados aos investimentos pessoais; c) propriedade externa
em que os meios de produção pertencem a uma entidade
apoiadora, apesar de serem geridos pelos trabalhadores de forma
relativamente autônoma; d) propriedade coletiva combinada
com a propriedade externa de uma instituição de apoio, na
qual os meios de produção são devolvidos à instituição de
fomento quando findam as atividades do grupo.

223
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

A divisão dos frutos do trabalho, questão de suma


importância para verificação das peculiaridades dos
empreendimentos populares associativos, se dá, por sua vez,
de duas formas: a) são estabelecidos níveis diferenciados de
remuneração; b) o lucro é dividido todo mês de forma igual,
independentemente da função que cada trabalhador exerce no
processo de produção. É importante salientar que pensar a
distribuição dos lucros a partir da função exercida pode
aumentar a desigualdade entre os trabalhadores, pois o saber
que alguns detêm pode muito bem se transformar numa forma
de poder no interior do espaço de produção.
Estabelecido o empreendimento, prescreve-nos Tiriba a
necessidade de refletir sobre o significado do trabalho associado,
para que os trabalhadores, a partir de seu cotidiano, desenvolvam
novas formas de relações sociais. Nesse âmbito, homens e
mulheres dos setores populares aprendem que a cooperação é
muito mais benéfica que a ação individual. Inclusive, conta-nos
Tiriba, que a satisfeita afirmação de “não ter patrão” (p.277) é
bastante comum. Destarte, a nova cultura do trabalho convive
ainda com contradições, pois “não ter patrão” não pode
significar desobrigação para com o grupo, o que a autora,
fundamentada em Gramsci, aponta quando explicita que “uma
disciplina voluntária e autônoma exige do trabalhador uma sólida
disciplina” (p.279). Tal consciência individual vincula-se ao
processo de aprendizado coletivo e faz-se imprescindível no
seio da organização interna da produção. No que diz respeito a
esse tema – a capacidade autogestionária dos empreendimentos
estudados – a autora enumera três diferentes classificações,
sendo a primeira, e mais limitada, a mais corriqueira. Esta se
refere à viabilidade do empreendimento apenas, a segunda
leva em conta que o processo autogestionário deve buscar
desenvolver de forma integral a capacidade dos trabalhadores
e a terceira, além das necessidades materiais e imateriais dos

224
RESENHA

integrantes do empreendimento, fundamenta o aprendizado


da autogestão como pressuposto de uma sociedade autônoma
gerida por trabalhadores.
Quanto às metas dos empreendimentos, a autora
classifica-as como possibilidade de sobrevivência, de
subsistência e de desenvolvimento sendo a lógica da análise
pautada no lucro dos grupos estudados. Não obstante, as
metas ligam-se diretamente à motivação dos trabalhadores,
sendo as categorias também expostas de forma tríplice e
intimamente relacionadas com a classificação há pouco
assinalada: a) satisfação imediata das necessidades básicas
dos trabalhadores, colocando-se o empreendimento como
uma alternativa ao desemprego; b) além de alternativa de
sobrevivência, o associativismo cria novas formas de convivência
no interior do grupo que diferem da lógica do sistema capitalista;
c) o associativismo extrapola as necessidades materiais e
imateriais do grupo e os trabalhadores chegam a desenvolver
projetos de mercados solidários não apenas junto à comunidade
local, mas também a redes populares de comércio.
O que e para quem produzir também fazem parte da análise.
A começar pela questão da legalidade do empreendimento,
afirma Tiriba ser esse um dos fatores que limitam e condicionam
as possibilidades das OEPs no mercado, embora não seja
possível estabelecer uma relação direta entre formalidade e
mercado formal e informalidade e mercado informal. A autora
constatou que os trabalhadores almejam a formalidade, pois
sabem que a informalidade limita âmbito de atuação. A legalidade
não é vista, portanto, como forma de controle político e
tributário, mas como algo constitutivo da relação simbólica
existente entre o trabalhador e seu trabalho.
Não é, contudo, o fator legalidade o único com o qual os
empreendimentos populares devem lidar no que tange à
comercialização. Nesse sentido, as redes associativas aparecem

225
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

como um ponto positivo a ser desenvolvido que, em muitos


casos, é jogado ao descaso. Em outros, redes solidárias se
projetam de modo a fomentar os empreendimentos nas suas
singularidades e a proteger o mercado solidário como um todo.
Para além dos setores populares, há ainda a rede de
relações estabelecidas entre os empreendimentos com o Estado,
as instituições apoiadoras e os empresários. Quanto aos últimos,
pôde-se observar: a) relação meramente comercial, burocrática
ou reivindicatória com os governos municipais; b) além da
comercialização, estabelece-se com os empresários uma relação
de doação de sobra de matéria-prima e de outros instrumentos
de trabalho úteis ao grupo. No que diz respeito ao Estado, a
luta é por crédito ou a resolução de problemas jurídicos ou
legislativos ou tributários. Quanto à inserção das ONGs,
adentrando num tema atualmente deveras polêmico, não se
pode negar seu papel crucial junto às OEPs, embora seja
discutível até que ponto sua contribuição é crítica ou
assistencialista/alienante. Há, por conseguinte, uma infinidade
múltipla de parceiros e instituições que, de uma forma ou de
outra, se relacionam com os empreendimentos populares
associativos. Sem adentrar nesse emaranhado de intenções e
projetos político-pedagógicos, conclui Tiriba que as organizações
de grupos populares associativos que extrapolam seu local de
produção e estabelecem parcerias, tanto no plano de sua
educação quanto na venda de produtos e prestação de serviços,
conseguem maior grau de estabilidade econômica e de
organização interna.
Tendo isso em vista, Tiriba passa a analisar, então, as
relações que os grupos estudados mantêm com a comunidade
local, a partir de critérios relacionados com a definição dos
produtos e serviços oferecidos. Constata ela que nenhum dos
grupos produz bens supérfluos, embora sejam diversos os
vínculos estabelecidos para manter a unidade produtiva, desde

226
RESENHA

atividades que buscam atender às demandas do mercado em


geral até aquelas que privilegiam a comunidade local (que pode
ou não ser popular). Além destas, há também aquelas situadas
em áreas populares que buscam oferecer produtos à satisfação
da própria localidade ou outras comunidades também populares.
Nota a autora a dificuldade de os empreendimentos populares
conseguirem cativar clientes dentro das próprias comunidades.
Uma das causas apontadas é a influência dos meios de
comunicação que acaba gerando nos sujeitos certa vergonha e
repulsa aos bens produzidos pelas OEPs, como efeito da repulsa
que sentem pelas próprias condições. Nesse sentido, o
enfrentamento dessa realidade pode ter como objetivo imediato
levar o consumidor local a consumir produtos locais, não
obstante tal relação de compra e venda também faça parte de
um projeto estratégico de educação popular, conscientização e
luta contra-hegemônica. Além disso, dada a pouca capacidade
do empreendimento em competir mercado afora, ficam suas
mercadorias geralmente restritas à população de baixa renda,
a qual não detém, por sua vez, a capacidade monetária suficiente
para manter o êxito do empreendimento, o que termina, ao
menos em curto prazo, num circulo vicioso do ponto de vista
econômico, porém criativo sob o foco pedagógico. No que diz
respeito aos preços cobrados, os critérios estabelecidos são
tão variados quanto a definição do mercado no qual se deve
centrar a produção, não havendo necessariamente uma busca
pelo preço justo, embora tal nível de conscientização seja
também encontrado.
A qualidade dos produtos oferecidos não deixa de ser
objeto tratado na obra. A busca pela qualidade na produção e
prestação de serviços é potencializada pela pedagogia da fábrica:
como os próprios trabalhadores gerenciam e produzem, a
correção de falhas é mais rápida. Outro fator que também
influencia nas relações com o mercado é proximidade entre o

227
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

local de produção e a moradia do trabalhador, por ser possível


estreitar vínculos entre produtor-consumidor para além das
relações de compra e venda.
Ante a complexa rede de relações que permearam o estudo
até aqui apresentado, e buscando não perder o fio condutor
da pesquisa, qual seja, de compreender as potencialidades do
mundo da produção popular associada a partir do processo
pedagógico que nele existe, Tiriba sintetiza os fatores a serem
considerados na análise:

“o tipo de tecnologia que utilizam, como se relacionam com a


maquinaria, como se relacionam com os companheiros de
trabalho e com os moradores da comunidade sem deixar de
considerar que os canais de participação e a forma mesma
como está estruturada a divisão do trabalho interferem nos
processos de socialização e produção do conhecimento”
(p.317).

Focando a relação entre os companheiros, a autora


diferencia alguns graus de socialização do trabalho encontrados
na pesquisa de campo para, a partir daí, definir algumas
melhorias educacionais descobertas no interior dos grupos
populares associados, tendo em vista que a formação de
intelectuais orgânicos se dá na luta cotidiana com objetivo de
resolver, horizontal e coletivamente, problemas que se apresentam.
Nesse sentido, uma dificuldade é encontrada na formação do
trabalhador polivalente, pois, embora seja interessante que todo
o grupo detenha todo o conhecimento do processo de produção,
o que muitas vezes ocorre é que a especialização técnica é
adotada com vistas ao crescimento do empreendimento. Isso
posto, de imediato pode-se notar a semelhança com racionalidade
taylorista-fordista de produção, cuja lógica é investir nas
habilidades individuais e especialização do trabalhador, em nome
do crescimento da produção. Ciente disso, a autora deixa claro
que, ante o problema objetivo de aumentar a produção, o processo

228
RESENHA

educacional no mundo do trabalho não pode ser abandonado.


Assim, afirma que as propostas mínimas encontradas nas OEPs
estudadas são que todos os trabalhadores compreendam,
mesmo que de forma limitada, todo o processo de trabalho em
sua complexidade. Tentando relacionar sempre a questão técnica
da produção ao desenvolvimento político dos trabalhadores
envolvidos, Tiriba diferencia grupos em que existe democracia
representativa e grupos que trabalham sobre a égide da
democracia participativa. Tal diferenciação diz respeito à
interferência do conjunto de trabalhadores nas mais variadas
etapas do processo de produção, se ela se dá por meio de um
diálogo constante, inclusive informalmente, ou se a socialização
do conhecimento ocorre nos espaços formais de assembléias
e comissões. Almejando entender os entraves à fluência de
um processo democrático, propõe a autora que o problema da
falta de democracia no interior do empreendimento está ligado,
entre outros, à quantidade de trabalhadores, pelas dificuldades
de uma participação efetiva de todos quando o grupo é
demasiado grande. Além disso, são poucos os membros do
grupo que se qualificam como “especialistas políticos”, o que
torna limitado o número de trabalhadores dispostos a exercer
funções político-ideológicas.
Aproximando-se do fim do trabalho, Tiriba nos expõe
uma espécie de desabafo que leva em conta o vazio teórico
que se apresenta neste momento histórico em que as utopias
parecem estar nos seus derradeiros dias, além da incapacidade
dos conceitos abstratos anteriormente estabelecidos darem
conta de compreender a complexa trama social que hodiernamente
se apresenta. Pesem-se ainda os poucos estudos que tratam
da economia popular, principalmente aqueles voltados à
economia solidária, além do escasso material teórico que foque
as contradições e transformações subjetivas vividas pelos

229
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

trabalhadores que se lançam numa empreitada cujo mote é


produzir de forma associada para viver dignamente.
De forma bastante ponderada, a autora não propõe
conclusões enfáticas, mas não deixa de firmar posições quanto
“aos aspectos contraditórios da(s) pedagogia(s) da produção
associada, entre os quais a armadilha do ‘homem econômico’,
os limites da solidariedade e os impasses da relação trabalho-
educação”. (p.338). Sintetiza ainda alguns pressupostos a
serem empreendidos na formação de trabalhadores que cedo
foram expulsos da escola e agora não encontram espaço nem
para vender sua força de trabalho no mercado. Por fim, comenta
sobre as “potencialidades da economia popular, bem como
sobre a problemática do trabalho no limiar do novo século”
(p.338).
Primeira conclusão: não há uma, mas várias pedagogias
de produção associada que se fundam em diferentes projetos
econômico e políticos. A partir dessa constatação, a autora
propõe dois diferentes grupos com distintos interesses que
agem junto aos empreendimentos populares. O primeiro se
vincula a uma lógica assistencialista que busca inserir mais
trabalhadores nos mercados de trabalho e consumo atrelando
o desenvolvimento dos setores populares à concepção social-
democrata de cidadania e a legalidade econômica. Por outro
lado, há agentes que se propõem a pensar as necessidades
imediatas de sobrevivência dos setores populares sem deixar
de vislumbrar formas mais estáveis de sobrevivência e práticas
que fomentem novas relações de convivência dentro do espaço
de produção e, quiçá, fora dele. No que tange aos agentes que
buscam reordenação completa do sistema de produção e
reprodução social, Tiriba pondera duas frentes de combate:
avançar, por meio da luta de posição, no espaço estatal sem
desmerecer a mudança pedagógica no interior da própria
sociedade civil.

230
RESENHA

Não deixa, entretanto, de ser temerário, no atual momento


histórico, afirmar que os grupos de produção associada carregam
em si as sementes de um processo contra-hegemônico ou
mesmo que seus valores e objetivos são antagônicos aos de
uma sociedade de classes. Nesse sentido, a viabilidade
econômica do empreendimento é determinante para que os
trabalhadores não desistam da empresa e de todos os vínculos
com ela criados e voltem a tentar galgar um posto no mercado
de trabalho subordinado. Entre esses vínculos, a forma de
propriedade não é fator determinante na construção coletiva
dos trabalhadores, diferentemente da posse coletiva dos meios
de produção que se configura como “um indicativo do tipo de
relação que os trabalhadores estabelecem entre si, com os
parceiros, com a comunidade local e com a sociedade” (p.350).
Sem romantizar as relações estabelecidas pelas OEPs, Tiriba
pontua haver graus de solidariedade vários, principalmente no
processo de trabalho e da divisão dos lucros do empreendimento.
Mesmo que esses fatores se mostrem como indicadores de
uma economia popular de solidariedade, as novas relações
sociais podem ficar restritas ao local de produção, até porque,
como já dito, não há necessariamente dialogicidade entre o
empreendimento e a comunidade que o cerca. Da mesma forma,
as redes solidárias que formam o famigerado “mercado solidário”
não podem resumir-se ao ato da comercialização, caso se tenha
em mente desenvolver todas as potencialidades das OEPs.
Colocado o problema da solidariedade, Tiriba leva em
conta as condições miseráveis de subsistência que permeiam
o tecido social e a “universalização” tanto da lógica individualista
quanto das pretensões de consumo para concluir que “não se
pode falar de uma ‘solidariedade de classe’, mas de uma
‘solidariedade humana’, no sentido (...) da preservação da
própria vida” (p.354). Não obstante, é interessante verificar
empiricamente as potencialidades pedagógicas dos

231
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

empreendimentos populares associados no sentido de mostrarem


avanços em relação à concepção de trabalhador como mero
apêndice da máquina. Sem enaltecer gratuitamente a cultura
do trabalho nas OEPs, suas possibilidades podem estar no
seio de uma nova sociedade que viria a substituir o atual modelo
de produção e reprodução social. Há que se pensar, tomada
esta vereda, os diferentes graus de conscientização encontrados
entre os grupos estudados e verificar em que patamar eles
estariam se partíssemos, por exemplo, dos momentos de
conscientização gramscianos: a) momento econômico corporativo,
b) momento de consciência política e c) momento de construção
de um projeto contra-hegemônico.
Os principais problemas encontrados ao longo do estudo
não se referem, entretanto, às novas formas de produção nem
de relações sociais desenvolvidas pelos trabalhadores, mas se
remetem à fragilidade dos empreendimentos associativos
populares tanto no aspecto econômico (o qual envolve
fundamentalmente aquisição de tecnologia e de capital de giro)
quanto no político. Nesse sentido, a disputa dos fundos públicos
e políticas públicas sérias continuam sendo de primordial
importância para o desenvolvimento das OEPs.
Em que pese, por fim, o fato de as OEPs não ocuparem
nem os setores de alta tecnologia nem os estratégicos da
economia global, de não conseguirem sair do véu da escuridão
que os encobre perante o Estado e o restante da sociedade
com poder suficiente para articularem a economia popular como
um projeto político para a nação, a economia popular associada
se mostra como um espaço no qual se pode avançar na questão
da cultura do trabalho por se colocar como um “amplo processo
práxico-produtivo” (p. 374).

232
I N D I C A Ç ÃO D E L E I T U R A S

ARAÚJO, Silvia Maria Pereira de. Eles: a cooperativa; um estudo sobre a


ideologia da participação. Curitiba: Projeto, 1982.

BECHO, Renato Lopes. Elementos de Direito Cooperativo (de acordo com


o novo Código Civil). São Paulo: Dialética, 2002.

BECHO, Renato Lopes. Tributação das Cooperativas. São Paulo: Dialética,


1999.

BECHO, Renato Lopes. Problemas atuais do Direito. São Paulo: Dialética,


2002.

BITTENCOURT, Gilson Alceu. Cooperativismo de crédito solidário:


constituição e funcionamento. São Paulo: Kingraf, 2000.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Cooperativas de Habitação no Direito Brasileiro.


São Paulo: Saraiva, 2003.

CASTRO DE LIMA, Abíli Lázaro. Globalização econômica, política e direito:


análise de algumas mazelas causadas no campo político-jurídico. Porto
Alegre: Sergio Fabris, 2001.

CAZÉRES, José Luiz. Manual de Derecho Cooperativo. Uruguai: Fundación


de Cultura Universitário, 1994.

CHACON, Vamireh. Cooperativismo e comunitarismo. Rio de Janeiro:


UFMG, 1959.

DEL RIO, Jorge. Cooperativas de Trabajo. 2. ed. Buenos Aires: Editora


Intercoop, 1962.

FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo:


Malheiros, 2000.

FARIA, José Henrique de. Relações de poder e formas de gestão. Curitiba:


Criar, 1985.

FRANKE, Walmor. Contribuição ao cooperativismo. Brasília: INCRA, 1978.

FRANKE, Walmor. Direito das sociedades cooperativas: direito cooperativo.


São Paulo: Saraiva, 1973.

FRANKE, Walmor. Doutrina e aplicação do direto cooperativo. Porto Alegre:


Palloti, 1983.

233
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

FRÓES, Oswaldo. Cooperativas de Educação. São Paulo: Forense


Universitária, 2004.

GAIGER, Luiz Inácio. Sentidos e Experiências da Economia Solidária no


Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2004.

GALGANO, Francesco. Le instituzioni dell’Economia capitalistica. 2. ed.


Bolonha: Zanichelli, 1980.

GEDIEL, Jose Antonio. Os caminhos do cooperativismo. Curitiba: UFPR,


2003.

GORS, Andre. Metamorfosis del trabajo: búsqueda del sentido – crítica


de la razón económica. Madrid: Editorial Sistema, 1995.

GRUPENMACHER, Betina Treiger. (Coord.). Cooperativas e Tributação.


Curitiba: Juruá, 2001.

HECKERT, Sonia Maria Rocha; SINGER, Paul. Cooperativismo Popular:


Reflexões e Perspectivas. Juiz de Fora: UFJF, 2003.

KRAYCHETE, Gabriel et alii. Economia dos setores populares: entre a


realidade e a utopia. Petrópolis: Vozes, 2000.

LUXEMBURGO, Rosa. Os sindicatos, as cooperativas e a democracia


política. In: Reforma ou Revolução? São Paulo: Global, 1986.

MAIA, Isa. Cooperativa e prática democrática. São Paulo: Cortez, 1985.

MAUAD, Marcelo José Ladeira. Cooperativas de Trabalho: sua relação


com o direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2001.

NAMORADO, Rui. Horizonte Cooperativo. Política e Projecto. Coimbra:


Almedina, 2001.

NAMORADO, Rui. Introdução ao direito cooperativo: para uma expressão


jurídica da cooperatividade. Coimbra: Almedina, 2000.

NAMORADO, Rui. Os princípios cooperativos. Coimbra: Fora do Texto,


2000.

PABLO, Gentili (Org.). Globalização excludente: desigualdade, exclusão e


democracia na nova ordem mundial. Petrópolis: Vozes, 2000.

PERIUS, Vergílio F. Cooperativismo e lei. São Leopoldo: UNISINOS, 2001.

PINHO, Diva Benevides (Org.). A problemática cooperativista no


desenvolvimento econômico. São Paulo: Friedrich Naumann, 1973.

PINHO, Diva Benevides. O Cooperativismo No Brasil. São Paulo: Saraiva,


2003.

234
INDICAÇÃO DE LEITURAS

PONTE JÚNIOR, Osmar de Sá (Org.). Mudanças no mundo do trabalho:


cooperativismo e autogestão. Fortaleza: Expressão, 2000.

PRADO, Flávio Augusto Dumont. Tributação das cooperativas - a luz do


Direito Cooperativo. Curitiba: Juruá, 2004.

PRETTO, Jose Miguel. Cooperativismo de Crédito e Microcrédito Rural.


Porto Alegre: UFRGS, 2003.

RECH, Daniel. Cooperativas; uma alternativa de organização popular.


Rio de Janeiro: Fase, 1995.

RECH, Daniel. Cooperativa: uma onda legal. Rio de Janeiro: Fase, 1991.

RIOS, Gilvandro Sá Leitão. O que é cooperativismo. São Paulo: Braziliense,


1987.

SALAMA, Pierre. Pobreza e exploração do trabalho na América Latina.


Tradução de: Emir Sader. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Produzir para viver: os caminhos


da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação


Perseu Abramo, 2000.

SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis:


Vozes, 1998.

SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de. (Orgs.). A economia solidária


no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo:
Contexto, 2000.

SIZANOSKI, Raquel. O novo dentro do velho: cooperativas de produção


agropecuária do MST: possibilidades e limites na construção de outro
coletivo social. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de
sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina, 1998.

THOMAS, E. H. Gestion de las cooperativas. Tradução de: José Luis Del


Arco Alvarez. Madrid: Aguilar 1962.

TIRIBA, Lia. Economia popular e cultura do trabalho: pedagogia(as) da


produção associada. Ijuí: Unijuí, 2001.

TORRECILLA, Eduardo Rojo. Medidas de apoyo a las empresas de trabajo


asociado. Madrid: Ministério Trabajo y Seguridad Social, 1988.

TÚLIO DE ROSE, Marco. A interferência estatal nas cooperativas (aspectos


constitucionais, tributários, administrativos e societários). Porto Alegre:
Fabris, 1985.

235
236
PÓS-GRADUAÇÃO EM
DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA – UFPR

MESTRES

AUTOR: BEUX, Carla


TÍTULO: As formas de compatibilização da atuação do
Estado no domínio econômico, o terceiro setor e o
desenvolvimento social sustentável
ASSUNTO: Intervenção do estado na economia; terceiro setor;
desenvolvimento sustentável
ORIENTADOR: Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho
DEFESA: Ano: 26.1.2004
E-MAIL: carlabeux@brturbo.com.br

AUTOR: CARNEIRO, Gisele


TÍTULO: Economia solidária: a experiência dos clubes de troca
do Paraná
ASSUNTO: Economia solidária; clube de troca; clube de troca -
Paraná
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
DEFESA: Ano: 6.9.2004
E-MAIL: gisele@cefuria.org.br

AUTOR: GONÇALVES, Flavia Matos de Almeida


TÍTULO:: As cooperativas de trabalho como estratégia de
emprego no Brasil
ASSUNTO: Cooperativa; cooperativa de trabalho; desemprego;
cooperativismo
ORIENTADOR: Prof.ª Dr.ª Aldacy Rachid Coutinho
DEFESA: Ano: 22.2.2005

237
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

AUTOR: HARDER, Eduardo


TÍTULO: A definição da autonomia privada nas sociedades
cooperativas: função social e princípio da democracia
ASSUNTO: Autonomia privada; cooperativa; função social;
democracia
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
DEFESA: Ano: 6.5.2005
E-MAIL: eduardoharder@gmail.com

AUTOR: LISNIOWSKI, Simone Aparecida


TÍTULO: Identidade de grupo na formação de uma cooperativa
popular
ASSUNTO: Cooperativa popular; economia solidária; subjetividade;
identidade de grupo
ORIENTADOR: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
DEFESA: Ano: 29.3.2004
E-MAIL: simone.psi@ufpr.br

AUTOR: NERONE, Ana Amelia


TÍTULO: Economia de comunhão e cooperativismo: entre
utopia e a esperança
ASSUNTO: Economia de comunhão; cooperativismo; economia
solidária; solidariedade; dignidade da pessoa humana
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
DEFESA: Ano: 14.3.2005
E-MAIL ananerone@yahoo.com.br

AUTOR: NICOLADELI, Sandro Lunard


TÍTULO: A solidariedade e a economia solidária: uma
perspectiva sociojurídica
ASSUNTO: Solidariedade; economia solidária; sociologia jurídica
ORIENTADOR: Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
DEFESA: Ano: 1.3.2004
E-MAIL: sandrolunard@uol.com.br

238
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA - UFPR

AUTOR: OLIVEIRA, Luciana Vargas Netto


TÍTULO: Economia solidária e conjuntura neoliberal: desafios
para as políticas públicas no Brasil
ASSUNTO: Economia solidária; neoliberalismo; globalização;
política pública; direito social
ORIENTADOR: Prof.ª Dr.ª Katya Kozicki
DEFESA: Ano: 18.3.2005
E-MAIL: lucianapos@uol.com.br

AUTOR: PONTES, Daniele Regina


TÍTULO: Configurações contemporâneas do cooperativismo
brasileiro da economia ao direito
ASSUNTO: Cooperativismo; cooperativa; capitalismo; direito;
cooperativa de produção
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
DEFESA: Ano: 30.9.2004
E-MAIL: dani@coopere.net

AUTOR: PRADO, Flavio Augusto Dumont


TÍTULO: Regime jurídico tributário do ato cooperativo
ASSUNTO: Cooperativa (direito tributário); direito cooperativo;
direito tributário
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Roberto Vieira
DEFESA: Ano: 20.10.2003
E-MAIL: flavio.prado@gaiasilvarolim.com.br

AUTOR: RIBEIRO, Maria Tereza Ferrabule


TÍTULO: Evolução da sociedade e das relações econômicas:
economia solidária e empresa privada
ASSUNTO: Economia solidária; interação social, economia;
empresa
ORIENTADOR: Prof.ª Dr.ª Marcia Carla Pereira Ribeiro
DEFESA: Ano: 24.11.2004
E-MAIL: werna.harger@ibest.com.br

239
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

AUTOR: ROSSI, Amelia do Carmo Sampaio


TÍTULO: O cooperativismo como movimento social de resgate
a cidadania à luz dos princípios constitucionais
ASSUNTO: Cooperativismo; cidadania; princípio constitucional;
movimento social
ORIENTADOR: Prof. Dr. Alvacir Alfredo Nicz
DEFESA: Ano: 30.9.2003

AUTOR: SANTOS, Jairo Augusto dos


TÍTULO: O método do discurso: ensaio sobre a emancipação
humana
ASSUNTO: Discurso; comunicação; emancipação humana
ORIENTADOR: Prof. Dr. Celso Luiz Ludwig
DEFESA: Ano: 6.11.2003
E-MAIL: jairoaugusto@uol.com.br

MESTRANDOS

MESTRANDO: André Viana da Cruz


ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: A Proteção dos bens arqueológicos:
da ação cooperativa à forma jurídica
E-MAIL: idecos-avc@uol.com.br

MESTRANDO: Claudia Afanio


ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: As Cooperativas de Trabalho no Brasil
e a sua Regulação Jurídica
E-MAIL: afanio@uol.com.br

MESTRANDO: Edson Galdino Vilela de Souza


ORIENTADOR: Prof. Abili Lázaro Castro de Lima
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Cooperativismo de Crédito, no Brasil:
cidadania e riqueza; potencialidades e entraves
E-MAIL: edsonvilela@terra.com.br

240
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA - UFPR

MESTRANDO : Eduardo Faria Silva


ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Direito à Liberdade de Associação: por
uma compreensão constitucional
E-MAIL: eduardo.fuscaldo@uol.com.br

MESTRANDO: Fábio Moura de Vicente


ORIENTADOR: Prof.ª Liana Maria da Frota Carleial
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: O Regime Tributário dos Diversos Atos
Praticados pelas Cooperativas
E-MAIL: fvicenzo@pop.com.br

MESTRANDO: João Marcelo Borelli Machado


ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Cooperativas Populares Camponesas
E-MAIL: abaporu@oi.com.br

MESTRANDO: Luciana Souza de Araujo


ORIENTADOR: Prof. Cesar Antonio Serbena
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: A Construção da Identidade Cooperativa
E-MAIL: lucianaaraujo@terra.com.br

MESTRANDO: Marcelo Oliveira dos Santos


ORIENTADOR: Prof. Romeu Felipe Bacellar Filho
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Participação das cooperativas de
trabalho nas licitações públicas
E-MAIL: marol@furb.br

MESTRANDO: Marcial Carlos Ribeiro Junior


ORIENTADOR: Prof. Abili Lázaro Castro de Lima
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: As Implicações Legais do Setor de
Saúde Suplementar Brasileira sobre a Legislação Cooperativista:
Participação das Pessoas Jurídicas Cooperadas Patrocinadoras de
Saúde como Solução para o Financiamento e Autogestão de Sistemas
Cooperativistas de Saúde

241
ESTUDOS DE DIREITO COOPERATIVO E CIDADANIA

MESTRANDO: Marcos Rafael G. Gonçalves


ORIENTADOR: Prof. Celso Luiz Ludwig
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: A Problemática da Regulação do
Cooperativismo pelo Direito: a distância entre a lei e o fato
E-MAIL: marcos@coopere.net

MESTRANDO: Mariane Josviak


ORIENTADOR: Prof. Celso Luiz Ludwig
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: O Cooperativismo na perspectiva da
filosofia de Enrique Dussel: a inclusão dos coletores de material reciclável
via cooperativa, e trabalhadores cooperados que autogestionam
empresas falimentares
E-MAIL: mariane.jo@uol.com.br

MESTRANDO: Paulo Ricardo Opuszka


ORIENTADOR: Prof. José Antônio Peres Gediel
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: Trabalhadores Autônomos Coletivamente
Organizados: O Espaço das Cooperativas de Trabalho para
Construção de uma nova Categoria Jurídica.
E-MAIL: popuszka@bol.com.br

MESTRANDO: Wilton Borges dos Santos


ORIENTADOR: Prof. Celso Luiz Ludwig
PROJETO DE DISSERTAÇÃO: O Cooperativismo Solidário e Auto-
Sujeição dos Sujeitos – Um Caminho para a Efetivação dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais
E-MAIL: wilton@cpt.org.br

242
243
Este livro foi composto em Univers e impresso em papel Pólen
Soft Natural 70g/m2. Capa em papel Cartão Supremo 250g/m2.
Tiragem:1.000 exemplares.

You might also like