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O dilaceramento romântico na obra de Raul Pompéia: a

luta entre o espírito revolucionário de Proudhon e o


pessimismo de Schopenhauer
Marciano LOPES e SILVA (UEM)
ISSN 1981-8211

REFERÊNCIA

LOPES e SILVA, Marciano. O dilaceram ento


romântico na obra de Raul Pompéia: a luta
entre o espírito revolucionário de Proudhon e o
pessimismo de Schopenhauer In: CONALI –
CONGRESSO NACIONAL DE LINGUAGENS
EM INTERAÇÃO. 1., 2006, Maringá. Anais...
Maringá, 2007, p. 552-561.

1. INTRODUÇÃO

Na obra de Raul Pompéia, o “Mal de D. Quixote” é uma metáfora para a doença do


Romantismo, cujas manifestações são representadas alegoricamente por diferentes modelos
de personagens. Mas este mal não se encontra apenas neles ou nos narradores, pois se espalha
por toda a obra nos mais diversos níveis de composição, contaminando-a de modo tão intenso
que é possível considerá-lo não apenas como sendo seu principal tema, mas também como o
conflito propulsor da atividade artística de Raul Pompéia ao longo da sua vida. Com o
objetivo, portanto, de compreender a significação profunda do mesmo em seus fundamentos
filosóficos e sua gênese histórica, enfocaremos o livro Canções sem Metro, cujos poemas em
prosa formam uma narrativa cosmogônica, a crônica “Cavaleiros andantes” e a segunda
conferência do prof. Cláudio em O Ateneu. A escolha deste corpus deve-se ao fato de os três
textos estarem impregnados de filosofia da história, apresentando uma visão de mundo
dilacerada pelo conflito entre um romantismo revolucionário, bebido especialmente nos
escritos de Proudhon, e outro do desencanto, fruto do pessimismo schopenhaureano – o que
permite compreendermos a obra de Raul Pompéia como expressiva de uma visão de mundo
romântica.

2. A INFERNAL RODA DA HISTÓRIA

A visão da história e do universo presente em Canções em metro é profundamente


marcada pela filosofia de Schopenhauer, o que pode ser observado em diversos níveis de
composição do texto, revelando-se tanto em vários motivos temáticos como nas estruturas de
repetição que, segundo Sônia Brayner (1979, p. 256), estão intimamente ligadas ao princípio
voraz da Vontade. Tal princípio, que é central na filosofia dele, encontra, em Canções sem
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metro, um correlato objetivo no “caráter cíclico das composições, em que são retomados os
motivos iniciais como chave final” (BRAYNER, 1979, p. 235), e na alegoria do poema
“Ventre”.

[...]
A atração sideral é uma forma do egoísmo. O equilíbrio dos egoísmos, derivado em
turbilhão, faz a ordem das cousas.
Passa-se assim em presença do homem: a fúria sedenta das raízes penetra a terra
buscando alimento; na espessura, o leão persegue o antílope; nas frondes, vingam os
pomos assassinando as flores. O egoísmo cobiça a destruição. A sede inabrandável do
mar tenta beber o rio, o rio pretende dar vazão às nuvens, a nuvem ambiciona sorver o
oceano. E vivem perpetuamente as flores, e vivem os animais nas brenhas, e vive a
floresta; o rio corre sempre, a nuvem reaparece ainda. Esta luta de morte é o quadro
estupendo da vida na terra; como o equilíbrio das atrações ávidas dos mundos, trégua
forçada de ódios, apelida-se a paz dos céus.
A fome é a suprema doutrina. Consumir é a lei. (v. 4, p. 71)

Considerando o poema em prosa acima, não há como não relacionar a citada alegoria
com a idéia de “Vontade” formulada na filosofia de Schopenhauer. A metáfora da nutrição,
presente acima, também se encontra na afirmação de que “a vontade deve alimentar-se dela
mesma, visto que, fora dela não existe nada, e ela é uma vontade esfomeada”
(SCHOPENHAUER, [19--], p. 201). Assim como a “Vontade”, o “Ventre” é apresentado
como o princípio único que rege todo o movimento universal. E a idéia de um tempo circular
regido pela natureza é uma constante tanto na obra de Schopenhauer como em Canções sem
metro, apresentando-se, na segunda, como motivo central na parte intitulada “Amar”, posto
que é significativamente composta por poemas em prosa cujos títulos – excetuando o último –
nos remetem aos ciclos das estações: “Inverno”, “Primavera”, “Verão” e “Outono”. Como não
poderia deixar de ser, a moral destas composições é que o nascimento e a morte se sucedem
infinitamente numa “maternidade sem ventura” (v. 4, p. 57). Por isso o destino da
humanidade, assim como o do amor, é “arder, arder e morrer, como o fogo que cresce, cresce
e de si mesmo morre” (v. 4, p. 56), sem que o homem possa compreender por que “renasce do
triste inverno a verde primavera” (v. 4, p. 57). Segundo tal perspectiva, a história é
naturalizada, posto que o devir da humanidade não escapa às leis do movimento universal que
estabelece as correspondências entre todos os elementos cósmicos. Daí o significado da parte
I de Canções sem metro, intitulada “Vibrações”, que tem por epígrafe os versos do poema
« Correspondances » de Charles Baudelaire: « Comme de longs échos qui de loin se
confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité, / Vaste comme la nuit et comme la
clarté,/ Les parfums, les couleurs et les sons se répondent ».
Esta concepção mítica e pagã do tempo – cujas raízes remontam ao pensamento grego
da Antigüidade (LÖWITH, 1991; MARRAMAO, 1995; LE GOFF, 1996) – é constantemente
reafirmada em Canções sem metro. Do mesmo modo que o poema “Ilusão renitente” nos
remete ao tempo da origem e encerra o ciclo de poemas da segunda parte, também os poemas
finais do livro novamente nos levam ao início da narrativa e ao estado edênico do mundo.
Tempo em que o mar e a amplidão azul encontravam-se desprovidos de máculas. Mas este
tempo originário possui uma dimensão catastrófica, pois sempre aparece como a bonança que
vem após o caos original, ou seja, após o cataclismo resultante da revolta da natureza frente à
perversão da humanidade – conforme podemos ler claramente em “O mar”.
A circularidade do tempo físico da natureza, que se estende à humanidade e às
civilizações, resulta em uma concepção do tempo histórico que prevê tanto o progresso
quanto a decadência, uma vez que pressupõe nascimento, desenvolvimento até a maturidade,
depois decadência e morte. Da mesma forma que se extinguem “para sempre os castelos de
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chamas que se erguiam sobre a cratera” (v. 4, p. 92) do vulcão extinto, também se extinguem
as grandes civilizações – conforme é sugerido no poema “Os continentes”, cujo tema é o
desaparecimento de Atlântida.
O tema da decadência das civilizações também se encontra no poema “Deserto” (v. 4, p.
84), que faz menção ao desaparecimento do império egípcio. Nele, as pirâmides não são
apenas ruínas que nos lembram da fugacidade de todas as coisas, mas são também alegorias
da história em seu eterno movimento de ascensão e queda. E esta moral, que é o tema central
de “Rumor e silêncio” (v. 4, p. 89) e de toda a última parte da obra, cujo título é “Infinito”,
permite compreendermos o título da penúltima parte, que é “Vaidades”: a riqueza, a luxúria, o
poder, o conhecimento, o amor e até mesmo a arte são vaidades, pois o prazer deles
decorrente é passageiro como tudo no universo. Em suma, tudo nesta vida é ilusório,
conclusão que novamente faz eco à filosofia de Schopenhauer.

3. A ESPERANÇA REPRIMIDA

Salvo o progresso da indústria e do comércio, não se vê, tanto em Canções sem metro
como em “Cavaleiros andantes”, a crença na continuidade do aperfeiçoamento humano rumo
aos ideais durante o transcorrer do tempo histórico. Após a passagem de cada era, restam
apenas ruínas, “tragédias do Ideal” (v. 3, p. 207), conforme podemos ler claramente na
crônica-ensaio “Cavaleiros andantes”:

Aos grandes ciclos do Ideal correspondem paralelamente, nos domínios do


Fato, três espécies de atividade psicológica. Época das religiões; época das
filosofias; época das constituições e dos códigos. Delírios sucessivos da mesma
febre.
Destas crises, a mais duradoura e a mais grave foi a primeira; período agudo:
as Cruzadas, os mais belos dias do desvario beato da humanidade; personagem
típica – S. Luís. A segunda complicou-se por muito tempo com a primeira até
acentuar-se; período agudo: reforma e guerras de religião; tipo – Lutero. A
terceira perdura em manifestações fugitivas até os nossos dias: período agudo:
Revolução Francesa; personificação – Danton.
Hoje, que o ideal expira, entramos por uma idade nova, rumo trágico do futuro
à luz de um astro misterioso, em noite de desolação. Os últimos sonhadores,
olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão desesperando da quarta hora de
justiça de Proudhon (v. 3, p. 207).

É interessante observarmos que a filosofia da história esquematizada em “Cavaleiros


andantes” apresenta-se como uma paródia daquela desenvolvida por Proudhon, que também
considera três grandes momentos na história da humanidade: a época das religiões, a das
filosofias e a dos códigos, conforme vemos abaixo:

La révolution d’il y a dix-huit siècles s’appelait l’Évangile... L’égalité de tous


les hommes devant Dieu... Le Christianisme créa le droit des gens, la fraternité
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des nations... Tel fut le caratère de la première et de la plus grande des


révolutions... [...]
Mais... cette révolution... ne suffisait pas à l’émancipation de l’homme... elle
appelait une autre révolution...
Vers le XVe siècle, la révolution éclata. La révolution, à cette époque, sans se
renier elle-même, prit un autre nom... elle s’appela la philosophie. Elle eut pour
dogme la liberté de la raison, pour devise, l’égalité de tous devant la raison...
Voilà quelle fut la séconde révolution, la deuxième grande manifestation de la
justice. Elle aussi rajeunit le monde, elle le sauva...
Vers le milieu du siècle dernier commença... une nouvelle élaboration ; et
comme la première révolution avait été religieuse, et la seconde philosophique,
la troisième révolution fut politique. Elle s’appela le contrato social. Elle prit
pour dogme la souveraineté du peuple... Sa devise fut : l’égalité devant la loi...
Ainsi, à chaque révolution, la liberté nous apparaît toujours comme
l’instrument de la justice, et l’égalité comme son critérium...
La justice a sonné sa quatrième heure... sa divise: l’égalité devant la fortune...
La révolution après avoir été tour à tour, religieuse, philosophique, politique,
est devenue économique (PROUDHON, [19--], p. 229-230).

Assim como o “Humanitismo” de Quincas Borba constitui uma paródia ao Positivismo


e quaisquer outras crenças evolucionistas que consideram o progresso humano como
decorrente da luta e da competição, a filosofia da história esboçada em “Cavaleiros andantes”
constitui uma paródia à filosofia política de Proudhon, tendo como alvo o otimismo na
evolução resultante das contínuas revoluções ao longo da história. Diversamente do filósofo e
político francês, que vê um salto qualitativo a cada revolução, em “Cavaleiros andantes” vê-se
apenas a degradação dos ideais: cada figura antropomórfica que representa o ideal do Bem –
Hércules, Cristo e D. Quixote – é representado, na crônica, como sendo mais frágil e
decadente a cada nova época.
Embora o tempo predominante seja cíclico para cada período da história, visto o
movimento de ascensão e queda, no conjunto ele parece ser descendente no plano ético, pois,
a cada nova fase, os ideais de bondade, beleza, amor, verdade e justiça tornam-se mais
frágeis, realizando um movimento inversamente proporcional ao progresso da indústria e da
ciência. Apesar de diversos, os três heróis representativos de cada época pecam pelo mesmo
erro: a ingenuidade que leva ao engano, ao equívoco de tomar as aparências como verdades,
ou seja, como sendo as coisas em si. Movidos pelo coração, pela bondade que os retira da
“existência real”, tornando-os “desvairados até ao extremo pelo idealismo da corrigenda e do
aperfeiçoamento” (v. 3, p. 211), os três se tornam vítimas dos sonhos em conflito com a
realidade. A cada novo ciclo, os heróis enfraquecem e os ideais vão sendo abandonados,
passando-se da resignação cristã à ironia moderna representada pelo cavaleiro da Mancha: “D.
Quixote é a decepção, é o retrospecto cômico da cavalaria andante de todos os tempos. Diante
do descalabro miserando da angelitude prática, o livre exame fez a sátira do riso” (v. 3, p.
210).
Conforme vemos, a história da humanidade e a condição humana são marcadas por uma
contradição irreconciliável (LESKY, 1976) entre os ideais e a realidade geradora de um
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pólemos (KOTHE, 1987) no qual o declínio dos ideais ocorre em proporção inversa à
ascensão da indústria e da barbárie, “ao esforço dos tiranos e conquistadores, que recortaram à
ponta de espada as linhas geográficas do mapa-mundi” (v. 3, p. 207). Nesta visão trágica da
história, o erro resulta da hybris que caracteriza a natureza humana e cuja desmedida consiste
em possuir todas as qualidades, boas ou más, que se encontravam espalhadas entre as diversas
espécies animais. Ao apossar-se delas, o homem transformou-se em um “monstro” –
conforme lemos no poema “Os animais”, conto de fadas às avessas sobre a criação humana.
O motivo do caráter de extrema perversidade que caracteriza a natureza humana e é um
dos meios pelos quais se cumpre o destino trágico da humanidade é recorrente em vários
poemas. Está em “Os animais”, conforme visto há pouco, e em poemas como “Os minerais”,
“Indústria” e “Comércio”, nos quais se evidencia a “vaidade humana insaciável” e o motivo
do egoísmo presente na alegoria do “Ventre”. Por ironia, além da perversidade, o erro de
tomar as aparências como verdade e, por conseguinte, de buscar a qualquer preço a realização
dos ideais também é outro motivo do sofrimento humano, outra causa das guerras, genocídios
e revoluções.
Entretanto, apesar do pessimismo e da paródia que observamos com respeito ao
otimismo revolucionário que impulsiona o progresso humano segundo o pensamento de
Proudhon, há, em alguns pontos, uma relação contratual com ele. Isto ocorre especialmente
com respeito à crítica da noção positivista de progresso. É muito importante observarmos que,
para Proudhon, o progresso histórico da humanidade não deve ser avaliado unicamente em
função do progresso material e tecnológico. Mais importante é a realização do ideal de justiça,
pois ela engloba o desenvolvimento de todas as faculdades e potencialidades humanas. E por
considerar a existência de períodos de decadência quando não ocorre o desenvolvimento
harmonioso das faculdades humanas, Proudhon critica o otimismo simplista das concepções
da história que apenas vêem o movimento de marcha da humanidade, conforme faz com
relação a Hegel. Sob tal perspectiva, Proudhon não condena o desenvolvimento industrial,
mas considera que ele não pode ser tomado isoladamente como evidência do progresso:
« Avec la féodalité industrielle, ce progrès est mathématiquement impossible »
(PROUDHON, 1860, p. 14). E é sob essa perspectiva que talvez possamos compreender a
contraditória representação da indústria na obra de Raul Pompéia. Por um lado, é graças a ela
que a humanidade supera os preconceitos existentes nas religiões e desenvolve a tecnologia
que permite o domínio sobre a natureza; mas, por outro lado, ela se desenvolve em nome do
“Ventre”, sendo responsável pela destruição dos ideais e pela barbárie da sociedade moderna.
Tal contradição é visível na segunda conferência do prof. Cláudio, na crônica-ensaio
“Cavaleiros andantes” e no poema “Indústria”, que tem por epígrafe os seguintes versos do
romântico A. Brizeux: « Que la fournaise flambe, et que les lourds marteaux, / Nuit et jour et
sans fin, tourmentent les métaux ! ». Apesar de ser responsável pela barbárie que assola a
humanidade, a indústria não tem uma significação totalmente negativa. Se, por um lado, ela
significa “servidão, tirania e esbulho” (v. 3, p. 206), por outro, é a força que transforma e
impulsiona o mundo, podendo também ser “o ventre inexaurível das forjas, para as novas
pugnas, [que] produz novas armas” (v. 4, p. 69). A contradição atinge aqui seu grau máximo,
porque tais armas, se por um lado servem à opressão e à tirania, por outro podem servir à
libertação, conforme podemos ler na crônica “Cavaleiros andantes” – onde se afirma, em
conformidade com o pensamento de Proudhon, “a justiça civil da dinamite” e “o direito
internacional dos canhões”. Somente servindo à revolução, a indústria poderá tornar-se uma
força libertadora. E tal possibilidade de redenção via revolução, presente na alegoria da
“aurora cruenta” com “fauces em sangue” (1982, p. 91), faz do progresso industrial uma força
potencialmente positiva na medida em que poderá ajudar a humanidade a romper os ciclos de
barbárie.
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Como vemos, existe uma tensão muito grande em “Cavaleiros andantes”. O idealismo é
tratado como uma doença e as revoluções são consideradas como “delírios sucessivos da
mesma febre”, mas, contraditoriamente, seu locutor (ou o próprio autor?) não deixa de estar
possuído desta febre, pois deseja e aposta na esperança revolucionária, na quarta hora da
justiça que, segundo Proudhon, trará a igualdade perante a fortuna. E esta mesma tensão
ocorre em Canções sem metro, onde a esperança de redenção através da luta revolucionária
surge inúmeras vezes, tal como o desejo reprimido que busca explodir as algemas da razão
pessimista. Tal paradoxo encontra-se principalmente nas inúmeras alegorias das revoluções,
que estão associadas ao sentimento estético do sublime, seja dinâmico ou matemático. Elas
encontram-se na luta do mar contra os rochedos, na luta entre as árvores em busca de luz, na
luta dos alicerces do edifício contra a alta metopa (“Revoluções”, p. 80), nos cataclismos, no
vulcão extinto, nas pirâmides do Egito, na Atlântida desaparecida sob a imensidão e a força
do mar... Tais imagens, embora revelem a grandiosidade do espírito humano, que não se
detém perante a imponência dos obstáculos, também sugerem a inutilidade de todo esforço e a
insignificância humana perante o mistério e a infinita grandeza do universo. Daí conviverem
lado a lado, nestas alegorias, o caráter épico da trajetória humana ao longo da história
juntamente com a tragicidade que também a caracteriza.
Avaliando estas alegorias segundo a perspectiva dada pela teoria do sublime, parece
triunfante apenas o conceito físico de revolução, que se encontra associado ao movimento dos
planetas e, por conseguinte, aos ciclos da natureza (MARRAMAO, 1995). Tal interpretação é
sugerida principalmente pelos poemas “Ilusão renitente”, “Tormenta e bonança” e
“Conclusão”, visto que as imagens dos cataclismos seguidos da bonança e do surgimento do
sol apontam para a vitória da natureza sobre os homens. Entretanto, tais imagens também nos
remetem ao tempo mítico da origem, da terra e do oceano sem máculas, o que revela um
desejo latente e vitalmente necessário de recomeçar opondo-se ao pessimismo da razão
impotente, quando não opressora. Isso é perceptível nos dois últimos poemas que encerram a
obra e em “Os continentes” (1982, p. 93), pois eles contradizem o pessimismo existente na
idéia do eterno fracasso do mar (entendido como alegoria do povo) em sua luta, visto ser o
principal responsável pelo cataclismo que destrói a civilização e promove o retorno ao tempo
sem máculas da origem. Paradoxos semelhantes também caracterizam a alegoria da aurora em
luta contra a noite. Por um lado, opondo-se à barbárie simbolizada pela escuridão das trevas, o
sol representa “o desespero da contemplação: a cor dos ideais perdidos” (v. 4, p. 46). Por
outro lado, é por ele, “desejada luz brilhante e pura” (v. 4, p. 64), “sol da justiça, ideal das
revoluções” (v. 4, p. 83), que lutam as árvores da floresta e as pedras do alicerce da sociedade,
conforme lemos, respectivamente, nos poemas em prosa “A floresta” e “Revoluções” (v. 4, p.
80-81). E a aurora, sendo o momento do nascimento do sol, representa, por extensão de
significado, o despertar de um novo tempo de justiça e de beleza, conforme podemos ver nos
dois parágrafos finais do poema “Esperança”.
A mesma dilacerada esperança da revolução pode ainda ser encontrada nos poemas
“Veritas” (v. 4, p. 83), “Deserto” (v. 4, p. 84), “Ontem” (v. 4, p. 90) e “Hoje” (v. 4, p. 91). No
primeiro, a aurora, cuja luz simboliza o triunfo da liberdade, da justiça e da razão, é
contraposta à escuridão da noite, que simboliza os valores opostos. Entretanto, a ironia que
encerra o segundo poema, característica do Witz, nos lembra que o fim da jornada leva ao
encontro da morte, representada pelas desejadas pirâmides para onde se dirigem os homens:
“Grata consolação! Ver as pirâmides! / Está próximo o termo da jornada. Animadores
túmulos!” (v. 4, p. 84). Este dilaceramento atinge seu ápice nos dois últimos poemas “Ontem”
e “Hoje”, pois são bastante representativos do paradoxo e da ironia que caracterizam o Witz e
que dissolvem qualquer sentimento de paz e redenção possibilitados pelo sublime, o que
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impossibilita uma leitura ingênua das alegorias, assim como a crença não menos ingênua no
caráter redentor das revoluções.
Como se vê, a ambigüidade e a arbitrariedade pertinentes à natureza da alegoria
(BENJAMIN, 1984; HANSEN, 1986; KOTHE, 1978) permitem uma dupla e contraditória
leitura do final da obra e, por conseguinte, do sentido da história nela representado. Mas se,
por um lado, Schopenhauer apresenta a história como uma trágica sucessão de lutas e
fracassos, por outro, considera que o movimento cíclico do tempo permite uma abertura para
a esperança, tornando possível que “os grandes acontecimentos que teriam modificado a
história do mundo, que teriam trazido épocas de luz e de civilização supremas” possam
realizar-se algum dia. Disso resulta que a interpretação da visão cíclica da história como
sendo inevitavelmente cruel e desmobilizadora deva ser relativizada. Sem a certeza de um
inevitável thelos redentor, cabe aos homens se resignarem perante as injustiças ou então
lutarem pela realização de suas utopias no tempo presente, sem se preocupar com o que advirá
no futuro.

4. O FANAL DA ARTE E A MEMÓRIA DOS IDEAIS

É importante, por fim, pensarmos no papel destinado à memória e à arte nesta visão da
história. O primeiro ponto se justifica pelo fato de que toda historiografia implica em uma
memória, mesmo se tratando de uma historiografia especulativa, que é o caso das diversas
filosofias da história, atualmente tão desconsideradas. Quanto ao segundo ponto, sua
importância salta aos olhos devido ao fato de que a arte é considerada como o único ideal
capaz de se colocar acima e além “dos séculos efêmeros” (v. 2, p. 163) – o que lhe concede
uma grande importância neste sistema filosófico. Tal destaque sugere ser ela capaz de atribuir
algum sentido – seja como direção, seja como significação – à existência ou, ao menos,
sugere a possibilidade de ela tornar esta existência mais digna, conforme lemos no poema
“Les phares”, em que Baudelaire homenageia a arte dos pintores Rubens, Da Vinci,
Rembrandt, Miguel Ângelo, Watteau, Goya e Delacroix, cujas blasfêmias e lamentos são
como « [...] um cri répété par milles sentinelles, / [...] un phare allumé sur mille citadelles »
(BAUDELAIRE, 1985, p. 122). A afirmação de que a arte pode resistir aos “séculos
efêmeros” se encontra na segunda conferência do prof. Cláudio e reaparece no poema “A
arte”, pertencente à parte intitulada “Vaidades”, de Canções sem metro: “Farol de Leandro,
imortal e culminante, domina impávida o naufragar das eras. / Feliz quem pode abismar-se no
tempo ao clarão desse facho” (v. 4, p. 77). Conforme lemos no poema, ela “é a grande
embriaguez do belo consolador”, a única alternativa que o espírito possui para evadir-se do
“círculo de trevas” da realidade.
Neste importante aspecto, vemos que a filosofia de Schopenhauer apresenta uma relação
contratual com o Romantismo, até mesmo com aquele que se apresenta revolucionário: ambos
coincidem na moderna concepção da arte como a única instância capaz de redimir o homem,
reaproximando-o de uma possível unidade cósmica.
Para os românticos, assim como para os decadentes e os simbolistas, a arte torna
possível ao homem transcender a experiência terrena em busca da plenitude, possibilitando-
lhe uma união com Deus ou com o cosmos graças às correspondências. Mas, devido ao
desencanto com o mundo moderno e ao descrédito em que caíram a metafísica e as religiões,
esta transcendência foi esvaziada. No lugar de Deus, restou a arte; no lugar do culto às
religiões, restou o culto ao belo, sem B maiúsculo, sem o caráter eterno e unívoco de antes. E
isso é o que acontece na obra de Baudelaire e de Schopenhauer, pois encontramos nelas uma
ruptura com respeito à crença romântica numa transcendência religiosa acompanhada de uma
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mistificação da arte. Apesar de todo o seu pessimismo, Schopenhauer considera que somente
na contemplação estética pode o homem suspender a Vontade e, portanto, todo desejo e toda
dor. Baudelaire, conforme vimos em Les phares, considera que somente a arte dá dignidade
ao homem, possibilitando-lhe a única forma possível de transcendência – embora vazia,
conforme diria Friedrich (1991) – neste mundo degradado. Em suma, o grande artista
continua sendo considerado o único gênio capaz de iluminar a humanidade em sua trajetória
de dor e sofrimento, posto que a verdadeira arte é como um farol: ilumina a trajetória dos
navegantes em meio à tempestade, sobrevivendo impávida ao naufragar das eras.
Determinada a concepção de arte dominante na obra de Pompéia, completamos a
visualização da forma arquitetônica de Canções sem metro, que é orientada pela visão de
mundo esboçada na filosofia de Schopenhauer. Evidenciam isso vários elementos de
composição dos poemas em prosa assim como a obra em sua totalidade. A concepção cíclica
da história é perceptível não somente em inúmeros motivos como também na circularidade de
sua forma arquitetônica, visto que o fim da obra nos remete ao seu início. Além disso, a
posição final das ironias em cada poema e o destaque gráfico que é dado a elas permite que as
consideremos como expressivas da visão do autor. Riso defensivo contra a angústia e a
impotência de uma razão libertadora. As ironias que encerram os poemas impossibilitam a
sublimação, puxando pelos pés o espírito que ascende rumo ao ideal e impedindo o leitor de
assumir uma postura ingênua perante a história e as promessas de uma definitiva redenção
revolucionária. Delas, resulta o riso desesperado de quem vê a incongruência entre os ideais e
a realidade, entre a Idéia e a experiência, entre a Vontade e a representação.
Entretanto, considerando que o ideal da expansão já não é mais visto como algo sublime
– e sim como expressão do progresso devastador – cabe perguntar o que está sendo iluminado
pelo facho deste farol chamado arte. E tal resposta, que não é clara em Canções sem metro,
encontra-se explícita em “Cavaleiros andantes”, onde o papel proposto ao artista é similar ao
do historiador:

Mas ao artista deve ceder o historiador, para o estudo das tragédias do Ideal no
passado. É a missão contemplativa do moderno idealismo. Deus, Verdade, Liberdade,
são os três cantos da melancólica epopéia das aspirações humanas, cujos versos de
sangue vêm entrelinhando a história, desde as obscuras tradições do Oriente. À luz da
arte erige-se o severo monumento das audácias, dos desesperos. (v. 3, p. 207).

Assim como Walter Benjamin sugere que o historiador penteie a história a contrapelo,
buscando nas ruínas deixadas pelo progresso “o signo de uma chance revolucionária” (1985,
p. 163), Pompéia, de modo semelhante, propõe nesta crônica que o artista resgate as
“tragédias do Ideal no passado” (v. 3, p. 207). Ao registrar em sua pena a memória das
audácias, o artista estará cedendo ao historiador. Mantendo-os vivos na memória, ele não
permitirá à humanidade esquecer “quantas dores suaram os séculos” (v. 3, p. 213) e estará
contribuindo para o advento da libertação existente na “Providência latente dos fatos” (v. 3, p.
204). Tal interpretação, que resgata a esperança épica, não é descabível, mesmo porque a
filosofia de Schopenhauer também é contraditória, pois reconhece que a circularidade do
tempo histórico possibilita, ainda que não admita um thelos redentor, a realização das utopias
irrealizadas no passado. E considerando esta outra possibilidade de interpretação da obra,
visto a ambigüidade das alegorias, cabe repensarmos tanto a significação do sublime quanto o
sabor da ironia.
Além de servir como mecanismo de exaltação dos momentos de grandeza
revolucionária, o sublime também pode servir como um mecanismo de transcendência
religiosa, possibilitando ao homem uma forma de contato com Deus através da natureza. Tal
experiência pode servir como evasão consoladora para todas as misérias e catástrofes da
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história, posto que possibilita, conforme a hipótese de Thomas Weiskel (1994), a sublimação
do instinto de morte exacerbado pela angústia resultante da crise religiosa e da insegurança
social que caracterizam a modernidade. Semelhante opinião apresenta Terry Eagleton, pois
considera que o sublime constitui um “impulso de morte em ação, embora esta morte seja,
secretamente, uma espécie de vida, Eros disfarçado em Thanatos” (1993, p. 123).
Considerando tais funções do sublime, a ironia tem um potencial crítico não tão amargo como
o anteriormente apontado, pois impede a atitude evasiva, a dissolução do Eu e a conseqüente
recusa de qualquer desejo assim como idealização dos credos revolucionários e da ideologia
do sacrifício em nome deles.
Se o desencanto com respeito à transcendência é um fato consumado para os espíritos
críticos da modernidade e a ironia é, portanto, uma atitude inevitável, talvez a alternativa ao
riso cético e ao niilismo esteja na ironia conforme proposta pelos românticos de Jena, visto
que se encontra fundamentada na tensão resultante « d’un décalage entre le réel et
l’imaginaire » (BOURGEOIS, 1974, p.31). Neste sentido, a ironia sempre ao final dos
poemas em prosa de modo a evitar o movimento de ascensão consoladora confere aos
fragmentos a força estética do Witz, cujos estilhaços resultantes das significações
contraditórias voltam-se para o rompimento da ingenuidade. Neste sentido, expressam a
“explosão do espírito agrilhoado” (conforme Schlegel define “espirituosidade”, no fragmento
90 do Lyceum) e, ainda segundo Bourgeois, « le détachemant, la prise de conscience de
l’absurdité du monde tel qu’il se présente immédiatement à nous » (p.31) necessário à recusa
de qualquer thelos, seja religioso ou secular, e à busca de um sentido que seja presentemente
histórico.

REFERÊNCIAS

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