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ASCESE MÍSTICA

PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO...................................................................................................................... 1


I. SITUAÇÃO DO PROBLEMA ............................................................................................................................... 1
II. EVOLUÇÃO DA MEDIUNIDADE ..................................................................................................................... 1
III. MEDIUNIDADE – METAFANIA – MISTICISMO ......................................................................................... 2
IV. A CATARSE MÍSTICA E O PROBLEMA DO CONHECIMENTO ............................................................ 3
V. OBJETIVISMO E SUBJETIVISMO ................................................................................................................... 4
VI. O MÉTODO DA UNIFICAÇÃO ........................................................................................................................ 5
VII. ESTRUTURA DO FENÔMENO MÍSTICO .................................................................................................... 7
VIII. COROLÁRIOS - FÉ E RAZÃO ...................................................................................................................... 8
IX. DIAGRAMA DA ASCENSÃO ESPIRITUAL ................................................................................................. 10
X. PRIMEIRO ASPECTO – PLANOS DE CONSCIÊNCIA ............................................................................... 11
XI. SEGUNDO ASPECTO – EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA ......................................................................... 12
XII. TERCEIRO ASPECTO – CONSCIÊNCIAS COLETIVAS ......................................................................... 13
XIII. EGO SUM QUI SUM ...................................................................................................................................... 14
XIV. DA TERRA AO CÉU ...................................................................................................................................... 15
XV. METODOLOGIA MÍSTICA ........................................................................................................................... 17
XVI. A NOITE DOS SENTIDOS ............................................................................................................................ 18
XVII. A UNIFICAÇÃO ........................................................................................................................................... 20
XVIII. INCOMPREENSÃO MODERNA .............................................................................................................. 22
XIX. O SUBCONSCIENTE ..................................................................................................................................... 22
XX. O SUPERCONSCIENTE ................................................................................................................................. 23

SEGUNDA PARTE – A EXPERIÊNCIA ................................................................................................................ 25


I. EM MARCHA ....................................................................................................................................................... 25
II. NAS PROFUNDEZAS ......................................................................................................................................... 26
III. DOR ..................................................................................................................................................................... 28
IV. RESSURREIÇÃO .............................................................................................................................................. 29
V. A EXPANSÃO ...................................................................................................................................................... 31
VI. A HARMONIZAÇÃO ........................................................................................................................................ 32
VII. A UNIFICAÇÃO ............................................................................................................................................... 33
VIII. A SENSAÇÃO DE DEUS ............................................................................................................................... 35
IX. CRISTO ............................................................................................................................................................... 36
X. AMOR ................................................................................................................................................................... 37
XI. A REDENÇÃO ................................................................................................................................................... 38
XII. ASCESE DA ALMA ......................................................................................................................................... 40
XIII. MINHA POSIÇÃO .......................................................................................................................................... 41
XIV. MOMENTOS PSICOLÓGICOS ................................................................................................................... 44
XV. IRMÃO FRANCISCO ...................................................................................................................................... 45
XVI. VISÃO DA CATEDRAL GÓTICA ............................................................................................................... 46
XVII. PROFETISMO ............................................................................................................................................... 46
XVIII. OS ASSALTOS ............................................................................................................................................. 47
XIX. TENTAÇÃO ..................................................................................................................................................... 49
XX. INFERNO .......................................................................................................................................................... 50
XXI. QUEDA DA ALMA ......................................................................................................................................... 50
XXII. MEA CULPA .................................................................................................................................................. 51
XXIII. CÂNTICO DA UNIFICAÇÃO .................................................................................................................... 51
XXIV. BEM-AVENTURANÇAS............................................................................................................................. 51
XXV. CÂNTICO DA MORTE E DO AMOR ........................................................................................................ 52
XXVI. PAIXÃO. ASSIS, QUINTA-FEIRA SANTA, 1937. ................................................................................... 52

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 1
Somente numa segunda parte o fenômeno místico é apre-
ASCESE MÍSTICA sentado em seu aspecto espiritual, religioso e ideal, tal qual o
foi, de modo quase sempre exclusivo2. Ele se distingue, pois,
PRIMEIRA PARTE dessa comum nomenclatura, vaga e imprecisa, e é definido em
suas linhas fundamentais de fenômeno de evolução biológica,
O FENÔMENO levada até ao campo do mais alto psiquismo. Encarado assim,
sob a forma de caso vivido, o fenômeno, conquanto pareça cir-
I. SITUAÇÃO DO PROBLEMA cunscrito ao subjetivismo de minha consciência individual,
apresenta-se, sem dúvida, não somente na solidez de uma reali-
Analisarei neste volume o fenômeno da ascese mística. Dis- dade experimental, senão também nos limites de uma verdade
penso-me de novamente situá-lo no campo cultural e no mo- universal, porquanto eu o concebo e encaro, em concordância
mento psicológico moderno, visto que o apresento em seu du- com minha orientação filosófica e científica, constantemente
plo aspecto de fenômeno científico e de fenômeno espiritual, seguida, como fase da humana e normal evolução biológica,
como sequência lógica e vivida do fenômeno inspirativo, já embora seja aqui continuada e projetada até aos superiores ní-
amplamente analisado no precedente volume 1. Quem o tiver li- veis da ascensão espiritual. Verdades, pois, universais estas de
do, nele terá encontrado o duplo pretexto desta continuação, se- que trataremos; linhas fundamentais do desenvolvimento feno-
ja no campo científico, seja no campo espiritual. E, para res- mênico, que é lei das coisas; realidade objetiva situada além do
ponder objetivamente, ou ainda, quase fotograficamente, à rea- relativo, no absoluto; realidade profundamente humana, tecida
lidade do fenômeno, tal qual foi por mim vivido, aqui o analisa- de lutas, de dores e de conquistas.
rei e aprofundarei sob dois aspectos decorrentes de duas psico- Grande vantagem esta de poder operar sobre uma realidade
logias diversas, que, embora hoje consideradas opostas, são pa- psicológica, para mim experimental, e sobre uma verdade que é
ra mim equivalentes: a ciência e a fé. universal; são estas duas bases de nosso estudo, bastante sóli-
Servirá isto para demonstrar sua identidade substancial em das, que compensam quanto poderiam opor-me como defeito,
todos os campos e, principalmente, em face deste tão discutido isto é, a contínua necessidade de falar de mim, assim como de
e controverso fenômeno místico; servirá igualmente para evi- minha precedente produção literária. A esta devo, contudo, in-
denciar que já devem ser tidos por superados certos antagonis- dispensavelmente reportar-me, porquanto dela resultam as pri-
mos ultimamente tão agudos e transformados em sementes de meiras fases da maturação do fenômeno espiritual por mim vi-
dolorosas cisões da unidade do pensamento e da fé. E, quando vido. É imprescindível, para compreendê-lo no caso concreto
eu tiver feito convergir para as mesmas conclusões as extremas
em que o analiso e apresento, recorrer, como preparação e ex-
e opostas atitudes do pensamento humano, minha concepção in-
plicação, ao meu passado, que o contém em germe, e do qual
terpretativa, baseada na realidade por mim muito intensamente
ele se desenvolveu. Não saberia estabelecer diversamente os
sentida, terá solidez de verdade universal e poderá ser conside-
termos deste estudo, até porque somente quem tem experimen-
rada novo fundamento que, no meu permanente anseio de reali-
tado determinadas sensações e emoções possui a palavra sufici-
zar o bem, terei conseguido lançar para a construção do edifício
entemente vibrante para exprimir o inefável.
do conhecimento. Ouso esperar isso não somente como fruto do
Perdoem-me semelhante ostentação, forçoso como é reco-
imenso trabalho interior em que me tenho amadurecido, por fa-
nhecer quanto é ela inevitável. Perdoem-me se ela parece che-
talidade da lei de evolução, superior aos méritos meus e à mi-
nha própria vontade, mas também porque este mesmo estudo gar a uma confissão desapiedada de todo o meu ser, até à inti-
constitui, para mim, tão alto coroamento de minhas precedentes midade mais recôndita, confissão que proporcionará ao leitor
sínteses, que as posso resumir e levantar todas para aquilo que aquela mesma sensação que provo, feita de sacrifício e de ho-
eu poderia chamar minha mais alta síntese conceptual, de pai- locausto, ao invés de vão exibicionismo. Doação de mim
xão e de vida. O fenômeno místico é, de fato, animado por um mesmo para o conhecimento e solução dos mais árduos pro-
dinamismo tão potente e profundo, feito de maturações e supe- blemas da ciência e da fé, implícitos no espírito; problemas do
ramentos interiores tão substanciais, anelante de ímpetos tão mundo, não somente em sentido evolutivo, mas também histó-
excelsos, que deve ser necessariamente considerado no vértice rico, porque místicos sempre os houve, em todos os tempos e
das aspirações da inteligência e do coração. em todos os países. A ressonância que minha alma encontra na
O precedente estudo, a que já me reportei, conquanto seja de tantos místicos e que a deles encontra na minha, a comu-
aparentemente exaustivo e definitivo, mais não é do que a pre- nhão de fé, de experiências e de metas espirituais, a universali-
paração deste, assim como o fenômeno da mediunidade inspira- dade histórica de fatos e fenômenos vividos ampliam meu po-
tiva, nele descrito, não foi, para mim, mais do que uma fase de bre caso para além dos limites de um subjetivismo que, evi-
vida. Nesta nova fase, parecem levantar-se, como num turbi- dentemente, já não se acha circunscrito em mim, mas trans-
lhão, todas as potências da alma humana, e eu, através de mi- borda para além das fronteiras de minha personalidade.
nha exposição, guiarei o leitor que me seguiu até aqui, ainda Espero haver, assim, justificado a posição em que situo o
além da sensação viva da vertigem arrebatadora que me tem problema místico, que aqui se compensa com dois sólidos pon-
golpeado nos meus estados supranormais de visão e de êxtase. tos de apoio e, todavia, dois pontos de relativa debilidade.
Afirmei que isso é continuação de precedentes fases do fenô-
meno, razão pela qual, neste escrito, devo referir-me necessari- II. EVOLUÇÃO DA MEDIUNIDADE
amente ao volume em que estas são descritas. Declarei que se
trata de fenômenos por mim vividos, pelo que sou compelido a Coloco, assim, o fenômeno místico na sequência evolutiva
falar ainda de mim. Se isso é deselegante, é, todavia, garantia do fenômeno inspirativo. Precisemos, pois, com maior exatidão.
de objetividade, porque minha análise toca, também aqui, assim Em meu livro precedente, classifiquei em várias fases a me-
como nas fases já examinadas, uma realidade que, embora inte- diunidade, que tenho considerado um fenômeno em evolução,
rior, me é perfeitamente acessível. Conquanto pessoal e objeti- momento e expoente da maior evolução biológico-humana, a
va, dela pude abstrair-me nitidamente, submetendo-a a estudo qual, superadas as formas orgânicas, se aventura hoje, desmate-
metódico, analítico e científico. rializando-se progressivamente, nas formas psíquicas. Aqui não
1 2
As Noúres, obra do mesmo autor (N. do T.). Segunda parte do presente volume – “A Experiência” (N. do T).
2 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
demonstro, mas apenas relembro esta evolução biológico- proximação dos dois termos tende, assim, a tornar-se cada vez
psíquica, alhures já por mim exaustivamente tratada3. mais estreita, mais constante, mais normal. Com o andar do
Em seu primeiro nível inferior, o fenômeno mediúnico mani- tempo, a sintonização vibratória estabiliza, por constante repe-
festa-se em forma física, de efeitos materiais. Em plano mais al- tição, aquele estado de afinidade entre transmissor e receptor,
to, aparece uma mediunidade superior, mais evolvida, de efeitos que é simpatia e atração, estado reconhecidamente básico, sobre
mentais. Formas demasiado conhecidas, para que nelas eu insis- o qual tanto insisti no estudo do fenômeno da recepção noúrica.
ta. Se, em seu primeiro nível, a mediunidade intelectual é sim- Evidente é o resultado deste processo. Contém ele um cam-
ples mediunidade passiva e inconsciente, em que vontade e po de forças convergentes para o mesmo ponto, que deverá, ne-
consciência do médium se afastam do fenômeno, como elemen- cessariamente, ser tocado, ou antes, ou depois. A comunicação
tos estranhos e inúteis, chegando por evolução a nível mais ele- anormal do pensamento tornar-se-á, na consciência do metafâ-
vado, transforma-se em sentido ativo e consciente, no qual, co- nico, uma espécie de educação e, consequentemente, de hábito
mo tenho demonstrado, a consciência do médium está desperta e para viver em superior zona espiritual, onde tenderá a normali-
do qual é parte integrante. Em verdade, ocupei-me longamente zar-se, em forma cada vez mais estável, o equilíbrio de seu no-
dessa mediunidade inspirativa, isto é, mediunidade intelectual vo peso específico psíquico. E a comunhão não lhe estabilizará
ativa e consciente, limpidamente operante na viva personalidade somente as vias, mas dilatar-lhe-á as fronteiras; se antes invadia
do sujeito. Delineei a lei de ressonância do fenômeno, pela qual, somente as zonas da inteligência e era somente luz resplande-
entre o centro de emanação transmissor, individualizável como cente, porém fria, inundará agora as zonas do coração e será
noúres ou correntes de pensamento, e a consciência desperta do também calor que inflama de paixão.
médium, pode estabelecer-se, pela sintonia de vibrações, uma Extremamente férvido de maturações é, pois, o fenômeno, e
comunicação, que é base da recepção inspirativa. intensamente ativo é o Alto na transfusão de forças para a tran-
E, neste ponto, me havia detido, porque, ontem, este cons- sumanização do ser. Tende, pois, para uma gradual, progressiva
tituía o último termo de minha realização; mas, já não o é ho- e total elevação, de si para si, da consciência receptora, de todo
je. Aquelas afirmações continham, porém, as razões para esta o eu humano do sensitivo, com todos os seus recursos e poten-
continuação. cialidades. Daí resulta um como incêndio que reduz a cinzas o
A mediunidade inspirativa4 já é imensamente superior à co- homem velho e o faz ressurgir em forma completamente nova,
mum mediunidade passiva e inconsciente, porque vem a ser ati- em que se apresentam totalmente renovadas a concepção, a ori-
va e tende a fixar-se na personalidade do médium, como sua entação psicológica e a visão do fenômeno e de suas leis.
normal emanação. Mas não pode o fenômeno interromper aqui o Vemos, assim, o fenômeno da mediunidade inspirativa
seu desenvolvimento e, certamente, nos levará para altitudes amadurecer e transformar-se, naturalmente, por lógico desen-
vertiginosas, sobretudo para a ciência, que não está acostumada volvimento, naquilo que se pode chamar, em seu primeiro
a tratar de fenômenos cuja progressão evolutiva os leva a uma tempo, metafania mística, no sentido de recepção cada vez
normal desmaterialização, que os subtrai à comum percepção mais total, isto é, de emanações não mais exclusivamente
sensória e psíquica; progressão que os leva aparentemente a conceptuais, mas também afetivas etc. À medida, porém, que
desvanecer-se num mundo que, por imponderável, é contestado esse fenômeno se encaminha para sua maturação, transcende
pela ciência. Mas esta não constitui razão bastante para que eu de tal modo o simples fenômeno inspirativo, num arrebata-
deva deter-me, máxime quando em mim encontro o guia de uma mento de todo o ser, que acaba por se encontrar diante deste,
experiência vivida. Prossigamos, portanto, ainda, como durante como a luz solar diante da luz lunar.
um ano prosseguiu em mim o fenômeno; releguemos ao passado Tal é o fenômeno místico de que agora nos ocupamos.
aquela fase conhecida e superada e aventuremo-nos na zona su-
perior de evolução do fenômeno mediúnico inspirativo.
Temos visto que os dois termos do fenômeno inspirativo, à III. MEDIUNIDADE – METAFANIA – MISTICISMO
semelhança de uma transmissão-recepção radiofônica, repre-
sentam o centro emanante e a consciência do médium, recepto- Entraremos, mais adiante, nos pormenores deste desenvol-
ra e registradora. Os dois termos são distintos, embora comuni- vimento. Basta-nos, por agora, traçar as linhas de orientação. A
cantes, isto é, ligados por fenômeno de ressonância. A captação sucessão destas fases não a apreendi de livros, que não leio, ou
noúrica baseia-se nesse princípio, ou seja, no estado de sintonia de textos, que não consulto, mas de minha experiência direta.
ou harmonização vibratória, que se alcança mediante duas recí- Quis conservar aqui minha virgindade de pensamento, perma-
procas aproximações: primeiro, a entrada na fase de supercons- necendo em contato direto e exclusivo com o fenômeno, da
ciência por parte do eu do médium, que se põe em tensão, em maneira que, depois, a eventual coincidência com os resultados
outros termos, deslocamento ascensional de seu centro ao longo de outros estudos e de outras experiências se tornasse, para
da escala evolutiva das dimensões, até à mais alta fase psíquica mim e para os outros, mais surpreendente e comprobatória.
e superconsciência; segundo, descida ao longo da mesma escala Fica assim definida a amplitude do fenômeno da ascese mís-
evolutiva, isto é, involução de dimensão conceptual por parte tica, objeto deste estudo, que pode ser expressa nestes termos e
do centro emanante e de sua irradiação, de modo que, através
ser compreendida dentro destes limites: por ascese mística en-
de recíproca propensão de um para outro, seja possível o encon-
tendo o desenvolvimento do fenômeno psíquico, desde a fase de
tro e o amplexo dos dois termos.
metafania lúcida ou de inspiração consciente, até à sua fase de
Tendem essas faculdades, mediante contínuos exercícios, a
misticismo, que se consuma com a unificação integral entre re-
estabilizar-se, desde a zona instável de fadiga e de conquista, até
ceptor e transmissor. O presente estudo, assim como minha ex-
a zona de assimilação completa na personalidade do médium, is-
periência, que lhe serve de guia, move-se entre esses confins.
to é, até a zona de instinto e qualidade normal (automatismo).
A essência do fenômeno consiste sempre na universal e in-
Forma-se um hábito da consciência, através da respiração
suprimível evolução do espírito. Mas é certo que, nesses níveis,
sutil nas zonas rarefeitas dessa estratosfera do pensamento. A-
o simples fenômeno mediúnico se espraia sobre tal mar de con-
3
Em A Grande Síntese e As Noúres (N. do T.) .
quistas e de grandiosas afirmações, que aquele fio de revelação
4
Os que estiverem habituados a denominar estes fenômenos com outra supranormal e primeiro lampejo de transparências transcenden-
nomenclatura, a menos que substituam a palavra pelo conceito e a forma tais que é a simples metafania, perde-se na vertigem de luz que
pela substância, saberão igualmente, estou certo, compreender, ainda que é o estado místico, de modo que, longe de diminuir a personali-
as expressões por mim adotadas sejam insólitas para eles (N. do A.). dade na inconsciência, a arrebata consciente até ao superconce-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 3
bível. Ouço a voz interior exprimir-se num cântico de harmoni- desenvolvimento, através de características constantes. En-
as universais, dizendo-me: “Contempla a substância espiritual quanto a mediunidade de efeitos físicos se move prevalente-
das formas do ser. O todo é um turbilhonar de esferas. Este mente por força de causas barônticas 5 e com técnica ecto-
movimento representa a mais doce música, a mais maravilhosa plasmática, e a mediunidade intelectual inconsciente pode
harmonia de luzes, a mais gigantesca construção, na mais am- abrir-se por todas as portas e fazer-se órgão de recepção de
pla exatidão de relações, e é também cântico de conceitos e sen- todo pensamento, desde o mais nobre até o mais vil, assisti-
timentos. Observa e, na harmonia deste amor infinitamente mos aqui a um processo de progressiva purificação do fenô-
múltiplo, esquece a dissonância de tua dor, que se encontra fe- meno e do médium. Na recepção inspirativa consciente, o fa-
chada no tempo. Deixa teu espírito explodir, além de todas as tor moral, como tantas vezes tenho insistido, ocupa o primei-
medidas, no incomensurável; além de todos os limites, no infi- ro plano e, no misticismo, não constitui somente condição
nito; além de todos os ritmos menores, no ritmo divino do todo. prevalente, mas absoluta e irrevogável, tanto que ele repre-
Verás e ouvirás. Toda alma é feita para ver e ouvir”. senta o vértice da perfectibilidade moral e religiosa. O fenô-
“Repara. Os seres dividem-se e reúnem-se segundo hierar- meno transborda, pois, em suas mais altas maturações, além
quias. Cada qual se põe, por virtude de seu peso especifico, em dos limites das possibilidades e da competência da ciência,
seu nível natural, inviolavelmente. Eles se veem e se falam e se no campo da fé e da religião. Para mim, todavia, não existe
escutam. Vozes e luzes, de plano a plano, descem e sobem, antagonismo, a não ser de relatividade de perspectivas e de
porque o Alto tem sede de se dar, como o plano inferior tem unilateralidade de pontos de vista. Devemos, contudo, elevar
sede de ajuda. Esta é a Lei, imperante em toda parte e em todo a ciência ao nível da fé e empreender, sem transviar-nos, a
nível. Assim tudo se distingue por individuações inconfundí- penetração nos domínios do supersensório. É chegada a hora
veis, e tudo volta a reunir-se e irmanar-se na mesma luz e no de estes antagonismos entre ciência e fé, hoje destituídos de
mesmo cântico. Ao apelo do fraco responde um eco bondoso; sentido, porque filhos de visões unilaterais e de momentos
graças à bondade do Alto, há sempre uma dádiva por fazer. históricos superados, caírem para sempre, relegados ao pas-
Auxiliar-se reciprocamente, eis a Lei”. sado, assim como caem todas as coisas superadas.
“A luz irradia do centro e transparece de esfera a esfera, O fenômeno místico deixa assim para trás, na via das ascen-
através dos seres que a compõem. O metafânico é alma desper- sões humanas, os fenômenos mediúnicos e, conquanto se origi-
ta à escuta e ouve aquilo que para os outros é silêncio. Concei- ne destes, é de se ver que destes se liberta completamente. In-
to, harmonia e potência consubstanciam aquela luz; ela é sinfo- gressamos, assim, em um campo supermediúnico, embora re-
nia dos pensamentos e ações, é também corrente de amor e de sultante do mediúnico. Chegamos às superiores fases, a que as-
força a enxertar-se no espírito, que é a causa única da vida. E cende o fenômeno e nas quais ele se intensifica e liberta, e in-
reforça as motivações e fecunda vossas obras”. gressamos nesta zona, que é de suprema purificação.
“A percepção noúrica é um contato com a irradiação divina, Ainda não pude elevar a níveis mais altos, hoje pelo me-
que é a linfa vital do universo”. nos, minha capacidade de penetração. Parece-me haver toca-
“Por isso, vos digo: Escutai e purificai-vos, para que tudo do o vértice de minhas possibilidades e do meu sonho de re-
seja ascensão. Não ausculteis em vão, por simples curiosida- alizações humanas.
de, porque sagrada é a voz do Alto. Não dissipeis a potência
substancial da vida. Sirva-vos tudo isso para subir. Jamais IV. A CATARSE MÍSTICA E
atendais às tristes vozes dos planos inferiores, a não ser para O PROBLEMA DO CONHECIMENTO
ajudar a sofrer e a subir”.
“A lei de ascensão moral, conduzida através da bondade e O fenômeno místico pode ser também concebido, na mais
do amor, é a lei do centro, que por ela sustém o universo”. ampla acepção, qual momento das ascensões espirituais huma-
Relembro aqui as palavras de Goethe a Eckermann: “Ne- nas. Inclui, pois, o problema do conhecimento e pode ser consi-
nhuma produção de ordem superior, nenhuma invenção ja- derado, como o considero, uma verdadeira técnica do pensa-
mais procedeu do homem, mas emanou de uma fonte ultrater- mento e método particular de indagação, de superlativo rendi-
rena. Portanto o homem deveria considerá-la um dom inespe- mento. Alhures, já insisti nestes conceitos, quando do estudo do
rado do Alto e aceitá-la com gratidão e veneração. Nestas fenômeno inspirativo. Prosseguindo a análise do mesmo fenô-
circunstâncias, o homem é somente o instrumento de uma po- meno, em suas fases superiores, é natural que aqueles conceitos
tência superior, semelhante a um vaso julgado digno de rece- também encontrem aqui seu ulterior desenvolvimento.
ber um conteúdo divino”. É a evolução do espírito que traça e supera os limites do co-
◘ ◘ ◘ nhecimento, que diversamente o situa no seu progredir, até ao
Sentiremos depois, mais de perto, o incêndio daquelas su- ponto em que a unificação com a fonte de emanação, que encon-
blimações de espírito, pelas quais se passa da fase de inspiração tramos no vértice do fenômeno místico, se torna também unifica-
consciente à de unificação mística. Mas é necessário, antes, ção dos divergentes aspectos, sob que se contempla o relativo,
compreender e explicar racional e cientificamente o fenômeno. numa única verdade humanamente absoluta. Assim, às diferentes
Antes de abandonar-se ao impetuoso lirismo da visão, é neces- fases da evolução espiritual correspondem diversos graus de co-
sário seguir o fenômeno em cada uma de suas manifestações, nhecimento e diferentes aproximações de revelação da verdade.
apreendê-lo em sua realidade nua, com as tenazes do analista. Nos albores de sua vida espiritual, o homem não sabe
Cumpre, antes de tudo, dar completa satisfação à razão. elevar-se além das imediatas consequências de suas impres-
Na evolução do fenômeno mediúnico, do plano físico ao sões sensórias. Seu julgamento se detém, pois, na superfície
plano psíquico inconsciente, depois consciente, até à unifica- dos fenômenos, limitando-se a uma interpretação empírica e
ção mística com a fonte, é nota fundamental a progressão de desconexa, pura projeção, no cosmo, das reações de seu pe-
consciência, de intervenção da vontade e, ao mesmo tempo, queno mundo interior.
de desmaterialização. E nela se encontra uma progressiva 5
Neologismo formado de elementos gregos: “baros” (gr. báros, ous) –
conquista do fator moral, uma ascendente realização de acri- pesado, denso, e “ontos” (gr. ón, óntos) – ser, entidade. Barônticas: pro-
solamento espiritual, uma transformação em peso específico, venientes de espíritos de constituição densa (entidades inferiores). Esse
cada vez mais livre e mais leve. Todo o vasto fenômeno da problema de correntes barônticas é amplamente explanado no livro As
evolução da mediunidade se conjuga, assim, em suas zonas de Noúres, do mesmo autor (N. do T.).
4 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Em mais avançado momento, a consciência, mais amadure- V. OBJETIVISMO E SUBJETIVISMO
cida, qual tem acontecido até hoje, no seio da civilização, quer
dar-se conta do valor das próprias reações, procura e exige uma Ao enfrentar o problema gnoseológico, partimos de princí-
verdade menos aparente e mais substancial e vai ao encontro pios decisivamente novos no pensamento moderno. O conhe-
dos fenômenos, não mais exclusivamente com a fantasia do cimento, creio, não se alcança com os métodos chamados obje-
primitivo, mas com o olhar objetivo do observador. Tem, as- tivos de projeção para o exterior, mecânicos, iguais para todos e
sim, aprendido a catalogar fatos, coordenando-os segundo pla- acessíveis a todos, mas por métodos subjetivos, de introspec-
nos hipotéticos, e tenta compenetrar-se da lógica e fixar a lei de ção, peculiares somente a determinados tipos de superconsciên-
progressão dos fenômenos, para chegar a estabelecer gradual- cia Creio que os limites do conhecimento sejam dados e medi-
mente os princípios, cada vez mais abstratos e gerais, que re- dos, prevalentemente, segundo o grau atingido pela consciência
gem o funcionamento orgânico do universo. Tal é a presente fa- humana na escala da evolução psíquica, o que quer dizer que a
se científica. O homem moderno sente, justamente, a sua supe- amplitude do campo fenomênico dominado é condicionada à
rioridade diante do homem supersticioso, que se impressiona
extensão conseguida pelo eu em sua evolução, que é sua poten-
antes de saber observar, e sente-se orgulhoso de não se deixar
ciação e dilatação. Eis porque o fenômeno místico, que é a fase
invadir por vãos temores, diante de fenômenos cuja causa pode
superior de evolução do espírito, se apresenta conexo com o
surpreender com seu poder de análise. E isto já é muito. O ho-
problema do conhecimento e coincide com sua solução.
mem tem conseguido a racionalidade, esta potência arquitetôni-
Coloco-me, assim, como antípoda da hodierna forma men-
ca, que permite as construções ideológicas; ela é poder de esco-
tal adotada pela ciência, ao mesmo tempo que, sobrepondo-
lha e de coordenação, é visão de relações e unificação; é indu-
ção, dedução, sistematização, que guiam para a reconstrução do me à psicologia objetiva, elevo para os primeiros planos o
pensamento originário da Criação. subjetivismo.
A ciência tem recolhido todas as pedrinhas do grande mo- Indiquei, no princípio, o caráter subjetivo deste escrito, que
saico, tem procurado reconstruir o grandioso painel, sem, toda- é também o de toda a minha orientação psicológica. Poderão
via, lograr outra coisa que delinear alguma figura. Mas, ai de arguir-me de subjetivismo, qual se fora isso um defeito. A ob-
mim! – longo é o caminho, extremamente prolixo é o método, jeção, que pode ser global e insurgir-se contra a minha perso-
tanto que pode ser considerado inadequado à consecução da nalidade e o valor que atribuo ao método da intuição, parece
síntese máxima. Evidencia-se, dessarte, a inépcia da ciência e, grave, mas não o é.
consequentemente, uma fundamental questão de método; este, Como pode a ciência racional opor-me, como defeito, a
tal qual é concebido, nada mais pode ser que um eterno cami- arbitrariedade do subjetivismo e suas bases intuitivas, quando
nhar, incapaz de síntese. ela mesma se funda sobre bases axiomáticas, igualmente in-
Da maturação evolutiva da consciência humana decorre, tuitivas e arbitrárias, porque ainda passíveis de demonstração?
porém, uma fundamental mutação. Sinto por experiência pes- Os fundamentos daquele organismo conceptual, de que pode
soal, por observação de tipos históricos do movimento das provir esta acusação, embora considerados absolutamente se-
leis biológicas, a verdade desta afirmação. O fenômeno da guros, são axiomas gratuitos, de valor transitório e extrema-
catarse mística representa uma tão completa elevação da mente relativo. Isto pode dar a alguns espíritos autônomos a
consciência, que se lhe escancaram as vias do conhecimento. sensação de que o pensamento humano, em toda a sua esma-
É este um importante aspecto do fenômeno místico, que aqui gadora congérie de construções ideológicas, filosóficas e cien-
estamos estudando. Antes de lhe enfrentarmos os maiores as- tíficas, se agite sobre bases convencionais. Ignora a ciência o
pectos psicológicos, éticos e religiosos, examinemo-lhe o ci- que sejam, substancialmente, os fenômenos sobre os quais
entífico e gnoseológico. ópera. Averigua e combina os efeitos, porque tem experimen-
Os três graus do conhecimento, isto é, a fase sensória, a fase tado que as coisas ocorrem deste e daquele modo. Mas, por
racional-analítica e a fase intuitivo-sintética, correspondem aos que causas e de que maneira isto ocorre, não o sabe. No cam-
três tipos de homem e de consciência por mim descritos noutra po abstrato, se penetrarmos até aos bastidores desataviados da
obra6, a saber: o homem vegetativo, físico, sensório, de ideação construção ideológica e pusermos a nu o jogo com que se tece
concreta, movido pelos instintos primordiais da vida; o homem e desenvolve a cadeia do silogismo humano, verificaremos,
racional, submetido à educação, psíquico, nervoso, utilitário; e subindo de concatenação para concatenação e de relação para
o super-homem, dono de si, das forças da vida, do conhecimen- relação, que se deve necessariamente chegar ao ponto fixo de
to. O fenômeno da ascese mística representa a maturação bio- partida, à pedra basilar de todo o edifício. Ora, esse ponto fi-
lógica deste novo tipo de homem. xo, que é precisamente o que rege a construção e por cuja fal-
Acontece agora, neste momento da evolução humana, uma ta toda ela se esboroa, é simplesmente um axioma do qual não
renovação tal da consciência, que seus efeitos são incalculáveis se sabe dizer outra coisa além de que é assim porque é assim,
no campo psicológico e merecem, pois, particular exame. Trata- axioma cuja demonstração se reputa supérflua, pela simples
se de nova e autêntica técnica de pensamento, de completa re- razão de o declararem evidente; e enquanto, para aceitação de
construção dos métodos de pesquisa e de orientação científicas. um pormenor, se exigem mil provas, para aceitação do princí-
Devo, por isso, retornar a esses conceitos, já precedentemente pio-base nada se requer, somente porque ele já existe na qua-
esboçados7, para aqui levá-los mais além, na continuação lógica lidade de aceitação indiscutida na grande maioria humana. E
de seu desenvolvimento. Devo retornar a eles porque, se naque- então a garantia dessa verdade fundamental é confiada única e
les escritos o método da intuição começa a revelar-se na fase de exclusivamente a um fundo de intuição coletiva que instinti-
mediunidade inspirativa consciente, aqui ele se manifesta ple- vamente apoia um mínimo de verdade. Instintivamente, por-
namente, na fase mística, que lhe constitui a continuação. Neste
tanto além de todo o controle racional. Deixada à parte a ciên-
nível de evolução, completa é a maturação daquele método, cujo
cia utilitária, a verdadeira ciência, abstrata, filosófica, mate-
rendimento se nos apresenta com plena eficiência.
mática, de conteúdo conceptual, volve e revolve, reincide e
6 apoia-se toda sobre rudimentos de intuição. Intuições míni-
Em A Grande Síntese, cap. 78 – “As Vias da Evolução Humana”;
v. também Cap. 37 – “Consciência e Superconsciência. Sucessão dos mas, mas seguras, porque somente garantidas pelo estender-se
Sistemas Tridimensionais” (N. do T.) . a grande número de pessoas; ou intuições maiores, de gênios,
7
V. As Noúres, particularmente os capítulos V – “Técnica das Noúres”, videntes insulados, posteriormente desenvolvidas, analítica e
e VI – “Conclusões” (N. do T.). racionalmente, pela cadeia do raciocínio.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 5
Há, pois, nas raízes do pensamento moderno, uma zona da- vas, que não são as dos sentidos e dos instrumentos, nem as
quela arbitrariedade e daquela intuição que viriam exatamente fornecidas pela aceitação da normal psicologia humana.
inquinar meu subjetivismo. O método da intuição consiste Mas não é tudo. O método objetivo baseia-se totalmente
apenas numa extensão do mesmo sistema a todo desdobramen- sobre um erro fundamental de situação, que lhe impede a pene-
to ideológico; significa estender o mesmo contato intuitivo a tração conceptual dos fenômenos. Esse erro consiste na distin-
todo desenvolvimento e manter-se constantemente no sistema ção entre o eu e o não-eu, entre o sujeito e o objeto, entre a
axiomático, sem pedir apoio racional. Se “o axioma é o conta- consciência e o mundo exterior. Sobre esse individualismo, fi-
to intuitivo com o absoluto”, estendo esse contato e o torno lho do egoísmo, baseia-se toda a psicologia científica hodierna.
contínuo e universal. Não condeno, pois, a ciência; considero- Ora, faz-se mister admitir que as duras necessidades da psico-
a, antes, centelha de pensamento, até onde não está demonstra- logia de luta que a vida impõe não podem ser definitivamente
da e aonde não chega sua atividade racional. Amplifico, antes, superadas. Enquanto, no método intuitivo, a consciência, fa-
seus fundamentos num método que, embora acessível somente zendo-se humilde, mas sensível, logra transportar-se, por vias
a quem, por evolução, ali chegou, é o único que verdadeira- interiores, do seu íntimo à íntima essência dos fenômenos, com
mente pode atingir o conhecimento. o método objetivo, a consciência, permanecendo autônoma e
O método da intuição não é aceito pela ciência positiva mo- volitiva, suprime sua sensibilidade e sufoca a voz dos fenôme-
derna, porque é antiobjetivo. Não é aceito porque, enquanto o nos, choca-se contra eles, sem neles penetrar, detendo-se à sua
mundo fenomênico, segundo o método da observação e da ex- superfície, na forma, que não toca senão aparências e ilusões.
perimentação, é aproximadamente igual para todos e é suscetí- O pensamento de Deus, que está no íntimo das coisas, se retrai
vel de ser entendido e construído, o método intuitivo, sendo ex- quando enfrentado com uma psicologia de dúvida e de violên-
tremamente pessoal e subjetivo, não possui força para subir e cia, ao passo que se revela espontaneamente aos que se apro-
elevar-se a altura maior do que a de uma interpretação pessoal. ximam com amor e fé. Tal é a lei da vida.
Existe aí uma ideia preconcebida e esta consiste no núme- O objetivismo é, pois, filho de um preconceito: um funda-
ro, isto é, em admitir que a extensão numérica do juízo seja ga- mental instinto humano. Que valor terá ele quando transportado
rantia de verdade. Dá-me isto a ideia de cegos que se dão a para a atmosfera rarefeita da concepção? É daí que procede essa
mão para guiar-se reciprocamente. Ora, o resultado da obser- orientação psicológica de destruição. A distinção entre sujeito e
vação exterior é, se não total, pelo menos parcialmente igual objeto não é somente separatismo que distancia e cava insupe-
para todos, somente porque é exterior, ou ainda, é conjugado à rável abismo de incompreensão entre observador e fenômeno,
forma mais simples de percepção sensória, a mais rudimentar e mas, em rigor, é também antagonismo, porque a observação
também a mais difusa e fundamental no mundo biológico. O parte, precisamente, da negação e da dúvida e, como garantia
valor da objetividade apoia-se, portanto, somente na extensão de verdade, toma precisamente a desconfiança, opondo-se à
de uma identidade de juízo, que é, por sua vez, filha de uma confiança e à fé, isto é, assume-se uma atitude mental que fe-
identidade de construção fisiológica, nervosa e psíquica. A ob- cha, a priori, todas as vias de comunicação. Com essa psicolo-
jetividade, então, revela-se tanto mais evidente quanto mais gia de agressão e negação, apenas se pode obter destruição con-
depende da estruturação sensória mais primitiva, qual é pri- ceptual e, diante do mistério, trevas e silêncio.
meiramente o tato (sabemos quão ilusória é esta indiscutível Oposto é o método do subjetivismo e da intuição. Enquanto
realidade sensória em face da constituição cinética da matéria), o objetivismo distancia, este aproxima; enquanto o objetivismo
e depois a vista, o ouvido etc. Pode-se dizer então que ela é diverge e separa, o subjetivismo converge e unifica. Este é ver-
função direta da inferioridade do nível evolutivo, pois, quanto dadeiramente o método da unificação conceptual na demolição
mais evolve o ser, necessariamente tanto mais penetra, graças absoluta do dualismo do método objetivo.
à lei de diferenciação, no subjetivismo.
Ora, o método objetivo, embora apresente a vantagem de VI. O MÉTODO DA UNIFICAÇÃO
chegar a conclusões e interpretações mais universais, parece
construído, por sua natureza, precisamente para permanecer Como, então, resolveremos o problema do conhecimento?
aderente, sem poder superá-las, às aparências mais exteriores, É neste ponto que, de novo, ele se conjuga e funde com o
às estruturas e interpretações fenomênicas mais rudimentares da ascese mística, porque o método da unificação pode mani-
e superficiais. Esta unidade de juízo é vantagem aparente, festar-se apenas quando a evolução da consciência atinge a fa-
porque nos deixa na superfície, tende a reconduzir-nos sempre se mística. Nesse plano ocorre o grande fenômeno da unifica-
para o relativo, o particular, e não constitui, absolutamente, ção, que a seguir aprofundaremos. Isto não podia deixar de ter
unidade de orientações e de conclusões, universalidade de reflexos e repercussões também no campo gnoseológico. A
concepções que alcancem a substância das coisas. O objeti- evolução altera os métodos e dilata a consciência. E, como ha-
vismo nasceu fatalmente sem asas. Efetivamente, a ciência via anulado a psicologia racional na psicologia da intuição,
hodierna é incapaz de construir um sistema que contenha a passando da fase lógico-científica à fase que poderemos cha-
explicação de todos os fenômenos e evidencie, por meio de- mar inspirativa, assim a intuição continua e completa-se na
les, o funcionamento da lei universal. unificação conceptual, do mesmo modo que a recepção inspi-
O método objetivo é, em suma, a negação do método da pe- rativa continua e completa-se, como veremos, na fusão unitária
netração na profundeza e na substância das coisas; parece-me dos dois termos daquela recepção.
quase um lastro que intercepta e detém em baixo, automatica- Atingido esse plano, desaparece na consciência o dualismo
mente, as vias do conhecimento, capaz de resultados utilitários, do método objetivo. Aproximam-se os dois termos – sujeito e
mas impotente em face de resultados mais profundos. O valor fenômeno – a distância é reabsorvida até desvanecer-se, solda-se
da objetividade reside inteiramente nesse consenso humano, a cisão, o dissídio entre os dois antagonismos é sanado e abre-se
que certamente não contém a chave do absoluto, nem pode ser a compreensão. Aqui não nos ocupamos deste fenômeno da uni-
tomado como medida das coisas. O verdadeiro consenso pode ficação, a não ser pelo que dele se reflete no problema do co-
consistir apenas na voz dos fenômenos, que somente o subjeti- nhecimento. Quando a consciência, na catarse mística, não só se
vismo intuitivo sabe ouvir e fazer ouvir, fazendo-a emergir do comunica, quase radiofonicamente, com a fonte noúrica, como
silêncio do mistério. Não pode deixar de nascer, no ânimo de na mediunidade inspirativa, mas tende, por um processo que
quantos hajam ouvido esta voz, uma confiança em outras pro- examinaremos, a sobrepor-se e identificar-se com a fonte mes-
6 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ma, então o contato é tão íntimo e integral, que se adquire es- de estar satisfeito com sua negação, nem sentir-se contente com
pontaneamente o conhecimento, mediante novo sentido de vi- a realidade que possui, sem jamais desejar mais amplas realiza-
são, e a verdade transborda de todas as categorias da razão, os ções; também a incompreensão do ignoto constitui vago tor-
esquemas racionais se reduzem a prisões insuficientes para con- mento, que estimula a sair dele.
ter os conceitos. A consciência transcende os confins da lógica, O método da unificação contém em si os elementos aptos a
e, com um senso de imensa dilatação, o pensamento humano é compensar aquilo que pode parecer seu ponto fraco, isto é, o
abalado desde os fundamentos, numa revolução e renovação tão subjetivismo. Como poderemos compensar a pluralidade das
completas, que permanecem incompreensíveis e inadmissíveis concepções e a dissonância das contradições que derivam da-
para quem não os tenha experimentado. A compreensão existe, quele subjetivismo? A filosofia, precisamente aí, onde o pensa-
efetivamente, em função da amplitude e profundidade do campo mento, elevando-se e abstraindo da simples averiguação objeti-
de consciência e de seu grau de sensibilização. va, chega a ser necessariamente subjetivo, é um mar de inconci-
Para resolver o problema do conhecimento, é necessário liáveis divergências, que desorientam o espírito, dando sensação
atingir a universalidade do eu. Faz-se mister escancarar, median- de ser absurda a pesquisa da verdade. E, contudo, una é a verda-
te um ato de fé e de amor, mediante um senso de completa sub- de. Será, então, incapaz de atingi-la o subjetivismo divergente?
missão, as portas da alma e projetar-se fora de si, para que o in- Foi exatamente, como reação a tudo isso, que a ciência se
finito nela penetre. Certamente, este é um novo comportamento mutilou na objetividade de compreensão, com o fim de alcançar
na hodierna psicologia, contudo ele é necessário à consecução uma verdade igual para todos. Mas é evidente que o conheci-
de resultados novos. Somente a identificação do eu com o fenô- mento ganha em profundidade e potencialidade, à medida que
meno pode permitir a dilatação do primeiro até aos limites do passamos do mundo exterior ao interior. Não é baixando-se ao
segundo, e, quando o fenômeno se tornar o universo, sua expan- primeiro, mas elevando-se ao segundo, que se ganha em verda-
são não terá limites, como não os tem a Divindade. Abrangerá o de. É precisamente aí, quando mal nos separamos da superfície
infinito o amplexo de almas. Atiram-se fora, então, as velhas sensória e progressivamente nos aproximamos da íntima subs-
muletas da observação e voa-se. É somente através da evolução tância, que começa o subjetivismo, isto é, a variedade e a di-
do sujeito, através de renovações de consciência, que se podem vergência das expressões individuais; as vias do conhecimento
obter superamentos tão substanciais. Resolve-se então o pro- estão na subjetividade, e as vias da subjetividade constituem as
blema do conhecimento. Neste novo modo de ser, está implícito vias do separatismo intelectual, que parece distanciar-se da uni-
o conhecimento; a verdade revela-se automaticamente, por vi- dade do conhecimento. A conquista da verdade deve, portanto,
são, e atinge-se uma síntese espontânea, simples, completa. Dei- passar através desta contradição e saber conciliá-la. Uma ver-
xa-se para trás a observação sensória, a presumida segurança ob- dade igual para todos não pode ser senão uma verdade de su-
jetiva, como método rasteiro, inadequado, incapaz de verdadeira perfície. A procura de uma realidade mais profunda conduz à
síntese; abandonam-se as tortuosas vias da razão pela nova sen- divergência. Pois bem. Importa, então, saber compreender antes
sação do verdadeiro, direta, imediata, exauriente. Verdadeira e e, depois, coordenar e reorganizar aquela divergência.
palpitante é a visão; já não mais a fatigante conclusão oriunda de É natural que as apreciações mudem à medida que subi-
uma destilação cerebral, e sim conclusão vivente; nela o univer- mos, porque tanto mais, então, se desperta e movimenta o eu
so vibra e exulta de pensamento e de ação. pessoal, isto é, o múltiplo individualismo em que se reflete a
Com o dissolver-se do separatismo da fase egoística na uni- unidade do absoluto. Este permanece simples e monista e nada
ficação da fase altruística, caem as barreiras do dualismo do mé- perde de seu caráter unitário, exprimindo-se na infinita varie-
todo objetivo. A verdadeira única e radical solução do problema dade do relativo. Devemos recordar que o eu que concebe é
do conhecimento só pode ser obtida mediante a transferência da um relativo e está em evolução.
consciência para um plano superior de evolução. O problema fi- Preciso, então, se faz que superemos essa divergência e re-
losófico não pode ser insulado nem resolvido independentemen- construamos a unidade da substância. É necessário que não nos
te da realidade biológica e psíquica. Ele reside na personalidade intimidemos em face dessa aparente inconciliabilidade, dessa
humana e com ela adianta-se; seu progresso não pode ser mais dissonância de interpretações; devemos empenhar-nos, através
que um momento do progresso desta. É necessário romper o cír- da coordenação das expressões do relativo, em reconstruir a
culo dos impulsos instintivos, bem como os vínculos da psicolo- trama unitária do absoluto. A cisão está na manifestação huma-
gia racional e das concepções habituais. Assim como o mistério na, não na substância. Reorganizemos os reflexos particulares e
da unificação, na ascese mística, é fenômeno natural, que se de- reconstruiremos os aspectos da única luz. Da fusão das visões
senvolve segundo uma técnica própria de desenvolvimento, as- unilaterais sairá um mosaico que nos fornecerá os delineamen-
sim também é a conquista do conhecimento. tos do modelo divino. E as variadas intuições do subjetivismo
Então, ao surgir a visão, aparece entre as duas formas de escalonar-se-ão por amplitude e profundidade; as verdades rela-
pensamento – a racional e a intuitiva – um dualismo psicológi- tivas coordenar-se-ão, as menores atrás das maiores, até às mais
co. Diferentes são as duas visões: a maior compreende a menor, abrangentes e mais puras – aquelas que mais tiverem podido
mas a menor não compreende a maior. Quem estiver fora desta avizinhar-se da substância e houverem conseguido torná-la de
mais alta realidade tomá-la-á seguramente por ilusão, até que a maior transparência. Serão consideradas como tantos jatos de
conquiste por evolução. Considera-se irreal o que está fora da luz, cada um dos quais representa o sinal de uma linguagem
própria experiência. Os dois olhares atingem profundidades di- eterna e infinita, a palavra de um sermão divino. Serão conside-
versas e, consequentemente, veem na mesma verdade aspectos radas sucessivas aproximações da alma humana, que ascende
diferentes. Discriminar-se-ão, necessariamente, os dois pontos entre trevas e lutas, ao longo do mesmo caminho da verdade, do
de vista, sob o pretexto de incompreensão, porque as duas relativo para o absoluto, da análise para a síntese, galgando por
consciências são diversas e a extensão das recíprocas sensibili- seu próprio esforço as vias da unificação. E, por unidades de
dades é a única medida do respectivo cognoscível. Todavia, se medida e índice de verdade, tomar-se-á não a objetividade ou o
a psicologia superior pode penetrar a inferior, e não inversa- juízo do número, mas o grau de purificação do ser, que, em sua
mente, esta última, ainda que a negue, não pode deixar de vol- evolução, se aproxima de Deus.
tear em torno da outra, por um vago pressentimento da verdade, Deixe-se também florescer em mil formas o jardim da intui-
por um desejo que, incessantemente, clama na alma por desco- ção. Cada flor diversa será igualmente bela e exprimirá uma re-
brir o mistério. Pois que a treva não satisfaz à vista nem o si- velação. Ver-se-á, então, que, em essência, cada flor, em sua
lêncio ao ouvido, nem a ignorância ao intelecto, e ninguém po- variedade, traduz a mesma eterna beleza e canta a mesma infini-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 7
ta sapiência. A flor mais perfeita e mais pura falar-nos-á doce- cas repercussões se projetam até no campo prático de proble-
mente, com transparência mais evidente; a mais rude e primiti- mas de orientação conceptual, tão graves, tormentosos e ainda
va mal saberá balbuciar. Una, porém, é a palavra, porque unos hoje não solucionados.
são o plano da criação e o pensamento de Deus. E, então, atra- Superados esses corolários de índole filosófica, nos quais
vés da multiplicidade – bela, porque rica – do subjetivismo, es- me tenho detido, não só por sua importância intrínseca, mas
pontaneamente se volverá à unidade, em que o separatismo de sobretudo para melhor enquadrar o fenômeno místico no co-
novo se unifica e o eu se funde no Todo, sem se destruir, como nhecimento moderno e justificar-lhe a técnica de pensamento
colaborador que se deu a si mesmo para a reconstrução do em face da psicologia racional, retomemos agora, mais particu-
grande edifício do conhecimento. Nessa altura, ver-se-ão coin- larmente, a análise de seu desenvolvimento e metas conclusi-
cidir na profundidade, no mesmo cântico, que é a voz de Deus, vas, dentro do âmbito traçado na definição de ascese mística,
as cindidas intuições pessoais. dada no princípio do Cap. III.
Então, a multiplicidade e diversidade dos juízos mais não A solução do problema do conhecimento mais não é do que
são que o índice assinalador da distância entre a intuição e a um aspecto da transumanização que se realiza na ascese místi-
única fonte central. Quanto mais se aperfeiçoa o ser, tanto ca, a qual consubstancia tão profunda transformação do ser, que
mais sensível e potente se torna o instrumento consciência e chega a mudar e resolver todos os problemas humanos. Quando
tanto mais evidente se torna a unidade conceptual do verda- o espírito chega a esse nível, desaparece o simples fenômeno da
deiro. A dissonância das contradições é, pois, devida unica- unificação, que aqui não é somente uma técnica de pensamento,
mente ao embaçamento do espelho refletor e é dada pelo grau método para atingir o conhecimento, mas constitui uma tran-
de impureza do meio receptivo; as cisões nas conclusões indi- sumanização de personalidade, reabsorção do distinto no todo,
cam o grau de corrupção do pensamento e a distância que da consciência na Divindade. Então, a simples recepção noúrica
aquela cava entre este e Deus. A harmonia, que é perfeita no torna-se visão e êxtase, isto é, já não será apenas uma comuni-
Centro, corrompe-se à medida que se afasta na imperfeição de cação de pensamento, mas uma expansão total do ser em todas
ressonância da periferia. E a ignorância humana, que irradia as suas capacidades. Para muitas psicologias, esse campo estará
desordem, é a involução que gera o caos. situado na zona do superconcebível.
Existe, portanto, solução para o problema: basta que progri- Para compreender o fenômeno místico, é necessário recons-
damos, que superemos a zona das primeiras desordenadas tituí-lo desde o princípio, orientando-o, antes de tudo, no seio da
aproximações da intuição. Encontraremos, então, espontânea e fenomenologia universal. É ele fenômeno psicológico, fenôme-
automaticamente, a unidade do verdadeiro. A evolução, e so- no de evolução biológica, que, partindo das superadas fases or-
mente a evolução, pode dar-nos e dar-nos-á, necessariamente, a gânicas, prossegue nas superiores fases de evolução espiritual.
unificação. Somente pela evolução se pode passar da ignorância É, pois, fenômeno universal, logicamente situado no desenvol-
ao conhecimento, da separatividade à unidade. A involução é vimento da lei de evolução, natural, necessário, insuprimível. É
treva que divide, a evolução é luz que unifica. Na involução, supranormal somente em sentido relativo, isto é, em relação com
emudece-se a verdade, sufocada no meio denso, que não permi- a atual posição evolutiva da consciência humana. É, como o são
te transparências. A evolução coordena, reorganiza, harmoniza todas as culminâncias, pouco comum, pouco visível e dificil-
e, com isto, reabsorve as divergências e torna mais evidente a mente concebível para os que se encontram nos baixos planos da
realidade do verdadeiro. medíocre normalidade atual. Vemo-lo, com efeito, surgir em to-
Não se deve, pois, condenar e abandonar o subjetivismo in- dos os tempos e em todos os lugares, de um a outro extremo da
tuitivo, mas fazê-lo evolver, purificá-lo, conduzi-lo sempre história e do mundo. Cada tipo intelectual lhe imprime, segundo
mais para o alto, até reencontrar nele a unidade. Assim, ele sua específica diferenciação, a nota particular de sua personali-
permanecerá sempre a via mestra do conhecimento. Coordenar, dade e o plasma, transforma e adapta a si, à sua raça, ao seu
pois, as atuais intuições para reconstruir a verdade, mas, acima tempo. Mas o fenômeno subsiste, como momento integrante das
de tudo, subir, fazendo evolver a consciência, para aproximar- leis da vida. Parece fatal que, no limiar desta, deva apresentar-
se da verdade. É necessário subir também por humildade de co- se, como numa grande curva de sua trajetória, a evolução huma-
ração, por pureza de intenções, por sublimação de paixão. É ne- na, chegada ao momento de sua mais alta maturação. Nada,
cessário, para fazer evolver a consciência, atravessar a catarse pois, de miraculoso, de excepcional, de gratuita e arbitrariamen-
mística, que está no centro deste estudo. Num coração corrom- te concedido pelo céu. Em todos os fenômenos, sobretudo na-
pido não pode nascer outra coisa além de soberba linguagem de queles que se elevam para Deus, sentimos cada vez mais a pre-
vã sabedoria, além de dissídio, confusão, incompreensão. Eis as sença de uma ordem, de uma justiça, de uma harmonia divina.
estéreis logomaquias de alguns filósofos. Isto não significa falta de fé e de religião, mas simplesmente se-
Una e simples é a verdade. Mas, para vê-la toda, em sua riedade, positividade, conformidade com a justiça.
unidade e simplicidade, importa saber alcançar-lhe a altura; não Expliquei cientificamente em A Grande Síntese, na teoria da
se pode pretender trazê-la para baixo, para nosso nível humano, evolução das dimensões8, como o espírito humano, por evolu-
sem inquiná-la e falsificá-la. A verdade, a solução dos misté- ção, ascende da atual fase de consciência para a fase de super-
rios, a visão do pensamento de Deus não se conseguem median- consciência, que é a primeira dimensão do sucessivo universo
te poderosas argumentações, por laboriosas pesquisas ou atra- trifásico, em que evolve o atual, trino em seus planos de desen-
vés de prepotência de lógica e de razão, mas seguindo as vias volvimento: matéria, energia, espírito. Certamente, o ingresso
das ascensões do espírito, que são as da catarse mística. da psique humana nesta nova dimensão do ser, aqui já absolu-
tamente supermaterial ou supersensória, é para ela um fato tão
VII. ESTRUTURA DO FENÔMENO MÍSTICO novo e grandioso, que a simples apresentação no limiar da nova
dimensão e do novíssimo modo de ser basta para dar-lhe pro-
Falei de mediunidade, de metafania. Falo agora de misti- funda sensação de vertigem, como sucede a quem se debruça
cismo, considerando-o, em suas formas, o índice e o expoente sobre o abismo do mistério. Este parece feito de trevas, mas não
mais ostensivo desta evolução espiritual, que é o problema passa de inexplorado mar de novas sensações.
central de todo o meu estudo, como o é de minha vida. Diante Mais adiante, exporei o fenômeno em termos de sensação,
destas consequências, levadas até ao campo dos métodos para qual o viveram tantos místicos, em concordância com as linhas
a conquista do conhecimento, pode ser evidenciada e averi-
8
guada a importância de tais questões, uma vez que tão gigantes- A Grande Síntese, Cap. XXXIV a XXXVII (N. do T.).
8 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
fundamentais, como eu mesmo o tenho vivido e qual objetiva- ma sintonia, tornando-se impossível a comunicação. Efetiva-
mente o descreverei. Como tenho dito, opero a análise de reali- mente, havemos tomado a afinidade como condição necessária
dades para mim experimentais, deduzidas não apenas de ou- da transmissão e captação noúrica.
trem, mas sobretudo de minha observação. As consciências ou espíritos são, pois, semelhantes ou dis-
Antes, porém, de abandonar-me ao ímpeto lírico do momen- semelhantes pelas características vibratórias. No nível físico,
to místico, devo expressar-me aqui em termos de ciência e de dois ou mais seres que vibram perfeitamente em uníssono e se
razão, expor a possibilidade lógica do fenômeno, de modo que sentem um só, por instintos, sentimentos e pensamentos, perma-
ele se torne racionalmente admissível, até para os que não o necem, todavia, inexoravelmente distintos por sua aparência
sintam, nem o tenham tocado por evolução e, portanto, não es- humana, sem possibilidade de se sobreporem e coincidirem. Se
tejam aptos para entendê-lo a não ser nos termos de sua psico- lhes suprimirmos o invólucro, eles parecerão e se tornarão o que
logia racional. Poderemos, assim, analisar e compreender, com realmente são como consciência, isto é, um ser único, sem pos-
a moderna forma mental da ciência, um fenômeno que parece sibilidade de distinção. Se os situarmos em sua posição de espí-
relegado às mais altas e inacessíveis zonas do espiritualismo e ritos, eles se confundirão no mesmo tipo de vibração, assim co-
das religiões. Ele aparecerá, assim, em sua realidade nua, não mo duas notas idênticas, emanadas de duas fontes diversas, for-
qual um privilégio ou concessão do Alto, nem como um mono- mam o mesmo som. Eis por que, muitas vezes, se torna difícil a
pólio privado, porém, mais exatamente, como via aberta a todos chamada identificação espiritual, precisamente porque já não
os homens de boa vontade. Aparecerá, qual é, ou seja, como fe- tem significação, em mais altos planos, o conceito de personali-
nômeno exato, objetivo, cuja lei é possível traçar, como fare- dade em sentido humano. Naquelas zonas de evolução espiritu-
mos, e cuja verificação se pode fazer espontaneamente, todas as al, os seres se ligam por ressonância, em forma de existência co-
vezes que dele se apresentem as condições determinantes. Ele letiva, isto é, existem em forma de correntes de pensamento. Por
não ocorre por intervenção de caprichosas vontades extracós- isso, mal imergimos nessa atmosfera conceptual da evolução,
micas, antes representa o normal desenvolvimento funcional do encontramos noúres, e não individualidades separadas, como
universo, em seus mais elevados planos. Reconstruamos, pois, nos induziria a supor a analogia com o mundo humano.
através da observação, a lei do fenômeno. Na discrição da técnica da recepção noúrica já estavam
Para assim proceder, reduzamo-lo à sua mais simples ex- contidos os germes deste desenvolvimento. Tal como o fenô-
pressão, focalizando a essência de sua estrutura vibratória. Vi- meno inspirativo evolve e se completa no fenômeno místico,
bração significa, no mundo hiperfísico em que ora ingressa- assim também a simples comunicação noúrica aqui se comple-
mos, o verdadeiro modo de ser, fundamental qualidade, capaz ta na identificação de consciência, que é unificação de perso-
de individuar a forma em tipos específicos nitidamente defini- nalidade. No campo acústico, o fenômeno de ressonância, que
dos. Vemo-lo, por exemplo, nas ondas hertzianas. Os seres si- havíamos tomado como ponto de partida daquela técnica, é
tuados no plano físico, isto é, na forma orgânica de um corpo precisamente uma afinidade dinâmica, uma identificação de
material, distinguem-se uns dos outros pelas qualidades deste modo de ser, uma superposição de individuações. A sintonia é
invólucro, pelos limites da dimensão espacial em que ele está sempre a base do mesmo fenômeno em continuação, pois har-
situado, pela sua impenetrabilidade, pelas suas características monizar-se é a sua lei, para chegar, primeiro, à comunicação,
sensórias. Mas há, indubitavelmente, formas de existência hi- que é o centro do fenômeno noúrico, e, depois, à unificação,
perfísicas, de consciência supersensória, livre do invólucro or- que é o centro do fenômeno místico. Então, as duas consciên-
gânico. Quando passamos do organismo físico, regido por um cias, vibrando em uníssono, isto é, existindo em idêntica for-
princípio dinâmico, ao organismo de estrutura exclusivamente ma, perdem toda nota distintiva, adquirem-na como identifica-
dinâmica, em que o corpo já não é constituído de matéria, mas ção e fundem-se na mesma unidade.
só de energia, a individuação específica pessoal, aquela que Todo fenômeno místico se realiza, pois, mediante um pro-
distingue, não pode mais ser dada pelo corpo e por suas carac- cesso de atração tendente a encurtar as distâncias dadas pela di-
terísticas físicas. Então, o que individua é o tipo de vibração versidade, isto é, a suprimir as diferenças, e contém um método
que constitui a manifestação de vida do ser, é a peculiar forma para a conquista da afinidade, para chegar à unificação. É este
de energia segundo a qual ele se agita, são as características da um processo de amor, a grande mola da ascese mística, como é
onda, pelas quais se define essa vibração. a coluna central do edifício da evolução. No mundo espiritual,
Em tal forma de vida estão situados e se manifestam não só os seres que entoam a mesma nota e emitem a mesma luz tor-
o espírito desencarnado (tão mais definidamente quanto mais, nam-se a mesma música e o mesmo esplendor; os seres que se
por evolução, estiver liberto de seus invólucros mais densos) movem segundo o mesmo tipo dinâmico fundem o seu movi-
mas também aquela parte do homem que é pura consciência ou mento, unificam-se, isto é, são a mesma consciência.
espírito (tão mais claramente quanto mais conseguir superar a
zona barôntica das mais baixas paixões e atingir os mais altos VIII. COROLÁRIOS - FÉ E RAZÃO
planos de evolução, ainda que seja em especiais estados meta-
fânicos). Então, o eu existe aí somente na forma deste dina- Estas simples afirmações nos oferecem a chave do fenôme-
mismo, superando as dimensões espaço e tempo. no da ascese mística e dos respectivos corolários espirituais.
Já explicamos, na “Técnica das Noúres” 9, como pode ocor- Vibração, ressonância, sintonização, afinidade, unificação são
rer a comunicação entre puros centros psíquicos (naquele caso, as suas fases lógicas e evidentes. Mais no alto, teremos, como
corrente de pensamento e consciência do médium). Isto se dá já disse na “Técnica das Noúres”, equivalências superiores da
graças ao fenômeno da ressonância, que é lei universal de re- vibração, embora seja idêntico o princípio. Quando se pensa
percussões até no campo acústico. Já vimos que esse fenômeno que, na ascese mística, o segundo termo é verdadeiramente a
é a base da transmissão e recepção noúrica e que, para ele se Divindade, pode imaginar-se desde já que vertigem da exalta-
verificar, os dois termos – transmissor e receptor – devem en- ção de consciência pode aquela ascese representar para a perso-
trar em sintonia, isto é, harmonizar-se segundo o mesmo ritmo nalidade humana que a empreende. Segue-se imediatamente daí
vibratório. Vimos ainda que é necessária uma comunhão de vi- que a ascese está nas vias do aperfeiçoamento espiritual, se-
bração. Se esta for semelhante, poderá coincidir e sobrepor-se; gundo o modo mais elevado, e que os vórtices das conquistas
se for dissemelhante, não haverá ressonância e, portanto, nenhu- morais lhe são a meta natural e necessária.
Os místicos falam sempre de Deus e de amor, de união, de
9
No volume As Noúres, Cap. V (N. do T.). núpcias espirituais da alma com Deus. Cumpre-nos chegar, ra-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 9
cionalmente, à explicação dessa nomenclatura e psicologia que cionalismo científico, em contínuo, estridente e inconciliável
eles não explicam. Aí vemos funcionar todo o mecanismo vi- contraste. E, todavia, o primeiro é o sistema dos místicos, dos
bratório do pensamento, dos sentimentos, das paixões. gênios do Evangelho, das grandes criações de espírito, é o mé-
Através de sinais positivos e negativos, vemos formarem-se todo que se baseia no aperfeiçoamento do órgão central da con-
simpatias e antipatias, harmonias e dissonâncias, atrações e re- cepção, a consciência, fato fundamental, de que a ciência se
pulsões. Aí estão as grandes forças do amor e do ódio, que se afasta. Se não rompermos, por evolução, o círculo em que se
encontram nas bases da vida. fechou a razão, esta jamais sairá dele e dentro dele, impedida de
Mas a ascese é fenômeno de evolução e, portanto, de har- evadir-se, retornará sempre sobre si mesma. E é impossível
monização e unificação; é sobretudo amor. Na ascese mística rompê-lo por evolução, a não ser mediante a introdução na
estabelece-se esta corrente de atração entre o alto e o baixo e consciência de fatores novos, capazes de lhe dilatarem a poten-
entre o baixo e o alto e, com isso, revela-se, em termos de ra- cialidade. Fé é como se designa o ato psicológico com que se
zão, o maior mistério, que é a descida do amor de Deus até ao introduzem esses fatores novos.
homem. Veremos que maravilhoso jogo de luzes espirituais Para que serve permanecer no campo da positividade e da
nascerá desses fenômenos. O princípio de sintonização e de segurança, se este é tão limitado e não oferece possibilidade de
afinidade impõe o processo de purificação, a necessidade de expansão? A verdade universal já está totalmente pronta e pre-
fazer o vácuo em baixo, no mundo da matéria, que se relega ao sente, escancarada diante de nossos olhos. Criá-la não é o que
passado, a fim de que em nível mais alto haja espaço por ceder nos compete fazer, mas sim desenvolver a vista para vê-la. Re-
à vida. Nasce então a luta interior da renúncia, a fadiga da vir- toma-se, pois, todo o problema mediante uma transformação de
tude, a dor que dilacera os vínculos do espírito, o superamento consciência. Esta chegará somente até aquela zona em que será
das paixões, a destruição do eu humano e a ressurreição em capaz de existir. Aí encontra uma barreira pacífica, mas invio-
Deus do eu super-humano. lável, que detém os imaturos, os indignos. A Lei põe-lhes um
O princípio vibratório em que se baseia o fenômeno nos in- véu diante dos olhos, e sua violência permanece impotente; a
duz a compreender as vias da liberação, a compreender porque verdade permanece fora do campo de sua consciência.
se devem guiar as paixões, e não destruí-las, e porque se torna “Cumpre-me saber subir qualitativamente”, cada qual deve
necessário alcançar-lhes o domínio, e não esterilizar-se na sua dizê-lo, porque o conhecimento é um estado vibratório de sin-
simples destruição. É necessário reconstruir a vibração que se tonização que se alcança harmonizando-se pelas vias da bonda-
detém, reconstruí-la em um movimento mais intenso, para que de, da ascensão espiritual. Ora, aquele que, em vez de seguir es-
seja vida, e não morte. É necessário transformar, reedificar, re- tas vias, colocando-se em estado positivo de confiança, que es-
nascer continuamente, afirmar vigorosamente e, direi mais, go- tabelece ressonância, põe-se no estado vibratório negativo de
zar, viver, amar no alto, e não apenas sofrer e morrer em baixo. dúvida e de desconfiança, que se afasta na dissonância, a si
O meu misticismo é alegre, construtivo, dinâmico. É absurdo mesmo fechará automaticamente as portas do conhecimento.
certo misticismo conventual, feito só de árida renúncia, que ne- Apliquemos sempre os mesmos conceitos: vibração, resso-
ga, mata, destrói e nada mais deixa além do vazio. É absurda nância, sintonização, afinidade, unificação. Por essas vias, o
certa contemplação que, às vezes, encontramos no Oriente, a espírito consegue fundir-se tranquilamente na verdade. Ora,
qual insula o homem no seu egoísmo de espírito e o segrega do pode compreender-se que o problema do conhecimento, na sua
mundo, sem torná-lo ativo agente do bem na vida de todos. essência e integridade, consiste num problema de unificação
Compreendemos, assim, o mecanismo da renúncia e da con- entre o eu humano e a Divindade, representa um problema de
quista. Cada um se torna escravo daquilo que ama, e, quando se ascese mística, de revelação, porque, em nossa consciência,
trata de coisas materiais, o coração se liga ao caduco e ao ilusó- aquela Divindade é limitada somente por nossa capacidade de
rio, condena-se a novos dilaceramentos, até compreender e, as- conceber e se entrega à nossa alma em relação à sua potência de
sim, dirigir-se a metas mais seguras. É o princípio vibratório, pe- harmonização. Mas, quando é atingida a sintonização e comple-
lo qual se estabelece uma corrente de atrações entre os dois ter- tada a unificação, a verdade então se torna um cântico divino,
mos, o eu e o objeto de seu amor, que nos explica a gênese da uma harmonia suprema, um incêndio de amor em que a alma já
ligação. São potências sutis e, todavia, reais, que depois se faz não se sente a si mesma como coisa distinta.
preciso demolir. Real também é a dor. O homem é vinculado, Esta concepção vibratória nos revela mecanicamente que no
arrastado de todos os lados, tormentosamente, por esses liames amor de Cristo reside a grande via das ascensões humanas. O
imponderáveis criados por ele mesmo. Também aqui se nos de- Evangelho é o método da harmonização universal; nele, como
param os mesmos termos do fenômeno: vibração, sintonização, em nenhuma outra parte, transparece a Divindade, na sublime
afinidade, unificação. E o nosso coração experimentará a sorte poesia do Seu amor. Trata-se precisamente de transparência, e
do objeto de sua unificação. A comunhão de vibrações nos torna esta se conquista na ascese mística.
semelhantes ao que amamos: põe-se no Alto o objeto, e a alma o Se nos pusermos em posição de resistência, em estado vi-
serve. Eis a razão mecânica pela qual se faz preciso desprender- bratório fechado, como se nos recusássemos a subir, então nós
se da terra, que nos faz compreender como os sentimentos, as mesmos nos deteremos e nos privaremos da recepção amplifi-
paixões, as atrações geram fusões que podem, segundo a nature- cadora que desce das correntes vivificantes difusas no todo. A
za do objeto, tornar-se vínculos de alegria e de dor. razão é um círculo de forças fechadas, é um egoísmo conceptu-
Compreendemos, assim, o fenômeno e o significado da fé. al que a si mesmo não sabe ultrapassar, não se dá por simpatia e
Concebo a consciência como unidade radiante, o eu evolvido não conhece as vias vibratórias da atração, que levam à fusão
como noúre, que tende perenemente à difusão, à dilatação de si com o não-eu e, portanto, à sua dilatação até ele. Necessário se
mesma e é centro de emanações contínuas. Como, pois, se rom- faz subjugar este equilíbrio e reconstruí-lo em mais alta e com-
pe o círculo fechado da razão e se penetra no céu da intuição e pleta forma, embora seja mais instável e, não obstante, mais di-
da visão? Como se conquista, com os limitados meios de uma nâmica. E a fé é o primeiro salto para frente.
dimensão conceptual inferior, o domínio da dimensão superior? No duvidoso tormento, tenho interrogado o mais profundo
Com a fé. A técnica vibratória nos dá a chave do mistério. de mim mesmo, dizendo-me: “Como posso eu confiar-me a um
A razão é objetiva. Quer, antes de crer, assegurar-se e, só imponderável que em mim ainda não existe e ao qual devo eu
debaixo de seu controle, confiar. Mas o método da prudência e mesmo criar?”. E o profundo me tem respondido: “Crê, porque
da segurança não é o método do voo. E aqui ressurge o inces- só a tua fé, base de impulsos ascensionais, tornará objetivas e
sante antagonismo entre minha forma de pensamento e a do ra- tangíveis aquelas realidades mais altas que hoje te escapam”.
10 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
10
Não se trata de fé louca, do “credo quia absurdum” , deses- gressiva para a unificação. Procuro, assim, guiar gradativamente
perada capitulação da razão, que, sem embaraço, pretende ser o leitor à compreensão racional, depois à sensação deste supre-
sempre a única a falar, até fora de seu campo. Que esta se extin- mo vórtice de ascensões a que está presa minha alma. Nesta
ga para sempre, dobre-se em suas expressões caricatas e perma- concepção, atinjo o conhecimento por sintonia com correntes
neça fechada em seu âmbito, como rainha, mas sem pretender noúricas, operando com o método da intuição.
outros reinos. A fé não é uma renúncia às faculdades de pensar, Observemos o diagrama anexo e expliquemo-lhe o significa-
como pode parecer a quem seja incapaz de atingir esse nível; ela do e o desenvolvimento, imaginando construí-lo qual efetiva-
é antes um estado de graça que vê e conhece por outras vias e mente ele surgiu em minha mente (Fig. 1).
conserva em si a sua alegria infinita; é uma doação em que nada O diagrama exprime, por coordenadas ortogonais, a lei de
se perde, porque àquele amor e àquela confiança responde o variação da evolução em função do tempo. Mais exatamente,
universo, retribuindo com novas doações; não é cegueira senão temos gradações de evolução sobre o eixo vertical das ordenadas
para os cegos, porque naquela cegueira se abre a visão e se reve- e gradações de tempo sobre o eixo horizontal das abscissas. Por
lam os céus, e aparece fulgurante o pensamento de Deus. tempo, entendo não a dimensão temporal, que, nas superiores
A fé é, pois, ato criativo por excelência, que acompanha a zonas de evolução, é superada, mas o ritmo do transformismo
realidade em formação e que, voluntariamente, pode e sabe an- fenomênico, que é fato universal e subsiste por toda parte, qual
tecipar os futuros estados da evolução. Dentro de nós, em nossa passo assinalador do caminho do eterno vir-a-ser. Especificare-
profundeza, já reside o germe dos infinitos desenvolvimentos mos mais adiante quais são os graus de evolução.
do divino. Faz-se mister alimentá-lo em nosso íntimo, e nossa Dai resulta um „V‟ de progressiva abertura, cujos ramos são
deve ser a primeira impulsão. Há no eu a potência de levantar tangentes aos círculos sobrepostos. Supondo a coordenada verti-
esses eixos dinâmicos, de ampliá-los como turbilhões de forças, cal, indicadora da evolução, repetida mais à direita e elevada ao
atraindo e assimilando infinitas correntes universais. Com a fé, longo dos centros dos círculos, teremos um diagrama simétrico,
podemos crer antes de sentir, afirmar antes de conhecer, querer isto é, um diagrama cuja metade direita se repete na metade es-
antes de ser. Absurdo, dirão. Assim é, no entanto, que sentimos, querda, nos lados da referida linha, aparecendo na forma muito
conhecemos e existimos; com antecipação, voamos onde outros mais expressiva de um „V‟ que se abre para o alto.
caminham. Daí emerge uma criação, impossível de outra forma. A série dos círculos e tangentes que se repetem lateralmente
Dessarte, com antecipação, forma-se o estado vibratório e exci- exprime a repetição do fenômeno no seu andamento em indivi-
ta-se-lhe a ressonância que, amplificando-se em contínua vibra- duações idênticas e contemporâneas, isto é, expressas no mesmo
ção, nos transportará àquele modo e àquele plano de vida, aon- âmbito de desenvolvimento. Esta repetição do diagrama em ca-
de queremos subir, e nele nos transformará. sos colaterais é necessária para estabelecer as relações entre as
Assim como o Sol é uma torrente de luz e força que se irra- várias individuações do fenômeno.
dia por toda parte, mas que só se utiliza e valoriza quando inci- A progressão ascendente dos círculos não passa de um dia-
de sobre um germe receptivo, assim também Deus é torrente de grama inserto no precedente, segundo os mesmos eixos de de-
pensamento e de energias que frutifica somente quando vem re- senvolvimento e cujas mesmas coordenadas poderiam repetir-
colhido pela ressonância de uma alma preparada. A fonte é um se, partindo do centro de cada uma das sucessivas circunferên-
todo, e dela fluem não só conhecimento, mas bondade, ação, cias. Obtemos, assim, a expressão do desenvolvimento interno
poder. Contudo é o eu que, mediante um ato de fé, deve abrir os do fenômeno, qual é compreendido na abertura coniforme das
braços, escancarar as vias da absorção conceptual e dinâmica duas tangentes divergentes, e a expressão da causa determinan-
em todas as suas modulações, executar o trabalho de projetar-se te desta abertura, à proporção que se ascende para as mais altas
para aprender, cingir e assimilar. Fecundado assim pela divina zonas da evolução. Compreender-se-á este diagrama interno,
ressonância, nutrido dessas respostas, o estado vibratório esta- observando-se que ele nada mais exprime que o progressivo
bilizar-se-á e formará a aptidão, a qualidade, o modo espiritual abrir-se de uma espiral, cujo centro, por comodidade de obser-
de ser, que depois se fixará com a repetição, se tornará hábito, vação e de evidência de expressão, se desloca progressivamente
instinto, necessidade. Assim, o influxo divino representa uma para o alto ao longo do mesmo eixo, e recordando que este dia-
potência eternamente ativa na obra da criação. grama mais não é que o desenvolvimento da trajetória típica
dos motos fenomênicos (Fig. 2)11, aplicado e repetido neste ca-
IX. DIAGRAMA DA ASCENSÃO ESPIRITUAL so particular, com o supracitado deslocamento de centros. É
evidente, com efeito, que também este particular fenômeno da
Para penetrar mais profundamente no problema da ascese evolução de consciência ou ascese espiritual, que aqui estamos
mística, retomemos os conceitos já expostos, fixando-os, tanto estudando, deva manifestar em sua linha espiritual a mesma tra-
quanto possível, em um diagrama. Dessarte, poremos em evi- jetória típica tomada como expressão abstrata e universal do
dência, graficamente, o fenômeno em suas linhas mais expressi- andamento de todo fenômeno. Assim, o diagrama da figura 1
vas e obteremos sua definição em forma mais sintética e intuiti- indica a mesma progressiva cobertura de zonas (tracejadas),
va – uma estrutura gráfica que nos dará a sua técnica funcional. como no diagrama da figura 2 (porém, nesta, em forma concên-
Temos colocado o fenômeno da ascese mística no seio do fenô- trica), cobertura que indica, tanto num como noutro desenho, as
meno da evolução, como sua parte integrante e central. zonas sucessivas de expansão do fenômeno.
Assim, a ascese mística se projeta sobre o fundo grandioso Esta a explicação analítica que, no entanto, em sua originá-
do maior fenômeno do universo. Temos visto como o princípio ria fase intuitiva, foi em mim instantânea. Vejamos agora o sig-
vibratório, individuando o espírito, permite a sintonização por nificado destes sinais. Temos, pois, três diagramas fundidos
ressonância e como, pela estabilidade desta em um estado de conjuntamente: o primeiro é dado pelas duas linhas divergentes
afinidade, guia o ser ao último termo da ascensão – a unificação em forma de „V‟ que se abre para o alto; o segundo é dado pela
com Deus. Portanto, no seio da evolução, chegada à sua superi- abertura da espiral com cobertura de sucessivas zonas, o que
or fase espiritual, a ascese mística é o fenômeno em marcha pro- exprime a expansão do fenômeno (seu aspecto dinâmico), per-
mitindo a um tempo fechar-lhe e isolar-lhe as várias fases (as-
10
“Creio porque é absurdo”. Frase de origem desconhecida, diz Paulo pecto estático); o terceiro é dado pela repetição lateral dos dois
Rónai. Possivelmente adaptação de palavras de Tertuliano. Impropria-
11
mente atribuída a Santo Agostinho, essa expressão define a fé em oposi- Confronte A Grande Síntese, Cap. XXVI – A trajetória típica dos
ção à razão, conforme conceito generalizado na Idade Média (N. do T.). motos fenomênicos, e a fig. no 1 de As Noúres (N. do A.).
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 11
diagramas precedentes, o que permite estabelecer as relações
entre os vários casos e transforma o simples fenômeno indivi-
dual em fenômeno coletivo. Tríplice é, pois, o significado do
diagrama: primeiramente, exprime ascensão do ser ao longo
dos vários planos de evolução; em seguida, traduz a correspon-
dente dilatação (espiritual) de consciência (zonas tracejadas);
por fim, significa progressiva superposição de individuações e
fusão de consciência em forma de existência coletiva. Assim, a
música das ascensões dilata progressivamente as suas ressonân-
cias, estende-as na complexa sinfonia das harmonizações cole-
tivas. A harmonia gráfica do diagrama mais não é que a expres-
são ótica de um ritmo musical do conceito, no qual está divi-
namente contido um desenvolvimento lógico de forças.

Figura 2

No entanto aquela demonstração se detém no vértice da fa-


se espírito e da dimensão consciência, precisamente porque,
ultrapassando este ponto, saímos de nosso universo e da fase
humana, qual é correntemente concebida. Mas não podemos
deter-nos aí. E exatamente onde acaba aquela demonstração
começa este estudo. Através dos estados místicos que tenho
percorrido e vivido, sinto haver podido emergir do nível hu-
mano, normalmente concebível, avançando maravilhosamente,
como nova forma de consciência, nas primeiras zonas da pri-
meira fase „x‟ do universo trifásico evolutivamente superior
(+x, +y, +z, Fig. 2). Neste estudo, que poderia ser definido
2
também como uma incursão no inconcebível, desço de novo da
dimensão superconceptual do êxtase e da visão à dimensão ra-
cional corrente, para expor analiticamente a lei e o conteúdo
do fenômeno. Espero com isso fazer-me compreendido. Com-
pletaremos assim a análise do fenômeno místico, o qual per-
manece desse modo perfeitamente enquadrado e orientado na
fenomenologia universal, como uma forma de superconsciên-
cia evolutivamente situada nas primeiras zonas do superconce-
bível. Só agora poderíamos dar mais exatamente esta defini-
Figura 1
ção, que não era possível em princípio (Cap. III).
Deixemos, por assim dizer, no subsolo da evolução as fases
X. PRIMEIRO ASPECTO – PLANOS DE CONSCIÊNCIA , , , já atravessadas e superadas, e iniciemos o diagrama
(Fig. 1)13 por uma linha horizontal que tomaremos graficamente
Desenvolvamos agora o íntimo significado do diagrama, como ponto de partida de nosso exame de detalhe da primeira
principiando por seu primeiro aspecto. Podemos explicar aqui o zona do superconcebível. Aqui, a evolução orgânica da espécie
que entendemos por gradações de evolução, quais são assinala- é superada e o homem sobrevive apenas como psiquismo. A
das ao longo do eixo vertical das ordenadas. Já estabelecemos unidade individual emergente e, a um tempo, remanescente de
alhures12 a constituição trifásica do universo abrangido pelo cog- todo o anterior processo evolutivo é a consciência. Deste ponto
noscível humano, isto é, constituído de três planos de existência: para cima, não podemos operar senão sobre unidades imateri-
matéria (), energia () e espírito () (fig. 2), situados nas relati- ais. A presença inegável do fenômeno psíquico e sua derivação
vas dimensões de espaço, tempo e consciência. E demonstramos das zonas orgânicas mostram à evidencia que a evolução tende
que essa trindade una, tridimensória e trifásica, além de ser a para a desmaterialização, razão pela qual não poderemos avan-
forma típica dos infinitos universos fenomênicos, que se trans- çar senão no imponderável.
formam uns nos outros, é também o eixo interno de evolução do Adiante, insularemos, no segundo aspecto do diagrama, o
nosso. No seio do fenômeno da evolução, o ser está, pois, conti- estudo do desenvolvimento de uma simples consciência. Ob-
nuamente em marcha, da fase matéria para a fase energia, e desta servemos agora, ao contrário, no prosseguimento da evolução
para a fase espírito. Ao que já expliquei, dispenso-me de retornar.
13
O diagrama fig. 1 não passa de um estudo de detalhe da zona +x do
12
Cfr. A Grande Síntese, Cap. VII, VIII e IX. (N. do T.) diagrama fig. 2. (N. do A.)
12 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
físico-dínamo-psíquica, estas primeiras zonas da dimensão converte em comunhão, a simples ressonância se torna fusão e
superconsciência. Nestas zonas irromperá, assim, distinto e unificação por identificação de estrutura vibratória, que naquele
insulado em seu próprio plano, o fenômeno, no seio da evolu- plano de existência é a forma distintiva do ser. Como no plano
ção e de suas fases. Tomada como ponto de partida a fase precedente se havia despertado, pela visão conceptual, uma res-
neutra de transição +x1, que cobre a horizontal de base, in- sonância na consciência, que nesta ressonância se tinha dilatado
gressemos na primeira zona ou plano de consciência, +x 2. Te- (como está graficamente expresso no diagrama), assim, neste
remos assim uma sucessão de planos, +x 2, +x3, +x4, +x5 etc., plano, desperta-se o êxtase místico, em que canta uma voz no-
ao longo dos quais ascende a consciência. Mais exatamente va, na qual vibra o amor, que é uma dilatação de consciência
teremos a seguinte progressão: tão vasta, que, como descreverei, o ser sente-se humanamente
+x2 = plano de consciência sensória. perdido, mas divinamente ressurrecto. Não são hipóteses ou
+x3 = plano de consciência racional-analítica. fantásticas lucubrações estas; são estupefacientes realidades,
+x4 = plano de consciência intuitivo-sintética. nas quais esteve presa minha alma, como em um turbilhão, e
+x5 = plano de consciência místico-unitária. que, todavia, aqui demonstro dominar analiticamente, na forma
+x6 = plano inexplorado etc. mental hoje normal. E completo o trabalho de tal redução raci-
onal, para que esses altos fenômenos sejam admitidos e com-
O plano de consciência sensória assinala o plano físico da
preendidos, porque sei que pouquíssimos poderiam explicá-los
consciência, em que esta começa a despontar como síntese pu-
assim, por experiência, e também porque sei que neles estão o
ramente sensória. Fase de consciência mecânica, que ignora
futuro e o progresso do espírito humano.
qualquer interpretação positiva do universo. Psique de superfí-
O plano +x5 exprime e compreende, em seu âmbito, o fenô-
cie, que ignora toda tentativa de indagação, organismo de rea-
meno da ascese mística. Ignoro quanto se passa no plano +x6, o
ções mecânicas (cf. Cap. IV). É o primeiro nível humano do qual exorbita de minha atual experiência e, se não sobrevierem
bruto, apenas emerso da besta, ainda animal e vegetativo. novos fenômenos evolutivos, se perderá, para mim também, no
O plano de consciência racional-analítica representa uma inconcebível. Talvez isto esteja acima das possibilidades huma-
primeira tentativa de ascensão, de desmaterialização, de for- nas. E, naturalmente, infinita é a escola de ascensão no subse-
mação e de desprendimento de um psiquismo espiritual, psi- quente e, em seguida, nos sucessivos universos trifásicos.
quismo que ainda é puro meio de funcionamento orgânico. É
a fase da ciência, da observação, do relativo, da hipótese, da XI. SEGUNDO ASPECTO.
razão e da análise, mas não ainda da síntese. Começa-se a en- EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA
carar seriamente o mundo exterior, mas sempre com meios de
superfície. Na consciência, que permanece sensória como mé- Analisemos agora o segundo aspecto do diagrama, dado não
todo de indagação, acende-se uma chama interior que anseia e mais pela abertura das diagonais para o alto, fato que exprime a
pergunta, mas que ainda não sabe. É o período da pesquisa e, ascensão do ser através dos vários planos de evolução, mas pela
todavia, da ignorância ainda. abertura da espiral com a cobertura de círculos cada vez mais
O plano da consciência intuitivo-sintética é uma zona evolu- extensos, os quais exprimem zonas de dilatação de consciência
tiva já supranormal e excepcional para a média humana atual, correspondentes aos vários planos agora descritos.
que repousa na fase +x3. Aqui, a gênese de um psiquismo espi- Já fizemos a conexão deste segundo aspecto do fenômeno
ritual independente é completa, e a desmaterialização realizada com o primeiro, porque eles são ligados por correspondência,
lhe permite, em dados estados e momentos, perceber por resso- razão pela qual se estende, no âmbito de cada zona de evolução,
nância as emanações de zonas de consciência ou planos psíqui- a amplitude de uma dada fase de consciência. Do diagrama re-
cos evolutivamente mais altos. É a fase metafânica, consciente sulta, assim, graficamente, com toda evidência, esta dilatação
e inspirativa; não mais da ignorância, mas do conhecimento; expressa pelos campos tracejados, cada vez mais extensos. No
não mais da análise, mas da síntese. Chega-se a esse plano com diagrama, os espaços, as linhas e os seus movimentos e rela-
o método da intuição. Contemplam-se os fenômenos por vias ções representam diferenças, movimentos e relações de concei-
interiores, pesquisa-se e atinge-se a verdade por introspecção, tos: alto e baixo têm um sentido evolutivo, a extensão de cons-
no íntimo, onde ela realmente está. Aí, o ser já não toca apenas ciência é figurativamente espacial, a repetição rítmica de linhas
o relativo, nem está imerso na ilusão, mas toca o absoluto, pos- significa afinidade de características vibratórias individualizan-
sui a verdade. Não opera com o instrumento da lógica, da indu- tes. Dessarte, cada círculo contém todas as zonas precedentes
ção, da hipótese, mas por sintonização vibratória com zonas de conquistadas nos níveis mais baixos da evolução. Vemos assim,
consciência onde já está registrada a verdade. Já não é sensória no diagrama, não só que às zonas +x2, +x3, +x4, +x5 correspon-
a consciência. Arde a chama interior, que não só pergunta, mas dem as amplitudes de consciência dos círculos 2, 3, 4, 5 e assim
sabe. Atravessei, por experiência, essa zona 14 e dela extrai A por diante, mas também que cada círculo compreende dentro de
Grande Síntese, que é averiguação da realidade ultrassensória si todos os círculos menores. Assim, por exemplo, o círculo 5
da verdade fenomênica, por sintonização e visão interior. contém o 4, o 3, o 2 e o 1. Isso significa que cada dimensão
O plano de consciência místico-unitária é aquele em que vi- conquistada, ao tocar o correspondente plano de evolução, con-
vo atualmente minha nova experiência, do qual, aliás, eu já ti- tém todas as dimensões precedentes, cada nível compreende os
vera pressentimento. Tenho definido esses planos em relação inferiores sobre os quais se eleva e abaixa; significa também
com o conhecimento porque este é o seu índice prevalecente, que cada forma de consciência domina o âmbito de cada cons-
bem como o mais evidente e significativo. Se, até agora, temos ciência assimilada e superada. Em seus círculos maiores, o grá-
tratado de fria ascensão intelectual, que não tem outra meta e fico dá a impressão intuitiva deste acréscimo espacial de cons-
saciedade além da compreensão, vamos ver que, neste novo ciência em torno de seu núcleo, por estratificações sucessivas e
plano de consciência mística, a ascensão é integral. A sintoni- superpostas, o que corresponde à realidade, porque o acréscimo
zação com as superiores zonas de evolução não é só conceptual, é devido verdadeiramente a uma sedimentação de experiência.
mas, ao contrário, investe todas as qualidades da personalidade. Enquanto tudo isso constitui a expressão do aspecto estático
Coração, sentimentos e paixões despertam, e o ser já não as- do fenômeno, imobilizado, por comodidade de estudo, nas suas
cende só por intelecto, mas por amor. Então, a comunicação se várias fases de desenvolvimento, a linha do dinamismo do fe-
nômeno, isto é, da progressão de seu andamento, é dada pelo
14
Descrita no citado volume, As Noúres. (N. do A.) desenvolver-se da espiral que, em seu caminho, sucessivamente
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 13
abrange campos de consciência cada vez mais extensos. Aqui As criações da bondade e do amor equivalem às da sensibili-
reencontramos a mesma espiral do desenvolvimento fenomêni- dade, da razão e da intuição, e já se preparam em baixo, no
co universal (Fig. 2), embora seja, por seu deslocamento do primeiro núcleo de consciência.
centro, aparentemente diversa, conforme já notei. Neste sentido, igualmente, pode ser lido o nosso diagrama.
Por dilatação de consciência devemos entender potenciação Na horizontal de base, são traçados, equidistantes, muitos pon-
de todas as suas qualidades. Assim, em cada plano, se ajunta às tos, que representam centros de consciência. O círculo fechado,
precedentes uma qualidade nova. Eis que cada fase completa traçado em torno de cada ponto, além de indicar o âmbito da
uma criação sua, segundo esta ordem: consciência, correspondente ao plano em que está situado, pode
+x2 = consciência sensória = sensibilidade. exprimir um campo de forças ou ciclo de vibrações fechado em
+x3 = consciência racional-analítica = razão. si mesmo, isto é, que retorna, sem vias de saída, perenemente
+x4 = consciência intuitivo-sintética = síntese (verdade). sobre a própria trajetória. Esta é a fase de egoísmo, necessária
+x5 = consciência místico-unitária = amor (união com Deus). em seu plano à proteção da primeira formação do eu. Se este
campo de forças, no princípio, se acha determinado desta forma
Quanto ao que se passa mais no alto, nada sei; mas a cada por necessidades protetoras e representa sólida crosta de defesa
degrau corresponde um salto para frente, uma nova conquista contra todos os agentes de destruição, ele não permite abertura
que se soma às precedentes. Tal é a evolução, essência da vida. de circuito, nem contém possibilidades de expansão. Não per-
Amor, sentimento de que me deixarei inflamar mais adiante, é, mite contatos e comunicações, como todos os circuitos fecha-
pois, minha hodierna conquista e o conteúdo e a essência do dos, e os centros equidistantes sobre a horizontal de base se ig-
fenômeno da ascese mística que aqui estamos estudando. noram uns aos outros. Esta recorda a correspondente fase de ci-
Amor é unificação com Deus. nética atômica de ciclo fechado, o equilíbrio estável, mas imó-
No âmbito do círculo 5, que exprime precisamente a fase vel, da matéria (química inorgânica).
mística, encontramos, pois, todos os menores círculos concên- O despontar e destacar-se da espiral ao lado do círculo, diri-
tricos, isto é, a sensibilidade, que desenvolve a razão; a razão, gida para traçar a circunferência superior, representam o surgi-
que gera a intuição, a qual conduz à síntese; a intuição, que, mento de novo equilíbrio de forças instáveis, porém mais vasto:
por sintonia, se transmuda em amor, o qual leva à unificação o altruísmo. A trajetória, por impulso de maturações interiores
com o Todo. E cada qualidade compreende em si a precedente, (manifestação, exteriorização de divindade), em um dado ins-
sobre a qual se construiu. tante se desprende do circuito fechado e já não retorna sobre si
mesma; rompe-se o equilíbrio; abre-se o ciclo de forças em um
XII. TERCEIRO ASPECTO. novo equilíbrio de consciência altruísta. Sobe-se, assim, a uma
CONSCIÊNCIAS COLETIVAS nova fase, que recorda o equilíbrio instável porém móvel da
energia, correspondente à cinética atômica de ciclo aberto da
Observemos agora o terceiro aspecto do diagrama. O de- vida (química orgânica). Assim, o ritmo dos planos inferiores
senvolvimento do fenômeno espiritual já está exaustivamente repete-se mais no alto, porém mais transparente de divindade.
analisado sob todos os seus aspectos, como caso avulso. Neste É rompida a capa protetora, e o ser parece abandonar lou-
último momento, vem ele repetido (lateralmente, no gráfico) camente suas defesas e estar em poder de todos, porque toda
em outras individuações suas, com o escopo de estabelecer as força, demolidas as barreiras, pode penetrar em campo aberto.
relações entre vários casos, estudar suas recíprocas repercus- Desponta o Evangelho, que parece utopia. Mas também o cir-
sões e, finalmente, expor a sua dilatação como fenômeno cole- cuito, que antes fechava, está aberto, e nasce a possibilidade de
tivo. Segui-lo-emos aqui, em sua nova complexidade, para de- todas as expansões; e todo assalto é um contato, todo contato
duzir-lhe importantes e inesperados corolários, porquanto a as- torna-se uma absorção e uma dilatação de consciência, que as-
cese consiste nestas ressonâncias coletivas, que multiplicam e sim inicia o seu caminho de expansão para Deus.
transformam o fenômeno. O gráfico nos revelará a gênese de O diagrama é a expressão desta expansão, cujas conse-
superposições e fusões de consciências, de que nascerão novas quências de caráter coletivo ele indica. Pois que, também gra-
formas de existência coletiva. ficamente, os pequenos círculos distanciados na base, em seu
A dilatação de consciência proveniente da ascese espiritual insulamento egoístico, se avizinham em sua expansão, subin-
não é só conquista de conhecimento, mas também expansão ca- do até se tocarem, iniciando uma progressão de superposi-
da vez mais integral do ser em todas as suas qualidades, desper- ções, que se torna cada vez mais intensa. Antes de estudar-lhe
tadas e potenciadas sucessivamente, fora do germe (forma uni- o significado, observemos como este processo de superposi-
versal da expansão fenomênica, ou criação, ou manifestação do ção se manifesta no desenvolvimento gráfico. Demonstra o
divino), que esperava potencialmente no núcleo da fase prece- diagrama, com unidades espaciais, que a zona de superposição
dente. O ser, assim, muda de consciência, dimensão conceptual, dos círculos, que exprimem os campos de consciência nos vá-
modo de perceber e sentir, muda sua própria natureza, e mudam rios planos, está em progressivo aumento e que a zona de não-
igualmente as leis de vida, deslocando-se ao longo dos diversos coincidência dos referidos campos é inversamente progressi-
planos de existência. O superamento contínuo da evolução o va, e isso mediante relações que exprimem uma lei de apro-
transforma e purifica, deixando em baixo as escórias. Pode as- ximação infinitesimal constante. Observemos esta lei de pro-
sim acontecer o que verificamos alhures, isto é, que, na fase de gressiva coincidência e suas consequências.
transição, qual é a atual fase humana, no período de novas for- Enquanto, no plano 2, se acham ainda distantes as duas
mações, duas leis, de duas altitudes diversas, disputem o cam- circunferências, no plano 3 elas são tangentes e, no plano 4,
po: a lei biológica da luta pela vida e o amor evangélico. superpõem-se por 1/2 diâmetro (tomado o diâmetro como uni-
Hoje, que o homem médio está situado na fase +x 2, de dade de coincidência). Temos ainda 1/2 diâmetro de não-
consciência sensória, e na fase +x3, de consciência racional, coincidência (v. linha a=1/2). No plano 5, a zona de não-
encontrando-se exatamente absorto no labor das primeiras cri- coincidência é reduzida a 1/4 do diâmetro (v. linha b=1/4), e
ações do pensamento, vê agigantada, ante os próprios olhos, a proporcionalmente aumentada é a zona de superposição. No
importância destas e é levado a considerá-las a precípua e tal- plano 6, a zona de não-coincidência é reduzida a 1/8 do diâme-
vez única criação do espírito. Ele ainda não sabe conceber as tro (v. linha c=1/8); e assim sucessivamente. Isso basta para
manifestações que aparecerão no plano intuitivo e no plano traçar a progressão 1/2, 1/4, 1/8 de não-coincidência, que expri-
místico. Mas o espírito é um exército de qualidades em marcha. me a correspondente relação de superposição.
14 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
A mecânica do gráfico nos permite, pois, calcular a lei de vel, é ainda a personalidade humana. É lógico que a expansão
atenuação do separatismo ou distanciamento entre unidades de desse núcleo em formas imateriais conduz à interpenetração e,
consciência e a correspondente lei de fusão de individuações. portanto, à comunhão de personalidades. Conceitos, para nós,
Mostra-nos também, com a expressão tangível das suas pro- apocalípticos, bem o sei, mas esta é a realidade. Lá em cima, no
gressivas superposições espaciais, que a tendência da lei é a Alto, a consciência já não aparece com as características unitá-
unificação, isto é, identificação por coincidência, tendência ex- rias e distintivas de nosso plano, mas torna-se um fato coletivo.
pressa por uma relação constante de aproximação. Mudando-se Não se pode negar que isso desoriente todas as nossas concep-
as distâncias de base entre os centros, mudar-se-ão as relações, ções; nem por isso, contudo, se torna menos verdadeiro. Nada
mas a lei e a tendência permanecem. De um diagrama necessa- pode alterar-se ante a simples obstinação com que, em nossa in-
riamente bidimensional não podemos exigir mais como repre- compreensão, negamos. Encontraremos noúres, sempre noúres,
sentação de uma realidade pluridimensional e abstrata. correntes não só de pensamento, mas de atração, de simpatia, de
Que significa isso? A expansão leva, pois, a uma interpene- amor, através das quais os espíritos se ligam em forma de exis-
tração de campos de forças; o desenvolvimento da ascese espi- tência coletiva. Pode verificar-se um início do fenômeno tam-
ritual assume aqui um mais vasto aspecto coletivo de harmoni- bém em nosso plano, no caso da consciência coletiva, em que se
zação de consciência. A evolução, portanto, leva a uma fusão tem exatamente um principio de existência psíquica por corren-
mais estreita, sem jamais, porém, tornar-se identidade, porque a tes. Isso também poderia ser expresso em nosso diagrama, en-
zona de não-coincidência (1/2, 1/4, 1/8, 1/16, 1/32, 1/64 etc.) é tal que quanto há também em tal fenômeno uma dilatação e interpene-
jamais se anula. Embora permaneça espacialmente idêntica, tração de consciência individual na compreensão sempre menos
porque são paralelas ao infinito as diagonais de ascensão, aque- egoística do bem de todos.
la zona se adelgaça com a aproximação constante (permitindo o
fenômeno inverso da progressiva superposição), pois, em todo XIII. EGO SUM QUI SUM15
plano, muda a relação com os diâmetros, que redobram conti-
nuamente. Assim, enquanto sempre aumenta a zona de identi- Nosso diagrama já nos ofereceu, em seus aspectos maiores e
dade, a zona de distanciamento está em contínua diminuição, menores e em seus corolários, matéria para muitos ensinamen-
precisamente porque o progressivo aumento da relação entre os tos e conceitos. Afastemo-nos agora das minúcias e observemo-
diâmetros de extensão das consciências tende para a anulação lo em seu conjunto, qual uma sinfonia única. Distanciemo-nos
da distância, embora jamais atinja isto absolutamente. Seja qual da representação gráfica e ascendamos em abstração, avizi-
for a extensão que se atribua às distâncias de deslocamento na nhando-nos assim da realidade.
base do diagrama, já o disse, esta lei permanece constante. Até aonde vai esse ilimitado caminho evolutivo?
Cada plano tende, assim, quanto mais alto, a ser tanto me- Ocorre sob nossos olhos o fenômeno da transformação de
nos uma série de consciências distintas e tanto mais uma zona consciência, que, intensificando-se, parece evanescer em nossa
unitária de consciências harmonizadas e fundidas na mesma na- percepção. E, todavia, repete-se em planos imateriais o mesmo
fenômeno da evolução orgânica darwiniana, regido pelo mesmo
tureza. Outrossim, no diagrama, a vizinhança entre os centros é
princípio. Há em todo o processo um ritmo grandioso e implacá-
de fato progressiva em relação aos diâmetros. A superposição
vel, pelo qual o universo avança para zonas em que se desmateri-
dos campos de forças atenua sempre a distinção e opera a assi-
aliza e parece perder-se no inconcebível. Nossa vista, conquanto
milação entre os vários tipos de consciência, que tendem a tor-
aguda, não pode hoje ultrapassar uma dada ordem de planos. E
nar-se um modo único de ser. Assim, abre-se sempre mais a
depois? Depois há uma só direção, e esta direção é Deus.
comunicação interior, escancaram-se as vias da ressonância. No
Do grande caminho mais não vemos do que um pequeno
nível espírito, já o dissemos, a individuação já não tem a força
trecho que parte da matéria; nem lhe conhecemos os anteceden-
corpórea espacial do plano físico, sendo definida pelo tipo de
tes evolutivos. Ele termina nestas superiores fases espirituais
vibração, por um próprio timbre de emanação. Então a zona
que estou descrevendo, além das quais lavra tal incêndio, que
sintoniza-se segundo uma única nota e é toda, como cada cons-
nosso eu não pode resistir. Este incêndio é Deus.
ciência componente, a mesma e única nota. A comunicação Já foi muito o ter descoberto a evolução biológica; já é mui-
torna-se comunhão, e a comunhão, unidade. to o tê-la aqui continuado em suas superiores fases psíquicas.
Vejo então animarem-se as consecutivas circunferências do Mas, depois, além, ainda mais além, permanece o mistério. E,
diagrama, revelando-se na sua real essência de espíritos frater- contudo, o homem evolve. A mesma lei que, mais no alto, nos
nos, harmonizados na mesma nota de amor. E cada plano de embarga a visão, para esse alto nos arrebata, perseguindo pro-
evolução é uma esfera celeste que modula uma diversa e cada gressivamente o mistério. A consciência dilata-se em todas as
vez mais intensa e pura nota de amor. Vejo um fantástico turbi- suas qualidades, e a luz divina pode descer em sua cada vez
lhão de luzes ao redor de um enceguecente esplendor, centro de maior transparência de espírito.
sapiência e de amor, que é Deus. Vimos que a evolução consiste num processo de harmoni-
Esta unificação por estados vibratórios, esta sempre mais ín- zação vibratória e que, quanto mais se ascende, tanto mais se
tima interpenetração de consciências, este ritmo de aproximação manifesta em forma de ressonâncias musicais. A evolução de
colateral, resultante de todo o movimento do diagrama, nos di- um a outro plano de consciência pode assim nos dar a revelação
zem que, à proporção que galgamos os planos espirituais de evo- das mais inimagináveis realidades. Em cada nível, os seres res-
lução, não podemos encontrar, e aqui explicamos como efetiva- pondem cada vez mais, por clareza e por força, à nota divina
mente não encontramos, individuações pessoais de consciência que, qual uma luz, chove do alto e penetra as várias zonas, mais
no sentido humano, tipos de eu separado, à nossa semelhança, ou menos, segundo sua densidade. Tudo é, pois, uma projeção,
nas zonas de consciências ligadas na mesma sintonia. Isso expli- mais ou menos densa de sombras, do pensamento de Deus. As
ca racionalmente a dificuldade de identificação espiritual no ca- vias da ascensão espiritual, que estamos estudando e das quais
so de elevadas entidades, que jamais se definem em sentido hu- o fenômeno místico é, para nós, um momento tão grande, são
mano, e o fato por mim averiguado de que, ascendendo evoluti- as vias que convergem para o centro, guiando para Deus, últi-
vamente, não tenho encontrado centros individuais de pensa- mo termo de todas as ressonâncias.
mento, mas noúres, isto é, correntes de pensamento. E é lógico,
ademais, que a evolução, sendo um renovamento tão substanci- 15
“Eu sou Quem Sou”. Palavras do Senhor a Moisés, na tradução lati-
al, conduza quase à vaporização daquela distinção, que é a nota na da Bíblia (Êxodo, 3:14). Em hebraico, significa “Eu sou aquele que
necessária e fundamental desse núcleo denso que, em nosso ní- é”, no sentido de transcendência divina – O Ser Supremo (N. do T.).
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 15
Deus é, pois, a meta para a qual se dirige a evolução uni- A grande força que impele a evolução é amor. Ela é a radia-
versal em marcha. Esta é uma ascensão orgânica de todos os ção que desce do Alto e atrai para si. Ela reconstrói, reúne, re-
seres. À proporção que sobem, eles se coordenam, harmoni- armoniza, reconduz à unidade. A luta entre o bem e o mal é a
zam progressivamente suas dissonâncias, eliminam seus anta- luta entre estas impulsões reconstrutoras, que afirmam, e as im-
gonismos e reaproximam suas cisões. A ascensão é um ample- pulsões negativas, destruidoras e dispersivas da involução. Es-
xo cada vez mais estreito que consolida as conquistas e unifica força-se, mas conquista-se. O egoísta que acredita vencer, fa-
a expansão. De baixo para cima, a evolução é um processo de zendo-se centro de tudo e de tudo senhoreando-se, a fim de
progressiva unificação, e o último termo desta unificação é acumular para si, ao contrário a si mesmo fecha as portas da vi-
Deus. Deus é o ponto para o qual tendem todos os seres. Para da, porque se insula do grande movimento de unificação, se-
Ele tudo converge e n'Ele tudo se unifica. gregando-se de suas fontes e esterilizando-se. Ele inverte as vi-
“Ego sum qui sum”. Deus não pode ser definido. Definir as da expansão do eu, acorrenta-se às coisas perecíveis e fecha-
significa limitar, e aqui se fala do ilimitável. Toda definição será se à expansão no coração do semelhante e das criaturas. Para
uma redução, uma mutilação. Não pode ser definido, porque não nutrir-se somente a si mesmo em detrimento dos outros, subtrai
se pode projetar no finito o infinito, no relativo o absoluto, não de si toda nutrição. Assim é vencido, e não vencedor. Disso nos
se pode representar no ilusório da forma a realidade da substân- tem advertido a suprema sabedoria do Evangelho. O egoísta vi-
cia, sem ocultá-la. Não se podem conjugar os conceitos de Deus ve a expensas do todo. Quem ama vive em contínua comunica-
e de pessoa, de vez que este é circunscrição de individualidade e ção com o todo, inexaurível manancial de riquezas. Quem dá
o infinito não pode ser circunscrito. Não se pode chegar a Deus parece perder, mas com esse ato identifica o bem próprio com o
por argumentações, porque Ele está acima de todo raciocínio. de seu semelhante e, multiplicando-se no semelhante, nele re-
Deus não se demonstra: sente-se. Não se pode chegar a Deus vive. Assim, o altruísmo dilata a consciência e, se perde utilita-
mediante pura multiplicação de atributos humanos. Para superar riamente, perde unicamente segundo a mais limitada psicologia
o conceito de direção a que devemos limitar-nos, seria necessá- racional, mas, em compensação, ganha muito espiritualmente.
rio um salto no inconcebível. Quem, com efeito, se avizinha O ato de egoísmo, ao contrário, constitui uma contração e leva
verdadeiramente de Deus experimenta uma sensação de imenso à asfixia; a sensação de expansão e aumento que decorre do ato
esmorecimento. Só então se olha verdadeiramente para o Alto. de altruísmo explica a alegria de dar, de outro modo absurda.
Subindo de plano para plano, a fusão dos espíritos se faz cada Assim se explica, e somente assim, como para o espírito o dar-
vez mais íntima e completa. Ao longo desta harmonização está o se em sacrifício não seja, como é para o corpo, uma penosa mu-
caminho que conduz a Deus. Ele é unidade global que, em si, tilação de vida, mas uma alegre forma de expansão.
harmoniza e funde todas as consciências e criaturas. Por amor, entendo o amor de espírito, que unifica, não o
As superiores zonas de evolução são níveis de espírito e es- amor carnal, egoísta, que deixa sempre profundos resíduos de
tão dentro de nós. Deus, supremo termo, não está fora, mas separatismo; entendo por amor a vibração de circuito aberto,
dentro de nós, nas profundezas de um abismo sobre o qual, não a vibração de circuito fechado, que retorna sobre si mesma.
trêmulos, apenas ousamos debruçar-nos. É o eu de todos os fe- Entendo-o como a vibração expansiva do verdadeiro altruísmo
nômenos que Ele cria eternamente em Sua manifestação. Não evangélico, a vibração da expansão mística, que representa uma
podemos orar senão imergindo-nos neste centro interior, onde ordem de ondas mais curtas, rápidas e dinâmicas e, por isso,
se confundem altura e profundidade e já não têm sentido nossas mais penetrantes, cujo ritmo mais intenso e veloz permite que
medidas. A ascese mística é um trecho do caminho que nos elas se elevem além da atmosfera terrestre e atravessem os su-
conduz a Deus. A evolução espiritual é o aprofundamento de periores planos de evolução, para aproximar-se muito mais da
nossa consciência em nosso próprio íntimo; sua dilatação é uma fonte, sentir-lhe a atração e, com ela, alcançar uma sintonia
estranha dilatação superespacial para o interior, que pode comu- mais perfeita. O amor é a estrada mestra para chegar a Deus.
nicar-nos também a sensação de uma expansão para fora de nós. Assim é que, em baixo, todas as criaturas são inimigas, no alto
Mas não há sensações comunicantes que permitam estabelecer todas as criaturas são irmãs. Eis como o Evangelho transforma
termos de comparação com as novas dimensões. As fulgurações o inimigo em amigo, e, atingido um dado nível, toda a fenome-
de consciência que estão na inspiração, na revelação, no êxtase nologia universal aparece qual imensa música de toda criação, a
são bem fulgurações da Divindade. Ouvir-Lhe-emos o eco voz das coisas muda-se e torna-se um cântico. É a ascese que
imenso, auscultando a voz do espírito; ver-Lhe-emos os lampe- opera este milagre, revelando à alma o segredo da harmoniza-
jos olhando na profundeza de nós mesmos, porque Deus está no ção, que no amor opera a reabsorção do mal, das trevas, da luta,
fundo do coração humano, como pressentimento de todas as as- da dor, para o equilíbrio, a ordem, a felicidade.
censões, insuprimível como o instinto fundamental da vida.
A ascensão espiritual é um processo de penetração do eu XIV. DA TERRA AO CÉU
consciente em seus cada vez mais íntimos e profundos estratos,
que são planos de consciência sempre mais elevados. Esta mar- O fenômeno da ascensão espiritual permanece situado no
cha em profundidade é uma liberação do invólucro denso da seio da fenomenologia universal, como fase de evolução, como
matéria e de sua ilusão sensória, é um desnudamento de pesa- fato insuprimível e necessário. Ele está enxertado na técnica do
das escórias, é uma progressão para a realidade, a verdade, o funcionamento orgânico do todo. Se aqui chegamos à verifica-
bem, o absoluto. É uma ascensão para o interior. O futuro está ção experimental, em forma cientifica, todo o nosso mundo não
dentro de nós. A manifestação rumo à realidade exterior dos podia deixar de defrontar-se com um fato tão fundamental. E
sentidos e da matéria é descida involutiva; é, perdoem-me o ele se repete em todos os tempos e em todos os lugares e, do
termo, descentração da Divindade. A evolução procede em di- bramanismo ao budismo, do islamismo ao cristianismo, reen-
reção inversa, porque é o movimento centrípeto do retorno da contra-se em todas as religiões.
alma a Deus. O centro de consciência, para evolver, não se pro- O processo de ascese mística, objeto deste estudo, poderia
jeta para o exterior, mas desloca-se para a realidade interior, hi- repetir-se como método de Ioga, com nomenclatura equiva-
perfísica e supersensória. Isso é uma reabsorção do espírito em lente, porquanto o iogue tende igualmente à libertação e unifi-
Deus, que, após haver projetado fora de Si o processo criativo cação. Mas esquivo-me de tudo isso que cheira a negativismo,
em sua primeira fase involutiva, o inverte e o reconcentra em porque o insulamento do mundo e dos semelhantes constitui
Si, em sua fase evolutiva. Processo concêntrico de síntese, de sempre um pouco de insulamento de Deus. Esquivo-me desse
atração e de amor, oposto ao precedente, de dispersão. método, porque ele é supressão de realidade exterior, antes que
16 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
expansão de realidades interiores; fujo de tudo isso a que não em abundância, limitada tão só pela capacidade receptiva do ser,
se chega por harmonização, esse dulçoroso canto que faz da pela sua potência de ressonância. Deus é um centro de energias
vida e da dor uma alegria, como o canto do Irmão Francisco tão vitais, afetivas e intelectivas, que qualquer ser ficaria reduzi-
no Cântico das Criaturas. Eu, que sou latino, não posso sentir do a cinzas se as vias de penetração não fossem automaticamen-
a ascensão de espírito senão na forma ardente e passional dos te limitadas em proporção à sensibilidade.
latinos, na forma de um misticismo vibrante e ativo, não pos- Tratei racionalmente do assunto, cujas bases científicas já es-
so abstrair-me no insulamento socialmente passivo da pura tabeleci. Mas, agora, o passo tardo da razão irresistivelmente se
concentração; mas tenho necessidade, mal haja atingido um acelera, sutilizando-se em expressões excelsas; pois que o argu-
novo elemento na concentração, de novamente descer entre mento insta e meu espírito tem pressa de abrir as asas e mostrar-
meus semelhantes para doar-me; tenho necessidade de dizer e se em voo, tal qual ele verdadeiramente é, não mais constrangi-
de realizar, não de concentrar em mim, mas de expandir, me- do entre aquelas peias. É hora de despojar-se dos invólucros da
diante uma harmonização de almas, o fruto de minha ascen- representação racional e de avizinhar-se da visão. Dela me apro-
são. Minha concepção de ocidental, mais exteriormente dinâ- ximarei paulatinamente, neste escrito, até penetrar nela, até
mica, me impõe como dever narrar tudo isso, para que tudo imergir-me e perder-me no êxtase e arder no amor divino.
venha à luz e ressoe no coração dos outros. Declarei, no princípio, que haveria de tratar do argumento
O mundo não me aparece exclusivamente coma vã dança de da ascese mística não só como razão, mas também como sensa-
sombras, qual grande Mâyâ, mas como um campo de lutas, onde ção e fé; não só em seu aspecto científico e objetivo, senão
sangra a alma de meu irmão, a quem me cumpre ajudar. Através também em seu aspecto místico e espiritual. Esta sua diversa
desta unificação com ele, consolida-se minha unificação com o projeção não cindirá a realidade do fenômeno, mas reforçá-la-á,
Alto. Desta base de amor humano, inicio o processo de minha confirmando-a; nada subtrairá à sua basilar solidez racional, à
harmonização no amor divino. A ascese mística, entendo-a lati- qual é sempre possível descer, porquanto já não pode ser perdi-
namente, vale dizer cristãmente, não como estéril concentração da de vista, ainda que se queira, salvo quando se saiba traduzir
meditativa que rouba à sociedade uma alma e uma atividade, os termos de fé em termos de ciência. O aspecto científico que
mas como fecundação operada pelo divino no humano, a fim de antepus no princípio para, sobre a Terra, estabelecer solidamen-
que no humano se expanda e multiplique para sua ascensão; en- te as bases do fenômeno, não se desmente, precisamente agora
tendo-a não qual uma força que se ausenta da Terra, mas uma que observamos a continuação desse fenômeno no Céu.
força que a ela retorna e sobre ela é ativa e presente, agindo po- Nos meus trabalhos precedentes, narrei desapiedadamente,
tentemente cada dia. Entendo a ascese mística como ajuda à vi- depois de vencer a vergonha das íntimas coisas da alma, meu so-
da, e não como agressão a ela; como expansão, e não como frimento, minha fraqueza, minha fadiga. É hora de relatar o fruto
compressão. Estou, pois, imensamente longe de certo estéril as- de tudo isso – a conquista – e entrar na fase das realizações. No
cetismo conventual, que oprime sem ter em si paixão de ressur- fim do volume precedente16, fiz afirmações graves. É chegado o
reição. Não matemos o amor, refiro-me ao amor de espírito, de momento de consolidá-las com afirmações ainda mais graves.
outro modo matar-nos-emos a nós mesmos; não o matemos, mas Não posso renegar o passado; devo continuá-lo com novas as-
enxertemo-lo na dor. Passará a dor, e o amor sobreviverá; fe- censões. Neste novo testemunho, que dou com a alma nua diante
cundado pela dor, crescerá e nos levará para mais alto. de Deus, ainda me empenho e irei até ao fundo. Apertam-se os
Minha concepção, baseada em sólidos fundamentos científi- primeiros liames, reforçam-se os compromissos; por certas vias,
cos e experimentais, deve passar muito distinta e distante de to- já não é possível deter-nos. Este testemunho dirá o que é A
dos os escolhos, entre todas as falsificações de uma visão sadia e Grande Síntese, revelará hoje nova zona de seu significado, ain-
positiva da vida. Só transitoriamente aceito a treva, o tormento, da mais profunda, confirmará e ampliará as minhas já tão graves
a mutilação da renúncia, apenas o mais brevemente possível, e afirmações a respeito. Falarei de Cristo, porque Cristo se apro-
só para reviver mais intensamente e mais no alto. Viver, viver, ximou, e sinto que se aproxima cada dia mais, numa luz res-
viver sempre mais. Minha ascese é um vórtice de paixão, não plandecente. Pois que Ele é o centro de que nascem e em que se
um adormecimento no nada, nem uma escola de perseguição as- fundem toda a minha obra e toda a minha personalidade.
cética e, muito menos, uma acomodação de conveniências; é Assim, farei melhor compreender, neste mundo de cegos,
maturação biológica, natural e irrefreável, que aparece quando a quais são as verdadeiras metas da vida. Muitos compreendem
alma tem atrás de si um acúmulo tal de forças, que os equilíbrios tardiamente, já no termo do caminho, que nada de substancial
se precipitam para mais altas formas de vida. Na ascese, vejo a foi construído, nada que resiste à morte e sobreviva à destrui-
sã metodologia mística, isto é, o processo natural de desenvol- ção e não se possa subtrair à própria personalidade. Compre-
vimento de consciência. E, assim como a fase racional nos deu o endem então que riqueza, honras, amor sexual representam vã
método analítico, e a fase inspirativa nos deu o método da intui- ilusão. Que tédio na alma! Depois, será necessário recomeçar
ção, levando-me à construção de uma síntese universal, assim desde o princípio, repetir o curso das provas. A luz só se faz no
também a fase mística nos dá o método da expansão integral e final, na orla do túmulo. Primeiro, sempre uma agressão sem
leva à construção de uma consciência unitária. A unificação do tréguas, para depois se tornarem grandes lá onde nada resiste e
saber completa-se e eleva-se até a unificação no sentir. o tempo tudo destrói. Sempre assim; de outro modo, que se
A expansão dos ciclos expressa no diagrama é um agiganta- haveria de fazer? Parece que outra coisa não sabem os homens
mento de consciência que cobre campos de sensação cada vez fazer. Parece que se acabasse esta rivalidade, esta ferocidade
mais vastos, abrange na mais intensa capacidade vibratória uma de luta, ficariam espantados, a olhar-se, bocejando, como
gama de notas cada vez mais extensa e pode responder cada vez quem nada mais tem por fazer, ou já não sabe o que fazer. Ou
mais a vozes no grande cântico do universo. A superposição dos então se fartariam de bens e de gozos, até se arrebentarem e
planos no diagrama acarreta realmente uma descida de luz, de morrer. Esta tremenda paixão que agito parece, pois, propria-
força e de amor do Alto e estabelece incessante comunhão entre mente fora do normal concebível. Cada qual desce pelo declive
os vários planos, que é um maravilhoso concerto de almas. E, e arrasta consigo os outros, e todos se arrastam conjuntamente;
quanto mais subo, tanto mais me identifico neste canto; e, quan- é uma competição para aquele que mais velozmente se precipi-
to mais recebo e me fundo, tanto mais me nutro dele, mais devo ta, uma compressão a que mais ninguém resiste e em que se
dar o que me foi doado, mais devo abaixar-me e difundir-me nas calca aos pés a alma humana, centelha de Deus.
menores criaturas irmãs. Há realmente no universo, de plano a
16
plano, esta maravilhosa circulação de linfa vital, a derramar-se As Noúres. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 17
Farei compreender as mais profundas realidades da vida, ção. Mas, agora, na expansão de meu espírito, vem ao meu en-
que escapam ao olhar cúpido e pressuroso do homem hodier- contro, sem mais limites, o universo. Doar-me, eis o meu traba-
no. Crê ele ser o próprio corpo, nada mais que o corpo, e com lho; imergir-me no ritmo do todo, eis minha nutrição.
ele consumar-se. Não quer envelhecer, nem morrer com ele. Tais doações, normalmente consideradas absurdas e muito
Que tremenda mutilação da consciência infinita, identificar-se menos necessárias, são dever absoluto para a alma que, nua,
assim exclusivamente com a própria limitação, enclausurar-se transpôs o umbral. Se, em conquista de conhecimento e de
nas trevas, sem esperança de luz, encarcerar o espírito livre no amor, eleva-se, assim é para executar um trabalho mais árduo,
invólucro da matéria e sofrer as vicissitudes instáveis desta, o para cumprir mais árduos deveres. Pois que deverá nascer uma
seu afanoso transformismo, para, ao fim, putrefazer-se com nova civilização, e é necessário o sacrifício para prepará-la; se-
ela! Cristo veio para anunciar-nos: “Eu sou a Ressurreição e a rá um novo ciclo histórico, que formará nova raça, em que a
Vida”, e não O temos compreendido. O homem de hoje, na fraternidade já não será vã palavra, mas nova fase evolutiva de
pretensa civilização moderna, perseguindo laboriosamente um mais perfeita harmonização espiritual.
ideal de bem-estar material, fechou-se às vias da expansão es-
piritual, às vias do desenvolvimento de consciência; encerrou- XV. METODOLOGIA MÍSTICA
se numa crosta de egoísmo, e sua alma asfixia-se e sofre. Ela
desejaria explodir em seu livre elemento, mas sente-se, ao Viver e amar, tal é a substância do meu misticismo, qual
contrário, morrer na matéria. aparecerá nesta sua expressão de fenômeno vivido. À propor-
Assim enclausurado, o espírito sente a pressão das estreitas ção que caem os véus e a fonte se aproxima e transparece, as-
paredes que tenta erguer e não compreende que elas não são, nem cende-se e lavra o incêndio. Dentro dele ouvir-se-á cantar a
podem ser sua habitação. O presumido dinamismo de nosso tem- música do divino, o amor das criaturas, o amor de Deus. Diante
po mais não é do que a agitação desordenada desta angústia que de nós, veremos ressurgir a figura de Cristo, que nos precede e
busca evasão. Domínio de velocidade, de tempo e de espaço; pa- avança pelos séculos. Veremos aparecer gradativamente, numa
rece uma fuga, uma libertação, um superamento, e, contudo, mais sucessão de quadros, esta visão e nela a transformação de uma
não é do que o respiro mais curto e afanoso de quem corre mais alma. Mas retardemos ainda a marcha, antes de aventurar-nos
velozmente no mesmo círculo de coisas vãs. Não se imagina co- no grande voo. Avancemos por um gradual crescimento de ten-
mo toda a vida humana se apoia sobre estes sutis jogos psicológi- são. Tratamos suficientemente do aspecto técnico da questão.
cos, sobre estas leis profundas da evolução do espírito. Deixemos atrás este superado labor. Estamos ainda no vestíbu-
A ciência utilitária pretendeu abrir passagem através dos lo, diante do portal. Nossa psicologia deve avançar através de
círculos férreos das necessidades materiais, e as massas huma- progressiva desmaterialização, e as precedentes afirmações teó-
nas foram lançadas nessas ondulações de esperanças, caindo, ricas deverão converter-se em sensível forma de vida. Para tor-
entretanto, em precipícios tais, que o mundo ainda ficou mais nar possível a compreensão, devemos separar-nos gradualmente
insatisfeito do que antes. Muito diversa é a expansão de que da psicologia corrente e gradualmente despojar-nos do invólu-
necessita a pressão interior. O espírito não pode saciar-se com cro analítico racional, liberando-nos e elevando-nos da forma
estes acréscimos na matéria, novas estratificações exteriores, mental de nosso tempo. O precedente estudo técnico nos fez
que tornam espesso o invólucro e encadeiam o espírito ao las- compreender racionalmente a ascese mística; agora, devemos
tro terreno, que é feito de dor. compreendê-la espiritualmente. Aquela primeira orientação está
Para quem vê e compreende, é espantoso esse espetáculo. na base e, por isso, nos ajuda e nos ajudará, mas, agora, é ne-
Seria ridículo, se não fosse mortificante. É uma corrida dilace- cessário atingir a superelevação do edifício. É necessário ele-
rante para o inútil. Tal é o mundo a que falo, eu o sei. Falo de var-se na nova forma de pensamento e mover-se nela; devemos
elevações de espírito às mais rarefeitas atmosferas da inteligên- rasgar o véu e encarar a luz.
cia e do amor. Pretendo arrebatar o leitor ainda para mais além, Aqui, a ascese mística superou, em nosso exame, a fase teó-
em arroubos divinos. Levá-lo-ei, plenamente, à sensação do êx- rica da compreensão e ingressa no campo prático de sua reali-
tase místico, porque esta é a substância do fenômeno. Serei zação. Emerge da exposição racional com uma palpitação de
compreendido? Sei bem que se trata muitas vezes de almas de vida, não mais ilustração explicativa, mas norma de atuação.
idades diferentes, de diversa e menos profunda maturação inte- Quem ainda duvida verá que a ascese se torna um método e que
rior, para cuja insensibilidade são necessários certos abalos bru- há uma metodologia para chegar a Deus e realizar a unificação.
tais. Mas a dor delas é real e me dilacera. Sinto-as chamar de Isto faz igualmente parte de minha experiência. Está exposição
muito longe. Conquanto não a entendam nem a admitam, ela nos encaminhará à compreensão da última parte e dos quadros
implica para mim o tremendo dever de dar-me para o bem delas. psicológicos que a completam. Veremos, assim, nascer aqui,
Vejo-as sufocar, imersas até a garganta, na treva e no tormento; como consequência lógica de nossas promessas, uma metodo-
vejo iminentes os perigos de agora, que elas ignoram. Para que, logia mística. É a mesma dos grandes místicos, da qual, porém,
pois, deveria eu viver, a não ser para ajudar. Não tenho eu o de- eles não deram explicação racional e científica, necessária à
ver de restabelecer, onde há mais necessidade, aquela luz que do hodierna compreensão. Essencialmente, ela é a metodologia da
alto chove em torrentes, gratuitamente, sobre mim? evolução na fase espírito, decorre de cada palavra minha em
A organização unitária e compacta do universo impõe uma meus escritos passados, neles está contida em suas linhas gerais
solidariedade entre o alto e o baixo, no labor de ascender. e, aqui, continua em um seu mais alto desenvolvimento.
Quem mais tem mais deve dar. É por esta razão de equilíbrio e O campo experimental de minhas observações se estende,
de amor que o extremo da grandeza de Cristo se casou com o assim, às experiências dos místicos que viveram o fenômeno e
extremo oposto de sua cruenta paixão. Através de meu espírito deram o seu testemunho, confirmando-o. Há uma ciência místi-
movem-se forças que, na harmonização destes planos, são de ca, cujos autores se dão as mãos. Embrionária nos primeiros
todos. Não posso insular-me. O universo é agora para mim um tempos do cristianismo, desenvolve-se depois, alcançando mui-
concerto; é necessário viver, harmonizando-se. Sinto-me enle- tas vezes alturas inauditas. São Dioniso Areopagita enuncia as
vado no caminho do retorno, e sobe comigo para Deus o cânti- leis gerais da teologia mística, lançando-lhe as bases; João Ru-
co de todas as criaturas. As dissonâncias humanas do egoísmo, ysbroech (nascido na Bélgica, em 1293) assimilou-lhe o pen-
da avidez, da violência não lograrão fazer calar este cântico samento e, sobretudo, o viveu. No Ornamento das Núpcias Es-
imenso, que é a alma da criação. Abandonei tudo ao longo do pirituais, ele verdadeiramente arde como um incêndio e voa
caminho da dor. Ressurgi nu das lacerações oriundas da separa- como águia; seu espírito solta um grito imenso e se abisma na
18 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
vertigem dos mais altos estados místicos. E quem não conhece necessário deixar as pernas, pois, enquanto quisermos caminhar,
Eckart, Tauler e ainda a Beata Ângela de Foligno, S. Boaventu- jamais voaremos. Já não se trata de correr a largos passos de ra-
ra, S. Teresa, alma vibrante inigualada, e o santo da mística As- zão, mas de voar em intuição e visão. Ora, isso é coisa bem dife-
sis, São Francisco, sombra de Cristo? Máximo doutor em teo- rente. E os dois mundos se defrontarão, acusando-se reciproca-
logia mística, da grandeza de São Tomás em dogmática, é São mente de ilusão. Se não se abre uma passagem, eles jamais se
João da Cruz (nascido na Espanha, em 1542). Suas obras: Subi- compreenderão. Mas poderiam perguntar-me, se o homem está
da do Monte Carmelo, A Noite Escura da Alma, O Cântico Es- fechado na razão, qual o está em sua pele, como logrará um dia
piritual e A Chama Viva do Amor descrevem as vias da ascese sair? Como se pode sair da própria consciência? Evidentemente
espiritual até a unificação da alma com Deus. que é por força de evolução. Não é esta uma continua emersão de
Há, pois, um método para chegar a Deus, com característi- sob os envoltórios da própria semente? Há esta imensa impulsão
cas que se repetem, demonstrando que, atrás das realizações interior que contém todos os desenvolvimentos, e é um impulso
pessoais, há um fenômeno geral. Nisso são concordes, numa de Deus para a sua manifestação.
nota dominante, os místicos teóricos e os místicos experimen- O místico exclui a razão. Não a mata, supera-a; não a per-
tais. Que fazem, que querem todos esses homens? São almas de, transmuda-a. A alma encaminha-se para Deus; para que
atormentadas por estranha necessidade; têm pressa de chegar a mais podem servir os raciocínios do intelecto? Como se po-
Deus, são impulsionados por um desejo vertiginoso, o desejo da dem avaliar certas altitudes espirituais com os meios feitos
unificação. Ardem todos de íntima efervescência de amor. Vi- para as pequenas distâncias psicológicas da Terra? As de-
vem com os braços abertos para Deus e para as criaturas, so- monstrações racionais, as argumentações filosóficas podem
frendo antes de chegar e, depois, cantando e amando. Infla- constituir uma aproximação, aliás muito imperfeita, da ideia
mam-se no incêndio do êxtase, em fontes inimagináveis, para, de Deus, mas esta, em sua essência, não comporta imagem,
em seguida, derramar torrentes de luz e de paixão. Ouvimos como também não comporta demonstração. Pretender de-
clamores que, em nosso mundo, não são compreendidos e, por monstrar-Lhe a existência equivale a negar a sensação direta
isso, não são admitidos. Que ocorre então? d'Ele e fechar as grandes vias de comunicação com Ele, que
Ocorre o fenômeno da absorção do eu inferior no eu superi- são as vias da fé. Satisfeito, o intelecto então se cega, porque
or, através da noite escura dos sentidos. Desloca-se o centro da se sente muito melhor com os outros meios. Outra coisa é o
gravidade da vida para um mundo hiperbiológico, situado além conhecimento de Deus; é mais um deixar-se levar do que uma
de nossa capacidade de conceber. Se, teórica e tecnicamente, é laboriosa pesquisa; é o assomar da alma acima do plano da ra-
isso concebível, conforme veremos, coisa mui diversa é viver o zão, em uma visão nua, que já não comporta imagem, já não
fenômeno e experimentar a sensação de seu amadurecimento. encadeia nem reduz o divino na representação. A consciência
Quem ainda está evolutivamente distante, observa e não enten- deve ressurgir em uma luminosidade tão clara, vasta e imedia-
de; mas quem chegou e vive o fenômeno atravessa uma revolu- ta, que nela não podem insinuar-se estas densas e opacas vi-
ção de pensamento e de sensações. O sorriso de quem nega não brações inferiores, como os sentidos, a razão, a observação, a
pode destruir esta realidade, tampouco suas pseudoexplicações distinção, a lógica. A visão torna-se pura, simples, unitária.
patológicas podem deter o desenvolvimento das leis da vida.
Sobrevêm o fenômeno da transumanização em Deus, e a alma, XVI. A NOITE DOS SENTIDOS
embora coberta de ridículo, se encontra em face de tão estupen-
das realizações, que não pode calar o seu arrebatamento. Insistem muito os místicos neste superamento sensório que
O fenômeno logo se revela como decisivamente super- eles alcançam mediante um processo de progressiva purifica-
racional, precisamente porque é transformação de consciência; ção. Bastante árduo é o início. Não são, pois, somente negação
em seu primeiro passo, supera e anula a razão. Como primeira de razão, treva de intelecto e renúncia de compreensão lógica,
ocorrência, vem, pois, a faltar o ponto de contato com a psico- mas também negação de sentidos, cerramento das portas da
logia inferior. É lógico, todavia, que quem voa abandone a ter- alma, ávida de projetar-se para o exterior, mas repelida para o
ra. A razão pode classificar o fenômeno, porém não pode senti- interior, cerramento das portas de satisfação às paixões, com-
lo. Transposto o portal, a razão não entra. É natural que perma- primidas assim para sublimar-se. Começam aqui as angústias
neça fora e, não encontrando repercussão alguma na extensão do místico, cuja alma se lhe dilacera, fibra por fibra. Para che-
da própria consciência, negue. Surgem, então, as acusações de gar à dilatação, faz-se mister atravessar esta zona de compres-
histerismo e de neurose, porque de cada boca não pode sair são. O desenvolvimento do fenômeno é dado por toda esta mu-
mais que a voz da própria compreensão. tação de equilíbrios, através da qual se desloca o centro de
Ingressemos no supersensório e no super-racional, que é uma gravidade da consciência. O fenômeno é essencialmente dinâ-
dimensão completamente diversa da normal dimensão humana. mico, e em seu movimento há dois momentos: atrofia do eu in-
Esta bitola não se presta a medir tais dimensões. Os próprios mís- ferior e sua reconstituição em um plano superior de consciên-
ticos não encontram palavras na linguagem de todos. A profunda cia. A primeira fase é, pois, a morte. Isso, porém, se torna ne-
essência do fenômeno permanece inadmissível para a razão, e es- cessário. Unicamente sob a condição de uma inversão do pro-
ta, vendo-se negada, nega por sua vez. Assim, ambas excluem-se cesso vital de expansão na zona humana, pode iniciar-se um
reciprocamente. Não sendo o fenômeno sentido como realidade processo de expansão muito mais potente na zona super-
entre as realidades e considerando que todo eu se faz invariavel- humana. Aquele sofrimento de renúncia, que parece absurdo,
mente medida das coisas, é ele então, por incompreensão, defini- mais não é, todavia, que uma potenciação de ímpeto para uma
do como um nada, o qual, todavia, para quem sente, contém o in- vida nova, muito mais intensa e mais vasta. A ressurreição no
finito, um nada vibrante de paixão e fecundo de esplêndida ativi- divino deve ser, pois, paralela, próxima à morte no humano. Só
dade, sobre-humanamente altruística e benéfica. Eis o que con- este misticismo é sadio, ativo, criador, porque se dirige para a
tém o repouso sem principio nem fim de Boëhme, o eterno silên- vida. Ai de quem se detiver só na primeira fase e demolir a
cio de Eckart, a tranquilidade e o silêncio da noite de São João consciência, sem reconstruí-la. Isto é suicídio, e não misticis-
da Cruz. E, assim, parece absurdo criar uma doutrina sobre um mo. Este deve avançar através das amplas vias da evolução,
sistema de negação sistemática dos meios dos sentidos e da men- que conduzem à luz e à alegria, e nunca recuar sobre as vias
te e que se possa conquistar uma visão a força de trevas. Em ver- estreitas da involução, que se fecham na cegueira e na dor.
dade, há uma primeira fase de negação e de treva, mas é um iní- Esta primeira fase de trabalho e de treva foi expressa pelos
cio apenas, depois vem a ressurreição. No entanto, para voar, é místicos como sendo a noite dos sentidos. Quero reproduzir,
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 19
nesta altura, uma página de conhecido cientista, Carrel, que em duos. Só então se tornará fecunda a ciência do homem. Difícil é
seu volume O Homem, Esse Desconhecido, conduz a ciência a este empreendimento. Como construir uma síntese?”.
confissões jamais ousadas, que pareciam eternamente fora de Não podemos contentar-nos com um ponto de interrogação.
sua competência. Se bem que Carrel nada tenha podido enten- Nossas almas têm pressa de saber e têm a necessidade e o direi-
der de alguns problemas, porque ciência e razão não são sufici- to de saber, imediatamente. Por que não compreende a ciência
entes para resolvê-los, pois seria necessário possuir outros mei- esta síntese? Por que não sabe criar neste sentido? Por que esta-
os e fontes de orientação, é muito interessante, contudo, verifi- ciona, encalhada, em sua segurança objetiva? Por que ninguém
car como certos altos fenômenos místicos possam ser suficien- ousa e arrisca, sem se preocupar com o sacrifício de reputação e
temente compreendidos e classificados pela ciência, quando é posição, jogando tudo por tudo, a realizar, através de uma pai-
consciente, alada e genial. Escreve Carrel17: xão arrebatadora, um sonho imenso?
“A iniciação ao ascetismo é árdua, e poucos têm a coragem Mas voltemos ao nosso fenômeno, para nele penetrarmos to-
de enveredar por esta via. Aquele que deseja empreender esta talmente, até ao âmago. Aquela primeira fase do fenômeno mís-
penosa viagem deve renunciar-se a si mesmo e à coisas do tico, feita de purificação e de treva, qualificada pelos místicos
mundo. Em seguida, permanece nas trevas da noite escura, ex- como a noite dos sentidos, não é ilógica mutilação de vida, mas
perimenta os sofrimentos da vida purgatória e, deplorando sua concentrado labor de evolução. Têm aquelas angústias a mais
fraqueza e indignidade, suplica a graça de Deus. A pouco e ampla justificação racional e experimental. Parece absurdo pos-
pouco, ele se desprende de si mesmo. Sua prece se tornará con- suir olhos e recusar-se a ver, possuir ouvidos e recusar-se a ou-
templação. Ele ingressa na vida iluminativa, já não pode des- vir, possuir sentidos e recusar-se a sentir, o amor e recusar-se a
crever o que vê. (...) Seu espírito transcende o espaço e o tem- amar, a vida e recusar-se a viver. A consciência humana, assom-
po, entra em contato com algo inefável e atinge a vida unitária, brada, interroga-se acerca do porquê daquelas vicissitudes. Mas
contempla Deus e com Ele age. (...) Devemos aceitar sua expe- recusa-se a ver, ouvir, sentir, amar, viver, só para ver, ouvir, sen-
riência tal qual nos é dada. Somente aqueles que têm vivido em tir, amar e viver mais e melhor, sempre mais e melhor. Eis para
prece podem julgá-la. A busca de Deus é, com efeito, um em- que serve a noite escura dos sentidos: deixa-se de raciocinar, pa-
preendimento muito pessoal. Mercê de certa atividade de sua ra intuir; de amar a criatura, para amar o Criador. Certamente es-
consciência, o místico tende para uma realidade invisível, que ta primeira fase de compressão é dor, mas a seguinte, de expan-
reside no mundo material e se estende além dele. Ele se lança são, é incomparável alegria. É justo, ao demais, que todo pro-
na mais temerária aventura suscetível de ser tentada, razão pela gresso evolutivo seja conquistado através de um esforço e um
qual pode ser considerado um herói ou um louco”. trabalho; isso é quanto impõe o equilíbrio da Lei18. É de dor este
Mais adiante, continua o mesmo autor, sob outro aspecto: primeiro movimento, porque reprime e inverte o ímpeto da al-
“Os homens mais felizes e mais úteis compõem um conjunto ma, que é expansão (evolução). Mas, bem analisada, esta inver-
harmonioso de atividades intelectuais e morais. (...) Existe, além são está igualmente, ou melhor, mais potentemente nas vias da
destes, uma classe de homens, que embora tão desajustados expansão e da evolução. Detendo-se junto ao quadro de vida pu-
quanto os criminosos e os loucos, são indispensáveis à socieda- ro e humano, a razão incorre facilmente em erro. Que são, com
de moderna: são os gênios, caracterizados pela monstruosa hi- efeito, dor e prazer senão a indiscutível voz do instinto, ciente
pertrofia de algumas de suas atividades psicológicas. Os grandes do que lhe é necessário? A necessidade da vida, necessidade
artistas, os grandes cientistas ou filósofos são geralmente ho- fundamental e universal em todos os níveis, é expansão; sua sa-
mens comuns, cuja função se hipertrofiou. Podem comparar-se tisfação é alegria e sua limitação, sofrimento. Mal uma resistên-
também a um tumor que se desenvolvesse em um organismo cia cede e permite a expansão do eu, este é invadido por indizí-
normal. São em geral infelizes essas criaturas não equilibradas, vel satisfação. E o eu, interiormente, está exercendo continua
contudo produzem grandes obras que beneficiam a sociedade in- pressão, porque é, por sua natureza, ilimitado e, como tal, não
teira. Seu desajustamento engendra o progresso da civilização. admite confins. Esta é a lei universal, constante em qualquer
Jamais a humanidade foi propelida pelo esforço da multidão, plano, ainda que seja sob formas diversas. O prazer é acresci-
mas pela paixão de alguns indivíduos, pela flama de sua inteli- mento; a dor, diminuição. Então a consciência não sabe, em um
gência, por seu ideal de ciência, de caridade ou de beleza”. primeiro momento, a causa desse processo de diminuição que
Tal é Carrel. Tem ele o mérito de encaminhar a ciência à tanto lhe repugna nem porque deve substituí-lo por aquele de
aceitação de duas grandes verdades: o valor do fator moral em aumento, que tanto a atrai. Mas, tão logo supere o primeiro mo-
face do problema do conhecimento e a possibilidade de supera- mento e prove as novas realizações, ela se lançará na ascese
mento do plano racional-analítico em dimensões conceptuais e mística com o impulso contido que teria dado às paixões huma-
planos superiores de consciência. A ciência avança e chegará nas. Porque se trata sempre de aumento, que é prazer.
através de longo caminho. Mas temos pressa, o trabalho é vasto, Se, todavia, é necessário morrer, o misticismo se baseia in-
não podemos perder tempo nas hesitações das hipóteses, nem no teiramente na fase reconstrutiva e não aceita a primeira negação
tardo controle da análise. Mal tocamos um fenômeno, é necessá- de vida senão como treva transitória, condição de luz permanen-
rio concluir logo, ir ao fundo, dar-lhe uma explicação exaustiva. te. O fenômeno equilibra-se consoante uma perfeita lógica. Tra-
Continua ainda Carrel: “Desde muitos anos, assistimos ao ta-se de remodelar a consciência segundo uma natureza mais po-
progresso dos eugenistas, geneticistas, biometristas, estatísticos, tente. As paixões humanas representam uma ordem de vibrações
behavioristas, fisiologistas, anatomistas, químicos orgânicos, bi- pesadas, que, recaindo na Terra, são incapazes de elevar-se na
oquímicos, psicólogos, médicos, endocrinologistas, higienistas, estratosfera do espírito e engolfar-se nos planos superiores, para
psiquiatras, criminologistas, educadores, pastores, economistas, neles penetrar e fixar-se. O desprendimento é uma inaptidão da
sociólogos etc., e sabemos quão insignificantes são os resultados consciência para responder a certas vibrações estabilizadas em
práticos de suas pesquisas. Esta imensa congérie de conheci- vastíssimos períodos de evolução biológica e um adestramento
mentos se encontra disseminada e difundida nas revistas técni- para responder a vibrações mais sutis e mais elevadas. Afirmei
cas, nos tratados, no cérebro dos homens de ciência, de modo que as vibrações representam uma ordem de ondas mais curtas,
que cada um possui um fragmento dela. Agora urge reunir essas rápidas e dinâmicas, mais penetrantes e, por seu ritmo mais in-
parcelas em um todo e fazê-lo viver no espírito de alguns indiví-
18
V. fig. 2: “Desenvolvimento da trajetória típica dos motos feno-
17
As citações que se seguem, traduzimo-las diretamente do original mênicos”. Todo fenômeno, antes de iniciar o arremesso de seu mai-
francês: L'Homme Cet Inconnu, Cap. IV e VIII, Librarie Plon, Pa- or desenvolvimento, dobra-se sobre si mesmo em uma fase de con-
ris, 1936. (N. do T.) tração. (N. do A.)
20 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
tenso e veloz, capazes de se elevarem. Aqui se trata de passar de XVII. A UNIFICAÇÃO
uma ordem de vibrações densas e pesadas a uma ordem de vi-
brações ágeis e sutis. Cientificamente, pode definir-se a ascética Já está iniciada a cisão, traçado está o antagonismo, cada
como a ciência das ondas-pensamento e, assim, do método de vez mais larga se torna a brecha. Por entre as fendas do invólu-
sua transformação em tipos cada vez mais imateriais, elevados, cro já penetrou algo, e possível já se tornou alguma fuga. Vivi-
penetrantes, velozes e potentes, constituindo o organismo de da foi uma nova experiência, e já não pode esquecê-la o espíri-
normas modeladoras dessa ressonância. Os estados de alma, o to, que torna a investir contra as paredes para sua libertação.
comportamento do espírito, contêm o método de operar a trans- Momentos emocionantes, de trepidante expectativa, em que se
missão e de captar tais ondas, método pelo qual se chega a pôr o debate tenazmente a alma e, de sua prisão, clama apaixonada-
espírito no estado de sintonia permanente com centros de cons- mente e cada vez mais comprime e intensifica seu esforço de
ciência e de emanação situados em mais altos planos. libertação, porque ouviu através das espessas paredes a primei-
Na ascese, avança-se gradativamente. Uma primeira vibra- ra ressonância, provou a primeira embriaguez do voo, sente ruí-
ção liga o espírito, por ressonância, com um plano mais alto. A rem nas trevas uma a uma as últimas barreiras, além das quais
repetição consolida a ligação, de modo que se torna possível ao explodirá a luz. Rasgam-se, a pouco e pouco, os véus, e ocor-
ser adaptar-se paulatinamente, até que logre estabilizar-se em rem os primeiros contatos. Sons divinos descem até ao espírito.
novo equilíbrio e transferir-se definitivamente para novo modo Aberta está a passagem, e por ela jorra agora a fonte divina. A
de ser. Por isso, justamente, insisti muito sobre a afinidade com alma estará inundada além de toda a sua ânsia.
a fonte transmissora na técnica das noúres, porque aí se iniciava Chega então o espírito de Deus, qual a irrupção de um in-
este processo de sintonização que aqui se completa. Na ascese cêndio que passa por sobre tudo, para incinerar totalmente os
mística tende-se para a unificação, portanto a sintonização deve resíduos das paixões humanas. Inicia-se, nessa altura, o proces-
ser integral, de toda a alma e com todo o universo, e não mais so da unificação. Mas este, tampouco, advém sem luta. A alma
parcial apenas, localizada em uma dada ressonância conceptual. está agora nua e é percutida até à profundeza. A subversão dos
Então, a evolução, após haver invertido por um momento sua equilíbrios ocasiona inauditas tempestades de sensações; no
direção, retifica-a e retoma-a para ascender vertiginosamente. O campo de forças da consciência, a superveniência das potentís-
ser supera a fase de negação e torna-se a afirmar com centupli- simas radiações provoca fulgurações e incêndios. A alma deve
cada potência. Cambiado o centro, a vida então muda de signifi- arder e abrasar-se para surgir renovada das cinzas de seu passa-
cado e valor; contém realizações diversas das humanas, para as do. A suprema força divina atraiu e cingiu em sua órbita aquela
quais tende. O organismo físico já não é um meio de expressão e alma, que, presa, põe-se a gravitar-lhe em derredor, cada vez
expansão, mas um cárcere, um meio de compressão. A morte mais vertiginosamente: e, quanto mais se constringem as órbi-
torna-se vida, e a vida se converte num processo da negação no tas, tanto mais violenta é a atração, mais ativa a absorção, mais
humano e de afirmação no divino. É um desnudamento de alma, próxima a unificação. Nesta unificação, a consciência sente
porquanto a certos níveis não pode chegar e neles ingressar se- perder-se como individuação distinta, já não sabe quem seja e
não a alma nua. Depois das primeiras vicissitudes, o espírito re- luta contra o seu dulcíssimo aniquilamento, feito de amor. Mas,
toma a direção, e verifica-se o fenômeno maravilhoso da inver- ao mesmo tempo, não pode deixar de expandir-se, porquanto
são da dor, isto é, de sua anulação. Conquista-se então a liberta- aquela atração é também sua atração, e os dois termos, unifi-
ção. Superada a dissonância, o espírito harmoniza-se no grande cando-se, não podem deixar de incidir fatalmente um sobre o
concerto do universo, a dor humana separa-se cada vez mais de- outro. A alma experimenta vacilações, sente expandir-se ilimi-
le e permanece cá em baixo, como coisa morta, entre as mortas tadamente, e isso é alegria suprema, porém já não se identifica,
escórias da vida. A dor é reabsorvida no amor, a vibração disso- já não se reconhece como eu distinto, e isso a entristece. Afigu-
nante é submersa no oceano de harmonias da Divindade. Ocor- ra-se-lhe que já não é possível existir sem representar tal eu;
re, então, o que ocorre na morte: o sofrimento, que deveria au- nessa imensa expansão, parece-lhe consumir-se e recua apavo-
mentar, é progressivamente reabsorvido na insensibilidade. Na rada. Abre-se-lhe aos pés a voragem do infinito, e não sabe me-
luta entre a dor e o amor, vence o amor; morre a dor, triunfa o di-la sua pequena consciência de antes. Esta experimenta a ver-
amor. Em meio dos tormentos, a alma canta. tigem das grandes altitudes e volve a prender-se àquela força de
Assim, emerge o espírito em um novo mundo. Isso, porém, atração divina, que a leva sempre mais além e acaba por con-
se realiza gradualmente. O sofrimento decorrente da mutilação sumi-la como coisa humana, para fazê-la ressurgir, integral-
de consciência no plano humano é compensado pela alegria da mente e só, como coisa divina.
expansão no plano sobre-humano. À proporção que ocorre, no Luta, sempre luta, mas agora dulcíssima luta. Nos primei-
nível inferior, o sufocamento da vida, desdobra-se o campo co- ros planos da ascese mística, o combate se travara entre a bes-
berto pela nova consciência; à proporção que se torna iminente ta e o anjo, que, mesmo exausto e dilacerado pelos ferimentos
o desprendimento, encurtam-se as distâncias e a alma, aproxi- recebidos, ainda se conserva; porém, agora, a luta se desenca-
mando-se da meta, exulta com seu triunfo. A vida dos místicos deia entre o divino e o humano. Diz Ruysbroeck, em sua obra
é o percurso desse trajeto. O Ornamento das Núpcias Espirituais, no capítulo “O Com-
Ascetas existem duros e insensíveis, que nada mais sabem di- bate”: “Os assaltos do amor colocam frente a frente dois espí-
zer além de renúncia, em que tudo está ainda imerso na noite da ritos: o Espírito de Deus e o nosso. Começa então a luta. Nos-
separação humana; e ascetas há que, chegados a nível mais alto, so espírito inclina-se para Deus e quer possuí-Lo. O impulso
cantam o amor. Há os que semeiam e os que colhem, os que se do amor tem por cúmplice o ato secreto de Deus, ardentemen-
martirizam e os que triunfam, mas todos percorrem as diversas te buscado. O duelo ocorre na profundeza. São de espantosa
fases de idêntico ciclo. No princípio, o caminho é inçado de difi- intimidade os ferimentos recebidos pelos combatentes; eles se
culdades e resistências. O eu inferior não depõe facilmente as atiram raios que lhes abrasam a força ardente, e o ardor do
armas e, quando voluntariamente o faz, organiza uma defesa in- combate aumenta a ansiedade do amor entre eles. Assim, am-
consciente em que reafloram os impulsos milenários, indomados, bos se fundem. O espírito de Deus agracia-nos, e o nosso re-
do pretérito biológico. Então, na profundeza da carne e da pai- tribui, e desse duplo impulso nasce a força do amor. Esses
xão, ressoam sussurros ameaçadores, e a fera se revela, olhos fluxos e refluxos fazem multiplicar-se a fonte do amor. Des-
sangrentos, ferozes, para dilacerar. Estão precisamente unidos, sarte, o contato de Deus e o furor de nosso desejo conjugam-
um ao outro, os dois tremendos inimigos – espírito e matéria – e se na mais inefável simplicidade. Invadido e possuído do
a luta é atroz, interior, sem tréguas. Não raro, vence a besta. amor, o espírito, por incríveis esquecimentos, chega a não re-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 21
cordar-se mais senão de seu possuidor. Sente-se abrasado e, Diz-se que a maior punição das almas culpadas consiste na
ao engolfar-se no abismo daquele a quem agora toca, vendo o privação de contemplarem a Deus, o que significa permanecer
próprio desejo e a própria avidez superados pela realidade que fora das grandes correntes da vida. A maior alegria das almas
ele vive, assiste estupefato ao próprio desfalecimento. Mas, eleitas reside precisamente neste contato com Deus, nesta su-
reunindo, num supremo esforço, todas as suas forças, encontra prema embriaguez de harmonização, nesta fusão completa.
na profundeza de sua atividade a energia necessária para mu- Mas é inútil acumular palavras. Aqui me atormento com ex-
dar-se a si mesmo em amor. Então, o santuário íntimo de sua primir o inefável. Esse contato de amor, que em si torna sen-
essência criada, em que principia e acaba sua atividade terres- sível a presença de Deus, é uma sensação tão sutil, que só se
tre, está em suas mãos. E domina, com suas virtudes e seus atinge mediante apuração e aguçamento da própria sensibili-
poderes, a multiplicidade do mundo”. dade. É uma nota tão alta e de tal frequência vibratória, que
É através destas sensações, confirmadas peles místicos, que não a percebe o ouvido comum; se a percebesse, ele se arre-
age o processo progressivo que vimos: vibração, ressonância, bentaria, tão intenso é o seu potencial. Para atingi-la, é neces-
sintonia, desprendimento, purificação, afinidade, atração, sário, inclusive para a consciência madura e adestrada, entrar
amor, unificação. No ápice do desenvolvimento do fenômeno gradativamente em sintonia e elevar-se em tensão. A isso se
está a unificação. Trata-se de um procedimento de amor, base chega pouco a pouco, e pode ajudar aquele processo de sinto-
da vida. Parece que o estado mais perfeito e completo do ser, nização noúrica, condição de recepção inspirativa, que des-
que é o da unidade em Deus, tenha sido outrora, como que crevi em meu precedente volume 21. A contemplação nos guia
precipitado, por involução, no cindido dualismo do amor sexu- na casa de Deus. A auscultação das harmonias do criado é im-
al, em que o ser, dolorosamente desdobrado em dois, deva per- portante via musical de elevação, porque nos faz assistir cons-
correr ansiosamente, cada dia, o trabalho de reconstrução da cientes ao pensamento de Deus.
unidade através das vias imperfeitas, instáveis e insidiosas do Chegada a esse estado, a consciência está, não só metafori-
amor humano. O misticismo remonta as vias da evolução, que camente mas também realmente, fora de si, porque está em novo
levam à liberação de tais limitações, de todas as cisões e sepa- plano de existência e fora de sua dimensão conceptual. Diz-se,
ratismo, que são a característica dos planos inferiores, em que então, arrebatada em êxtase. O êxtase é um estado tremenda-
a unidade se fragmenta e se pulveriza no múltiplo e no relati- mente ativo e supremamente consciente, é o estado de percepção
vo. Trata-se de um grande esforço de reabilitação do ser invo- da unificação. Esta pode ser inconsciência somente para os in-
luído, de reconstrução da integridade e imensidade do eu, hoje conscientes nesse plano. O êxtase é a última fase do fenômeno
perdida como se fora punição. Trata-se de reconquistar, em místico, o coroamento da ascese, o vértice atingido, não racio-
Deus, o verdadeiro amor universal para todos os seres 19. Em nalmente, como fizéramos em princípio, mas sensitivamente.
baixo, ele se manifesta humanamente semelhante a uma chuva Não se trata aqui de apenas entender o fenômeno, porém, muito
de doações, que o espírito difunde totalmente em torno de si, mais do que isso, trata-se de vivê-lo. Tal é a diferença existente
isto é, semelhante a uma forma de sacrifício e de amor por to- entre observar e ser. O êxtase é a revelação consciente da união,
dos os homens e todas as criaturas, na qual se exprime clara- é a percepção da realização perfeita da identificação vibratória.
mente o seu caráter universal. Estes seres representam sobre a A “graça”, tão discutida, é um fenômeno real, cientificamente
Terra, canais de expansão divina. admissível, isto é, uma descida de corrente que eleva para a sin-
Se o aspecto racional do fenômeno, como já foi exposto, é tonização e tende para a unificação; é a emanação do Alto, na
intelectualmente compreensível, o seu aspecto sensitivo é abso- qual a Divindade se revela ativa e move suas atrações. O estado
lutamente inimaginável e incomunicável a quem não sente e, de graça é o estado de harmonização alcançado.
portanto, não pode experimentar. Faltam palavras e expressões Eis o glorioso epílogo da via longa e dolorosa que o místi-
na linguagem, falta, sobretudo no coração humano, a capacida- co percorreu. O poeta se põe a caminho, mas só o místico che-
de de vibrar e de responder a tais emoções. Como se pode ex- ga. O poeta tenta e invoca, o místico realiza e ama. Assim, o
plicar a perda de individuação distinta de consciência, a identi- místico é o poeta completo, íntegro, que alcançou toda a reali-
ficação por reabsorção no princípio do universo, a transumani- dade de seu sonho. O êxtase é a síntese suprema de toda arte,
zação da dor por harmonização, se tais estados não existem no porque o é de toda concepção e de toda beleza. Assim os mís-
plano de consciência normal? Eis aonde chega quem logrou ticos são poetas imensos, vertiginosos, maravilhosos. Não se
romper o invólucro; um contato realmente contínuo, interno e ausentam da vida, mas nela estão mais intensamente presentes.
profundo, que é unidade. Os amores humanos têm a mesma O místico retorna às coisas, mas com visão divina, retorna às
tendência, mas, enclausurados no invólucro físico, jamais po- criaturas e torna a amá-las, porque nelas está Deus e nelas re-
dem chegar a essa identificação completa, deixando sempre encontra Deus. Todas as coisas não possuem mais do que um
uma distância que divide, um resíduo de egoísmo. Mas este não significado e um poder: o de elevar seu espírito a Deus. Seu
está entre os amores, tantos entre tantas formas, mas é o Amor. egoísmo se transformou no amor de um eu tão vasto, que
São Paulo nos disse que o amor é a estrada mestra, ou melhor, a abrange toda a Criação e não pode conter senão Deus; já não
única via do misticismo, a graça mais necessária do que qual- bastam seus pobres braços humanos para cingir o infinito. O
quer outra. É ele quem clama: “Vivo autem iam non ego; vivit místico, então, parte em dois tempos o ritmo do seu dinamis-
vero in me Christus” (“Já não sou eu que vivo, mas é Cristo mo: contemplação e ação. E os dois ciclos entrelaçam-se,
quem vive em mim”)20. “A razão e a inteligência”, acrescenta completam-se, nutrem-se reciprocamente. Primeiro, engolfa-se
Ruysbroeck, “detêm-se na porta. Mas o amor, que é o amor, o no abismo divino para alcançar sua luz e energia. Depois, des-
amor que recebeu uma ordem, quer corajosamente avançar, se ce novamente entre as misérias humanas para exercer o bem e
bem que cego como os outros. Ele conservou na própria ceguei- aliviar a dor. De sua altitude, ele se abaixa de braços abertos.
ra o instinto da alegria. Assim, quando, ante a porta, a inteli- O sulco tangível que deixa atrás de si a ascese do místico é fei-
gência se prostra e sucumbe, diz o amor: Entrarei”. E o amor to de obras de bondade: “O amor de Deus não pode ser ocio-
entra, e a morte é vencida neste triunfo. so”. Estas consequências práticas, motivo de cisão no nível
humano, deve a sociedade compreendê-las. Cito a propósito
19
Esses problemas são amplamente desenvolvidos e elucidados em outras palavras simples e sublimes de Ruysbroeck: “A consola-
outras três obras do mesmo autor, posteriormente escritas: Deus e Uni- ção interior é de ordem menos elevada do que o amor ativo que
verso, O Sistema e Queda e Salvação. (N. do T.)
20 21
Epístola aos Gálatas, 2:20. (N. do T.) As Noúres, Op. cit. (N. do A.).
22 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
se põe, espiritualmente ou corporalmente, a serviço dos po- a sua ignorância. Contudo, na consciência estão as mais pro-
bres. Por isso, eu vos digo: ainda que sejais arrebatados em êx- fundas realidades e as mais vastas possibilidades da vida.
tase tão alto quanto São Pedro ou São Paulo, ou quaisquer ou- Ainda não se sabe nada, no entanto a consciência já é o germe
tros que queirais, se ouvirdes de um doente que tenha necessi- de todos os desenvolvimentos. Se qualquer coisa nasce no
dade de uma sopa quente ou de qualquer outro socorro do mundo exterior, em qualquer dos seus campos, desponta sem-
mesmo gênero, eu vos aconselho que vos desperteis por um pre daquele mistério interior. Se o divino desce sobre a Terra,
instante de vosso êxtase e façais aquecer a sopa. Abandonai é por meio daquele trâmite.
Deus por Deus; buscai-O e servi-O em seus membros: nada O problema é, pois, palpitante, atual, e também prático. Não
perdereis na permuta. O que por caridade abandonardes, Deus se pode esquecer ou abstrair aquilo que não se vê e não se toca,
vo-lo restituirá com muitas outras perfeições”. porque justamente ali se encontram a causa e a origem das coi-
sas. E cada um de nós traz em si essa unidade que se chama eu,
XVIII. INCOMPREENSÃO MODERNA essa síntese que se chama consciência. Esta é o que de mais vi-
vo temos em nós, e tão vasta é, que não lhe conhecemos os li-
Posta em frente a essa psicologia, a mentalidade moderna mites. Vemo-la abismar-se em camadas profundas, que não sa-
não compreende. Contenta-se em tirar vantagens das suas con- bemos e não ousamos sondar. Ela evolve e se transforma conti-
sequências utilitárias, inteiramente imersa no eterno jogo da nuamente em nós, mas está sempre presente. Não a vemos, no
ambição. Despreza quem se recolhe à solidão e o define como entanto as nossas mais íntimas sensações e emoções, a alegria e
ocioso e misantropo; só admite o trabalho quando rumoroso, a dor, estão nela, e não no exterior; a nossa parte mais vital e
porque só compreende o que lhe fere os ouvidos. Aquela soli- importante se encontra nesse imponderável. Esse centro estabe-
dão parece vazia, entretanto encerra uma terrível atividade in- lece contatos com tudo o que o cerca e, apesar disso, permanece
terior. O místico mantém outras relações vitais e, se foge por sempre distinto, gigantesco e indestrutível.
momentos ao contato humano, é para nutrir-se no contato divi- O homem moderno, que compreendeu as leis mecânicas de
no. O centro das suas atrações está colocado além da atmosfera tantos fenômenos, zombando assim de tantos terrores, acredita
terrestre, sua alma não ama a vida, senão enquanto ela repre- com isso ter destruído o mistério e resolvido o enigma da vida.
senta uma missão de bem e uma prova para levá-lo a Deus. Pa- E, num simplismo primário, não vê que o mistério é infinito e
ra onde quer que o seu olhar se volte, não procura e não ama que nada mais fez do que ampliar os seus limites. Não vê que
outra coisa, senão a Deus. Ele o sente identificado na sua pró- no mundo sutil do espírito se encontram leis grandiosas e rea-
pria essência, presente e ativo no mais íntimo de si mesmo. ções tremendas. Por isso quem tocou e viu, se revolta quando a
Todas as imagens caíram. Só Deus permanece, tonante voz in- inconsciência nega e sorri. Por isso me esforço sem tréguas pa-
terior, no silêncio exterior das coisas. A alma do mundo é va- ra fazer que se veja e saiba. Nestas questões elevadas e distan-
zia e se projeta ao exterior, para cobrir o seu vácuo horrendo; a tes, “que não servem para nada”, agita-se o problema das civili-
alma do místico é plena e ama a solidão, que lhe permite proje- zações futuras. Nestas pugnas, não escritas, por certo, para
tar-se ao interior e sentir a própria plenitude. Ele não precisa exercício retórico, agita-se uma vida muito mais intensa, mo-
aturdir os sentidos para esquivar-se à própria desolação; não vem-se forças titânicas, tomba a semente de novas orientações,
teme, como o mundo, os silêncios em que a alma se manifesta. que amanhã conquistarão valores imensos.
A realidade da vida está nesse recato em que a palavra cessa. O espírito humano deve, por irresistível e fatal impulso de
Só quando atingimos a profundidade daqueles silêncios, a rea- evolução, projetar-se além das barreiras que hoje o limitam,
lidade levanta a fronte e nos encara. A grande claridade se en- além das dimensões do seu atual concebível. Tem-se o dever de
contra no fundo, além da mais densa treva. arrancá-lo da sua ordem de vibrações voltadas para a Terra e
O plano de vida do místico está colocado muito acima da projetá-lo, com toda a sua potencialidade, nesta outra ordem de
Terra. Ele também sofre e goza, teme e espera, lamenta-se e vibrações, que querem subir, superar e romper os espaços, para
canta e ama, mas tudo isso se passa em outro nível de consciên- a fusão com o ritmo cósmico.
cia, através de formas, reações e repercussões diferentes. A ori-
entação conceptual e sensória, a maneira de ver as suas relações XIX. O SUBCONSCIENTE
com os fenômenos, é completamente diversa. Ele capta, num
todo, uma nova ordem de ressonâncias. Conquistou um novo Conquanto se insurja em protesto a multidão dos cegos ra-
sentido, o sentido místico, que é o sentido da harmonização ciocinadores, o homem não pode renegar o indestrutível pres-
com o universo. As suas vias são outras. O homem atual avança sentimento de seus futuros desenvolvimentos de consciência.
pelas vias do trabalho, do domínio sobre o mundo, e quer des- Tem-se a sensação de que, sob o minúsculo eu normal de su-
truir a dor pelo exterior. É a via longa da evolução, que vence perfície, se estende em profundidade um eu ilimitado. E o ho-
os obstáculos, doma as resistências, mas prende o espírito. O mem inquire de si mesmo: que coisa, pois, sou eu? A ciência
místico segue o caminho curto, avança pelas vias da concentra- percebe que o mundo fenomênico, já imenso em sua superfí-
ção, do domínio de si mesmo, e destrói a dor no íntimo, não cie, é de uma complexidade, perfeição e sabedoria que progri-
aniquilando-lhe as causas, mas superando-as, com uma diferen- dem à medida que é observado a maiores profundidades. A ci-
te sensibilidade. Ele não toca e não modela o exterior, mas li- ência é algo que, perpétua e ilimitadamente, evolve na direção
berta o espírito, supera tudo, porque se eleva sobre a Terra. dessa profundidade. Ela mesma é constrangida, por leis de
Essas duas psicologias são contrárias, e não há possibili- evolução, a progredir e a lançar-se nesses novos campos. E já
dade de se comunicarem. Exatamente por isso me objetarão a percebeu que a personalidade humana se estende em zonas que
não-aplicabilidade de tudo isto, justificando-se a indiferença estão além dos limites normais da consciência racional e práti-
por certos problemas que “não servem para nada”. E então se ca; deve ter verificado a existência de um campo subterrâneo
quererá relegar para o patológico e atirar aos ângulos esqueci- de consciência, carregado de motivos, repleto de germes, de
dos da história certos fenômenos. Não obstante, o problema que tudo isso se desenvolve e aflora na normal consciência de
psicológico é sempre o mais angustiante, e o mistério da per- superfície. Denominou esse campo de subconsciente ou cons-
sonalidade humana é o mais tormentoso enigma. Este é, por- ciência subliminal, ou coisa semelhante.
tanto, o estudo mais moderno, mais profundo, mais original “Nestes últimos anos”, escreve Paolucci em seu opúsculo Os
que se possa fazer. A fé nos fala com palavras poderosas, mas Problemas do Espírito, “a ciência relativamente nova da psico-
vagas, e a ciência apenas balbucia; quando é honesta, confessa logia começou a projetar viva luz sobre o mistério da personali-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 23
dade humana. Numerosas pesquisas e estudos experimentais do “É uma faculdade estranha: apreender a realidade, sem o
funcionamento normal e anormal do espírito humano conduzi- concurso do raciocínio, parece-nos inexplicável. (...) É assim
ram os psicólogos a descobrir que considerável quota de nossa que o conhecimento do mundo exterior nos chega muitas vezes
atividade mental se produz sem que o percebamos. Esta cerebra- por vias diferentes das dos órgãos sensoriais 24”.
ção inconsciente, como a denominam, parece confirmada por Assim é encarado, por necessária consequência de averi-
nossos conhecimentos psicológicos. Daí procedem as discussões guações de fenômenos, o subconsciente; mas não se lhe com-
acerca do subconsciente. Segundo aqueles psicólogos, o sub- preendeu a natureza, a extensão, o conteúdo. Cada autor tem
consciente parece ser a sede da inspiração e da intuição. Poetas, criado um seu diverso subconsciente e nenhum o tem enqua-
pregadores, musicistas disso podem dar testemunho. Os pensa- drado na fenomenologia universal, na teoria mais profunda da
mentos de maior apreço são os que nos chegam sem ser invoca- gênese e do desenvolvimento do espírito e das metas da per-
dos e que constituem as fulgurações do gênio. As melhores des- sonalidade humana 25.
cobertas científicas realizam-se, muitas vezes, graças ao que os Para James e para Myers, o subconsciente é o primitivo, o
psicólogos chamam de subconsciente. O investigador sente pri- fundamental; o secundário, a derivação é a consciência, que é
meiro uma intuição e, depois, entrega-se ao trabalho e pede à um produto da ambientação. Jastrow acrescenta que “acima da
experiência que a justifique. A razão, que nada mais é do que o consciência existe uma organização psíquica anterior a ela, a
nome ordinariamente dado por nós ao exercício consciente de qual é sem dúvida a fonte de que ela se originou”. Chegou-se a
nossas faculdades mentais, arrasta-se penosamente sobre quatro sentir confusamente a existência desse intelecto profundo, mais
pés; a intuição impulsiona-se com um bater de asas”. A intuição, vasto do que aquele intelecto de superfície que chamamos ra-
pois, que está na profundeza, é um contato mais próximo da rea- zão; entendeu-se que esta síntese da vida não pode suster-se por
lidade do que a razão, que está na superfície. “O método discur- sua força e que, como ilha emergente do oceano, deve apoiar-
sivo e dedutivo”, diz Jastrow em A Subconsciência, “é o cami- se, para emergir, em bases tanto mais vastas quanto mais se
nho penoso da lógica, montada em pernas de pau, enquanto a in- desce em profundidade. Para entender e resolver o problema,
tuição é o voo possante do inconsciente, que, num instante, se não basta haver notado tudo isso e permanecer na dimensão ra-
transporta da Terra ao Céu”. Muitos, porém, como Geley, idea- cional, é necessário sair, de uma vez por todas, dessa dimensão
lista, mas positivista, em seu De l'Inconscient au Conscient, não e lançar-se naquela profundidade, e isso de olhos abertos, isto é,
chegaram ao fundo e não compreenderam. O próprio Schope- permanecendo consciente em outras dimensões. É necessário
nhauer vê um abismo intransponível que separa o inconsciente possuir em si o fenômeno e sondá-lo por introspecção. É neces-
do consciente e, em vez de lançar pontes, corta-as. Outros se sário ter a coragem, que a ciência não tem, de concluir por uma
avizinham, averiguam, sem contudo explicar. Assim o faz Ri- concepção única dos fenômenos. É necessário ter anteposto a
bot: “L'inspiration revèle une puissance supérieure á l'individu tudo isso uma orientação completa, intelectual e moral, do pró-
conscient, étrangére a lui quoique agissant par lui: état que tant prio eu no seio do funcionamento orgânico do universo.
d'inventeurs ont exprimé en ces termes: Je n'y suis pour rien”22.
XX. O SUPERCONSCIENTE
Não posso furtar-me a citar, nessa altura, uma página do co-
nhecido volume O Homem, Esse Desconhecido, de Alexis Car-
Não posso repetir aqui sobre que bases assentou o proble-
rel. Esse livro, que me caiu às mãos por acaso, enquanto corri-
ma, coisa já feita em outra parte26. Naquela obra desenvolve-
gia provas tipográficas um ano depois de eu haver concluído
ram-se teorias que atribuem exato valor ao conceito de sub-
este meu trabalho, me surpreende pela identidade de pensamen-
consciente. Resumamos. A psique humana é um organismo em
to de seu autor com minha experimentação. Coincidência estra-
contínuo crescimento (expansão) por descida na profundidade,
nha entre indivíduos tão diversos e de ambientes tão distantes,
mediante estratificações das sínteses das experiências da vida,
que não pode deixar de nos impressionar, pois demonstra que
as quais gravitam para o interior. Essa assimilação contínua,
certas ideias, por mim vividas (expressas em As Noúres) e por
operada em zona de livre arbítrio, se fixa no determinismo dos
outros julgadas absurdas e inadmissíveis, pelo contrário estão
equilíbrios estabilizados na trajetória do destino. O subconsci-
no ar, de uma a outra extremidade do mundo, e o espírito dos
ente é precisamente a zona dos instintos formados, das ideias
mais evolvidos já está preparado e concorde para apreendê-las. inatas, dos automatismos criados pela repetição habitual da vi-
Escreve o Dr. Carrel, um dos mais eminentes cirurgiões ex- da. A lei do meio mínimo 27 limita o esforço consciente só no
perimentadores do Rockfeller Institute for Medical Research: campo ativo da construção nova. O resto, o que foi vivido e
“É certo que as grandes descobertas científicas não consti- constitui síntese completa, vai jazer em repouso (inconsciência)
tuem obra exclusiva da inteligência. Os cientistas de gênio pos- nos estratos do subconsciente, de onde tantas qualidades e ins-
suem, além do poder de observar e compreender, outras quali- tintos nossos emergem como produtos completos, cujos termos
dades, a intuição, a imaginação criadora. Com a intuição, eles determinantes nos escapam. A consciência de superfície é, pois,
apreendem o que permanece oculto aos outros, percebem rela- um tentáculo ativo, consciente, porque em fase de trabalho. O
ções entre os fenômenos aparentemente insulados, advinham a subconsciente é um imenso repositório de reservas, de produtos
existência do tesouro ignorado. (...) Sabem, sem raciocínio, sem estáveis e fixados depois do período de formação consciente.
análise, o que lhes importa saber. É o fenômeno outrora desig- Ora, aqui começa a terrível confusão dos psicólogos, quan-
nado pelo nome de inspiração. do eles julgam este subconsciente a fonte da inspiração, a sede
“Encontram-se, entre os homens de ciência, dois tipos de es- da intuição, o germe da criação intelectual do gênio, pois há
pírito: o lógico e o intuitivo. A ciência deve seu progresso tanto uma terceira zona, que chamo de superconsciente, a qual, por
a um quanto a outro desses tipos intelectuais. (...) Somente os
grandes homens, ou os puros de coração23, podem ser transpor- 24
Traduzimos diretamente do original francês L'Homme Cet Inconnu,
tados pela intuição às culminâncias da vida mental e espiritual. Cap. IV, os trechos citados. (N. do T.)
25
Cfr. A Grande Síntese, “Teoria da evolução das dimensões”, Cap.
22
“A inspiração revela uma potência superior ao indivíduo consciente, XXXV; “As origens do psiquismo”, Cap. LXII; “Técnica evolutiva do
que, embora se manifeste por ele, lhe é estranha; é um estado que mui- psiquismo e gênese do espírito”, Cap. LXIV; “Instinto e consciência,
tos inventores têm traduzido nestes termos: não tomo absolutamente técnica dos automatismos”, Cap. LXV etc. (N. do A.).
26
parte nisso”. (N. do T.) V. nota 4, no final do capítulo precedente. (N. do A.).
23 27
Quanto não insisti em As Noúres e aqui também sobre o valor do Sobre essa lei ou principio do meio mínimo, veja A Grande Sínte-
fator moral! (N. do A.) se, Cap. XL – “Aspectos Menores da Lei”. (N. do T.)
24 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
estar igualmente fora da consciência normal, foi confundida ga-se tudo explicado. E, todavia, a neurose continua sendo para
com o subconsciente. E entre os dois há a diferença do dia para a própria ciência, nos domínios da anatomia patológica, um
a noite. Se o subconsciente pertence ao passado, o superconsci- enigma; fora desses domínios, mais no alto, a ciência é, por mé-
ente pertence ao futuro; o primeiro aprofunda-se nos estratos todo e premissas, incompetente. Certas realidades mais vastas
involutivos dos antecedentes biológicos, o segundo emerge nos serão eternamente negadas, porque incompreensíveis, se não se
planos evolutivos dos superamentos espirituais. Estamos nos sair do campo circunscrito por tal método e por tais premissas.
antípodas. Neste volume, falando de mais altos níveis de cons- Resumo, pois, o quadro da estrutura da consciência humana.
ciência, que da razão ascendem à intuição e à visão do êxtase Ela se divide em duas partes: o consciente e o inconsciente. O
místico, temo-nos movido e avançado sempre e exclusivamente primeiro é a consciência conhecida, normal, racional, prática,
no campo de superconsciência, subindo precisamente ao longo que todos distinguem. O segundo se compõe de duas zonas: o
das fases de uma realização sua cada vez mais intensa. subconsciente, que pertence ao passado, e o superconsciente,
Em todo esse caminho, a consciência é, pois, uma pequena que pertence ao futuro. Seus extremos se perdem no infinito
zona de luz, que, partindo da primeira emersão do psiquismo ori- graduar-se da ascensão evolutiva, mas eles se aproximam num
undo das formas dinâmicas, prossegue através da fase biológica e ponto que continuamente se desloca do sub ao superconsciente,
se aventura agora na fase psíquica e no seu superamento na fase mas que é sempre o centro consciente em que o mar do incons-
hiperpsíquica, em que a consciência se encaminha para tornar-se ciente aflora à superfície da sensação, como da ação construti-
consciente em dimensões hoje super-racionais para a média nor- va. O subconsciente contém e resume todo o passado e o leva
mal, imersa nas trevas do inconcebível. A consciência racional é até ao limiar da consciência; o superconsciente contém, no es-
um pequeno vaga-lume, um risco iluminado, de trabalho e cria- tado de embrião, todo o futuro que está em expectativa de de-
ção, que se desloca ao longo desse extraordinário trajeto, cujo senvolvimento. Segundo o próprio grau de evolução e maturi-
princípio é abandonado em baixo e cujo fim se perde no alto, dade, as várias consciências estão diversamente situadas ao
além de toda nossa medida. Assim o subconsciente, conquanto longo desta linha, sobre a qual podemos desenhá-las como uma
invisível, porque não emerge à luz da consciência, contém as ba- zona em marcha. Observemos a figura 3.
ses do edifício e representa os fundamentos que o sustentam.
Embora não apareça no pormenor, ainda assim ele sobrevive
completamente como síntese e, como tal, é suscetível de ser in-
vestigado. Se o subconsciente é superado e esquecido como labor
construtivo consciente, todavia nós o possuímos íntegro como re-
sultado; é aquele instinto tão rico de misteriosa sabedoria, que
rege tantas ações nossas e é tanto mais sólido quanto mais pro-
fundamente radicado nos estratos da evolução biológica.
Do outro lado, como um pressentimento, lampeja em jatos o
superconsciente. Ora, o gênio se inspira nesse pressentimento, e
não no subconsciente, que contém somente os fundamentos do
edifício, e não a sua elevação; o gênio cria só como antecipação
de evolução, qual tentáculo lançado no futuro, e não por remi-
niscência de um passado inferior. Nele, a zona de consciência
deslocou-se para além do normal, aos planos mais altos da evo-
lução. Nas profundezas do subconsciente se pescará o passado
involvido, nunca o futuro superevolvido, que chega. Assim, o
eu se desloca do subconsciente ao superconsciente, através da
fase presente, chamada consciente. Esta é zona lúcida de cons-
ciência racional. O resto nos escapa sob formas de consciências
veladas, intermitentes, inimagináveis. Mas o resto é o nosso
maior eu da eternidade, que está para lá do nascimento e da
morte e com o qual o ser se identifica, reencontrando-se todo a
si mesmo e, então, não conhece mais fim.
Ora, se esta zona não-consciente é aquela que nos põe em
comunicação com a realidade da intuição e com a Divindade
nos estados místicos, é para se horrorizar, quando se ouve dizer
que a graça de Deus se manifesta no homem através do sub-
consciente ou que o homem, para alcançá-la, se transfira ao
subconsciente, pois a graça é fenômeno evolutivo, e não involu-
tivo; de superconsciência, e não de subconsciência. A graça é
uma elevação ao superconsciente; é através deste que ela se di-
rige ao homem; é a esse plano que o convida a se transferir. Por
aí se vê como quem não sabe superar a dimensão racional per-
manecerá impotente em face de tais concepções e tateará cons-
tantemente na treva. Só uma tão completa cegueira pode fazer
confundir, na mesma forma de não-consciência, dois extremos Figura 3
opostos: o subconsciente e o superconsciente. A concepção ne- Querendo figurar o desenvolvimento do fenômeno de evo-
bulosa dos psicólogos modernos apenas tem vislumbrado esta lução da consciência sobre uma faixa, isolamos na figura, para
zona de mistério e, sem sondá-la, a ela tem relegado todo o in- comodidade de observação, um trecho do percurso, e isso para
decifrável do fenômeno psicológico. Ao invés de tentar pelo três tipos de consciências diversamente desenvolvidas: a, b, c.
menos uma explicação para o fenômeno, ela se contentou em A zona de luz exprime, em sua extensão, a zona de consciên-
batizá-lo com uma palavra: neurose. Maravilhoso modo de ex- cia; a zona negra exprime a zona de não-consciência, ou o in-
plicar! Cunha-se uma palavra de origem grega e, com isso, jul- consciente. Este se estende por dois lados: à esquerda, temos
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 25
o subconsciente; à direita, o superconsciente. Sempre esfu- SEGUNDA PARTE
mando nessas duas zonas de treva, a zona consciente avança
do sub ao superconsciente, segundo o progressivo grau de A EXPERIÊNCIA
evolução das consciências a, b, c etc. Uma vez superados, os
instintos são gradativamente abandonados fora da consciên- I. EM MARCHA
cia, na zona de treva do subconsciente, à medida que a cons-
ciência conquista com o seu labor (a vida) o superconsciente e Abandonemos os cegos negativistas; já é tempo que eu
o faz desabrochar em sua luz. Isso pode ser comparado ao prossiga, embora sozinho, na minha experiência do fenômeno.
caminho do caruncho na madeira. Ele (a consciência) avança Expus os fundamentos, e agora podemos avançar. Inicialmente,
(evolução) perfurando incessantemente, através da madeira, enquadrei o fenômeno místico no mundo dos conceitos moder-
um canal, de cujos produtos (esforço de vida, assimilação de nos; depois expus, no estudo do diagrama da ascensão espiritu-
provas, criação de novos instintos) ele se apropria e se nutre, al, o aspecto teórico e científico bem como sua técnica funcio-
assimilando-os, ao mesmo tempo em que conquista novo es- nal, dando a demonstração lógica do fenômeno nos seus vários
paço, que torna seu (o superconsciente), enquanto abandona o momentos e nuanças, para que a razão ficasse satisfeita; em se-
velho (subconsciente), no qual deixa os excrementos (instin- guida explorei o seu aspecto prático, como realização espiritual
tos superados) de sua vida e de seu trabalho. na metodologia mística e dele ofereci a descrição genérica co-
Se quiséssemos ser mais precisos, intentando reduzir a mo uma sensação, referindo-me, especialmente, às experiências
termos de espaço o que não é espacial, deveríamos dizer que dos místicos. Aqui termina minha tarefa de estudioso, de obser-
das duas não-consciências, consideradas em relação com a vador racional distinto do fenômeno.
consciência lúcida de superfície, a superconsciência se esten- Tudo isto, porém, não é o bastante. Entro no fenômeno, vi-
de em profundidade, nas zonas interiores, avança para Deus e vo-o e descrevo minha experiência. O que o fenômeno perde,
tende para a unificação com o todo, a que se chega, pois, por limitando-se como extensão de casos observados, conquista em
introspecção. A subconsciência, ao contrário, estende-se em profundidade de sensação, em vivacidade de expressão, em so-
direção oposta, não sob, mas para o exterior da superfície; é lidez de experiência. Esta segunda parte é para os que amadure-
filha das experiências do mundo exterior e nele é abandonada. ceram. Para aqueles que sentem e podem, por isso, compreen-
O eu avança entre duas zonas igualmente não lúcidas, mas sua der. Esses descobrirão um mundo; os outros não poderão entrar.
progressão é para o interior, sua evolução o afasta do sub- Alcançamos um campo de misticismo que viverá nestas pagi-
consciente e o leva para o superconsciente. Valores opostos: o nas; um misticismo experimental. Para me ater ao caso visado,
primeiro é um resíduo, o segundo, uma conquista; o primeiro deverei assumir a forma pessoal e dizer muitas vezes eu: dese-
é uma zona inferior, de que nos distanciamos, é uma escória legante, mas necessário, embora me desagrade. Perdoar-me-ão,
que abandonamos; o segundo é uma zona superior, de que nos quando virem que estes eus são para os outros.
aproximamos, não contém os remanescentes da vida, ainda Temos, assim, uma progressão de realidade, de precisão in-
que no momento sejam necessários, mas o futuro da vida. A terpretativa, de profundidade de sensação; restringir e concen-
passagem do subconsciente ao superconsciente é uma expan- trar-se para ir ao fundo e emergir. Reviverei nestas paginas o
são para o interior, se assim podemos expressar-nos, uma ex- tormento e a conquista. Ver-se-á, numa série contínua de qua-
pansão em profundidade, em que o ser, aprofundando-se para dros, todo o desencadear da tempestade interior; ver-se-á que
o centro, se eleva aos planos mais altos que lhe são a aproxi- tais afirmações não são gratuitas. Ver-me-ão na hora terrível
mação. Nesse caminho, o eu é como um núcleo que se enri- da derrota e do abatimento em que a ideia nos precipita, e na
quece, dilatando por estratificações suas potencialidades atra- hora em que a alma, transposto o limite, consegue ouvir a mú-
vés das experiências da vida, que são exatamente o agente re- sica divina e canta a glória de Deus. Partirei da minha debili-
velador daquele mistério íntimo em cuja profundeza está Deus dade e miséria humana, o que me fará mais compreensível.
(manifestação). Assim, esse mistério é continuamente exterio- Aparecerá a dolorosa negativa humana antes que apareça a
rizado naquele plano de consciência lúcida, que, como se vê, é deslumbrante afirmativa divina, a sombra cansada da cruz do
uma consciência de trabalho e de transição, em marcha do caminho que se projeta sobre a Terra antes de sua vitoriosa
subconsciente ao superconsciente, cuja posição é, portanto, aparição no Céu. Veremos, vivida, a realidade das afirmações
relativa, assaz diversa de indivíduo para indivíduo, segundo racionais até agora expostas. Porque esses fenômenos, que
sua história e sua maturidade evolutiva. muitos negam, ou falsificam, ou condenam, são feitos de aspe-
Somente em tal enquadramento de conceitos é possível en- rezas insuspeitadas, de vida humana desiludida, só mais tarde
tender o superconsciente, fixar-lhe os limites, o conteúdo, a reabsorvidas no êxtase místico. Esses fenômenos exigem cons-
função. Só assim se pode orientar e definir o fenômeno místico tante fadiga da mente e do coração; nunca se conseguem com
como naturalmente situado nas superiores zonas do supercons- facilidade; só se desenvolvem na luta de cada momento, com a
ciente. Não se resolve o problema com o mutilá-lo ou negá-lo, alma nua no meio da estrada onde se debate a vida. Alimen-
de vez que ele é um majestoso fato histórico, responde a um tam-se com a dor própria e alheia, que se torna comum. É ne-
sentimento religioso universal e fundamental, a uma função cessária a comunhão de sofrimento com os humildes para se
eterna do espírito humano e, como experiência para quem o al- obter a comunhão de sentimentos, para sintonizar com o Alto e
cança, é um fato objetivo indiscutível. Se a forma mental mo- obter resposta. É preciso empobrecer e descer, para se iniciar a
derna é o que de mais inadequado pode haver para chegar a tais marcha. Só por esse meio desusado, incompreendido e não
fenômenos, isso nada lhes pode tirar à realidade e à importân- admitido, se alcança o êxtase no grande amor que é a harmoni-
cia. É logicamente absurdo, até para os racionais, que um con- zação suprema do espírito nas palpitações cósmicas.
senso tão vasto e um tipo de experiência tão unânime qual o é a A consciência dos lineamentos e da orientação do fenômeno
mística, que repercute de uma a outra extremidade da Terra e é aqui, afinal, conseguida. É resultado da parte científica e téc-
dos tempos, repouse sobre o erro e a impostura. O fenômeno nica, assim como da parte espiritual e descritiva. Minha poesia
místico é, ao contrário, o mais imponente fenômeno da vida poderá, enfim, avançar tranquila sobre esses duplos trilhos soli-
humana, porque ele assinala uma reaproximação daquela divin- damente assentados.
dade, que, como centro espiritual do universo, é meta de toda Pelas várias sondagens que realizei para estabelecer as rela-
existência, convergência de todas as forças, de todos os movi- ções entre o fenômeno místico e a psicologia normal, para si-
mentos, tendência suprema da evolução. tuá-lo nela e torná-lo compreensível, e não apenas admissível,
26 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ver-se-á com quanta prudência vou avançando nessa psicologia çar o fenômeno (primeiramente julgado exclusivamente mediú-
supernormal. Era necessário fazer ver claramente que a mesma nico) tirando-o daquela atmosfera de fantástico e miraculoso
pessoa que aqui possa parecer quase louca sabe, no entanto, ra- que a tantos satisfaz (outro escolho no meu caminho), percebe-
ciocinar friamente e domina todo o fenômeno como domina a se com quanta ponderação devia eu seguir minha áspera estra-
psicologia normal de que se faz juiz. Compreendo perfeitamen- da. Impus-me naquele trabalho, eu, o intuitivo, desiludido da
te a enorme dificuldade dos problemas abordados, do risco de razão humana, uma psicologia de desconfiança racional e cien-
tão novas afirmações, da minha responsabilidade moral ante a tífica. Os meus trabalhos se desenvolvem na profundidade do
ciência e a fé. No entanto, num e noutro sentido, já falei claro e cognoscível e do inconsciente e nascem em estranha lucidez do
falarei ainda mais claro. Certas afirmativas enérgicas foram e contato da alma com abissais zonas de mistério. A minha cons-
serão feitas em plena razão e lucidez, com a consciência da res- ciência racional normal tem que exercer um severo controle so-
ponsabilidade e das consequências. Minha alma está ampla- bre estas, para mim, estupefacientes imersões. Se aquilo que me
mente aberta a todos os olhares nestes meus trabalhos, que têm distingue e em que talvez consista minha chamada mediunidade
finalidades bem mais altas que culturais e pessoais; e se ela gri- é ser consciente no superconsciente, sinto emergir em mim,
ta é porque tem coisas graves a dizer. igualmente, baixas zonas de subconsciente, que tenho de reco-
É indispensável extrema prudência quando nos aventura- nhecer e dominar. Eis porque não aconselho o abandono do
mos a tais campos inexplorados, sobretudo quando isso é feito consciente ao inconsciente às pessoas que não tenham o super-
em forma tão pessoal. Aqui, não afirmo e defendo a mim consciente largamente desenvolvido, e disso não estejam ampla
mesmo, mas afirmo e defendo um princípio. E desta ideia po- e claramente seguras. De outro modo, a inspiração não será se-
dem nascer no pensamento humano muitas outras de repercus- não o afloramento das baixas regiões da alma.
são grave. Em certos momentos, estas minhas elucubrações as-
sumem importância universal, abrangendo as religiões, a filo- II. NAS PROFUNDEZAS
sofia, a ética, além da ciência. Em certos momentos, o seu de-
senvolvimento excede os limites da exigência editorial, que
Revivamos agora, em forma pessoal, a teoria exposta nos
jamais poderá ser elemento suficiente para julgamento. Às ve-
últimos capítulos. O meu eu consciente ouve vozes emersas dos
zes, o quadro assume as proporções de tão violento incêndio,
diversos planos do inconsciente; daquelas zonas que são nor-
que os traços fogem da moldura imposta pela necessidade prá-
malmente de trevas, vejo explodirem clarões de luz que me en-
tica e se revelam em sua verdadeira universalidade. Nesses
chem de espanto, porque me revelam que em tudo existe uma
momentos, o traçado que os caminhos humanos quiseram im-
personalidade imensa. À medida que volto a percorrer dentro
por ao meu pensamento surge destruído, e o meu conceito nada
de mim as várias fases da evolução realizada, projeto-me cons-
mais tem de comum com os campos particulares em que pare-
cientemente em zonas de superconsciência; num plano, ouço
cia enquadrado. E então, eu sou supermediúnico, supermetap-
uma voz, e outra voz noutro plano; cada uma delas tem um
síquico, superbiosófico etc. Estou sozinho, avanço desacom-
timbre, uma pureza e uma força diversa, segundo o seu nível, a
panhado, porque sozinho vivi o meu fenômeno e sozinho as-
sumo todos os riscos e todas as responsabilidades. minha posição e a força de vida em relação a esse nível. Ouço
É necessária extrema prudência, porque os escolhos são mui- se aproximarem ecos longínquos de formas psíquicas vivas e
tos. Todos estão implacavelmente atentos, à espera dos que de- sepultadas nas mais profundas dobras do eu; vejo o passado
sejam criar. O pensamento humano, por necessidade de defesa e amorfo e primordial erguer-se do sono dos séculos e voltar a
de sobrevivência, encerrou-se em castelos armados uns contra os mim (isto é, do subconsciente ao consciente), das profundida-
outros; não flui livremente, como linfa verdadeira, mas está cir- des tenebrosas da raça e do sangue, das estratificações funda-
cunscrito em recintos. Não se admitem ideias que não se apre- mentais do instinto, através da incessante recomposição da car-
sentem limitadas, aprisionadas dentro de um desses recintos. Eu ne, do espírito de que é feita a vida. Como o passado tarda a
voo alto, por sobre os castelos, vejo-os todos. Desejaria que se morrer! E súbito reaparece a fera bruta e violenta, a baixeza que
identificassem na paz e compreensão recíprocas. Não posso des- se condena nos outros – tipos de consciência que existiram e
cer, porque descer seria entrar para um recinto e ficar prisionei- que se negam a morrer. No subconsciente está toda a animali-
ro. Teria a defesa e a estabilidade da terra firme, mas perderia, dade do homem-besta, como no superconsciente está a super-
com a prisão, a liberdade do voo. No entanto devo descer, entrar humanidade do gênio e do santo. A evolução da consciência do
nos castelos, mas não me conformar com o encerramento na sub ao superconsciente é justamente a ascensão espiritual da
cômoda segurança da verdade aceita e devo caminhar ainda; e, besta ao santo – fenômeno imenso e universal.
muitas vezes, ver, saber e calar. Tenha-se em conta, nestes meus Existem realmente, para quem pode senti-las, realidades
trabalhos, sobretudo, as muitas coisas que calo. tremendas dentro de nós. Às vezes, a unidade do eu oscila entre
No entanto essa prudência seria covardia se, no momento vários planos; a síntese consciente da personalidade não conse-
decisivo, eu me calasse, ou não revelasse todo o meu pensa- gue encontrar meios de se fundir numa forma nítida e única.
mento a qualquer preço. Aqui, minha alma está ofegante de Então, ouvem-se dissonâncias interiores, desencadeiam-se con-
cansaço e paixão, aos pés de uma ideia pela qual tudo darei. flitos de íntimas vontades dissidentes que não sabem e não po-
Nem mesmo as preocupações humanas importam. dem fundir-se na alma, que, por estar em fase de rápida trans-
Mas a prudência é necessária, sobretudo porque faço sonda- formação evolutiva, contém em si mesma todos os extremos de
gens no mistério, que pode conter para mim, para a minha baixeza e de sublimidade. É justamente às portas dessa supera-
consciência, como razão e como fé, grandes perigos. Não são ção que todo o passado, sentindo-se subitamente negado, se
os riscos da incompreensão humana que me atemorizam, mas aferra violentamente ao desejo de não morrer. Então, numa
sim os riscos no terreno divino que exploro e que às vezes me tempestade imensa, erguem-se das profundezas as forças de-
esmagam. Inúmeros e severos exames de consciência são ne- sencadeadas pela turbação dos equilíbrios que dormiam em paz.
cessários antes que nos aventuremos em certos campos e antes E gritam com vozes apavorantes de trovões, para reviver ainda
de ousarmos certas conclusões. Da calma, objetiva e fria análise e sempre. E nas profundezas há um medonho redemoinho inte-
com que, no volume precedente28, enfrentei o estudo do meu rior, uma batalha de negações e afirmações que desejam ser ab-
caso, procurando, eu próprio, até onde me foi possível, esmiu- solutas, uma explosão de rebeliões imprevistas, ilógicas, inex-
plicáveis e que não dão de si outra razão senão a de íntima sen-
28
As Noúres, já citado. (N. do A.) sação instintiva de uma verdade indestrutível.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 27
Minha percepção noúrica é imensa, sobretudo dentro de perder-se e ser negada; no entanto, para mim, ela é repleta de
mim; minha sensibilidade psíquica permite-me contato com reservas conceptuais inexauríveis, porque dela fluem continua-
uma vasta gama de planos de consciência, tanto no alto como mente ideias que antes eu ignorava. Habitualmente, no meu tra-
no fundo. Posso mirar não apenas os luminosos picos do super- balho de escritor, atinjo o manancial. Ponho-me a escrever mal
consciente, mas também as tenebrosas profundidades do sub- conhecendo o assunto e, enquanto escrevo, as ideias brotam da-
consciente. E, devo dizer, o passado é também pavorosamente quelas profundezas, e percebo a sua presença sensível na minha
profundo! Que há lá em baixo? Lá estão as raízes do mal e da consciência. Então, apodero-me delas, vejo-as, são minhas. Não
dor que o cansaço da vida traz consigo em cada dia e que é pre- sei onde e como, de outro modo, se poderiam procurar e, muito
ciso vencer. Há todo um mundo naqueles abismos da alma, to- menos, encontrar ideias que não estivessem em livros, que não
do o mistério do ser e do destino, o próprio mistério do univer- fossem a repetição de velhas coisas já ditas.
so. Daquele oceano profundo, onde mergulharam tantas dores e Mas onde estão estas, antes que me apareçam? E então, a
tantas vitórias, culpas e virtudes, emergem agora, inesperadas e dúvida: sou eu, ou não sou eu? É fácil um engano, mas, certa-
insuspeitadas, estas criações da sombra, para nos ajudar ou para mente, o eu não é tudo na base consciente. Aqui são outros os
nos punir, segundo o que nós fizemos. Dos quadros que se se- seus limites; um mundo mais vasto, que se revela aos poucos,
guirão adiante, poder-se-á ver que infernal e demoníaco passa- por síntese; tão forte que minha razão tem grande trabalho em
do é capaz de emergir dessas profundezas. Isto, embora se de- representá-lo com palavras; um mundo onde a concepção é tão
seje projetar ao exterior em estado físico, está sempre e só den- viva, luminosa e espontânea e também tão rebelde a todas as
tro de nós, num estado de inconsciência – quer seja o inferno normas do razoável, que me é muito trabalhoso dominá-lo e
nos estágios involuídos do subconsciente, com os seus demô- mantê-lo dócil à forma objetiva do pensamento comum. Este
nios (individualizações de forças pensamentos-vontades), quer mundo não está fora, mas dentro de mim. Esta grandiosa ex-
seja o paraíso nos estágios evoluídos do superconsciente. pansão é interior e se dirige à desmaterialização, ao supercons-
Daquela profundeza fala a voz do nosso destino e são con- ciente, a Deus. É surpreendente encontrar um super-eu ignoto e
cedidas as dádivas da felicidade que parecem casuais e gratui- tão vasto dentro de nós; mas não se pode negar que ele exista e
tas; vêm, enfim, as punições que se creem imerecidas. E a vi- que eu o sinta dentro de mim.
da flui como uma torrente que leva consigo todas as escórias É, então, o meu eu uma unidade tão extraordinariamente
do caminho percorrido e, sempre em marcha, deposita-as e se imensa, que contém em si, em sua profundeza, o universo con-
purifica. E, assim como a torrente tem uma vontade própria, ceptual onde estão os caminhos que conduzem a Deus? Se o
irrefreável, de andar, maleável e sujeita aos caminhos que o meio de comunicação está dentro de mim, eu não sou o meio de
terreno oferece, adaptando-se ou reagindo, também assim o comunicação, nem as noúres cósmicas com que me identifico.
destino tem uma trajetória ampla, impulsionada pelo seu pas- Mas a tudo chego e com tudo isto me unifico, aprofundando-me
sado, ativa e resoluta e, no entanto, flexível às circunstâncias, dentro de mim mesmo. Digo de mim mesmo, mas o fenômeno é
que aceita ou rejeita. Experimente-se, porém, opor um dique a universal e acessível a todos os que amadureceram. O super-
esse doce fluir de onda; a torrente e o destino amontoarão im- consciente parece, pois, conter tão vasto mundo, porque é a fase
pulsos e massas compactas, até se tornarem ameaçadores e de evolução em que o ser retoma contato e comunhão com esse
poderem tudo arrastar no seu ímpeto – expressão do domínio vasto mundo. É uma extensão maior que o espírito faz sua e on-
absoluto da Lei, pela qual aprendemos que é melhor andar de de se expande. É uma desmaterialização de substância que lhe
boa vontade, já que é impossível parar. permite a identificação de consciência com um campo imenso,
No extremo oposto, minha consciência se defronta com o antes exclusivo, do eu. E, então, esta nova imensidade conquis-
superconsciente. Embora eu tenha sempre falado e fale neste tada é uma imersão tão íntima, que se torna em realidade.
trabalho do lado positivo do fenômeno, descrevendo as emer- Justamente aqui, enquanto escrevo, este superconsciente está
sões evolutivas da minha consciência, não quis, nestas últimas presente e funciona. Sinto-o fazer pressão, túrgido de concep-
páginas, esquecer o lado negativo, de sombra, descrevendo mi- ções, e preciso me conter para não precipitar o concatenamento
nhas imersões involutivas. Contraste necessário estas oposições das ideias e saltar às conclusões. Sem dúvida, em mim o contro-
dos aspectos subumano e humano e do aspecto divino do fenô- le é contínuo. Mas, às vezes, a concepção é tão premente que
meno; necessária a exposição deste lado de debilidade e fracas- tenta seguir sozinha e não admite desvios. Eu mesmo, quando
so, de quedas e ressurgimentos – porque corresponde à verdade; começo a escrever, parto de uma ideia simples, já amadurecida,
porque torna o meu caso mais acessível à compreensão, huma- sem me preocupar com o seu desenvolvimento, que ignoro, e
nizando-o em alguns pontos; porque me reaproxima, me irmana, deixo-a caminhar espontaneamente. Assim, tão logo me identifi-
sob a mesma cruz, ao meu semelhante humilde e desconhecido co com um conceito, ele se torna meu, porque se grava preciso e
que luta e sofre sem a alegria das compensações espirituais. a fogo em minha consciência. Deixo-o andar e falar, porque o
Grande felicidade, mesmo porque duramente merecida, esta sinto como força viva, volitiva e autônoma, até que me revele
emersão no superconsciente. Este confinamento superconcep- todo o seu íntimo. Eu vivo deste estupendo trabalho agitado que
tual é para mim um fato de cotidiana experiência. Dir-se-ia que ultrapassa minha consciência, que parece ativa em toda parte,
minha consciência normal, pela contínua pressão que exerce mesmo na profundidade do mistério, onde lança seus tentáculos
sobre o desconhecido, sofre dilatações imprevistas. Dir-se-ia e segura e traz a si tudo o que encontra em sua sondagem.
que, às vezes, o invólucro que circunda e delimita o âmbito ce- Esta sensação de oceânicas profundidades em mim mes-
de a lacerações súbitas, através das quais penetram relâmpagos mo, a liberdade de atingir o inexaurível, a consciência de pos-
de luz ofuscante. Vejo assim aparecer constantemente, na mi- suir tal reserva de recursos conceptuais são para mim uma
nha consciência racional normal, súbitas concepções, vindas alegria, uma enorme sensação de poder. Parece-me ter atingi-
não sei de que ignotas profundidades. Sinto cada dia, com es- do as próprias raízes da vida, o princípio das coisas, a essên-
panto, fazer-se mais viva a presença desta mais vasta consciên- cia do absoluto. Escrever passa a ser, então, meditação, prece
cia intuitiva e mística, onde o racional se perde. Trata-se de que me aproxima de Deus. É destes páramos profundos, e não
uma nova consciência, cuja unidade de medida e pontos de re- da consciência normal, que afloram os pensamentos mais pu-
ferência são diversos; ela me parece interminável, porque ja- ros e mais belos, tanto mais puros e mais belos, quanto mais
mais acabo de percorrê-la e de conhecê-la inteira. Talvez al- profunda é a sua nascente. E eles parecem ofuscar-se quando
guém queira negá-la; todavia é para mim uma realidade sensí- saem à superfície da consciência, cristalizados em luzes que
vel, evidente. Pode a razão achá-la absurda, porque ela pode bruxuleiam e morrem, aprisionados nas palavras. São tão es-
28 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
plêndidos, fluidos e vivazes, que é doloroso paralisá-los em não desorientar o leitor de chofre, com a visão dos últimos pla-
formas imóveis. A palavra escrita é um ataúde ao qual eles nos, e para que ele veja quanto foi contida, controlada e guiada
não desejam descer. E, quando julgo havê-los assim aprisio- por mim a suprema loucura que está para acontecer. E eu, con-
nado, eles já estão mortos, e eu apresento apenas cadáveres. E tra meu próprio ímpeto de paixão, avanço temeroso, porque es-
ressurgem outra vez, mais vivos, mais esplêndidos, mais ver- pero afirmativas cada vez mais altas, deveres sempre mais gra-
dadeiros, e tornam a luzir, a brilhar no céu nebuloso do meu ves, revelações sempre mais solenes.
superconsciente, inexauríveis palpitações de uma sabedoria Minha alma percorreu o áspero caminho narrado no cap.
imensa, que vem de Deus. Sabendo-se e desejando-se amadu- XXV de I Fioretti di São Francesco29, a que já me reportei30.
recer, isso pode aparecer na consciência de todos. Colhamos os fenômenos da ascese espiritual no ponto mais in-
Se, na minha fase intuitiva, a emersão foi apenas conceptu- tenso e central, no momento mais notável de sua transformação,
al, de orientação e ajuizamento (A Grande Síntese), na atual fa- quando convergem todos os impulsos, coexistem todos os ele-
se mística a emersão é também de sentimentos; a dilatação não mentos, se juntam e fundem todas as forças e surge a última sín-
se verifica apenas na força do pensamento, mas também na in- tese, na qual o fenômeno se precipita em novos equilíbrios e se
tensidade de sensações e no fervor da paixão. É ainda emersão transmuda em novas orientações. Estamos no centro do drama.
de forças que me agarram e me engolfam na unificação. O fe- A vida é uma viagem, e eu sou um peregrino; serei sempre
nômeno se complica com o aparecimento desta força de atra- encontrado a caminhar. O meu último volume viveu e foi supe-
ção, pela qual não apenas eu me atiro à nascente para possuí-la, rado; minha alma não ficou saciada. Disse: ainda, ainda, quero
mas a nascente se projeta contra mim, para me submergir. Este subir ainda. E andei mais um ano, por um novo sulco, diferente
extravio do ser no infinito é tal dilatação de vida, que meu espí- do velho sulco traçado. Alinham-se assim os volumes, seguindo
rito ali retorna incansavelmente, agora que a vai conhecendo, as etapas do meu cansaço. Caminho, caminho pela infinita es-
voando-lhe em torno, como a falena que se atira à luz cegante e trada da vida. Como é grande a dor, como é espantoso o conhe-
não sossega enquanto não lhe cai em cima e se queima. cimento e infinito o universo; parece que jamais conseguiremos
O meu eu é uma escada que se prolonga ao infinito. Quanto chegar! E no fim está o abraço da morte irmã. Vai-se exausto de
mais avanço, mais vejo nas margens da estrada coisas maravilho- forças, carregado do pó da viagem, pesado de lama, de lágrimas
sas. Cada plano de consciência me dá uma síntese mais forte e e de sangue. Quanto trabalho para atravessar a vida! Em nenhum
mais luminosa do universo. O meu ser se inebria com este avan- ponto se sabe como a alma pôde arrastar-se até lá. À espera do
ço progressivo, com esta navegação pelo inexplorado, que revela abraço da morte irmã, a dor chama e martela. O leitor não sabe
sempre novos horizontes. O meu eu, indo de uma consciência a quanto sofrimento humano condiciona certos triunfos do espíri-
outra, no superconsciente desmaterializa-se, se rarefaz, sente di- to. Estou frequentemente muito cansado. Sinto-me culpado e
luir-se. É como se eu me evaporasse. No entanto é esta evapora- abatido. Esta minha pobre irmã carne chora abafada, já sem co-
ção, na qual já não reconheço o meu velho eu concreto, que me ragem para protestar. Pobrezinha! Ela sabe, porém, que o seu
leva longe. É uma decomposição, mas, no fundo dela, Deus se sacrifício era necessário a estas afirmativas de uma vida mais al-
substitui ao meu pequeno eu, porque tudo Ele absorve em Si. ta. Ofereceu-se e recua hoje, humanamente doente, sem um la-
Sinto, então, nascer em mim as palavras tremendas da Beata Ân- mento. Pobre irmã, obrigado por teu pequeno heroísmo. Ela o
gela de Foligno: “Tu és eu, e eu sou tu”; e aquelas de São Paulo: compreendeu. Ensinei-lhe, dia a dia, que ela não podia ser um
“Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim”. fim, mas apenas um meio. E ela disse ao meu espírito: “Vive tu,
E isto também pode se passar no coração de todos. então, que vales mais”. Há tempos, pedi ao meu corpo que se
oferecesse em holocausto, e ele me respondeu: “Toma-me”. E
III. DOR agora, ele é tão distinto e afastado de mim, que o considero co-
mo uma outra criatura que amo, porque à sua imolação devo a
Assim, o meu eu desce e vai de uma consciência a outra, do verdadeira vida. É justo que o menor se sacrifique ao maior. A
abismo da animalidade aos cumes do espírito; dos vários planos minha piedade deixa-o morrer tranquilamente.
me contemplo, enquanto, de síntese em síntese, avanço pela es- A dor bate, martela, consome e reedifica. É um martelar
trada da evolução. Exposto assim o meu panorama, observo-me rítmico, lacerante, que fere e desperta as profundezas. Esse
e penetro o mistério da minha alma. Com o superconsciente martelar arranca de minha alma gritos que são a sua voz, uma
alimento o consciente. Com este analiso aquele. Retraço, assim, voz que conta, com lógica e calma, uma história trágica e es-
os lineamentos de meu vulto psíquico na eternidade. tranha, profunda e sublime – a história de uma alma que con-
A minha exposição se faz cada vez mais pessoal e vivida. O quista o infinito. É para lançar estes gritos que são minhas
fenômeno, pela lenta deslocação dos panoramas, cada vez se obras, que enfrento e empenho minha vida; é para viver, viver
coloca com maior precisão e, desnudo em sua vibrante realida- e narrar este fenômeno supremo que suporto, sem auxílio nem
de, cada vez mais se aproxima do coração do leitor. Um livro piedade, a minha imensa dor interior, diante da qual estou so-
diz tudo sem o querer, especialmente o que não se quer dizer, zinho e não posso estar senão sozinho. Com a agonia do hu-
pela preocupação de calá-lo. A miragem que vibra nos olhos do mano se resgata o triunfo no divino.
escritor transfere-se para as suas páginas. Quem sonhou glórias, Contei às pedras a minha dor. Contei-a às ondas humildes, às
escreverá glórias; quem egoísmo, egoísmo; quem avidez, avi- árvores amigas, ao céu e ao vento. Minhas lágrimas ardentes ca-
dez; quem sensualidade, sensualidade. Mas também aquele que íram sobre as pedras, e elas não se partiram. O homem olhou-me
tudo lutou e sofreu pela elevação do espírito – diga o que dis-
29
ser, só falara sobre elevação do espírito. É como uma música de A história do áspero caminho é encontrada no Cap. XXV de I Fio-
fundo, uma cor predominante, uma psicologia dominante que retti em alguns textos, qual o usado pelo Prof. Ubaldi. Em outras edi-
não se quer, não se improvisa, não se inventa. Não se pode ções, a mesma história é narrada no capitulo seguinte. A excelente tra-
mentir através de volumes e volumes, diante de argumentos tão dução do padre português Aloysio Gonçalves (Florinhas do Glorioso
medonhamente grandes. Só quem tem para dar um testemunho São Francisco de Assis, Braga, Portugal, 1944), registra-a no cap.
XXV, mas I Fioretti di San Francesco (Rizzoli Edit., Milano, Itália,
que é mais forte que a vida e a morte pode, a cada passo, pro- 1949) traz o mesmo relato no cap. XXVI. Igualmente, as edições de
nunciar o nome de Deus. Vozes, de Durval de Morais, inclusive em São Francisco de Assis –
Já superei a exposição teórica. Devo agora dar do fenôme- Escritos e biografias – Crônicas do 1o Século Franciscano, Vozes –
no a impressão sempre mais viva, através da minha sensação. Cefepal, 1981 – assinalam o Cap. XXVI. (N. do T.)
30
Devo controlar-me e conter-me, avançando gradualmente, para As Noúres, Cap. IV – Os Grandes Inspirados. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 29
rindo, e as criaturas irmãs recolheram-se pensativas, em silêncio. lo aos que me seguem. Devo, até meu último alento, com a pa-
A onda humilde e casta vai ainda, murmurando, levar meu pran- lavra e o exemplo, dar a certeza da ideia que possuo. O que im-
to de crista em crista, sem compreender. É preciso ter gritado ao porta é a ideia, e não este inútil trapo de minha pessoa. Numa
mundo, sem resposta, uma grande paixão incompreendida; é exaltação de todo meu ser, grito com toda a força de minha voz
preciso arrastar-se, sangrando, sobre espinhos; é preciso ter atra- a verdade da vida eterna e da ressurreição no espírito. E digo:
vessado o deserto de todas as solidões e de todos os abandonos; vede e tocai, vós que não credes – eu o vivi.
é preciso ter perfurado com a cabeça as duras portas do céu para Neste volume, chego aos últimos degraus de minha vida. Es-
abri-las e, com o último alento, ter atirado para dentro a alma te é o livro da dor e do amor, o livro da unificação. Já realizei a
encolhida, para que o infinito se entregue e a visão de Deus apa- cansativa obra da condensação (A Grande Síntese) e do ajusta-
reça em seu deslumbrante esplendor. Aquele que se lança atra- mento conceptual – o trabalho que faz pensar. Cumpro aqui um
vés de certos caminhos deve perder o apoio da compreensão momento evolutivo diferente, não em termos de ciência, mas
humana. Deve, num certo ponto de seu caminho, encontrar-se com voz de paixão, a obra jubilosa da expansão, que faz chorar
só, porque ninguém mais está em seu plano – e só e sem ajuda e esperar, o livro do triunfo do sentimento e da fé. Chego com
tem que avançar por desconhecidas e ásperas estradas. Sobre a ele ao último ponto, onde Cristo, que já se avizinha, me espera;
Terra, indiferença, quando não sorrisos céticos e censuras. e, além de uma nova grande dor, que me faça digno, abrir-se-á o
Quando se tem sede de almas e ninguém sente tal febre espiritu- selo interior da devoção e do amor. Caindo e erguendo-me, an-
al – ninguém, então, compreenderá de que paixão se morre. dei através da vida. Os meus livros são um longo caminho de es-
Chegam, então, do céu, ao qual o espírito se prende como forço e de fé. Superei muitas etapas; meu pensamento desenvol-
última salvação, as provas maiores. Parece que as forças da veu-se em muitos conceitos; minha paixão amadureceu graças a
vida percebem a possibilidade de uma fuga e agarram-no para muito sofrimento. Ao fim de tanto trabalho de mente e de cora-
impedi-la. Parece desencadear-se, no dinamismo cósmico, ção, depois de tanto expor, não restará senão uma única palavra:
uma rebelião contra a nascente exceção, que viola a regra ge- Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese suprema do conheci-
ral, e começa o assalto. Só quem o experimentou pode imagi- mento e do amor, eu me inclinarei, satisfeito e feliz, para morrer.
nar que coisa é esta insurreição de forças, que exigem o nive- Saciado como quem, além de todas as ilusões humanas, reen-
lamento na mediocridade. controu a verdade absoluta; feliz como quem, além de todas as
Trágico e ciclópico destino, de conquista e de aflição, de vi- dores humanas, reencontrou sua suprema alegria.
sões e de trevas, em que me debato, criando no pensamento,
enquanto peço um repouso que não existe senão na morte. Só IV. RESSURREIÇÃO
no pensamento reside a minha mais intensa sensação de viver.
Nestes contatos super-humanos está, para mim, a razão de tudo, É realmente trágico alguém sentir em si mesmo este desfa-
o refúgio, o repouso, a nutrição e o cansaço. Sinto meu orga- zimento físico, ver diante de si ainda um imenso trabalho e vi-
nismo estalar sob tamanha tensão. E já estou sobrecarregado ver ansiosamente, no temor de que lhe venham a faltar as for-
com o trabalho normal de todos, necessário para o cumprimen- ças. E ter que consumir-se no trabalho humilde e pesado que a
to dos deveres e para se ganhar a vida. Mas o espírito está cal- vida impõe, e ter que esbanjar-se a mãos-cheias na luta estúpida
mo, observa satisfeito e vai espreitando os sintomas do fim, a que o constrange a filosofia dos demais. A natureza humana é
inebriado com a sua criação, triunfante e contente deste lento lenta e preguiçosa; arrasta-se a custo e segue de má vontade.
martírio, sonhando, nele, sua libertação e redenção. Tem a teimosia do asno, tem todos os vícios, a inércia e a fra-
Ofereço, fisicamente, o espetáculo do homem prostrado pe- queza da animalidade. A matéria é sombria, não compreende. O
lo lento trabalho da exaustão. Tenho a sensação de uma lon- inimigo está dentro de mim. O meu corpo é um meu irmão me-
guíssima agonia, em que as forças físicas se diluem. Não é mo- nor, que arrasto atrás de mim, com coragem e esforço E, no en-
léstia, nem lesão, ou alteração orgânica. É o extinguir-se, o tanto, tenho de lhe dar o que ele precisa, para que dê seu rendi-
dar-se de uma forma de vida, enquanto o essencial se coloca mento. Às vezes, lhe digo: “Ponhamo-nos de acordo irmão!
mais no alto. Os dois termos, matéria e espírito, são antitéticos. Não me dê atribulações inúteis! Vamos! Vença o peso de sua
Só em tal estado de prostração física se avizinham as transpa- matéria, e caminhemos juntos”. Mas ele para, tropeça, não
rências do céu. A ascensão espiritual é feita também desta aguenta. Dorme facilmente, e não sonha senão com curtas e fá-
desmaterialização exterior; tal sublimação da alma implica ceis descidas. Cada vibração de entusiasmo, cada arrepio de al-
também estas transformações íntimas da matéria. O corpo se ta paixão, todo o incêndio do meu espírito se desfaz rápido nes-
extingue e vaporiza-se numa dilatação imensa. Só neste estado se meio denso e inerte. Que luta entre o espírito ativo e a carne
se pode falar de coisas que já não são da Terra. Somente com a inimiga e sonolenta, que condena estas relações intolerantes en-
alma nua diante de Deus e com o corpo nu diante da morte, se tre ambos! A animalidade pretende impor a todo o ser a sua lei,
assume o dever da sinceridade absoluta e de certos testemu- e o espírito se atormenta para impor seu dinamismo. Onde um é
nhos supremos; somente sob o martelar tenaz da dor, olhando ardente, o outro é glacial. Pobre companheiro embrutecido!
para a morte e apresentando-se além dela, se tem o direito de Meu espírito espera tranquilamente tua aniquilação, para reali-
levantar a voz e de se falar em nome de Deus. zar seu sonho de fuga. Pobre corpo! Não és feito para voos.
E eu falarei, pelo direito que me dá o ter sofrido tanto, ter- Corres e ficas verdadeiramente extenuado! Consomes-te nesta
me oferecido em minha fadiga, que foi até à exaustão, e por ter marcha absurda, que não é feita para ti. Eu bem o sei! O edifí-
Cristo no coração; pelo direito que me confere o batismo da cio orgânico não suporta tão intensos e rápidos desenvolvimen-
dor, o espasmo da paixão, o dever, o amor. Uma voz imensa tos dinâmicos, tais tempestades de concepção, tais fulgurações
eleva-se de meus laboriosos silêncios; a dor me arrancará novos de paixões. Vejo-o às vezes tombar, dominado de exaustão do-
clamores, a visão me encherá de novos entusiasmos; eu senti lorosa, mas o espírito é insaciável, sem piedade. Esquece-o até
algo de inolvidável no tempo, lá longe, nos infinitos espaços do que ele chegue a extremos intoleráveis, e então a alma, também
meu espírito e não posso esquecer, não posso calar. E direi, sofrendo, observa a sua dor, acaricia-o, e ele se acalma; acom-
obedecendo a uma ordem que me é superior, que só eu conhe- panha-o na marcha, coloca-se ao seu flanco e leva-o junto, co-
ço, e que está por sobre todas as ordens humanas. Tenho de di- mo um irmão. E a matéria opaca se ilumina de sacrifício, es-
zer toda a minha verdade antes de morrer e, na morte, dar tes- plende nos reflexos do espírito e, em longa agonia, se oferece
temunho de minhas afirmações. Devo deitar a semente, para em holocausto ao triunfo do irmão maior, porque sabe que ele
que um dia germine. Recebi o archote da verdade e devo passá- é o único e legítimo herdeiro de sua síntese de vida e que a ele
30 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
pertence o futuro; sabe que esta é a Lei: pelo aniquilamento da minuto – o fenômeno da morte orgânica e da ressurreição espiri-
vida física nasce e cresce a vida espiritual. tual. No aniquilamento do corpo, a crosta opaca que me aprisio-
O corpo não pode viver nas altas temperaturas que o espírito na o espírito se faz cada vez mais diáfana; na exaustão física me
atinge em contato com o divino; naquela altíssima tensão, as fi- chega, então, e ouço-o cada vez mais límpido e mais distinto, o
bras humanas se rompem; naquele fogo espiritual, o corpo arde cântico que se eleva além das limitações. Insaciável, torno a es-
e se consome rapidamente; brilha subitamente numa chama vio- cutar e a ouvir, para trabalhar e para sacrificar-me ainda, até ao
lenta e se aniquila. No entanto, se é vencido ou triunfa, se morre último alento de minha paixão Ouço um martelar taciturno e in-
ou revive, se sofre ou é feliz, é belo. Ao declinar das forças físi- cessante sobre a bigorna da minha dor. Mas cada golpe acorda
cas, o canto sobe do fundo da alma, cada vez mais doce, mais nas profundezas uma ressonância nova, como o eco divino. A
sutil, mais belo. Afina-se pela dor, harmoniza-se com a harmo- cada golpe se rasga um pouco a minha alma e das feridas lampe-
nia do universo, conquistando novas ressonâncias em sintonia ja luz. Ouço um cortejo sempre mais frequente de golpes e de
com o infinito. É intuitivo que certas elevações espirituais, cer- respostas, com uma fatal aceleração de ritmo; amo e abraço mi-
tas realizações supremas não possam ser alcançadas senão à cus- nha dor, que me abre as portas. A cada instante, mais me inebrio
ta de repercussões no estrato inferior do próprio ser. É lógico ao sentir que, além do sensível e concebível, uma pulsação nova
que toda a unidade da pessoa seja arrastada no turbilhão da asce- e maravilhosa bate e responde. Cada pingo de tempo rasga um
se. Só a morte, com sua proximidade, pode dar ao espírito certa véu e destrói um obstáculo. Avanço, mas tenho medo, e me an-
luminosidade. Só um corpo quotidianamente açoitado pode faci- gustia este progressivo diminuir da distância. Mas estou em
litar certas transparências próprias da última purificação. Os que marcha e não posso deter-me. Não se interrompe um fenômeno
leem não podem saber de que sulcos de tormento desponta esta desencadeado. Tudo converge para a unificação. Caem, um a
nova flor de vida; de que destruição humana nasce a amplitude um, os últimos diafragmas. Sinto adelgaçar-se a parte sensorial
conceptual e passional que alimenta certos trabalhos literários; que ainda me detém. Que existirá ainda? Desfazem-se os últi-
de que massa de vida se deve dotar a palavra, para que seja mos liames. Darei um salto e cairei nas chamas.
quente e ativa. Não pode compreender que bases de angústia A fonte das emanações noúricas, da qual captei uma vez os
sustém o ímpeto festivo e exuberante da criação. meus registros inspirativos, era uma estrela brilhante e longín-
Conheço esse tormento e o aceito. Cada volume me parece qua que me olhava do céu. Mas o transmissor aproximou-se do
o último, mas sei que haverá outro amanhã, embora hoje o ig- receptor, que, ao longo daquele raio, se encaminhou para o céu.
nore. E retomarei o livro de minhas confissões; diante de mim, Agora, a estrela, sempre mais próxima, se tornou imensa, a
uma resma de folhas em branco; dentro de mim, a minha pai- ponto de invadir e ocultar todo o meu horizonte. Aquele fio de
xão. Viver, evoluir, escrever. Caminha, caminha! E esta fatal fria concepção aqueceu-se e tornou-se um incêndio. A luz trê-
caminhada não cessará senão pela extrema exaustão. O futuro é mula de uma estrela longínqua é agora um flamejar de meteoro
infinito; diante do eterno amanhã, todo o passado é sempre um flamejante que me atrai ao seu campo de ação e me envolve
prelúdio. Conheço o tormento da criação, mas torno a dar-me, numa tempestade de forças. Sinto-o chegar, raptar-me e me ab-
torno a abandonar-me àquela febre que me dá a vida e a morte, sorver, como uma labareda imensa, à qual não posso fugir.
que me eleva e sustém na sublime exultação das intensas reali- Quereria, mas é tarde. Quereria escapar a este último aniquila-
zações e que, no entanto, me destrói e me foge do corpo. Este mento, e não sei. Sinto-me preso em sua órbita; a minha massa
trabalho me despedaça, mas eu abro para o mundo uma nova é lançada e a trajetória se restringe. Perder-me-ei naquela luz e
janela no céu, e o espírito vence. É a sua hora. nem me reconhecerei a mim mesmo. Aperta-me a alma um
Estou falando de morte e devia falar de vida; continuo abraço imenso, ouço as pulsações de meu coração ecoando pelo
olhando a terra enquanto o céu me chama. Este estado não é universo, e em cada ângulo do infinito responde uma palpitação
fim, mas começo; não é poente, mas alvorada; não é derrota, fraterna. É um amor novo, inextinguível, sem fronteiras, que se
mas triunfo. Esta é a maravilhosa realidade que eu vivo, e hei recurva sobre todas as almas irmãs. É uma vida tão vasta que
de gritá-la cada vez mais alto. Ouça-me o leitor. Minha alma já revive na vida de todos os seres.
está além da vida. Escrevo diante de Deus e da morte, nu diante Fenômeno de força astronômica. Compreendo que é uma
de tudo o que foi criado e me vê. Não pode ser mentira. Perso- enormidade falar de mim mesmo nestes termos. Mas, nesse fe-
nifico, neste momento, o fenômeno apocalíptico da minha nômeno, me anulo. Eu o sei. Aqui em baixo, sempre se receia
grande revolução biológica e o apresento no momento decisivo que o nosso semelhante seja maior do que nós. Mas não falo
de sua maturação, carregado dos aspectos mais ricos, vivos em de minha grandeza – falo da grandeza de todos. Todos podem
mim no mais forte contraste de forças antagônicas. Estamos no subir e subirão, fatalmente. Dos meus conceitos muito pouco
centro do drama. A besta e o anjo que vivem em mim empe- atribuo a mim mesmo – nada mais que o esforço de ir colhê-
nham-se nos últimos assaltos. As forças da vida apertam o cer- los. Se assim falo de mim, é porque o meu eu é apenas uma
co fatal, e todo um processo se fecha; longa travessia de milê- centelha de vida no seio de Deus, é uma força que não pode ser
nios, lenta e dolorosamente seguida, se precipita num instante separada do universal organismo. Falo, portanto, de mim e de
que tudo refaz, contém e justifica. Aqui está em mim o supremo todos, porque neste plano não se fazem distinções. Em suma, o
drama humano de uma vida que se extingue; aqui está em mim meu novo amor me leva a falar, para guiar à libertação aqueles
o supremo drama divino de uma vida que ressurge. O sacrifício que sofrem. A minha experiência é perturbadora para mim. E é
humano foi imenso, mas o resultado final do meu trabalho su- humano gritar a própria alegria suprema, a vitória do espírito
perou toda a minha expectativa. Não vem a mim apenas a luz pela qual se lutou e gastou uma vida. É humano, para quem
do mistério; vem a meu encontro o amor de Deus. superou o terror dos abismos e a amargura de todas as ilusões,
Tenho a sensação de que profundos abalos se dão em mim, dizer ao irmão ainda inexperiente: “Vê! Esta é a vida! Assim te
como se planos inteiros da minha consciência se desmoronas- falo, porque assim vivi. Pode ser que a minha verdade te con-
sem. E, no fundo das ruínas, encontro ressurreições estupefaci- venha”. E como posso recusar-me a alegria de evitar um peri-
entes. Aquelas prostrações são a condição de reações profundas, go aos outros, de poupar uma dor aos demais? Eu também es-
que têm a virtude de trazer à luz o mistério da alma, de fazer pe- tou ligado a esta lei de coesão universal, que traz unidos os
netrar o meu eu consciente nas camadas profundas. Procedo por mundos bem como as almas; aquele que evolui sente necessi-
mergulhos no abismo e ressurgimentos, como as ondas do mar, dade, para poder gozar de sua evolução, de voltar-se para trás e
e destas grandes oscilações nasce um poder sempre maior do es- comunicá-la aos próprios irmãos. Alegria isolada não é jamais
pírito. Vivo lentamente, saboreando-o e controlando-o, minuto a alegria: o amor é a grande lei da vida.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 31
V. A EXPANSÃO mais alto o fenômeno da explosão do átomo, que desenvolve
reservas inexauríveis de energia radiante. O sistema cinético fe-
Propus-me, nestes capítulos, a dar minha sensação do fenô- chado, de trajetórias em circuito de retorno sobre si mesmo
meno e aqui estou, já bastante atarefado na exposição racional (átomo, egoísmo), no qual o existir é justamente este contínuo
de sua compreensão. É esta minha sensação que para cá devo rodopiar egocêntrico e a sensação do eu, pela inexorável pulsa-
trazer, aproximando-a dos olhos do leitor. Meu primeiro dever ção de todas suas forças interiores contra a trajetória limitada
é a espontaneidade, para que tudo seja exposto aqui, fora de do sistema, não superada, se transforma num sistema cinético
mim, tal como em mim foi vivido. Nenhum freio impede, já aberto, de trajetórias impetuosas, radiantes (energia, onda, per-
agora, o ímpeto do meu entusiasmo e da minha paixão. Preocu- sonalidade radiante), onde o existir se identifica com o movi-
pações de incompreensão mutilariam meu pensamento; já não mento e a sensação do eu: uma expansão que se estende até à
me posso deter. A psique normal está habituada ao âmbito fe- identificação com o todo. Fenômeno de libertação, de multipli-
chado de seus limites e não se reencontra neste confinamento cação, de superamento. O movimento sucede à estagnação, o
de valores. Há necessidade de tatear a solidez de sua prisão, de voo ao passo. O existir não está mais em permanecer, mas em
se identificar no invólucro, para se sentir, viver. É aquela rea- andar. Ao atual tipo humano do eu estático sucede o tipo, hoje
ção de retorno das forças, girando em campo fechado, que dá a dificilmente concebível, do eu dinâmico.
sensação do eu. Mas, quando todas as resistências cedem e as A sensação de vida é um extravasar ilimitado, que a princí-
paredes se abatem, não há possibilidades suficientes para que se pio aturde; é um dilatar-se de impulsos; é aquela desmateriali-
abranjam os novos horizontes. Trata-se, aqui, de uma explosão zação na qual se traduz, justamente, a evolução. Faltará consis-
da alma, que, em sua expansão, vaporiza-se e não sabe se reen- tência a essa sensação; mas, em troca, quanto espaço conquis-
contrar, de improviso, no todo; falta-lhe então a pressão do con- tado! Não nos sentimos mais concretamente como antes: senti-
finamento na mente (ignorância) e no coração (egoísmo), que mo-nos em tudo! Eis de que técnica fenomênica nascem e co-
faziam concretamente sensível a identidade. É muito diferente mo se justificam as minhas sensações. Assim, perde-se a indi-
sentir-se o eu na identificação da própria mente no conhecimen- vidualidade humana circunscrita, para se adquirir uma nova e
to universal e do próprio coração no amor de Deus. imensa, no seio de Deus. Assim, compreende-se como eu pos-
Subindo aos superiores planos da evolução, o eu se torna sa, como afirmo, atingir e possuir o sentido da unificação;
uma unidade completamente distinta. Já vimos, na recepção compreende-se a origem de muitas das minhas estranhas ex-
inspirativa, que a certas altitudes conceptuais, não se encon- pressões e a grande lógica da aparente loucura; compreende-se
tram entidades pessoais no sentido humano, mas somente noú- como a ascensão da alma para Deus, que é a substância da evo-
res, ou correntes de pensamento, e que, para se conseguir lução e a razão da vida, seja um processo de harmonização, isto
imergir nestas correntes, é necessário transformar-se evoluti- é, de progressiva sintonização na harmonia suprema.
vamente, até esses planos e dimensões. Ora, quando a consci- Subindo, tudo se reúne e converge à fonte comum: a verda-
ência humana passa da fase intuitiva das simples comunica- de una, o amor uno. Aqui em baixo, tudo está dividido: as ver-
ções à fase mística da identificação, perde permanentemente, e dades são diversas, os egoísmos diferentes, o amor limitado e
não ocasionalmente, como no período receptivo, suas caracte- desunido em cada criatura. Nesta transformação de consciência,
rísticas de personalidade humana, mudando-se por evolução, o esforço da evolução é largamente compensado. A grande as-
até se transformar naquele tipo de consciência que o inspirado piração e a maior alegria da vida, que é a expansão, alcança aí
encontrara em suas ascensões, isto é, numa noúre ou corrente sua satisfação mais completa. As pequenas portas humanas se
de pensamentos. Em outros termos, transforma-se numa perso- abrem de par em par. O eu não tem mais necessidade de se obs-
nalidade radiante. A alma humana já é, inicialmente, um esta- tinar e se restringir, porque se unifica no todo e o todo é seu. E
do vibratório, uma corrente de pensamento, e é isto exatamente cada um sente no seu instinto quanto a alma sofre aqui em bai-
o que sobrevêm na desmaterialização do processo evolutivo. xo, onde, a cada passo, a sua marcha tropeça num mundo de
Este tipo de consciência é igualmente identificável, conservan- obstáculos. Todos sentem quanto a terra se opõe a essa ânsia de
do uma individualidade característica, porém não pessoal no liberdade. O maior e mais ardente desejo de todos não é esse de
sentido humano. O eu, evoluindo, sofreu um processo de ex- fugir ao espaço, ao tempo, superar as formas do pensamento, de
pansão; já não é mais um campo de forças confinado em si conquistar, multiplicar-se em novas forças? Esta superação es-
mesmo, como a matéria, mas um sistema cinético radiante, pacial-temporal não é a base e a essência do nosso progresso
como a energia. A identificação já não é feita, então, no senti- mecânico? Só por este motivo, isso é evolução, porque é evasão
do humano da circunscrição e da distinção, mas num outro dos limites e superação das dimensões. Todos desejam riqueza,
sentido, o do tipo individual de vibrações que, em uma consci- força, liberdade, amor. Mas é esta outra a verdadeira riqueza, a
ência radiante dilatada não pode ser, agora, senão a única for- verdadeira força, a verdadeira liberdade, o verdadeiro amor,
ma de identificação. Assim é, e só assim acontece com aquele porque tudo se amplia no próprio poder de percepção, numa
que constata seu aparecimento, sozinho, no plano noúrico, ou sensação ilimitada, numa consciência onipresente.
seja, na superposição de consciência, na identificação e na fu- Chega-se a unificação com Deus depois de se haver com-
são por grupos, dentro do seu tipo de vibrações. E só assim se preendido, numa síntese conceptual, o funcionamento orgânico
pode explicar e compreender o fenômeno da unificação, que do universo, fundindo-se e identificando-se com a alma univer-
no plano humano será sempre um mistério. sal. Este é o rumo do ser: a realização da maior felicidade, por-
Estas transformações profundas no modo de existir expli- que, ao mesmo tempo, da mais vasta expansão. De outro modo,
cam o esmagamento do espírito que chega a esta fase de evolu- tudo será uma trabalheira inútil. O instinto insaciável da alma
ção. O eu não se vê mais em suas vestes de personalidade hu- está manifesto, mas a porta de entrada está no céu, e não na ter-
mana e distinta e não se reconhece nesta sua nova forma radian- ra. Aqui em baixo, no ambiente fechado, a expansão se reduz a
te, em sistema cinético aberto, como noúre ilimitada, livre. A violência recíproca, pela angústia de espaço. Aqui em baixo, is-
expansão lhe dá o sentido da dispersão. No entanto, é este, para to não se obtém senão roubando-o aos semelhantes, senão
todos, o futuro da evolução biológica em seu plano psíquico oprimindo e esmagando, mas não é assim no céu! A que extre-
superior. Esta é a transformação de dimensões, o ingresso num mos opostos estamos sobre a terra, onde a afirmação do eu é a
novo universo, ou seja, em breve explicação, o que nos espera luta de todos contra todos, é a imposição, a extorsão e a coerção
além dos portais. Superando, por evolução, o limiar, a consci- do mais forte para com o mais fraco. Que dissonâncias, que
ência naturalmente muda suas características. Retorna ao nível atritos, que dispersão de energias, que inferno. No entanto o
32 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
universo é ordem, é música, é amor e tal aparecerá, com esma- eu projetaram-se para o Alto num ímpeto de paixão. Atônito,
gadora evidência, assim que a alma se curve às realidades mais assisto a minha dissolução e a minha ressurreição.
profundas. Esta é a maravilha que nos espera, transposto o li- O grau de ascensão do ser nos planos espirituais mede-se pe-
miar. A verdadeira expansão está nas dimensões superiores do lo grau de harmonização conseguido pela consciência no orga-
espírito. Só assim ele, o insaciável, poderá ficar saciado! nismo universal, pelo grau de identificação com o todo, de uni-
Assim nasce, entre o místico e o mundo, um antagonismo ficação com Deus. E o índice exterior da harmonização, o sen-
irredutível, um abismo de incompreensão. Tudo, logicamente, timento pelo qual esta se revela sensível, é o amor. É o grau com
depende das diversíssimas colocações do problema, pela diver- que se apazigua a luta, se dilata o altruísmo; o grau com que se
síssima situação do centro da vida. O grande trespasse não é a sabe ouvir a música da criação e irmanar-se a todas as criaturas;
morte. Pode-se morrer e renascer em vida, segundo o grau de o grau com que se sabe sofrer por amor, pelo bem dos nossos
espiritualidade conseguida. Quando subimos, desaparecem as semelhantes. O amor é a forma com que a personalidade radian-
distinções humanas. A matéria divide, o espírito unifica. Quan- te alcança a identificação vibratória com as correntes divinas; o
tos estridores dissonantes em baixo, quantas harmonias paradi- amor é o sinal da unificação. Chega-se a Deus, mesmo em meio
síacas em cima! Faz-se tão profunda a harmonização das criatu- à dor, com a alma contente, cantando e louvando; subindo de
ras quando sobem para o Centro, que a harmonia adquire uma harmonia em harmonia, de amor em amor. O grau de ascese
intensidade inviolável. Faz-se tão poderosa, que não há mais mede-se pelo grau com que a alma venceu a dor com alegria,
dissonâncias que a possam perturbar. Tão forte, que não há vo- absorveu no bem o mal, harmonizou na ordem as dissonâncias.
zes maldosas que a possam dominar. Tão doce, que nenhuma Este amor é uma palpitação secreta e interior, potente e
dor poderá mais poluí-la! E fatalmente, gradativamente, dor e submissa, violenta e, no entanto, doce; por vias íntimas, ele se
mal são reabsorvidos e anulados nessa suprema harmonia. propaga em silêncio, de ser a ser, e alcança longe. Tão longe,
que o coração abraça em si tudo o que foi criado. Amor pro-
VI. A HARMONIZAÇÃO fundo e amplo, que penetra em tudo e em toda parte encontra
seres para amar. Satisfação superior ao desejo. É grande esta
A Lei se cumpre, e eu observo o seu fatal avanço. A matu- maravilha, num mundo onde o desejo é sempre maior que sua
ração é um processo tão lógico, um concatenamento de forças satisfação. É uma ebriedade sem limites esta vibração imensa,
tão equilibrado, que me parece natural. Na evolução, alto e bai- onipresente, indestrutível; este abrir-se de almas para se der-
xo são relativos, e não vejo em mim nenhuma superioridade ramarem umas nas outras. Já era tão grande a alegria do tímido
excepcional. Eu persigo a minha alegria, como o fazem todos. escapar de um raio de amor humano, de um egoísmo para ou-
Apenas, persigo uma alegria mais verdadeira, por meios mais tro egoísmo! Que paraíso não será então este de poder ouvir,
incomuns, e alcanço-a. O universo é harmonia que guia ao su- onde quer que seja, para onde quer que a mente se dirija, além
premo amor, que é Deus. Eu, simplesmente, me harmonizo. Is- de todas as barreiras do espaço e do tempo – ouvir uma palpi-
to é tão espontâneo, que qualquer sensação de fadiga desapare- tação de retorno que diz: “amo-te!”. E então, a alma grita;
ce. Não creio que me possa arrogar mérito por isso. Chega-se a “Descobri o amor! Venham a mim, humanos que o buscais!
isso naturalmente, fora da medida das grandezas humanas. Ofe- Não é o vosso, o amor. Descobri o amor! Isto não é loucura, é
recer-se em sacrifício é a lei natural de coesão neste plano. E, se alegria. Sorria, quem o quiser. Eu canto, eu vivo, eu gozo, eu
a dor inimiga é amada, não é por loucura, mas porque já se ex- afirmo! Os que negarem ficarão em suas trevas”.
perimentou que esse é o meio de conquista. Bendiz-se, então, a A tremenda luta humana e animal se desarma completa-
lei de Deus que fere, porque se sente que por trás da prova está mente diante da força luminosa do amor. Amei tanto, que
o Seu amor. Falo de forças ativas e sensíveis, de conquistas re- também tu, dor inimiga, te tornaste amiga. Doce irmã morte,
ais. Não se creia que os estados místicos sejam uma absurda amei tanto, que tu também me apareces envolta em amor. En-
exceção à universal lei utilitária do mínimo meio31 e maior ren- tão, apenas se pode dizer: “Meu corpo está cansado e eu can-
dimento, o qual deve estar sempre em termos de felicidade. A to; o meu corpo sofre, e eu canto; o meu corpo morre... e eu
sensação do sublime paga largamente cada esforço, e aos práti- canto”. Eis o paraíso, fruto não da morte, mas da maturação
cos poderia dizer: “o negócio convém”. íntima, que sempre se pode alcançar.
Esta harmonização progressiva, que através de todos os se- Então, na própria alma repercutem todos os ecos do univer-
res se eleva ao amor de Deus, é uma vibração tão grandiosa, le- so, em música solene e profunda onde canta a voz de Deus. Es-
va a tão grandioso êxtase, que se alcança a suprema felicidade. ta música embala e adormece a minha dor. Identificando-me
Que posso desejar mais? Nenhuma insaciabilidade humana po- àquela vibração, me aligeiro e posso fugir ao peso da matéria.
derá jamais ser tão saciada. Caíram, para mim, os véus dos mis- Este amor tornou meus amigos os rochedos, as sarças e as
térios, e minha mente está satisfeita. Na harmonização, agora, tempestades; irmãos meus o homem e a fera. Tornou minha
caem as barreiras do amor, e o meu coração está satisfeito. De- amiga também tu, irmã morte, que marcarás o último impulso
pois da festa da compreensão, a festa da expansão. Depois da de minha fadiga terrena. O amor vence a dor e a morte. Que
alegria de ver com inteligência, a alegria de apreender com as transmutação de valores, que maravilhosa libertação! A feroci-
minhas sensações. A mente fundiu-se na luz divina, alcançando dade de cada pena é domesticada pela elevação; o irmão lobo
a unidade no conhecimento da verdade. Agora, o coração des- faz-me carícias. E, então, as ressonâncias da vida mudam ao
perta e se eleva àquela mesma altitude, para alcançar a unidade toque desta força. Acalmam-se todas as rebeliões, adormece o
no amor. O processo de unificação no conhecimento e no amor cansaço. De cada ato de bondade emana música tão doce, que
– meta suprema da vida – é único, para a inteligência e para o reabsorve toda a aspereza do sacrifício que o ato impõe. A
coração. Só então estará completo. bondade, aqui, abre a porta de uma lei superior, cujas harmo-
Onde está, agora, minha pobre percepção inspirativa, aquela nias são tão fortes, que neutralizam o sofrimento e o cansaço
espiral aberta para o céu, se as portas estão escancaradas e cho- da renúncia. Trata-se de uma superior estética do espírito, cuja
vem, com a luz, torrentes de sensações? A intuição tornou-se beleza supera todas as belezas. O sacrifício expande-se por es-
visão, um rapto, um êxtase. Chegou como uma explosão de to- ta ressurreição numa vida maior e conquistada; transforma-se
da a minha personalidade, um soerguimento total do meu ser, numa limpidez de visão, num amplexo de amor. A perda está
lançado como uma onda para o céu. Todas as potências do meu no restrito ângulo visual humano, não no divino, onde existe
afirmação, alegria, beleza. Eu ouvi esta música divina; ela can-
31
Veja nota de rodapé – Cap. XX, da 1a parte. (N. do T.) ta no sacrifício, e estou sedento por ouvi-la de novo. O cansaço
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 33
se vai, e a música fica. Então, a alma não grita somente: “Des- Assim, a música das coisas se pôs a cantar dentro de mim;
cobri o amor!”, mas grita também: “Venci a dor!”. a beleza, a força, o amor do todo revive em mim. Os fenôme-
E tudo adquire um sabor novo; irradia-se uma alegria que nos, a vida, o universo, já não estão afastados e no exterior,
se difunde sobre todas as coisas. A alma se torna um canal por mas falam, existem em mim. Na unificação perde-se o sentido
onde desce e se difunde o amor divino. Com alegria se reto- das distinções. A compreensão é um abraço. Já não sou apenas
ma, a cada manhã, o fardo da vida. É o trabalho comum de to- um espectador de fora ante o panorama da criação e a arquite-
dos; mas um sentido divino que lhe bafeja dentro, torna-o san- tura do universo, para deduzir e subir à Divindade, mas estou
to e esplendente. Dirão: “Ora, velharias!”. Respondemos: em comunhão interior com a Sua vibração. O meu olhar é um
“que se dizem, mas não se fazem, não se sentem”. Dentro da- gesto que aperta ao meu coração todos os seres que comigo vi-
quela fadiga, que é a mesma por fora, arde tal luminosidade vem em Deus. E todos cantamos o mesmo canto, vibramos na
de bem, tal beatitude de espírito, uma tão vivida bênção de mesma harmonia, abraçamo-nos com o mesmo amor, vivemos
Deus, tanta fé e tanto amor, que tudo se transforma, como por a mesma alegria de viver, sofremos e estamos redimidos pela
toque mágico. Então, e só então, a vida é verdadeiramente be- mesma dor, subimos todos com o mesmo esforço para o mes-
la. Então, o homem, curvado ante o caminho, levanta-se a ca- mo Deus. Da fria análise da mente os conceitos emergem aqui
da manhã com a alegria no coração, porque sabe que é santa a como figuras vivas que falam a realidade da sensação. Tudo se
renovada fadiga que o reconduz a Deus; e à noite, na carne move, os fenômenos vivem, os seres respondem, as almas
cansada, o espírito exulta, rendendo graças pelo dever cum- amam. O pensamento vivifica o espaço. A verdade se torna
prido, pelo novo pedaço de caminho percorrido. Sabe que a tangível. O todo toca a minha expansão de consciência. Deus,
dor escreve, além do tempo, aquilo que não se apaga mais. O então, é real, presente, atual e ativo, em mim e em torno de
corpo se abate, e a alma se abre; dentro dela cantam as har- mim. Para onde quer que me volte, esta sensação absoluta
monias do universo. Aquela alegria é a alegria de toda a cria- emerge de todas as coisas; o universo se ergue e vem ao meu
ção, e transborda, e volta, e não há força que a amordace. encontro, como uma onda imensa, esmagadora. Morre-se em si
Então, me vem uma nova coragem de viver, um desejo de mesmo, no próprio egoísmo, para ressurgir em todas as coisas.
dar às minhas forças um maior rendimento de bem, um medo A palavra „eu‟ assume um significado diferente. A evolução
de dispersão humana porque tudo se concentra no divino. E rompeu os diques, e o universo irrompe em mim.
retorno a todos os seres, numa larga multiplicação de amor; Não são destilações teológicas, nem sublimações passionais,
olho todas as faces do universo, porque me falam de Deus. E, mas estupenda realidade vivida. Esta é a minha alegria, depois de
então, tudo é amor em torno de mim, dentro e fora de mim. ter deixado para trás as alegrias humanas. Esta é a minha prece.
Amor, alma dos fenômenos, centelha da vida, grandeza divi- Os lábios estão mudos, a mente está muda e não sabe mais for-
na. Mas eu quero esta união profunda e completa, esta com- mular pensamentos. O meu eu está suspenso, trepidante, sobre as
penetração e identificação que o amor humano não dá; quero asas desta vibração que enche o universo; ele não sabe, não sabe
o amplexo sem fim, imenso, com todo o universo; quero o nada mais que esta sua imensa alegria, demasiado vasta para que
amor sem egoísmo, perfeito, indivisível, eterno. Quero o ver- se conheça toda. Canta, porque tudo canta. A música não é sua e
dadeiro amor, mais forte que a morte. apenas ecoa, se desenvolve, sai, expande-se dentro dele, até se
Que importa se a pesada cruz da vida me faz sangrar ao tornar o seu próprio modo de ser. A vibração autônoma da distin-
longo do caminho, se eu tudo possuo, se eu avanço estreitamen- ção se perdeu e se anulou na vibração mais ampla.
te unido, coração a coração, com todas as criaturas irmãs? Se a Chegou a liberdade de todas as compressões humanas, a ex-
florzinha que eu colho me dá o seu perfume e morre, dizendo: plosão, a fuga não para o exterior, que é o caminho que restrin-
“Amo-te, irmão”? Se os animais, as rochas, o vento, os espaços, ge, mas para o interior, que é o caminho da expansão. Projetan-
me dizem: “Amo-te”? Se as estrelas e as imponderáveis forças do-se sensorialmente ao exterior, o eu se engolfa no particular,
giram em torno de mim, em maravilhoso equilíbrio e sinfonia no relativo, na ilusão. Por ai se adensam os véus, se levantam as
de movimento, para me dizerem: “Amo-te, irmão”? barreiras, se desce em dimensão, as ideias se ocultam. Uma es-
Então, meu espírito explode na suprema loucura, e sou en- pessa névoa obscurece a consciência. É o caminho das trevas.
volvido na esteira luminosa de Cristo e nela me dissolvo. Es- Vejo este abismo, que está sob mim, em sentido involutivo, um
queci o meu eu. Não existe, não se reconhece mais. Está morto. abismo de angústia e de desejo, onde o maior mal é a cegueira
Ressurrecto. Não sou mais eu, no entanto estou vivo e presente, que impede a visão de Deus. É o inferno. Ele está na impossibi-
em um novo mundo, mudado, renovado, imenso. Eu sou tudo o lidade de corresponder às vibrações da luz divina. O eu destru-
que é o meu amor. O meu amor está em todas criaturas; o meu iu-se num beco estreito e grita, invoca e sofre inutilmente, ba-
é o seu eu; o meu canto é o seu canto; a minha alegria é a sua tendo em todas as portas, que se conservam fechadas à sua ex-
alegria. E que morte pode fechar esta vida universal sem limites pansão. Ouço vozes desesperadas subir daqueles densos invó-
de tempo e de espaço? lucros. A pobre alma se debate no seu tormento, na sua sensibi-
lidade, contra as paredes espessas e tenazes. Deve transpô-las
VII. A UNIFICAÇÃO com a sua paixão, demoli-las com o gotejar de seu sangue. A
cada novo espasmo, uma pedra se move e cai. Que festa a do
Através do amor realiza-se o mistério da unificação. O espírito ao se abrirem as primeiras brechas! Vejo os prisionei-
pensamento comum sobrevoa, não toca a vida; a simples ros esgueirarem-se da prisão derruída, emergir dos muros de-
compreensão da verdade não desce à profundidade da alma molidos e, finalmente livres, lançarem-se ao infinito. Vejo a
para convulsioná-la com suas sensações. No plano místico, o maré dos seres sair das trevas para a luz. Isto é a vida. E é tal
pensamento é vida, cada conceito que emito é um fato que aquela treva, que, além de certo grau, minha vista já não a pe-
desceu e se estampou no espírito. A fria concepção transmu- netra; e é tal aquela luz, que, além de certo limite, os meus
dou-se aqui em renovação de alma. A suprema abstração do olhos já não a suportam. E a treva é também dissonância, como
conceito de Deus avizinha-se e se torna sensível descida ao a luz é harmonia. A treva é densidade de matéria, sufocação de
centro da própria consciência. Deus não se aproxima, não se espírito, malvadez, ira, desespero. A luz é transparência de es-
mostra: sente-se. A fria ideia da verdade se aquece, se anima e pírito, felicidade, bondade, amor e bênção.
vibra nas palpitações de todo o universo. A sinfonia da cria- Sinto a luz mover-se em direção às trevas. E a força de pe-
ção não se vê apenas por compreensão: toca-se por percepção. netração é atração que redime e levanta. As trevas são inércia,
E isto é a sublimidade do êxtase. resistência, negação. Sinto o choque e a luta entre as duas for-
34 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
ças: o bem e o mal. Alcançam-se e se dilaceram. Sinto o entre- nho força para ficar no meu posto de análise, porque a sensa-
choque, que faz tremer o universo. A luz ataca com a violência ção brota com método. Minha carne adormece absorvida, e ou-
do amor, que conquista os corações; o ódio resiste tenazmente, ço-lhe, longe, as lentas palpitações; no paroxismo de sua ten-
as trevas gritam o seu terror. E desenvolve-se uma hierarquia de são rompe-se minha alma. Tenho que comprimir a instantanei-
irmanações, uma descida de auxílios, um entrançado de atra- dade do pensamento e calcá-lo em palavras. Estou sedento de
ções e repulsões. Vejo o turbilhão do amor projetar-se do alto Deus. Humilho-me, anulo-me, e isto me eleva. Queimo-me e
para baixo, lutar para entrar. Num momento supremo da histó- me prostro, e isto me alimenta e satisfaz. Está satisfeita, final-
ria do mundo, vejo o vórtice do amor projetar-se com extrema mente, a minha insaciável alma.
violência, e a maré de dor crescer até ao ponto de tocar o vórti- Tenho nos olhos uma poeira de ouro; nos ouvidos, música
ce. E, então, aparece Cristo. Então, a terra chega ao céu e o céu inebriante; em todos os sentidos, uma sublimação suprema. De-
desce a terra, e entre os dois extremos, do amor e da dor, nasce sejaria abandonar esta pena inerte, que não sabe chorar nem
o milagre da redenção. Sinto ressoar em meu coração a euforia amar comigo. No meu interior se processa a dança soberba e
daquela fusão e o cantar da alegria daquela redenção, como coi- harmoniosa das forças cósmicas, que cantam uma canção pro-
sa minha, porque eu também estou naquela maré de dor que foi funda e inefável. Penetra-me uma música de movimentos e de
apanhada e fundida no incêndio de amor. ressonâncias tão transcendentais, que não as sei exprimir. Deus
É, verdadeiramente, a suprema maturação de uma alma isto se reparte no seu esplendor; o mistério se abre como melodia, a
que conto. É coisa que não se pode fingir nem improvisar. Tais ideia é viva e revive das coisas em mim. Aproximo-me do cen-
palavras não se escrevem a frio, com a satisfação calma de quem tro, onde todas as manifestações se encontram, onde todas as
se equilibra entre as coisas da Terra. Há em mim um espasmo de expressões se equivalem, todas as manifestações se unificam.
alma que grita sua alegria e seu cansaço, uma explosão, uma Toco a unidade fundamental do verdadeiro e do belo, o mo-
paixão por qualquer coisa de sobre-humano que está para che- mento em que convergem e se fundem, o ponto de apoio que
gar. O sublime quer descer à minha pena, que não resiste e está sustém todas as vibrações do universo. Sinto a unidade que está
para se partir. Eu queimo como uma tocha. No entanto não sei nas raízes da vida, na profunda essência das coisas. Além da
me atribuir mais nada, porque quanto mais altas são minhas forma transitória, múltipla e dividida, encontrei a substância
concepções, mais escrevo, abandonando-me a Deus. Sinto-o vi- una, indivisível, eterna. Atinjo, concentrada numa única palpi-
zinho. Não sei mais rogar, não sei mais compreender. tação, a síntese máxima do conhecimento e do amor.
Vivo numa atmosfera de incêndio. Parece-me que minha Quem está de fora não vê, olha e permanece em suas con-
alma, em terrível crescendo, já não pode conter toda a sua ale- cepções, sem perceber que um ser saiu da órbita das atrações
gria. Esta exaltação dá fogo à minha palavra e faz com que humanas. Sou, já agora, um bólido que gira vertiginosamente
possa exprimir o inexprimível. E eu obedeço e conto e reconto em torno de seu sol, preso à sua atração, fechado naquele cam-
ainda, para saborear todo o meu êxtase, para compreendê-lo, po de força, de onde já não pode escapar. Não me ocorreu, no
para senti-lo todo na sua inexaurível luz. Avanço com a alma entusiasmo das realizações, no ímpeto do amor, que a voragem
fremente, apertada, na ânsia de me compreender a mim mes- era imensa e que averiguar o sonho era demasiado para a força
mo, de firmar e registrar estes lampejos do espírito. Só a harpa de um homem. Não me ocorreu que, no processo de progressi-
de um anjo, decerto, poderá narrar tais coisas. Eu, aqui, detur- va sintonização com a fonte dos meus registros inspirativos, no
po-as e insulto-as. Não disponho de matéria mais diáfana que a desejo de perscrutá-la sempre mais de perto, avizinhava-me do
palavra para me exprimir, uma imagem menos concreta, um foco de um incêndio, de um vórtice que teria tragado minha
pensamento mais fluido e mais transparente. Queria um meio vontade, minha consciência, todo o meu ser. Lutei tanto para
mais digno e não o consigo encontrar. O meu ritmo interior su- chegar à harmonização, e não me ocorreu que me precipitava
foca neste marasmo que é a expressão humana, as luzes se ex- num turbilhão de forças que teria absorvido a nota distinta de
tinguem, brilhos se confundem e se perdem. O que escrevo minha personalidade. Já não tenho a minha vibração; perdi-me
mostra a mancha disforme onde está um quadro sublime. A pa- na vibração do universo. Já não tenho a minha voz, que se per-
lavra é impura, sabe a carne e a terra. Assim o belo se deforma, deu na voz de Deus. Acreditava ouvir a pequena música do
o movimento se cristaliza, o pensamento se mutila, tudo se meu pensamento, e ela se transformou na música da criação.
precipita neste meu miserável balbuciar. Não há, no concebível Tinha tanta necessidade de amor no deserto terrestre e me atira-
humano, medida que possa conter o superconcebível. No en- ra, loucamente, para o centro da minha inspiração. Agora, qua-
tanto, esta imensidade é tão simples, tão espontânea, tão natu- se me apavora vê-lo vir ao meu encontro como um gigantesco
ral! E eu procuro ser simples e espontâneo para que as vestes aerólito incendiário. As chamas já se inclinam para a minha al-
não ofusquem a beleza do corpo. Deixo escapar as palavras ma, e algumas línguas de fogo lambem-na, provam-na e se re-
como elas querem nascer, saturadas e transparentes, vibrantes traem para deixá-la respirar. Habituam-na aos poucos à sua at-
e ardentes, como o quer o argumento. Abandono-me ao ímpeto mosfera de fogo. Retraem-se, abandonando-me no desespero da
lírico, porque revela o canto interior que me inebria. Não é já minha cegueira humana e tornam a beijar-me, para me incendi-
possível refletir e raciocinar. Já o fizemos muito. Assim, eu arem de novo. Nestas alternativas, atraem-me e repelem-me.
mesmo estou escutando a voz que emerge das profundezas, eu Aquelas chamas se lançam e se contorcem em torno de meu es-
mesmo sou arrastado no seu ímpeto de dizer: “assim nasce um pírito, para chamá-lo a si, no centro do incêndio.
estilo não pensado nem desejado, que tem a força das coisas Ardo, mas não me consumo; queimo, mas não me aniquilo.
verdadeiras”. É a vibração interior que o forma, e o sugere, e o Estruge em torno de mim, pavorosamente, o ruído das coisas
leva longe, a ecoar no coração dos homens. Seja a forma a ser- humanas, e eu estou sozinho, pobre alma nua na fulgurante nu-
va da ideia. Tudo brota da ferida profunda de onde a paixão dez da substância. Esboço ainda o gesto pueril de agarrar, mas
transborda e é feito de pedacinhos da minha alma, das palpita- não tenho mãos; de fechar os olhos à luz demasiada, mas não
ções do meu coração, da febre desta tensão em que vivo. Não tenho olhos; desejo fugir, mas estou fora do espaço e do tempo.
obstante os meios inadequados, este é sempre o canto inenar- Sinto uma tempestade imensa no céu, e do seu seio uma voz
rável da dor e do amor que irrompe da profundeza do ser. Eis que me diz: “Nada receie, sou Eu”, “Ego sum qui sum”. O
que minha alma não está mais dentro da casa do corpo. A sen- inexprimível está em mim, e eu tenho forças para lhe falar.
sação de Deus passa perto, e o meu eu se dissolve no seu arre- Deus está em mim, vibrante na minha sensação, e eu tenho for-
batamento. O meu dizer vai inconsciente por uma estria lumi- ças para não morrer. Estou na Tua órbita, Senhor, e me precipi-
nosa que parece traçada no céu pelo voo de um anjo. Já não te- to em Ti. No Teu amor, tem piedade de minha fraqueza.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 35
VIII. A SENSAÇÃO DE DEUS adaptações e compensações e se elabora na imobilidade de seu
íntimo movimento. Assim estou fundido no todo, e o todo fun-
Assim aparece Deus na alma. A existência de Deus despon- dido em mim. Sou, agora, onipresente no espaço, coexistente
ta nela e se fixa como um fato sensível. Aquela ideia central, no tempo, como o é qualquer consciência neste plano. Assim a
síntese do universo, é tocada pela consciência, tão logo esta al- minha vida está na vida de todas as criaturas, e a minha percep-
cança o campo místico. Esta é a substância da minha experiên- ção – a minha consciência – está em todo o universo. Eis a sen-
cia, e aqui a descrevo. No plano racional, a razão procura Deus; sação da nova dimensão, e isto é o superamento e o aniquila-
mas, na análise, não O encontra (ciência). No plano intuitivo mento de todas as medidas precedentes. Onde existir um ser, lá
(exemplo: A Grande Síntese), Deus aparece na mente, mas so- estou eu, sentindo, vivendo. Eis a verdadeira sensação interior
mente como conceito, e permanece como uma visão exterior, de Deus. A minha concepção e sensação fundem-se na concep-
distinta do eu. No plano místico (exemplo: Ascese Mítica), ção e na sensação em que o universo concebe e sente, ele pró-
Deus aparece na consciência como sensação total interior, una prio. Nenhuma objeção teológica ou científica poderá destruir
com o eu, e a síntese da verdade se transforma em amor (união esta minha forma de consciência universal. A voz de Deus é
com Deus). Neste plano, a revelação se torna arrebatamento. mais forte que a voz dos homens.
Método para conhecimento também, mas inusitado e mais pro- O infinito não é o imenso, o incomensurável, como se costu-
fundo. A ciência adota o método da observação. Para superá-la, ma pensar. Não é grande nem pequeno. É simples, espontâneo,
adotei o método da intuição e o descrevi. Este é o método da calmo; não é uma extensão cansativa, uma fantástica multiplica-
unificação. Mas é uma posição tão fora do comum, tão afastada ção de medidas. É uma atmosfera natural e tranquila, na qual caí-
da normal atitude da consciência humana, que neste plano não é ram os limites, foi superada a negação. Não é um múltiplo do fi-
compreensível, não atua, nem se pode comunicar. Veem-se res- nito, mas uma coisa diferente. A anulação como consciência hu-
surgir aqui, ante a ideia de Deus, vivos na minha experiência, mana me faz emergir à superfície de um oceano luminoso e tran-
os níveis de consciência expostos no diagrama da ascensão es- quilo, livre e sem tempestades. Espaço e tempo são trevas, ci-
piritual. E compreende-se que tremenda realização sensorial é sões, prisão, barreira, negação. O infinito é estado de repouso si-
para o espírito o alcançar o plano da unificação. Eis como se tuado além dos limites que a mente humana, em seu relativo,
pode dizer: Deus está em mim, vibrando na minha sensação. procura eternamente superar, sem o conseguir jamais. Ali, o espí-
Descrevamo-la ainda, deixem-me dizer assim, esta tão ex- rito chegou; ultrapassou seu superamento e seus trabalhos.
traordinária forma de consciência. Expando-me na vastidão das É nesta zona de grande calma que o espírito ouve a música
minhas sensações. As vias sensoriais se multiplicam ao infinito, profunda que está nos fenômenos. O ritmo estético e lógico de
à medida que a alma evolui. Quando tudo na ascensão se des- seu desenvolvimento, a harmonia dos equilíbrios e das finalida-
materializa, a vibração alcança o centro consciente, não apenas des. E isto tudo não é mais aquela pequena compreensão da
pelo canal dos sentidos – única via normalmente aberta – mas mente, mas avizinha-se à alma, dentro dela ressurge, com ela se
por todos os lados, excita ressonâncias de mil formas, e cada funde num canto único e imenso. Este canto prende-a, vence-a,
ressonância é sensação. Como no plano intuitivo foram abertas arrasta-a e nela irrompe e se unifica numa exultação potente e
as portas da compreensão, no plano místico se abrem as portas estupenda. Dir-se-ia que a alma explode, projetando-se no uni-
da sensação. Forma-se uma percepção anímica direta. verso, e que o universo se condensa para fechar-se nela. Nesta
Estamos além do espaço e do tempo, no infinito. Medidas dimensão superespacial, universo e espírito têm a mesma exten-
humanas não nos servem. O todo é um ponto; a eternidade, um são. É tão bela e doce a harmonia da criação, que o sintonizar-se
instante. Identificam-se. Tudo é onipresente e contemporâneo. com ela, o unificar-se em sua ressonância, constitui uma ventura
E compreendemos, então, que espaço e tempo são barreiras que, em seu grau mais intenso, é o êxtase em que se alcança a
existentes apenas para as nossas dimensões do relativo; não sensação de Deus. A prece não é senão a harmonização inicial.
passam de aparência, outro modo de existir, para o qual Deus é Harmonizar-se em toda parte, na majestade do canto gregoriano,
centro e periferia, conceito e manifestação, absoluto e relativo, no simbolismo litúrgico, nas correntes que emanam das cate-
princípio e forma. Sem olhos, eu vejo o firmamento interior do drais trecentistas; harmonizar-se ainda com maior presteza dian-
universo, onde tudo fala sem haver palavras. A substância vai e te do divino espetáculo do criado; harmonizar-se na estética su-
vem, da ideia à expressão e da expressão à ideia. Movimento prema de um ato de bondade e de amor fraternal em Cristo – es-
imenso, que é mais uma vibração, tão imóvel está. Cada vida é te é o caminho que conduz à sensação de Deus. Cristo apareceu
uma pulsação desta vibração. Não, não me engano. Estou tre- e não podia deixar de aparecer a São Francisco, no Alverne, se-
mendamente presente na minha sensação. Respiro seu ritmo na não como o último ponto desta suprema harmonização.
minha própria vida. Nesta profundidade de consciência, a vida As fibras humanas se partem na tensão destes paroxis-
é una. O universo é um grande organismo do qual eu, como to- mos. Eu ouvi a harmonia do criado, fundi-me nela e alcan-
dos, sou uma pequena engrenagem, útil, inconfundível, neces- cei a sensação de Deus. O meu coração pulsou com o cora-
sária, eternamente em função. ção de todas as criaturas irmãs, e nestas palpitações percor-
A verdade está em mim. Nela estou imerso, e ela me nutre. reu-me o amor de Deus. Todas as vozes falaram em mim, e
Percebo-a por identificação. O mistério é a barreira de trevas eu respondi a todas as vozes.
que o invólucro da matéria impõe. Superada a matéria, o misté- Guiou-me ao centro, de esfera em esfera, um cântico de
rio desaparece. A limitação está na ilusão do nosso relativo, não amor. Deslizando ao longo da sinfonia dos fenômenos e da teo-
na realidade. O todo está saturado de verdade, grita-a em alta ria dos seres, o meu espírito subiu a Deus. Mas a última tensão
voz, e a alma foi feita para ouvir. Basta romper a crosta e emer- do êxtase é imensa. O espírito não resiste por muito tempo e
gir da própria surdez. precipita-se de dimensão em dimensão, para se reencontrar, co-
O todo está saturado de amor; ele é a vibração e une o parti- mo consciência normal, no corpo exânime. Ouço então, como
cular, que parece disperso em pó impalpável, atrai-o, torna-o um eco, o cântico continuar de esfera em esfera, ascendente e
compacto e devolve-o à unidade. Sinto que, em sua diversa dulcíssima harmonia que se esvai, se dilui nas trevas terrestres.
multiplicidade, o universo é uno. Ecoa em mim o ruído das for- De novo a mentira dos sentidos, e revivo apenas para tornar a
ças que tudo coligam, socorrem e guiam. Cada ponto se encon- ouvir as palpitações de meu coração extenuado. Não conservo
tra no todo, e o todo se reencontra em cada ponto. Tudo é in- em mim senão uma recordação e uma saudade; senão uma ânsia
dividualizado, mas comunicante; tudo é distinto, mas indivisí- amargurada daquele meu longínquo paraíso, que aqui em baixo
vel; tudo obedece a uma lei inflexível, mas elástica, de infinitas parece loucura. Que parece nunca mais poder retornar.
36 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
IX. CRISTO Os escritores contam as vicissitudes do Cristo histórico; a ar-
te tenta exprimir-Lhe o vulto concreto; o próprio ritual comemo-
Eis a que sensações e a que planos de consciência nos leva a ra-O baseando-se nos fatos de uma vida vivida aqui em baixo.
ascese mística. Neste plano, alcancei – e só nele se pode alcan- Os olhos humanos enxergam apenas as manifestações sensoriais
çar – o conhecimento imediato de Cristo. Sei que tremenda coi- e só através destas, trabalhosamente, podem alcançar a realidade
sa estou dizendo e só agora posso dizê-la, depois de amadurecer imaterial. Assim, a vida de Cristo demora de preferência no sen-
através das experiências que descrevi. Até agora, estive calado. tido humano, no drama sangrento da cruz, mais que no sentido
Mas o meu trabalho todo se moveu para convergir, fatalmente, divino – o triunfo luminoso da ressurreição. Mas aquele é o
para as culminâncias onde aponta a síntese suprema do meu momento inferior, mais denso e pesado, no qual o espírito se põe
pensamento e da minha vida. A figura em que a concepção abs- em contato com a matéria. É o lado menos divino, menos belo –
trata e sublime do êxtase se humaniza, tornando-se ainda mais se em Cristo pode haver menos belo; o momento no qual a lu-
acessível como presença e assim avizinhando-se da consciência minosidade tem a força de imergir-se, sem se apagar, nas trevas.
normal, é Cristo. Sua voz tomou forma e se delineou naquele Este é o Cristo histórico, gênio, reformador, mártir, o homem
vulto que contemplo com amor e tremor; definiu-se num Ser visto por todos. É o fato tangível e inegável, em que o supersen-
que me tomou pela mão e me disse: “Caminhaste e estás cansa- sível se materializou; o fato alcançado mesmo pelos escritores
do, mas não podes parar. Deves ainda avançar e vencer outras materialistas e difamadores, impotentes para o voo, que não
lutas e cansaços. Segue-me. Não podes mais parar. Coragem. souberam caminhar além. Neste aspecto de Cristo, o infinito fe-
Estou ao teu lado”. Na doçura da carícia, no ímpeto da tempes- chou-se no ritmo curto da vida de um homem, para que até os
tade, no terror da solidão, ouvi ainda: “Segue-me, segue-me”. E cegos o pudessem tocar. E esta é talvez, para quem sente o ver-
essa ordem se gravou em mim. Naquele momento me tornei dadeiro Cristo, a maior maravilha do amor divino.
criança, fechou-se a vista da terra e reabriu-se a visão do céu; o O Cristo histórico realmente morreu e parece ter acabado.
êxtase me retomou em seus tentáculos e me levou para longe. Mas existe um Cristo mais profundo e ele continua vivo. É des-
É a Sua face, o que me aparece e me atrai no centro do in- te que falo. Ele está vivo na minha sensação e na minha paixão.
cêndio, o aerólito gigantesco que se avizinha de mim, flame- Presente em nós, fora do espaço e do tempo, eternamente. Só a
jando. Era uma voz e se tornou uma figura sensível e próxima, carne morre, só a matéria se desfaz, o espírito não. O Cristo real
completa na sublimação de todos os atributos do concebível. À não abandonou jamais a Terra. Não poderia ser prejudicado por
debilidade de representação humana, ao desejo da matéria de aquela pequena vicissitude humana da vida e da morte. Cristo
concretizar, foram concedidas imagens, mas não são imagens simplesmente mostrou-se há vinte séculos, mas estava vivo na
de Cristo. Certas figuras adocicadas, de uma suavidade mole, revelação que O preanunciava. Está vivo, ainda que possa não
exterior, rósea e ovalada – são um véu, não uma expressão; são parecer, ainda que talvez os homens não o desejassem; está vi-
distância e sofrimento para quem as contempla. vo na Igreja que Lhe professa o ensinamento. E isto, por razões
O verdadeiro Cristo é uma realidade e uma sensação imensa e meios super-humanos. Cristo é – além do passado e do futuro.
que repele imagens. É um infinito que se conquista por sucessi- Não surge e não desaparece, não nasce e não morre. Este Cristo
vas aproximações. À medida que o espírito sobe, aos vários pla- vem não do exterior, em forma humana; a sua chegada se dá no
nos de consciência correspondem vários planos de conhecimen- interior, no espírito. É fato espiritual, é luz de compreensão e de
to de Cristo, os quais são uma revelação progressiva de sua es- amor. Sua realidade não pode ser procurada nos fenômenos fí-
sência divina. No plano sensorial, a consciência não supera a re- sicos. O preanunciado Reino dos Céus está, antes de mais nada,
presentação concreta do Cristo histórico, do conceito encarnado no coração do homem, e este é o campo que tem de ser arado;
em forma humana. No plano racional, a consciência crítica pro- esta é a criação que deve ser feita. Só um Cristo assim, sentido
cura o divino naquela figura, sem conseguir encontrá-lo. No com ritmo interior, pode ser um vínculo de almas, um princípio
plano intuitivo, a consciência encontra, por inspiração na revela- de fusão e de unificação, no qual todos os filhos de Deus pode-
ção, o Cristo cósmico e compreende que coincide com a Divin- rão reviver em divina unidade. Cristo, com a Sua paixão, lan-
dade. No plano místico, a consciência sente pelo amor o Cristo çou a ponte do amor através dos egoísmos humanos, entre si e
místico, e da concepção de Deus passa à unificação com Deus. eles. Abriu e moveu o vórtice do altruísmo. Deu o primeiro im-
Assim, a consciência alcança e toca, progressivamente, um pulso à expansão. Tornou possível a unificação.
Cristo sempre mais interior, penetrando na Sua profundidade; O Cristo real é completo na Sua trindade de Cristo históri-
um Cristo sempre mais real e imaterial, dele se avizinhando co, Cristo cósmico e Cristo místico. Esta trindade projeta a sua
primeiro com os sentidos, depois com a mente e depois com o imagem nas três fases evolutivas ou planos de existência do
coração; um Cristo sempre maior, mais potente, mais bondo- nosso universo: matéria, energia, espírito. Tem a sua corres-
so, mais unitário, mais transparente na Sua realidade, isto é, pondência no microcosmo humano, organismo feito de corpo,
sempre mais, para o homem, perfeito modelo de Deus. Nesta mente e coração; de sentidos, de concepções e de sentimentos.
progressão de imaterialidade e de interiorização, o espírito O Cristo histórico é a forma, a manifestação no plano físico, o
avizinha-se de Sua divina realidade, sente mais evidente Sua princípio que retoma a matéria e a carne para elevá-las a si,
verdade. Vivi nestas diversas profundidades do real, nos di- através do amor. O mistério da redenção se baseia neste recuo
versos planos de consciência; senti, da vastidão conceptual da dos vários planos para o plano inferior, por um princípio de
revelação mosaica, que se detinha no Deus-criador, somente equilíbrio e de coesão, que o impõe, para que a evolução não
potência, emergir o Cristo-místico, o Deus-amor, que, do se afaste e avance compacta. O Cristo cósmico é conceito-lei, é
mundo cósmico conceitual da mente, floresce no íntimo mun- o princípio de organização que rege e regula o mundo. O Cris-
do místico do sentimento e do coração. O Cristo que eu sinto to místico é amor, princípio de harmonização, de coesão e de
e amo é um Cristo imaterial, interior, cuja manifestação terre- unificação. Assim, a Trindade se completa envolvendo-se em
na representou a mais perfeita expressão de Deus. Ele é um si mesma: é ao princípio de coesão do amor que o princípio-lei
ritmo no qual me harmonizo e em cuja sintonia me dissolvo, confia a redenção da carne. E a Trindade é una, presente nos
uma vibração da qual quero me fazer eu próprio e que de mim seus três modos de ser. “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vi-
quer se fazer ela própria. Será um Cristo demasiado alto para da”, disse Ele. O Caminho, isto é, norma de vida prática sobre
as necessidades comuns da concepção normal, mas somente a Terra, para chegar a Deus; a Verdade, isto é, a síntese do co-
Este é o Cristo real; só nesta interioridade e imaterialidade, é nhecimento, o pensamento de Deus; a Vida, isto é, a força do
concebível n'Ele a divindade, a presença, a unificação. amor, a unidade das almas em Deus. É na fase que aqui estudo,
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 37
da ascese mística, que a alma alcança o mais fecundo aspecto poderei talvez escrever, se tiver forças e se for digno, uma vida
da Divindade: o amor. Sem o Cristo, que foi, acima de tudo, de Cristo, primeiramente lida por minha alma na profundeza do
manifestação de amor, como poderia o homem acercar-se de coração, por força do amor.
Deus? A vinda de Cristo à Terra foi, portanto, a descida do es- Cristo me aparece assim como um trovão que ouço, saindo
pírito até à carne para um ato que é o terceiro momento, no da noite dos tempos e ecoando de século em século, como uma
qual os dois primeiros se completam: amor. “No princípio era força progredindo em passo gigantesco através da história do
o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus... mundo. Cristo é o fulcro do dinamismo das ascensões humanas,
O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (S. João) 32. é a voz imensa do espírito que tudo arrasta em sua força, é o tra-
çado do cansativo caminho da vida, é a fecundação divina do
X. AMOR humano, para divinizá-lo. Através do amor, me aparece o vulto
divino de Cristo. Sua forma histórica é um átimo, um lampejo,
É este Cristo imaterial, interior, vivente e presente que eu fechado no tempo. Sua realidade é eterna e contém o gesto de
sinto, respiro, vivo, que penetra e se identifica comigo. Se a Deus que volve às páginas da criação e da evolução do universo.
sensação de Deus se alcança essencialmente através da mente, a A força deste gesto está dentro da história; sustém-na, guia-a,
sensação de Cristo se toca essencialmente através do coração. eleva-a. O mundo despenca, e aquela força toma-o e levanta-o;
A síntese de concepção se transforma e completa em uma sínte- os destinos dos povos periclitam, e aquela força os salva.
se de sentimento. O aspecto cósmico do Deus-princípio se mul- Cristo é o Verbo humanizado que se funde às longas vicis-
tiplica e se dá no seu segundo aspecto de Deus-amor, o Cristo situdes humanas. É o Verbo que o tempo que morre diz ao
místico. Tenho, portanto, que abandonar a linguagem da razão tempo que nasce, que o ritmo universal transmite e repete; é a
por outra muito mais difícil – a linguagem do amor. Só os que concepção onde nascem e morrem os milênios, despontam e
amadureceram poderão compreender-me. somem povos e civilizações.
É este Cristo a forma em que a Divindade se humaniza para Esta força divina, que com tanto ímpeto explodia na gênese
se aproximar de mim. O acesso se faz pelo caminho do amor. É mosaica, desce de suas alturas e vem de encontro ao homem. O
este o incendiado aerólito gigantesco que já descrevi. E Cristo gesto criador de Deus se adoça em Cristo, num amplexo de
chega, e eu O recebo, não através da razão, da autoridade ou da amor. O mistério da redenção é mistério de amor. A força infi-
história, mas Ele desce diretamente na minha sensação, invio- nita e trovejante do Deus dos exércitos assume manifestação
lável realidade interior, onde a vontade humana não atua. Esta é mais profunda, se adoça em modulação mais íntima e consegue
uma conquista minha, como pode ser de todos, que o mundo o milagre inaudito de saber restringir-se na suavidade de um
exterior não pode desfazer; é uma realidade que ele não pode humilde abraço. Em Cristo, Deus deseja descer de Seu trono de
expulsar de minha alma. glória, alto e longínquo, grande e terrível, e se aproxima para
Não se pode compreender Cristo aproximando-se d'Ele com penetrar profundamente no coração do homem. Neste ato su-
ânimo de historiador, de exegeta, de crítico erudito e sábio. Isto blime, esconde e encobre sua força, para se tornar igual ao hu-
pertence ao exterior e fica de fora. É preciso aproximar-se com milde e ao pobre. Deus, então, já não se exprime em força, mas
ânimo amoroso, porque só a quem ama são concedidas certas em beleza e sentimento. Transmuda o terrificante lampejar do
compressões íntimas e profundas; porque o amor é o caminho fulgor no doce canto que cinge e arrasta; o gesto armado da jus-
único da compreensão. É ele a força tremenda que levou a Di- tiça no gesto brando que perdoa. Sinto esta mudança interior da
vindade à humanização. Realmente, o Evangelho, mais que o divina Trindade para outro aspecto; este seu remodelamento em
livro da sabedoria, quer ser o livro do amor. expressão mais completa e complexa, para acorrer às necessi-
Assim me aparece a figura interior de Cristo. Caem os véus dades do tempo, para se unificar com a alma humana, para al-
do mistério, e a Paixão aparece em sua essência. Sob a vida his- cançar nela sua mais viva expressão.
tórica e humana de Cristo surge uma vida mais profunda e real, Sinto Cristo como uma força irradiante, tal como a luz do
a qual, e só ela, contém significados interiores e substanciais. Sol, saturando de si a nossa atmosfera espiritual, para que ca-
Somente revivendo-a assim em profundidade sente-se, a cada da alma a atinja, como cada planta ao sol, segundo a sua ca-
passo, o divino irromper, irresistível e cegante, através do véu pacidade de receber. É uma luz que desce generosa e imparci-
da forma. Tenho agora a sensação do apocalíptico desenvolvi- al, mesmo no lodo, e não se mancha; conduz pureza sempre
mento de forças cósmicas que aquela vida contém, entretecido renovada. É uma potência indestrutível, apesar dos assaltos do
numa sinfonia grandiosa, na qual ecoa e se completa o desenvol- tempo, da caducidade das formas, dos obstáculos do mal. Ve-
vimento espiritual da humanidade. Somente neste sentido pode- jo-a presente em cada momento, em cada ser, em cada povo,
em cada civilização; a sua história é a história do mundo; ve-
32
Nota: O autor, aqui, não enfrenta explicitamente, por não ser este jo-a mudar e avançar com o homem, seguindo-o passo a pas-
o lugar próprio, a questão de saber se o Cristo, que nunca chamou a so, alma de sua alma; sinto-a adoçar-se à medida que as escó-
si mesmo de Deus, mas sempre Filho em face do Pai, se identifica rias do invólucro caem e a natureza humana, mais sensível,
com o Deus do universo, motor supremo do criado e último termo tem menor necessidade de empurrões violentos. Até que Cris-
de tudo o que existe. Confrontando estas páginas com os capítulos to, na alma unida, se torna num canto que tem a magia de anu-
sobre Deus e Universo no volume Problemas do Futuro, parece que
lar a dor e realizar a redenção. Torna-se um cântico imenso e
enquanto, naquele, o autor fala do Deus universal, único centro do
todo, abstração suprema insuscetível de definição e além de toda estupendo, ecoando por todo o universo. Ouço-o agora como
representação, não só em forma sensória mas também no concebível uma voz que vai de forma em forma e se repete de criatura em
humano, neste volume o autor queira falar do Cristo somente como criatura. Que nos humildes canta a mesma música dos gran-
perfeita manifestação ou expressão daquele Deus, numa forma rela- des; que não tem mais limite nem medida; é a sinfonia da uni-
tiva à vida terrestre e ao concebível humano. dade do universo. É a voz das almas grandes, é a voz das al-
De todo modo, não é no presente volume, em que o autor exprime as mas simples, é a voz do espírito abatido que na dor expia e se
suas mais intensas sensações, que o feriram profundamente na sua entra-
eleva, é o trovejar das convulsões sociais que submergem e
da no mundo místico, que ele podia ocupar-se de precisar aquilo que,
somente depois, em outros estados d‟alma, pôde fazer nos volumes su- criam as civilizações, é o grito de triunfo dos mártires, é o tí-
cessivos e em outros estados de espírito, especialmente no volume Deus mido sorriso da florzinha humilde e inconsciente, é o primeiro
e Universo (cfr. XIV – “A Essência do Cristo”). (N. do A.) vagido de uma vida e de um destino – é o reclinar-se esgotado
V. nota de rodapé no 1, no Cap. XVII da 1a Parte deste volume. (N. do T.) na morte, alvorada de ressurreição.
38 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Cristo! Tu és a bondade que acaricia, o amor que inflama, a dos uma semente contém! Uma semente é, como a palavra de
luz que guia. És também a prova que me cabe, para meu bem, a Cristo, uma concentração poderosa de forças, capaz de realizá-
dor que me liberta, a morte que me restitui a vida. Tudo Tu és, ó las lentamente, germinando e crescendo.
Deus! Seja por meio da alegria, do amor, da dor – é sempre a Tua Cristo não destruiu: continuou e fecundou. Arrancou o ho-
mão que me guia para a única meta, que és Tu. Que animes ou mem de um plano de vida, para transportá-lo a outro, mais alto.
castigues, que acaricies ou punas, sempre atrais tudo a Ti, como A Sua revolução está sempre presente. No fundo, não é senão a
suprema razão de vida. Agora cheguei à suprema violência, que maturação lenta e fatal das leis da vida, sendo, por isso, parte
supera os raios do Sinai: a violência do amor. Ela me busca o co- integrante do plano orgânico do funcionamento e desenvolvi-
ração, para arrancá-lo e ficar em seu lugar. Então, a alma chegou mento do universo. O contraste entre as forças do bem e as for-
ao porto, atingiu a meta. Na fuga dos tempos, Cristo venceu. ças do mal, o choque entre o espírito e a matéria são lutas com-
Antes da vinda de Cristo, Deus era uma lei justa e severa, preendidas num mais vasto equilíbrio, são momentâneo cansa-
que o homem adorava de longe; era o comando que exigia obe- ço da evolução, desordem contida e utilmente enquadrada numa
diência, incutindo temor. Exprimia-se como força que não pede ordem maior. Era necessária uma intervenção enérgica de força
compreensão, que não se unifica no amor, que permanece distin- excepcional, para desviar e renovar tão decisivamente o curso
ta no coração do homem. Com Cristo, a manifestação divina da história. Para arrancar à prisão da carne o prisioneiro da ma-
chega a uma nova dimensão, aproxima-se mais um grau da vida téria, aquela luz tinha de possuir a potência do raio. No entanto,
e da sensação do homem, inicia um lento processo de atração e naquela força, o equilíbrio não se perturba, a fusão é lenta, a
de absorção, culminando na unificação. É um tipo de ação com- obra se completa em ordem. E é esta a sua maior expressão: a
pletamente novo, que deseja arrancar o espírito da natureza hu- força contida na doçura. A carícia de Cristo traz em si o gesto
mana, deseja levar a evolução além da órbita animal. Deus era do criador dos mundos. O mesmo tremendo Deus de Moisés
lei fechada ao contato do homem. Agora, se abre e se projeta, se sabe evolucionar Sua manifestação e proporcionar Sua expres-
dá e se comunica, atrai e unifica. Com a chegada de Cristo, o di- são no relativo. Era chegada a hora de abrir as portas da verda-
vino escancara as portas e se despeja em jorro pela terra, os di- de, e Cristo a arranca do mistério dos templos para a luz do Sol,
ques ruem e a inundação começa. Será contínua. Os opostos, ter- toma pela mão o homem guiado pela revelação e o conduz mais
ra e céu, se atraem, são campos de forças contrárias, que têm ne- adiante. Rasga-se o véu do templo. E hoje continua acompa-
cessidade de se equilibrar, compensando-se e fundindo-se. A nhando o homem, que pesquisa através da ciência, porque a
maré da dor humana sai de baixo, prostrada e invocativa, alta e própria ciência não pode deixar de revelar, cada vez mais evi-
terrível, devorando distâncias, destruindo obstáculos interpostos dentemente, a Sua verdade. Está presente na intuição do gênio,
sobre a rota. A dor eleva o destino dos povos e os torna mais no heroísmo do santo, na revelação, que é contínua, pois Ele es-
dignos. O amor divino sentiu este levantamento do desejo, este tá acima de todas as ascensões humanas.
intumescer de aspirações, e o vórtice celeste se projetou, ansioso
pelo contato; as duas espirais tocaram-se, e Cristo apareceu co- XI. A REDENÇÃO
mo um raio a vibrar entre o céu e a terra; o divino desceu no
homem, para que o humano fosse arrebatado ao divino. O mistério da redenção é um mistério de dor e de amor. Para
Assim, Cristo se enxerta como força cósmica, no centro da compreender, voltemos aos conceitos fundamentais. Já exami-
evolução humana, e influi decisivamente sobre o desenvolvi- namos em outro livro33 o fenômeno estupendo da anulação da
mento do fenômeno espiritual, iniciando uma fase de ascensão dor através da evolução. A dor é o cansaço da ascensão, que la-
que se dirige ao divino. Um mundo novo, feito de sentimentos e boriosamente leva à felicidade, que assim deve ser conquistada.
de aspirações, antes ignorados, começa a revelar-se, saindo da Mas, se a dor faz a evolução, a evolução anula progressivamente
profundidade da alma. É manifestação divina, à qual Cristo deu a dor. Então a anulação da dor se processa através da dor. Com
o impulso inicial. A Sua vinda representa, no campo das forças seu exemplo, Cristo nos veio mostrar estes profundos aspectos
da vida, mudança substancial, deslocamento fundamental de da Lei. A dor é uma característica de determinada fase de nossa
equilíbrio, cujo centro, agora, gravitará da matéria ao espírito. evolução, em que ela funciona necessariamente como agente de
A trajetória da evolução, engolfada na mais desastrosa descida, transformação, desaparecendo quando preenchida a sua finali-
teve um sobressalto e retomou sua marcha ascensional. A vinda dade, tão logo seja alcançado um alto plano de vida. A dor é
de Cristo é o impulso que desce do céu para realizar a nova uma condição de vida inerente à matéria, durante a fase humana.
obra da ascensão do homem, no sentido de todos os superamen- Na desmaterialização do ser, essa condição desaparece. A dor é
tos de sua animalidade. E Cristo, que tem nas mãos a força da uma dissonância a ser reabsorvida na harmonização; é uma den-
renovação, se coloca no momento central da evolução do ho- sidade que se vaporiza na espiritualização. Cristo veio ensinar o
mem, entre o extremo limite da descida (materialismo helênico- caminho da superação da dor através da dor e da espiritualiza-
romano) e o pressentimento da ascensão, para desintrincar as ção. Antes de Cristo, a dor era feroz, terrível, sem piedade. Cris-
leis de uma vida superada e reconstruí-la na forma de vida no- to fez dela a via mestra da ascensão, da liberdade, da redenção.
va, mais digna e mais alta. Cristo é o primeiro momento, o sinal Fez dela uma força amiga, indispensável para a conquista do
sensível, do nascimento desta força, que jamais deixará de agir nosso bem e da nossa felicidade. A fera inimiga suavizou-se,
para o futuro, presente no infinito das coisas, no profundo das domesticou-se, tornou-se útil colaboradora; a coisa temida e
almas, na forma da vida, nas obras do homem. E a ação será maldita se faz santa e amada, e nós a apertamos ao coração co-
constante, a presença tenaz, a ascensão lenta e contínua; a ele- mo um salva-vidas. Cristo derrubou e refez a concepção huma-
vação será progressiva até à realização do Reino dos Céus. A na, fazendo do vencido um santo, um herói, um vencedor. Cristo
verdade se fará estrada sempre mais evidente nos espíritos; ca- desceu e se fez presente e sensível no fundo das almas que so-
da vez mais, o amor divino aquecerá os corações. Através de frem, irmanando-se com elas no Seu amor, tornando própria a
uma luta longa e estafante, a nave da igreja de Cristo atravessa- sua dor, a cada dia, justamente como o fez sobre a cruz.
rá o grande oceano da vida dos povos; os mártires sacrificar-se- É um maravilhoso fenômeno que estou experimentando, es-
ão pela ideia, e o primeiro movimento será elaborado e atuará, te do superamento da dor, que Cristo ensina. É lógico que a dor,
completando-se no pormenor, cada vez mais exatamente, o sendo um instrumento de ascensão, se destaque do eu quando a
grande projeto de Cristo; lançar-se-ão laboriosamente as bases ascensão é terminada. É necessário, na ordem do universo, que
colossais de uma nova civilização, que transformará o mundo
33
desde os seus alicerces. Cristo foi uma semente. Mas que mun- A Grande Síntese, Cap. LXXXI – A Função da Dor. (N. do A)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 39
a dor caia quando for superada a função evolutiva de prova e de O que aturde e assombra nossa compreensão nessa descida
lição. Quando tivermos compreendido tudo e, com isso, hou- do Cristo é este aprofundamento de divindade na imundície da
vermos esgotado sua função de escola e de expiação equilibra- carne humana.
dora na ordem dos impulsos morais, então ela cai, como as ou- Somente se sabendo que Ele é Deus e é homem, pode-se
tras ilusões da vida. Então, não só não se verificam mais, por compreender a vertiginosa grandeza desse ato e que tremenda
haver sido alcançada a medida do débito, as condições exterio- força é, por isso, o amor divino.
res da dor, porque um assunto inútil aos escopos do bem está Que necessidade poderia ter o Santo dos Santos de passar
fora de equilíbrio (trata-se de equilíbrios automáticos ingênitos pelos caminhos da dor? Não por Si, decerto. Ele era perfeito.
da Lei), mas advém um fato novo. Mesmo que a dor permaneça Não tinha necessidade de purificação, de ascensão ou de reden-
como fato exterior, advém por evolução uma tão profunda ção. Mas isso se tornou uma necessidade fatal, apenas Ele se
transformação de personalidade, que ela lhe escapa. A evolu- fundiu na natureza humana. Toda carne e todo sangue parecem
ção, levando-a a uma fase nova, deu-lhe um novo modo de ser, ter ascendido com Ele, após Seu martírio de carne e de sangue,
no qual a dor não repercute com as mesmas reações do nível eternamente enobrecidos por esse contato.
humano; em outros termos, a ascensão leva o espírito a tal grau Muitos dizem: Por que o tormento dilacerante da cruz, se
de harmonização (amor divino), que não existe mais dissonân- Ele era Deus, o Todo-Poderoso?
cia que tenha força para penetrá-la e alterá-la. Então, mesmo Eles não compreendem que aquela dor é a sombra das cul-
que permaneçam idênticas as condições ambientes, o choque pas humanas que, sem essa expiação, não poderiam ser neutra-
daquela força não encontra mais impulsos antagônicos nem re- lizadas.
ações contra as quais se assanhe por sua expansão e desaparece Cristo não quis, diante do povo que Lhe pedia o milagre,
sem resistência. O instrumento receptivo mudou, e bastou esta salvar-se e descer da cruz. Não poderia fazê-lo diante do Pai,
mudança de natureza para que se transformasse completamente que Ele representava. Não o poderia perante a Lei, que Ele per-
a gama de suas ressonâncias. Superpõe-se à consciência uma sonificava.
opacidade de audição; o espírito não responde senão àquela or- Aceito o cálice, estreitados os liames, a paixão era um re-
dem de vibrações, e a surdez, naquele plano, é substituída por demoinho de forças em movimento em que o Verbo se expres-
um poder receptivo no plano mais alto do amor. O fato positivo sava. Cristo agia no coração da Lei e, se a violasse com o arbí-
e o fato negativo convergem para o amortecimento progressivo trio, teria negado a Si mesmo.
da sensação penosa da dor, na sensação gloriosa do amor. A O povo que estava ao pé da cruz não compreendera esta
mutilação do desejo e a compressão do sofrimento se transfor- fatalidade de paixão, esta inviolabilidade de princípios, e co-
mam, então, na multiplicação e expansão do amor; a dor se mo Quem a quisera não poderia renegá-la. “Salvou os outros e
muda em felicidade. Agora, a dor é amor, nisto se afirma e ja- não pode salvar a Si mesmo!” – diziam. “Se é o Rei de Israel,
mais se encontra a si mesma; junta-se a Cristo, ao amor que Ele que desça agora da cruz, e nós acreditaremos n'Ele!”. O povo,
nos trouxe – compreende e alcança a Sua redenção. que era o mundo, imaginava ser Cristo um homem que deve-
Grande e maravilhosa lei de equilíbrio e de justiça esta pela ria pensar em si mesmo. Se o supunham um Deus, era no sen-
qual a dor, quando cumpriu sua função de levar a alma até à tido de deus humano, cujo principal fim e uso do próprio po-
superação da animalidade, se afasta em silêncio! Quanto é sábia der seriam em sentido egoístico. No vértice de sua paixão,
a lei de Deus, na qual o mal é confinado e submetido aos fins Cristo não existia para si. Da cruz, olhava o mundo dividido
do bem; o sofrimento é justo e frutífero; a dor é condição de fe- por um abismo de incompreensão. O mundo imagina um Deus
licidade! Ela é uma força fechada no seu plano, da qual não se e uma lei à sua semelhança, não ainda perfeitos, que admitem
pode fugir; a liberdade só é possível subindo-se. A dor não po- modificação, retoques, arbítrio; confunde liberdade com li-
de atuar além do limite circunscrito pela Lei, onde se deve es- cença, poder com abuso – e não imagina que tudo isto desapa-
gotar sua função de prova e formação da alma. Mais no alto não rece quando se sobe. O mundo acredita que, como aqui em
existe senão a dor do justo, que é coisa santa, livre, é missão, baixo, possam existir no Alto consciências isoladas e egoístas,
martírio, triunfo e, sobretudo, amor. que se substituam, segundo os caprichos, às ordens absolutas
O drama da paixão de Cristo, ponto culminante de sua des- da Lei. E invoca o milagre como prova de poder, enquanto
cida, tocou estes pontos culminantes da vida humana, o núcleo que o poder maior está na ordem.
central da Lei no momento humano. Cristo nos revelou, na sua Mas este volume quer somente ser um ímpeto de fé e de
ação, o mistério desta reabsorção da dor em amor. Devo discor- paixão, um protesto de amor e veneração a Cristo; representa
rer sobre estes problemas porque são eles a substância da obra somente a primeira explosão de estados místicos na vida do
do Cristo. Olhemos, porém, mais profundamente. Ele não veio autor. Aqui, nesse estado d‟alma, que depois será retomado e
apenas para ensinar. Veio também para pagar. Não somente pa- desenvolvido nos seus outros volumes, ele não quer, de ne-
ra mostrar-nos o princípio da expiação necessária, mas para so- nhum modo, enfrentar o problema da essência do Cristo e da
frer, Ele próprio, com Seu tormento, esta expiação. Ele não significação da Sua paixão e da redenção. Estes são proble-
veio apenas para nos fazer compreender, pela palavra e pelo mas amplos, que, para serem resolvidos, exigem uma prepa-
exemplo, este maravilhoso fenômeno que descrevi, da anulação ração e uma explanação mais vastas. Serão considerados com
da dor, sua espiritualização e a rearmonização de suas disso- o maior amadurecimento que só se poderá alcançar nos últi-
nâncias na harmonia do amor. Cristo não desceu apenas para mos volumes da Obra, somente nos quais estas questões po-
nos ensinar a possibilidade de uma libertação. Colocou-se no derão ser resolvidas definitivamente. Isto não se tornará pos-
centro do fenômeno e o viveu. No centro da dor humana, que sível senão numa explanação particular, em que todo o siste-
fez Sua. No centro da dissonância, para reabsorvê-la dolorosa- ma ficará resolvido, especialmente no 10 o volume, Deus e
mente na harmonização do Seu amor. Fez sua a escravidão hu- Universo, e no último, Cristo 34.
mana e teve que, com trabalho e sofrimento humano, conseguir 34
a libertação. Fazer-se homem é imergir completamente, até ao Veja-se a nota do Prof. Ubaldi no final do Cap. IX da 2 a Parte
deste volume.
fundo, no plano humano, em sua atmosfera, em suas debilida- Convém acrescentar que os problemas referentes à natureza espiri-
des, em suas sensações, em sua iniquidade. Significa fazer pró- tual de Cristo, o autor os expôs não somente no seu livro Deus e
pria essa iniquidade e por ela ter de responder, em Seu nome, Universo (Cap. XIV – A Essência do Cristo), mas ainda em O Sis-
diante da lei de Deus. Assim, Cristo se fez culpado, em Sua tema e Queda e Salvação, que se lhe seguem e lhe são intimamente
Pessoa, pelas iniquidades humanas, devendo expiá-las. complementares (N. do T ).
40 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
XII. ASCESE DA ALMA cute e se multiplica até à última criatura, humilde e desprezada –
propaga-se e inunda a Terra. E a música das pequenas coisas
Assim inicia Cristo a ascese mística, a elevação das almas à aqui de baixo desenvolve-se e se repete nas ressonâncias grandi-
unificação com Deus. Ele se faz o grande inspirador, o invisível osas do céu, que se abriu para ouvir; sobe a paixão da alma, e o
impulsionador da vida espiritual; a evolução humana se ergue amor do homem se unifica no amor de Deus. Esse canto atrai e
atrás d'Ele, para segui-Lo. Sem Ele, a vida não podia ter alcan- arrebata. Lentamente, da Terra, a humanidade se ergue como
çado o plano místico – com Ele, prepara-se para alcançá-lo. A uma maré que cresce e sobe em um único cântico de almas
história do homem continua a ser escrita no grande livro da vida, apaixonadas, que se funde e se perde na música do céu.
e inicia uma nova página: a página do amor. Uma nova síntese Caminha, caminha. Cristo adiante, e atrás o mundo. Como é
floresce do trabalho dos milênios; uma nova clarinada, emergin- longa a estrada do Reino de Deus. Quantos tropeçam e caem ao
do da profundidade dos tempos, chama à colheita, no curso das longo do caminho Quanto esforço de alma para unir a terra ao
civilizações instáveis e inquietas, a vida deslocada de seu eixo e céu! De início, é apenas um pequeno grupo; poucos se põem co-
muda o centro das atrações humanas. Os egoísmos se abrem, as rajosamente em marcha. É pesado o fardo da carne, e muitos não
consciências se dilatam, o irmanamento começa, a voz de Cristo podem movê-lo. Mas flameja com tamanho ardor a alma daque-
ressoa de coração em coração num canto único que se funde e se les poucos, é tão ativa a irradiação do céu, ressoa tão harmonio-
eleva, respondendo à glória dos céus. O mundo inicia uma pode- samente a boa nova, que até a matéria, pouco a pouco, se abala.
rosa marcha para a realização do Reino de Deus, que não é dá-
diva gratuita à inércia humana, mas laboriosa conquista feita sob
a inspiração de Cristo; a ascensão não é o cômodo desfrutar de
méritos divinos, mas fusão humana em Sua paixão.
Caminha, caminha. Inicia-se o grande movimento. Cristo
vai à frente, diante de todos, com o exemplo de Sua dor e de
Seu amor, da cruz e da paixão, uma luz que avança, deixando
atrás de si um rasto de esplendor. Por esta estrada luminosa o
mundo caminha e segue. Cristo é um sol esplendente que atrai
a si as chamazinhas das almas humanas. D'Ele se desprende
uma radiação de amor, sob a qual revivem, se levantam e se
acendem novas centelhas. É como o começo de um incêndio.
E as pequenas chamas engrossam, sobem, sobem, até tocar o
céu, unificando-se no esplendor do grande sol central, onde,
reabsorvidas, se perdem.
Caminha, caminha. Cristo vai com Sua cruz, sempre diante
de todos. Ele não tem propriedades, nem riquezas, nem poder
humano. Ele é uma força nua, suspensa entre os horrores da ter-
ra e os esplendores do céu. Ele não está na história, mas é supe-
rior à história; não está encerrado no tempo, mas é senhor do
tempo. Na sua realidade, ele é imaterializável e, justamente por
isto, está vivo e presente. A sua realidade é interior, está nas
palpitações e no tormento do nosso espírito. Justamente por is-
to, Ele está aqui conosco, entre nós, sensível para qualquer um
que o saiba sentir. Ele está vivo e presente, e, por não ser Ele
feito de matéria, o mundo não O reconhece.
Ele é uma vibração. Sua casa está em nós – uma ressonância
de pensamentos e de ações. Ele vai humildemente peregrinando
de porta em porta, pedindo hospitalidade; vai batendo de cora-
ção em coração, implorando amor. E o mundo lhe diz: “Quem
és tu? Segue, não te conheço”.
Caminha, caminha. Ouço chegar, sobre a onda do tempo,
ecoando de século em século, esta nova voz de Deus, que traz a
boa nova da bondade e do amor, pressentida e profetizada em Is-
rael, alcançada, predicada e vivida no Messias e, depois, seguida
e em atuação na Igreja. Ouço-a chegar, concentrando-se como
uma força na vinda de Cristo, fazer-se senhora dos equilíbrios Desenho de Francesco Ubaldi (Franco Ubaldi)
do mundo e abrir-se depois em espirais em constante expansão, Caminha, caminha, Cristo adiante e atrás o mundo
projetando-se sobre a humanidade para iluminar-lhe a alma. O
ritmo é contínuo, ligado a um chamado que vai de século em sé-
culo e se propaga de geração em geração. Repete-se num ecoar Aqueles poucos são canais abertos, vias de comunicação. A
de apelos e respostas, de palpitações e de ímpetos, de coração a luz, assim, espanta as trevas, e um calafrio estranho penetra e
coração; ouve-se, gradativamente, entre a terra e o céu, uma mú- anima a inerte densidade da Terra. Cristo vai adiante e atrai to-
sica imensa. De início, são vozes isoladas, invocações amargu- dos após Si; está sempre à frente, em marcha no caminho da as-
radas e dispersas em paciente espera. Mas as almas ouvem aten- censão. Ele tomou nas mãos o estandarte da evolução e disse:
tas esta nova palavra de amor. Uma força nova invadiu o mundo “Sigam-me. Eu sou o futuro”. Poucos seres apenas, incompre-
e se propaga. A ferocidade humana se adoça num estremecimen- endidos como o Mestre, seguem-no, sangrando e insultados.
to de ternura. Sob o beijo de Cristo, também a natureza muda a Mas Sua voz é tão doce e incomum, que muitos, fascinados, se
linguagem, até ao Cântico das Criaturas, de São Francisco. A esforçam por ouvi-Lo e caminham juntos para compreender
alma humana abre-se como uma corola e desabrocha ao cântico aquela estranha paz que o mundo não possui. Algumas palavras
de Deus. Este canto ecoa e se dilata em mil ressonâncias, reper- são ouvidas, algumas vibrações alcançadas ressoam na alma a-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 41
través da surda carapaça da carne. E o pequeno grupo de Cristo ça de se friccionarem sobre esses conceitos, sujaram-se. Nossa
atrai e avoluma-se pouco a pouco, à medida que caminha. Al- ação contínua recobriu-os de escórias. O espírito foge da Terra,
gumas palavras ecoam e se repetem; novos ouvidos se põem a e, quanto mais se fazem colossais as formas, menos aptas são
escutar; novas almas cansadas acorrem, suplicantes. Juntam-se para contê-lo. O grande edifício é um gigante que permanecerá
uns, e depois outros, e a palavra multiplica a palavra, o exem- mudo e vazio, prestes a desmoronar, se não vier a escorá-lo a
plo multiplica o exemplo, a redenção multiplica a redenção, a única força verdadeira que o pode fazer: o espírito. Abandone-
ascensão multiplica as ascensões. A onda avoluma-se, o grupo mos os inúteis protelamentos humanos, a sagacidade da terra e
se faz multidão, multidão imensa, incontável, até aos confins do do tempo! Se o espírito se vaporiza, fica um corpo sem alma;
mundo. As estradas da vida se abrem. O carreiro estreito e es- um cadáver em putrefação. Além das formas existe uma reli-
pinhoso dilata-se e se eleva; vejo-o desaparecer no céu, como gião substancial, única que poderá resistir aos momentos terrí-
rasto luminoso de um bólido. veis. Existe uma substância íntima e vivificadora, a força única
Eu sigo em último lugar, depois de todos. A cada passo, mi- que tudo sustenta – um imponderável sem o qual desmoronam
nha alma cai e tenta reerguer-se, peca e espera redimir-se, sofre, os mais suntuosos templos. Tudo é inútil peso morto, tudo é pe-
expia e sonha elevar-se; e tropeço, paro e recuo. Mas estas que- rigosa dispersão, se não houver um meio de acender e manter
das me remergulham na humanidade, na vida de todos, me hu- nas almas, que são os verdadeiros templos, o espírito do Evan-
milham e me irmanam aos humildes. É preciso que eu esteja gelho. Não são as posições humanas e a sua consolidação que
ainda aqui em baixo, na minha imperfeição e no meu trabalho. sustentam o edifício divino. A segurança, suprimindo a luta,
Se caio, minha vista se ofusca, mas não posso viver na minha suavizando a subida do Calvário, adormenta a capacidade de
cegueira e sou constrangido a subir. Não posso viver sem a sen- conquista. Cristo é uma força ativa e presente antes de tudo nas
sação de Cristo. Amor e dor, dor e amor. Minha alma cansada almas. Não pode ser destruída, não pode ser oculta. Se o orga-
caminha, caminha. Mas um dia, sobre o áspero caminho de nismo que a exprime não mais a contém, ela renascerá noutro
meus esforços, senti um passo junto ao meu, senti outro ombro lugar. Quando esta flamejante e evanescente alma das formas
aproximar-se do meu, levantar a minha cruz e transportá-la para se ausenta, mesmo que para os olhos humanos esteja bem fir-
mim. Desde então, não fiquei mais sozinho. Outro coração se me, tudo está intimamente corrompido. Se a presença de Cristo
debruçou sobre o meu, a dor tornou-se amor, e mais ninguém não sustém, se o Divino tem de se afastar, então se abre o abis-
poderá arrancar-me à indissolúvel aliança. No entanto eu caí mo; e Cristo, humilde e simples, coloca-se em outra dimensão e
novamente e, então, desanimei por minha fraqueza e tive medo continua em outro lugar o seu trabalho.
por minha indignidade. Então, a Voz me disse: “Não temas. Então, quem és Tu, Cristo? Perguntei-o à minha dor, que
Meu amor é mais forte que tua debilidade. Apoia a cabeça so- tudo me ensinou, inclusive a reencontrar Deus, e ela me res-
bre meu peito e descansa”. pondeu: “Ele é o fraco a quem deves ajuda, o inimigo ao qual
Então, tornei a apanhar o Evangelho, para reler e recordar. deves perdão, o pobre a quem te deves tu próprio. Ele é paixão
Aquela Sua palavra doce e potente me empurra como um forte e renúncia, amor e ascensão. Ele é amplexo e elevação de alma
vento e me leva longe, até Seu mundo, que não é este mundo. – e anda pela Terra, dia a dia, procurando, implorando hospita-
Releio lentamente aquela música vasta como o infinito, e minha lidade nos corações, porque o Dono do mundo não tem casa
alma desce, de trecho a trecho, aos significados mais profundos nem teto e anda, qual peregrino, esmolando amor”.
da Sua palavra. Aquela música me acalma, esta profundidade
me sacia. Somente ali, encontro os espaços ilimitados que mi-
XIII. MINHA POSIÇÃO
nha alma deseja. Aquela palavra doce é uma espada de fogo
que me penetra a alma e a atravessa como o olhar de Deus; é a
Chegou o momento de dizer tudo sobre mim mesmo, até à
vibração mais harmônica que eu possa conceber no universo.
última profundidade, de assumir a minha posição e a minha
Aquela palavra ressoa no meu coração como a harpa de um an-
responsabilidade. Eu disse em páginas anteriores (Segunda Par-
jo e dissolve a dor. O meu espírito não tem ecos bastante pro-
te, Cap. III – “Dor”) como devia dizer toda a minha verdade,
fundos para exprimir a múltipla, imensa riqueza daquela vibra-
dar testemunho das minhas afirmações com a palavra e com o
ção. Sinto-a alcançar-me, maravilhosa e me aterrorizo ao ouvi-
exemplo, dar a certeza da ideia que possuo. E disse (Segunda
la extinguir-se em minha sordidez. Em mim, a vibração purís-
Parte, Cap. I – “Em Marcha”) que a minha prudência seria vil,
sima daquela onda se distorce e deforma, recebe ressonâncias
se no momento decisivo me calasse ou não dissesse tudo. O
desarmônicas, e eu choro por mim e por minha opacidade terrí-
meu último volume culminava, nas conclusões 35, na afirmativa
vel, que tudo ofusca e deturpa.
de que A Grande Síntese é uma revelação conexa, em sua subs-
Mas com que direito ouso eu falar de Cristo? Como não
tância evangélica, ao desenvolvimento gradual, na Terra, do
compreendo o absurdo de tal intimidade, não ouço a rebelião do
pensamento de Cristo, que é emanação contínua. Então, senti
universo que diz: “Para trás, imundo! Não sentes o cheiro de tua
que também me movia sobre a linha da inspiração cristã e per-
baixeza?”. Então, fujo horrorizado de mim e torno a olhar de
cebi com que imensa noúre estava em sintonia. Com isso, defi-
longe, do fundo da minha miséria, aquela beleza, da qual já não
ouso avizinhar-me. Não sei como a minha pena não se despeda- ni a significação daquela obra. Não nos limitemos à moldura, à
ça na violência desta minha sensação, no contraste da consciên- veste editorial, à colocação humana. O conteúdo ultrapassa es-
cia de mim mesmo e a irresistível atração. Este tormento de for- tes confins, resultantes apenas da necessidade do momento. Re-
ças me abate, me eleva, me anula e, no entanto, se faz próxima; feri-me à gravidade da hora histórica, que justifica métodos ex-
me estraçalha e, no entanto, me acaricia. Não sei como o meu cepcionais para a ressurreição de Cristo no mundo. Então, era
coração não se arrebenta na exuberância da alegria, no ímpeto cedo para dizer mais. Era necessária minha nova maturação,
da paixão, quando aquela música ainda me arrebata, me levanta, que aparece neste volume, para continuar; era necessário este
me conduz ao alto, a perder-me nos céus. Como sofro ao ver os novo testemunho para que o leitor pudesse compreender me-
cegos que afanosamente procuram o Cristo na história e douta- lhor. E, mesmo agora, destruo as pontes atrás de mim, para que
mente discutem e tentam a reconstituição de sua figura entre as não me seja aberto senão um caminho: o de avançar.
cinzas do tempo, enquanto que Ele está próximo e sensível. Ele Quanto eu disse de Cristo e, sobretudo, quanto direi nos úl-
ressurgiu, está vivo, caminha adiante de nós. Reabramos os timos e mais intensos quadros que se seguem, é uma confissão
olhos que O esqueceram e revê-Lo-emos. feita em termos tão sentidos, tão gravemente cheios de empenho
Não! Nós não o vemos. Em vinte séculos de história, aquele
35
perfume sutil esvaiu-se. Nossas mentes e nossos corações, à for- As Noúres, Cap. VI – Conclusões. (N. do A.)
42 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
diante de Deus, que não se pode admitir a mentira. O equilíbrio O movimento é espiritual. A meta é um reino que não é da
deste estudo exclui qualquer enfermidade de consciência. Nem Terra: o Reino dos Céus. A forma é aristocrática; enfrenta a in-
tais afirmações se fazem com escopos humanos, porque elas telectualidade e a cultura, porque são a aberração do século.
representam um gravame terrível para quem assume por elas, Não se tocam os estratos inferiores, mais densos e menos ma-
como eu o faço, plena responsabilidade. Este é o testemunho duros para a compreensão. Tudo desce depois, automaticamen-
que eu devo dar hoje, por absoluta ordem interior, da verdade te, por gravitação, na assimilação e também, ofuscando-se, na
de A Grande Síntese. A íntima ligação de minha alma com realização. Ficamos em uma atmosfera pura, pelo menos no
Cristo, aqui exposta, confirma hoje e revalida as minhas graves momento da gênese e da concepção. As forças substanciais não
afirmações de ontem, num caminho de tenaz e inflexível coe- agem do exterior, mas vão diretas ao coração do homem; in-
rência. É o testemunho de seu conteúdo cristão, motivo central crustam-se nas motivações, e estas forças cósmicas estão aqui
no renovamento da civilização. Disse-o inequivocamente; é presentes, em ação. Aqui tudo é forte porque é imaterial; é in-
preciso que compreendam também em alguns de meus silêncios destrutível porque é imponderável. Quem está na matéria, se
terrivelmente eloquentes. A minha meta é construir; nunca me desejar destruir, encontra o vazio e não sabe o que agarrar.
verão aqui acusar, agredir, demolir. O meu escopo é o bem, é Quem está no espírito compreende e não pensa em destruir. Es-
unificar, e não semear dissensões, irritações e antagonismos, te é um germe tão espiritual, que não toma forma humana; é a
polemizando. O meu método tem de ser, necessariamente, o substância da fé, é um dinamismo puro, que em toda parte che-
método de Cristo – o sacrifício, o perdão, o amor. As dificulda- gará e em qualquer divisão humana poderá frutificar. É uma
des e os dissabores são apenas para mim. A verdade vale por si, paixão de bondade que pode existir em cada casa, em cada ins-
não por mim. A verdade é que tem valor, e não eu. tituição, em cada opinião; é um princípio de honestidade, do
Mas, perguntar-me-ão, que significa tudo isto, que é que eu qual cada autoridade não poderá senão se regozijar. É uma pu-
desejo e aonde pretendo chegar? Não o sei precisamente, hoje. reza e uma sinceridade em que cada alma se sentirá renascer. É
Certamente não se diz tudo quanto eu disse apenas para se lançar a luz de Deus, que se dá a todos acima dos monopólios huma-
um livro. Sei apenas que atrás de mim há uma força imensa, à nos; é pura destilação de força e bondade, alcançada na fonte,
qual obedeço e sigo sem saber, eu mesmo, dos futuros desenvol- antes que atinja a canalização e as impurezas humanas. Parece
vimentos. Eu semeio, mas não colho. Devo ser inteiramente des- nada, porque não desceu ainda à forma fixa e concreta. Flutua
ligado do fruto do meu trabalho. A minha recompensa está em no ar como um perfume, como o orvalho ainda não denso. Mas
outro lugar, está apenas em Cristo e em Sua aproximação. Não este é o estado mais dinâmico, o estado da gênese. É o espírito
aprendo o meu caminho humano senão dia a dia. Assim tem sido do Evangelho, que volta na sua esplêndida fase primordial. Ele
até agora. Não se me atribuam, portanto, perfeições e méritos, nada possuía, senão mártires.
pois não os tenho e, se faço alguma coisa, não é minha. E per- Na sua origem, o fogo do espírito era líquido e jorrava em
guntar-me-ão: trata-se de um movimento? Tranquilizem-se to- abundância das grandes crateras abertas. Hoje, o homem está
dos. Não é um movimento no sentido humano. O homem é muito imerso na matéria; um século de ciência volatilizou o evanes-
apegado às suas distinções, divisões e organizações humanas, cente perfume do Céu. Hoje recolhemos as últimas fagulhas
porque incluem interesses. Eu lhes deixo todas estas coisas que semiextintas e as conservamos religiosamente nas lâmpadas
tanto lhes agradam e que para mim nada valem. Nada se muda do acesas, cansado e pálido reflexo do incêndio original. Mas isto
que é externo, porque o exterior não conta. Dir-se-á: é utopia. não basta para desfazer as trevas, que se tornam cada vez mais
Não. As verdadeiras forças estão no Céu, as forças que renovam densas e ameaçadoras. Não basta o monumento das verdades
a Terra. Nós vimos e sentimos seu maravilhoso funcionamento. escritas, conservadas num invólucro imponente que se formou
Um homem não pode realizar certos movimentos, mesmo através através dos séculos. O espírito é uma força viva que habita no
de seu heroísmo e de seu martírio; eles despontam na hora histó- coração do homem. É uma força, não uma palavra escrita, e,
rica, no sangue dos povos, no equilíbrio da civilização. Estas for- como força, se difunde e se exaure, não pode ser fechada no
ças, que tudo operam, se o quiserem, lançarão o homem, além de imóvel. Extremamente móvel, ele se nutre de vida, é uma radi-
sua própria vontade, onde ele não saberia chegar, como um ex- ação que desce do Alto, é um calor que se dissipa, se não rece-
poente que parece elevado, mas que, substancialmente, pode ser be continuamente novo calor para comunhão da alma com o
insignificante. É um fato que certos movimentos substanciais do Céu. “Litera Occidit spiritus autem vivificat” (Cor. II – 3.6)36.
espírito não descem sobre a Terra, mas estão fora de qualquer re- Muitas vezes, nós trocamos o continente pelo conteúdo, toca-
cinto, entre o mundo e o Céu, e nunca se desenvolveram valori- mos o invólucro pensando tocar o fogo, mas em verdade fica-
zando categorias humanas. Não se cuida, pois, de qualquer pro- mos frios. O hábito nos acostumou à forma; ouvimos palavras
priedade; tudo é dirigido tão-somente pela força do espírito. O incendiárias e permanecemos indiferentes. Que pesado fardo
homem pensa por demais em corrupções. Por isso não quero nem humano tem a Igreja de arrastar no seu caminho divino! Tanto
casas, nem sedes, nem cargos, nem a larga pestilência das orga- esfregamos nossas almas impuras nas coisas santas que, em lu-
nizações humanas. Nada que possa atrair os baixos instintos ou gar de nos santificarmos, tornamos estas impuras. Abaixamos
estimular as sempre rápidas reações dos impulsos inferiores do tudo ao nosso nível, a fim de podermos carregar tudo conosco,
homem comum. Nenhuma fetidez de dinheiro, que tanto atrai os para nosso uso e consumo.
ávidos e sombrios aduladores. Estes fogem, graças a Deus, em Mas a verdadeira fé é um incêndio que se situa, com difi-
face de um prato onde não há senão fadiga, dor, paixão de espíri- culdade, no círculo das coisas humanas. É um perfume que não
to. Esta é a minha segurança. se pode fechar em frascos. É toda uma espontaneidade festiva
Ai das crenças que não exalam somente o perfume da e, se deve ser codificada em lei, é pela triste necessidade de ser
renúncia! adaptada à vida dos cegos. Esta fé é hoje necessária, necessária
Esta é a minha força diante do mundo: a ideia pura e nua é esta erupção espontânea e direta das forças do Céu, necessária
como desce do céu e atirada como semente ao vento, para que esta explosão de energias irrefreáveis como o raio e a tempes-
germine sob o impulso secreto das leis da vida. Só a imateriali- tade. Pergunto que coisas poderia fazer um punhado de homens
dade é garantia de invulnerabilidade. A força da ideia que de- fortes, poderosos pela disciplina do espírito, armados desta psi-
senvolvi e sempre segui não se desmente e confia só e sempre cologia heroica, dirigida à renovação da civilização; que coisas
unicamente nela mesma. Atrás dela estão as forças do infinito,
e elas me joeiraram tremendamente a princípio. Agora se de- 36
“A letra mata, mas o espírito vivifica”. Palavras do Apóstolo Paulo,
senvolvem, como verifico, com método e lógica. em sua Carta aos Coríntios. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 43
poderiam fazer diante da massa inerte, das maiorias jocosas e é um controle contínuo de correspondência de capacidade, é um
cegas, que não procuram senão o prazer, sem paixão por ideais permanente exercício, é um equilíbrio de forças, que leva a alma
nem vontade de martírio, sem saber nada dos grandes desígnios até aquele ponto de sua missão que ela é capaz de suportar, e
da vida. Em cada encerramento de um ciclo de civilização, tal não além, porque então ela seria abandonada e cairia.
como para as plantas em cada estação, é necessário uma brota- Sinto, afinal, levantarem-se menores objeções, as quais,
dura nova e fresca que atinja diretamente as fontes da vida e um ocupado com outros problemas, não tenho até agora considera-
flamejar de sol que amadureça a messe. Outrora, em tempos de do, mas que devo considerar. Tudo isto pode parecer não ser
calma, de inércia espiritual, era possível ficar calado e viver de senão o eu humano que grita em mim, que se ensoberbece e se
acomodamentos, mas não hoje, quando o inimigo está às por- agita. Modéstia, modéstia. O verdadeiro místico é, sobretudo,
tas. Estamos diante do dilema: ou ressurgir no espírito, ou mor- humilde, e este é o livro do orgulho. Que é isto de subir à cáte-
rer na matéria. A história prepara uma tremenda convulsão de dra, podem dizer-me, e fazer vaidosas afirmações de altíssimos
dor. É a voz de Deus para os surdos, é a via da redenção. É o contatos de espírito, não provados pelos outros, e que implicam
batismo da tempestade, que faz voltar a pureza; é paixão de al- numa gratuita posição de superioridade e autoridade, decerto
ma, que faz subir novamente. Não é destruição – é renovação. não aceitável pelos demais.
Não temamos, Cristo se aproxima, não apenas como justiça Pense-se, porém, no que é este livro. Ele é uma desesperada
mas também como salvação. Nos séculos de tranquilidade, tam- invocação a Deus, de uma alma que, vendo o que é o mundo e o
bém o céu fica tranquilo. Mas, nos momentos de tempestade, o que o espera, oferece para salvá-lo, nada mais tendo para dar, a
céu se abre e, entre os raios, lança relâmpagos de luz. Quando os si próprio (ver capitulo XXVII – “Paixão”), mesmo que seja
tempos estão maduros, uma ferida se abre na história e jorra ameaçado de destruição. A psicologia comum dos críticos mo-
sangue e linfa vitais. Sem isto, parece que a humanidade não te- ve-se em outro plano; não seria possível contentar a todas as
ria forças para continuar seu caminho. O inimigo está chegando pessoas e divergentes exigências. Mas, aqui, eu sinto bem dife-
ao centro da fortaleza. Cristo tem de recomeçar do princípio. rente: sinto a que imensa incompreensão vou de encontro e, no
Nos momentos supremos e decisivos, só resiste quem for subs- entanto, não posso deter-me. Isso assinala o início do meu mais
tancialmente forte e estiver abastecido de espiritualidade, e não intenso sacrifício. Falo forte e alto, perturbo os que chegam, des-
apenas de habilidades humanas. Mas o mal, se destrói, também faço os acomodamentos, semeio o incêndio nos ânimos. Sou vi-
purifica e, nas mãos de Deus, é guiado para os limites do bem. olento no espírito porque devo abalar e salvar. Não me iludo:
O mal é cego e não o sabe, mas o bem, que o guia, sabe-o. devo pagar pelas minhas afirmativas. Antes morrer que pensar
As tempestades reedificam e são bem-vindas. não possa mantê-las. Não são coisas que se afoguem no silêncio
Deus escolhe os Seus meios em toda parte, mas bem rara- ou possam desaparecer na indiferença. Chegará a hora do teste-
mente entre as fileiras oficiais, entre os poderosos e os sábios. munho ainda mais evidente, não já de palavra, mas de ação e de
Os pobres seres que se fazem admitir neste movimento, arris- dor. O meu caminho se estreita, e não posso retroceder. A depu-
cam-se, a cada instante, a ficar pulverizados. Eles terão de ração deve ser severa e exigente na proporção da massa de afir-
fornecer sozinhos, sem apoio, o testemunho supremo de sua mativas feitas. Qualquer um na Terra tem o direito de enfrentar
verdade. E esta não poderá pairar senão mais tarde, sobre um quem assim fala e dizer-lhe: “Exijo provas”. E eu devo estar
consenso de almas, que não se pode formar senão lentamente, pronto. E bem sei que a sociedade moderna, que evita o sangue,
por maturação e por vias interiores, e só depois da experiência sabe triturar um homem de forma sutil muito mais dolorosa.
completa, quando a vida encerrar-se, isto é, quando aquele E diante deste pressentimento foi que senti não poder renun-
consenso não puder mais levar a quem agiu, nenhuma ajuda e ciar ao dever de dar testemunho de minha verdade. Não cumprir
nenhum conforto. esse dever seria para mim trair minha missão. Não posso. E aqui
Mas também o Alto é avaro de auxílios, não dá sinais nem estou para sofrer as consequências. Não há alternativa. Espiritu-
provas. Estas seriam uma espécie de patente de autorização pa- almente, o mundo já está em chamas. Não é lícito, neste mo-
ra o exercício pacífico da própria missão. Não. Ele deve ser ex- mento, cruzar os braços e ficar como espectador, porque a tem-
posto a todos os ventos, golpeado por todos os assaltos. A sua pestade vem para todos. Qualquer absenteísmo espiritual é hoje
alma deve ser atirada nua na poeira das estradas, onde todos culpa e vilania. O mundo deve decidir e escolher seus valores,
possam pisá-la. Nada de posições protegidas e seguras, que um princípio deve vencer. Os neutros serão arrastados e se tor-
adormentam e ensoberbecem, mas humilhações, lutas, incerte- narão servos. E as palavras que eu digo não poderiam ficar ape-
za; não a alegria da colheita, mas a fadiga da sementeira. nas nos altos céus, tão distantes da universalidade. Devem des-
Muito mais rude que o da Terra é o selo do Céu! Esta exce- cer também à forma precisa de luta e de conquista que o mo-
ção, que é péssimo exemplo para a mediocridade ignorante, de- mento histórico impõe, momento de ação tremenda e decisiva.
ve sofrer os mais severos controles, para que a estrada não seja As palavras que eu digo devem saber precisar, no seio da uni-
escancarada pela rebelião e pelo erro. A lei é que cada superação versalidade evangélica, o pensamento que temos hoje o dever de
de normas não seja lícita senão quando se entra em normas hu- lançar ao mundo, e, neste pensamento específico, feito de vida,
manamente mais rígidas, moralmente mais elevadas. Quem vive devo oferecer minha contribuição. E se este livro puder parecer
protegido pela autoridade, cedendo a esta o peso de sua respon- um imperdoável ato de orgulho e de audácia, é justo que eu pa-
sabilidade, tombará neste caminho. Quem for escolhido, terá gue. Aqui estou para isso. Para mim, existe outro prélio no Céu,
uma soma muito maior de deveres e somente poderá resistir e aonde a Terra não chega, e estou a postos. Que os sonolentos se-
vencer com a ajuda de Deus. Ele o sabe. Uma missão é um ca- jam abalados. O sono é hoje a pior das posições.
minho que se restringe cada vez mais, às vezes até ao martírio. Compreendo que, para quem vive no plano normal, no qual
Ele o sabe e não foge. Ele deve dar testemunho. Se Deus não es- o movimento histórico é menos sensível, a minha atitude possa
tiver próximo, tal caminho não se poderá percorrer. Só quem es- parecer, desde logo, exaltação, perigosa audácia, pretensão ab-
tá ao lado de Deus concorda em arar semelhantes campos. Neste surda, estranha megalomania, efeito de desmedido orgulho.
clima, nenhuma motivação humana resiste. O verdadeiro cha- Mas, na hora premente de hoje, eu não posso viver de acordo
mado se faz reconhecer pela ausência de qualquer motivo terre- com as medidas e as prudências humanas, que são proporcio-
no, por um particular método de luta, por uma cor psíquica in- nais a fins humanos. Confesso, sim, que sinto tudo isto como
confundível. E só então ele corre e avança, quando os instintos um grande dever, um encargo de grande responsabilidade. Não
humanos foram destroçados pela raiz e nenhuma outra coisa se- se veja em tudo isto, e especialmente na unificação de que falei,
não Deus pode estar nele. Tudo isto é uma peneiração cotidiana, uma posição elevada e de vantagem conquistada para sempre.
44 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Veja-se, ao invés, uma posição de trabalho, na qual me devo posições terrenas, perdendo então a suprema e divina força, e
manter a custo de uma contínua tensão de espírito e que posso enfileirar-se, por coerência, no nível das forças humanas, limi-
perder apenas dela deixe de ser digno. A unificação não é um tadas e vulneráveis, quais o próprio homem.
agigantamento do meu eu humano, coisa que tantos temem, Está ao alcance da mão uma grandeza imensa, essencial na
mas é o eclipsar-se deste eu numa unidade maior. Não é autoe- nova civilização. Quem desejará valer-se dela37? Trata-se não
xaltação falar deste novo eu em que meu ser desaparece. Para de salvar um organismo, mas de salvar o mundo, que precisa de
mim é, ao contrário, um ato de suprema consagração. Examino- Cristo38. Agita-se neste livro um conflito mundial trágico e imi-
me e me confesso sem pretensão de infalibilidade. E isto é tudo nente, do qual dependerão os futuros milênios. Ai da Igreja vi-
o que sinto agora na minha consciência. Não tenho culpa se as- sível da Terra se dela se afastar a Igreja invisível de Deus! Há
sim é, por sua natureza, para quantos o vivem, o fenômeno mís- outra religião, mais profunda, dentro da religião, que supera to-
tico, se eu me encontro a vivê-lo agora e se isso está fora da ex- das as formas e sem a qual nenhuma religião é valida. É um
periência normal e além da compreensão. sentimento universal que é a alma de todas as fés e que se faz
Algumas coisas não se dizem, poderiam ainda objetar. Mas sentir por sua verdade. Há uma religião de superfície, feita de
eu tenho o dever de dar o exemplo, de devolver o que recebi, de práticas, formal, sancionada, forte, triunfante, organizada e em
dar aos outros a alegria conquistada, o dever de indicar o cami- marcha como um exército. E há outra religião, sem clero, sem
nho e de testemunhar minha experiência. Tenho o dever, pesa- autoridade, pobre, sofredora, simples, forte apenas por uma fé
do e gravíssimo, de inquietar as consciências, que é necessário imensa e vitoriosa no céu. Há um Cristo maior, que não está só
para os que dormem. Cumprido o dever, silêncio. O fenômeno, nas imagens e nos templos, mas em todo o lugar onde uma al-
naturalmente, fica, e vivíssimo, mas, acabada a necessidade de ma sofre e ascende. Há santuários também no coração do ho-
manifestá-lo para um fim benéfico aos outros, minha boca se mem e momentos nos quais a alma pode falar diretamente com
fecha, e tudo ficará fechado sob o selo do meu silêncio, simples Deus. É necessário reafirmar este imponderável, sem o qual ne-
fato pessoal, presumível apenas por suas consequências. Mas nhuma religião é religião. É necessário reviver como nos tem-
fazer-me compreender primeiro é hoje parte de meu dever. Era pos em que as coisas do espírito estavam presentes, quando se
necessário explicar, e esta sinceridade pode ser uma prova ca- manifestavam não apenas como um eco longínquo das profun-
paz de sacudir as almas. Não vejo outro meio de fazer isto. Que dezas dos séculos, mas sim como forças ainda incandescentes e
pode importar, ante a urgência da hora e a perfeição da meta, destemidas, não resfriadas e cristalizadas. É necessário retornar
diante do bem de tantos, se para tudo isto um só se deva expor à força virgem do primeiro Evangelho e do primeiro francisca-
às críticas e ao sofrimento? À natureza humana normal repugna nismo. Só assim se poderá enfrentar com esperança o futuro.
a ideia nua e abstrata. É necessário que essa ideia se materialize Neste sentimento culmina a catarse mística de minha alma.
num ser que a viva aqui, lutando, sofrendo, testemunhando. O A minha ascese não é, portanto, fenômeno circunscrito ou ato
homem comum exige esta materialização para contra ela bater a fechado no meu egoísmo, mas se expande e se dobra sobre o
cabeça – é preciso dar-lha. Eu, porém, tenho aqui a sensação mundo. A minha paixão demonstra que a metanóia 39 a que nos
humanamente penosa de uma pública confissão, a sensação da guia o Evangelho, o superamento e a reviravolta de valores que
última espoliação da minha personalidade, que assim não tem ele nos impõe, toda a sua revolução de espírito, não são utopia,
mais ângulos seus, nem segredos, nem refúgio, porque tudo como muitos acreditam, inexequível só porque não foi e não é
deu, toda se expôs e toda, já agora, pertence aos outros. sempre realizada segundo as praxes religiosas e sociais. Quem
Digo-o e repetirei para que também o leitor distraído perce- isto afirma é cego para o imponderável. A luz e o bem que eu
ba: por caridade, não se me atribua qualquer coisa de excepcio- recebo do Alto tenho de devolver e vivo para isso. Por caridade,
nal e de superior como homem. Nada seria mais falso e mais não se me entenda mal, dando qualquer valor à minha pessoa,
nocivo para o meu trabalho. Não se esqueça jamais o quão pro- que não tem nenhum, julgando capaz da mínima perfeição mo-
fundamente estou mergulhado nesta natureza humana, contra a ral este pobre verme que eu sou. E isto também é verdade, e
qual tanto luto dia a dia. Faço uma declaração. Se não a quise- devo testemunhá-la. Eu não sou senão um vil e frágil instru-
rem compreender, a culpa não é minha. Não poderei, por isso, mento colhido numa engrenagem gigantesca. O meu estribilho
mudar o meu caminho. Faço de uma vez e para sempre esta é este, e eu o repito cada noite, ao fim do cansaço do dia: “Se-
bem clara distinção: não se me atribua nada de bom que eu pos- nhor, eu sou o teu servo. Nada peço senão isto”.
sa fazer. Isso não é meu. Esta é a verdade. Atribuam-se-me, ao Gradualmente chegamos bem longe das proporções estrita-
invés, todos os defeitos, as fraquezas, as culpas que possa ter o mente científicas em que este estudo começou.
meu trabalho. Tudo isto, sim, é verdadeiramente meu.
37
O leitor considere com seriedade e imparcialidade as palavras seriís-
XIV. MOMENTOS PSICOLÓGICOS simas que se seguem no texto. A oferta foi feita sinceramente também
à Igreja de Roma, para que a mesma se renovasse para o seu próprio
Devo completar o estudo do fenômeno também em seu as- bem. A resposta veio com a condenação do livro. Este foi escrito em
pecto religioso. Falando assim tão intensamente de Cristo, era 1938. O autor continuou oferecendo a sua obra de bem aos diversos
grupos humanos, para a salvação do mundo. No fim, foi o Brasil.
inevitável referir-me à Sua Igreja. Minha ascese levou-me ao
que a compreendeu e a aceitou, pondo-se assim na vanguarda. Infe-
mais cristão dos misticismos. Eu mesmo devia alcançar o plano lizmente tudo se está preparando na história para que estas páginas
místico para poder compreender e afirmar estas conclusões. Os proféticas se realizem. Mas, quando foram escritas, ninguém quis
últimos trechos deste volume, que chamo momentos psicológi- acreditar e foram rejeitadas. (N. do A.)
38
cos, descreverão as minhas últimas realizações espirituais. Gos- Esclarecendo ainda mais e ampliando estes conceitos, o mesmo au-
taria de me calar, mas a Voz me disse: “Fale sempre mais claro tor escreveu Profecias e Problemas Atuais, publicados por esta Edito-
e sempre mais forte”. Em certos caminhos não é possível parar. ra. (N. do T.)
39
Tenho olhado a Igreja com o mesmo ânimo respeitoso e reve- Metanóia – palavra de origem grega (metánoia), significando con-
rente com que tenho olhado Cristo. Serei o último a levantar a versão, não apenas no sentido de arrependimento de erros e pecados,
mas ainda, e bem significantemente, de “mudança de espírito”, “mu-
voz contra ela. Mas meu coração estremece pela gravidade das dança de mente”. Vejam-se Mt., 4:17; 21:30; II, Cor., 7:8 etc. Neste
provas, pela proximidade do momento. O dilema é tremendo: verdadeiro sentido evangélico, o autor usou a palavra metanóia no
ou reencontrar a força no espírito, conservando-a nua diante de texto original: “... la metanoia a cui ci guida il vangelo, il superamen-
Cristo, qual Ele a fez, e somente tal pacto supremo respeitar no to e rovesciamento di valori che esso ci impone, tutta la sua rivoluzi-
mundo, em contato com o Céu, ou continuar consolidando as one di spirito...”. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 45
Durante o trajeto apareceram na minha consciência momen- um frio muito intenso o atormentava. Chamou, nesse momento,
tos culminantes, de mais evidente sensação, de mais intensa o Irmão Leão, que ia mais à frente, e assim lhe falou: „Ó Irmão
emoção. Isolei-os e, aqui, os exponho sucessivamente, porque, Leão, ainda que os Irmãos Menores dessem no mundo inteiro
no desenvolvimento deste trabalho, teriam desfeito o desenvol- grande exemplo de santidade e boa edificação, não obstante, es-
vimento lógico da argumentação. São visões diferentes, mas creve e toma cuidadosa nota, que nisso não está a perfeita ale-
exprimem sempre o mesmo caminho da minha ascensão. São, gria‟. E caminhando um pouco mais, São Francisco o chamou
talvez, o exemplo de uma arte nova, baseada numa psicologia pela segunda vez: „Ó Irmão Leão, ainda que o Irmão Menor res-
científico-espiritual nova. titua a vista aos cegos, cure os paralíticos, expulse os demônios,
Aqui, termino o meu trabalho. Os quadros se desenvolve- faça os surdos ouvirem, os coxos caminharem e os mudos fala-
ram sem comentários, num crescendo insistente, no qual quem rem e, o que é muito mais, ressuscitasse um morto de quatro di-
não crê e não sente, mas só observa e raciocina, poderá ver o as, escreve que não está nisso a perfeita alegria‟. E, andando um
desenvolvimento do fenômeno como foi colocado no princí- pouco mais, São Francisco, em voz alta, falou: „Ó Irmão Leão,
pio, em seu aspecto científico. Estes quadros, depois de terem se o Irmão Menor soubesse todas as línguas, ciências e escritu-
atravessado diversos níveis espirituais e planos de consciência, ras, e se soubesse profetizar, revelando não somente coisas futu-
e os mais contrastantes momentos do meu subconsciente e do ras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos homens,
meu superconsciente, depois de se terem desenvolvido em di- escreve que não está nisso a perfeita alegria‟. (...) E, continuan-
versas perspectivas da realidade interior do imponderável, ex- do a falar assim pelo espaço de duas milhas, o Irmão Leão, mui-
plodiram numa visão suprema: “Paixão”, o último grito em tíssimo admirado, lhe perguntou: „Pai, peço-te, da parte de Deus,
que minha voz se apaga. Esse quadro é realidade vivida. Quem que me digas onde está a perfeita alegria‟. E São Francisco lhe
quiser me acoimar de louco, releia a parte científica, onde a es- respondeu: „Quando chegarmos à Santa Maria dos Anjos, intei-
ta minha interrupção dei sólidas bases. ramente molhados pela chuva e enregelados pelo frio, enlamea-
Tal é o meu ponto de chegada hoje. Amanhã, não sei. A dos e atormentados pela fome, e batermos à porta do convento e
verdade é que minha vida caminha. Quem me seguiu até agora o porteiro chegar irado e disser: „Quem sois vós?‟, e nós respon-
o sabe. Mas os desenvolvimentos mais altos estão hoje acima dermos: „Somos dois de vossos irmãos‟, e ele disser: „Não falais
do que posso conceber. Cristo é uma beleza tão completa, uma a verdade. Sois dois malandros que andais enganando o mundo
grandeza tão vasta, um conceito tão conclusivo, uma perfeição e roubando as esmolas dos pobres. Fora daqui!‟, e não nos abrir
tão absoluta – que não é possível superá-la e imaginar além. É a a porta e nos deixar de fora, expostos à neve e à chuva, com frio
saciedade do desejo, o último término da mente e do coração. A e com fome, até à noite; então, se suportarmos pacientemente
Sua figura não tem sombras para serem esbatidas; é um infinito tantas injúrias, crueldades e rejeições, sem nos perturbarmos e
e a ele nada se pode juntar nem se pode superar. Mas justamen- sem murmurações contra ele, se, com humildade e caridade,
te porque é um infinito, não tem pausas nem fim, e nunca se pensarmos que aquele porteiro verdadeiramente nos conheça e
acaba de percorrê-lo. A vida, que não se encerra nunca, será pa- que Deus o fez falar contra nós, ó Irmão Leão, escreve que nisto
ra mim uma eterna imersão naquela profundidade sem limites. está a perfeita alegria. E se nós continuarmos a bater à porta e
ele sair perturbado e nos expulsar como vadios importunos, com
XV. IRMÃO FRANCISCO insultos e bofetadas, dizendo: „Ide embora daqui, ladrõezinhos
miseráveis, ide para o albergue, porque aqui não tereis comida
Peregrinei por toda esta minha terra úmbrica e, além de nem abrigo‟; se isso suportarmos pacientemente, com satisfação
seus confins, corri no encalço de suas subterrâneas descen- e com amor, ó Irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita ale-
dências, ressurgidas em terras limítrofes. Nestas, me detive gria. E se nós, constrangidos pela fome, pelo frio e pela noite,
longamente, para me encontrar, a mim mesmo. Nos seus si- batermos e chamarmos de novo, e pedirmos pelo amor de Deus,
lêncios austeros e sublimes, minha alma viveu sua mais inten- com muitas lágrimas, que nos abra a porta e nos deixe entrar; e
sa maturação. Os horizontes altíssimos de suas montanhas me se o porteiro, mais escandalizado ainda, disser: „Esses são ve-
deram a sensação de Deus. lhacos importunos, dar-lhes-ei o que merecem‟, e sair com um
Peregrinei por toda esta terra franciscana, de Assis à irmã nodoso bordão, agarrar-nos pelo capuz, atirar-nos ao chão, re-
Gubbio; do Subásio ao Alverne; da Porciúncula a Greccio. volver-nos na neve, golpear-nos com aquele bordão, nó por nó;
Andei apaixonadamente interrogando as antigas pedras, para se nós suportarmos todas estas coisas com paciência e conten-
que me contassem o segredo de sua história. Estreitei-as ao tamento, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, e que tudo
coração, banhei-as de lágrimas. E falei: Dizei-me, vós que o devemos suportar pelo Seu amor, ó Irmão Leão, escreve que nis-
vistes, o São Francisco humilde e pobre, recordais? Não é to está a perfeita alegria‟ (...)”.
possível que um hálito de seu imenso respiro não tenha ficado ◘ ◘ ◘
em vós também; não é possível que o seu abrasante amor não Estava frio, no entanto fazia tanto calor no coração! Estava
vos tenha percorrido com uma vibração tão poderosa, que não escuro, e, no entanto, resplandecia tanta luz na alma! A tormen-
permaneça até agora e que deveis comunicar-me. Não ouvis- ta era rigorosa lá fora, mas Deus cantava tão forte do interior!
tes? E por que não falais? Escuta, escuta! Não ouves a voz das profundezas? Sim. O
Falai, imensos horizontes, narrai-me os êxtases, os trabalhos, Subásio é o mesmo, e lá em baixo Assis descansa; em torno, a
as penas daquele coração. De torrão em torrão, andei invocando coroa das colinas úmbricas. São os mesmos os declives cheios
a longínqua lembrança. Pedi aos declives inundados de sol, às de bosques de Greccio, a vista na direção de Rieti e Fonte Co-
selvosas montanhas, às veredas, às humildes casinholas, às cape- lombo; os mesmos os reflexos escuros e profundos do lago de
linhas perdidas, aos doces recantos do campo – sempre à espera Piediluco e os perfis de seus grandes montes severos. Os mes-
de uma arcana revelação interior – que me dissessem: é aqui, foi mos os vastos silêncios do Trasimeno imenso. Ouço um bater
aqui, não vês? Aqui está a pequena figura do Santo, queimando, de remo no lento caminhar de praia em praia e aí reencontro
consumida pela sua paixão; não ouves a sua voz harmoniosa e minha alma, que caminha sem nunca descansar. Vem da terra o
persuasiva, que fala da perfeita alegria? Escuta40: eco daquele passo bendito de Francisco, que sigo sem alcançar.
“Certa vez, vindo São Francisco, de Perusa para Santa Maria Interrogo as ressonâncias íntimas e ouço, admirado, um mur-
dos Anjos, em tempo de inverno, em companhia do Irmão Leão, múrio humilde na mais secreta palpitação de meu coração.
Dizei-me, forças da vida, por que não guardastes um sinal
40
De I Fioretti de São Francisco, Cap. VII. (N. do A.) do meteoro que por aqui passou, perdendo-se nas transparências
46 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
do céu; dizei-me, criaturas irmãs que comigo atravessais a vida, reclinada. Andava em torno de mim o hálito da pedra ascen-
nenhum longínquo eco retorna no timbre de vossas vibrações, dente. Nas harmonias das últimas luzes, no vago palpitar dos
se tanto ímpeto de paixão vos imprimiu o canto do Irmão Fran- espaços supremos do templo, no indefinido do último sonho,
cisco? No entanto, na música da criação, ouço ir e vir a harmo- despedaçou-se a abóbada, e em mim apareceu o pensamento
nia evanescente daquele cântico de Deus que em vós se fundiu de Deus. Meu corpo ficou lá em baixo, unido a cruz. Mas mi-
quando por aqui passou a alma do Santo. Vós, então, ecoastes, nha alma fugiu para sempre na glória dos céus.
compreendestes e respondestes, cantastes em coro a grande sin-
fonia que ele entoava, a sinfonia do amor divino. XVII. PROFETISMO
Dai-me de novo aquele canto; é o cântico de Deus. Criatu-
ras irmãs, ajudai-me a subir, a vibrar, a sentir. Aquele canto Hoje, subi às alturas do tempo e, dos horizontes longínquos,
arrebatará minha alma deste barulho infernal, para longe da ouço emergir ressonâncias profundas, atraídas a mim por uma
Terra, para sempre. sintonia de pensamento imposta pelo momento presente da vida
Então, num imenso e profundo silêncio, ecoa mansamente a do mundo. Ouço o cântico poderoso da história, que vai e volta,
música divina. Cada forma de existência emite uma nota. Oro e, repetindo-se em ciclos titânicos, lentamente, em ascensão, em
na minha prece, ouço Deus como um canto imenso e sublime quedas, em ressurreições, num renovamento sempre mais alto
que emana de todas as criaturas. Cantam todas as expressões de de vida, no qual, entretanto, sempre reponta o passado. Em on-
Deus, a terra e o céu, a luz e a vida, a ordem e o pensamento. A das, nascem e morrem, vêm e vão as civilizações sobre o gran-
minha alma se torna bem pequenina, mas emite harmonia, e, a de mar do tempo. São elas as palpitações da progressiva ideia
cada nota, sintonizo gradualmente; a ressonância me invade, a de Deus, que vai sempre em rumo à sua realização.
vibração me eleva, o arrebatamento me conduz. Já não sou eu, Tudo isto ressoa em mim, torna-se uma vibração minha, e
mas uma harpa na qual ressoa o Universo. É uma prece na qual nela mergulho. E, então, o vórtice me agarra e me transporta
se cala. É a união com Deus. num turbilhão, onde ouço os sonidos invocadores da vida. Ouço
Das profundidades do tempo e do espaço, ouço esta voz po- o encalço das horas, o iminente precipitar dos equilíbrios, a
tente de Deus, que me leva a alma num turbilhão. Ouço a sinfo- tempestade furiosa às portas; ouço a voz de Deus, que anuncia a
nia dos vastíssimos horizontes, a luminosidade dos céus, as har- maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores, despercebidos
monias da vida, a voz do mundo, cantando: Cristo! Cristo! Cris- pelos cegos da hora, fechados no cálculo do momento. Sob os
to! Assim grita a história: Cristo esperado, Cristo presente, Cristo céus da história aparecem as procelárias anunciadoras, acordam
operante no coração da civilização. Cristo! repete-me a beleza da as consciências mais prontas, sentinelas da vida, e lançam o gri-
arte, a profundidade da sabedoria, a vitória da bondade, a grande- to de alarme; levantam-se as vozes admoestadoras e caem como
za do espírito. Esse canto se dilata e me penetra. Cada nota ecoou pérolas da magnificência dos céus, antes de cada calamidade.
em mim, lentamente, das humildes às grandes vozes. Minha alma Ouço um rufar profundo, cadenciado, incessante; ouço o
apertou e sorveu em si a estupenda vibração e, acompanhando passo do tempo, que avança com ritmo fatal, qual massa fatal
esta harmonia, subiu com o canto. “Cristo!”, me repete todo o imensa de lava, que desce sem pressa e tudo submerge. Onde es-
universo. Sinto Cristo chegar, resplandecente, dos céus, tão ver- tão os ombros para segurá-la, os peitos para enfrentá-la? Os
tiginosamente alto e belo, como sonho que deve ter sido no ardor tempos são graves, e o Céu luta ao lado da Terra. Já não se vive
de Francisco na suprema consagração do Alverne. apenas de pão, de números, de riqueza, de poder humano. Pode-
rão as forças do espírito não estar presentes apenas porque um
XVI. VISÃO DA CATEDRAL GÓTICA século de materialismo as negou? As atitudes do pensamento
humano não podem desordenar a lei de Deus. E sempre, cada
Um dia, senti o meu destino como um feixe de forças con- vez que o homem violou os divinos equilíbrios do justo e do
vergentes e ascendentes e o reencontrei na força e musicalida- bom, a reação justa da Lei se fez sentir. Que levantem, portanto,
de arquitetônica da catedral gótica. As arcadas, sempre se res- a cabeça os que dormem. Já não estamos no momento de expli-
tringindo mais para o vão da porta, exprimem as linhas de con- car e demonstrar. Aquele trabalho está pronto. É o momento do
centração do externo para o interior. E eu entrara jovem no choque físico e tangível, que a todos abala e a todos arrasta.
templo austero da solidão do pensamento. Lá fora, era para Deus nos ama. É necessário alertar os surdos, os inertes,
mim estridor e sofrimento, e já não podia tornar a gozar as fá- amansar os rebeldes. É necessário que o mundo aprenda de no-
ceis alegrias do mundo exterior. E, desde jovem, me acostumei vo a orar; que, na humilhação e na desventura, se irmane e re-
a respirar aquela atmosfera severa, saturada de conceitos pro- encontre o seu Deus, que foi esquecido. Deus é um caminho de
fundos. Meus olhos aprenderam a ver na mística penumbra e paixão e de amor que se percorre em silêncio, no próprio cora-
se alentaram das luzes esplendentes do Alto, que convidavam a ção; é uma consagração real de si mesmo, é um humilde abraço
subir. O meu olhar embalou-se na música harmoniosa das ar- de irmão a irmão, para se ajudarem reciprocamente ao longo do
quiteturas, no sonho diáfano dos místicos vitrais, na doçura das caminho espinhoso das ascensões humanas.
imagens das coisas eternas e santas. Assim, a minha alma se Nada tema quem tem Cristo no coração. A tempestade puri-
desafeiçoou lentamente da Terra e abriu-se toda à visão de ficará. Voarão longe os ouropéis ao vento furioso, e a imateria-
Deus. E, como no templo gótico, foi também, no meu destino, lidade do espírito, só ela, resistirá e sobreviverá. Cairá o huma-
uma convergência de linhas de força que me levou acima, ao no, para que Cristo resplandeça mais alto e mais verdadeiro.
longo da nave central, até onde a estrutura do edifício abre Oséias, Oséias, profeta de Israel! Parece-me ouvir a tua voz
seus braços em forma de cruz. Levou-me até à culminância so- superar a barreira do tempo e alcançar-me: “Deus é amor”. Esta
nora da sinfonia arquitetônica, na qual explode o grito do Cris- tua grande palavra anunciadora de Cristo, que ninguém antes de
to moribundo, lá em cima, no centro do templo, onde, sobre o ti, nem mesmo Moisés, havia dito e que tem sustentado a hu-
altar-mor, aquele grito se repete no sacrifício da missa. Tenho manidade por milênios, foi o novíssimo verbo eclodido de teu
vivido naquele anelo de forças convergentes para o Alto, cons- coração de mártir. A dor te fez profeta, e profeta de amor.
trangido a um concatenamento compacto como num “fugue” Vejo-vos todos enfileirados em vosso trabalho, profetas de
de Bach. Arrastei-me ao longo da nave central, deixando atrás Israel. Ouço-vos a todos fundidos naquela imensa linguagem
de mim um rasto de sangue. Mas, chegando ao grande altar do em que ressoam a terra e o céu. Tempos em que a palavra do
centro, minha alma recolheu o grito de Cristo agonizante e alto descia palpitante e o homem vivia aliado com Deus. Tem-
estreitou-se, num abraço que não terá mais fim, àquela cabeça pos em que a alma se elevava até alcançar o céu! Que grande-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 47
za, este contínuo contato com Deus! Ele parece afastado de Mas Jeremias falou também às portas do exílio babilônico,
nós; entre tanta ciência e sabedoria, parece que perdemos a que transformou o povo de Israel e a sua religião, joeirando
ideia d'Ele. Ele não está mais presente em nossas ações nem grão por grão, separando o bom do mau, o essencial do supér-
nos eventos da história. Calculam-se todas as forças, menos a fluo. Nas grandes curvas da história, a terra tem de ser doloro-
suprema; em todas as posições da vida, não se pensa nunca no samente revolvida até o mais profundo, para estar preparada
impulso maior, que é Deus. para as novas germinações. E o exílio na dor purificou Israel,
Ouço Isaias: “um resíduo se converte”, isto é, uma semen- até que subsistiu apenas aquele resíduo, aquela semente de que
te permanece. Podemos hoje repetir suas palavras, que são um falou Isaias. E os ciclos retornam, e a história se repete. Entre
pressentimento do Reino de Deus, prometido por Cristo e que as labaredas de Jerusalém destruída eram despedaçadas tam-
o mundo espera: “... os seres não farão dano nem mal, pois bém as velhas formas, mas o espírito que estava no profetismo
que a terra será plena da consciência de Deus, como a água e não pudera ser queimado, sobreviveu. O Estado estava des-
cobre o fundo do mar”. truído, e a religião separou-se dele e, liberada, ficou leve e pô-
Não. Deus não é um elemento preterível na vida do indiví- de elevar-se de novo e viver mais no alto; até que Ezequiel foi
duo e dos povos. Deve ser sentido, próximo, e o é somente ao seu povo para lhe ensinar o amor de irmão para irmão e a
quando se merece. Só um Deus que esteja na alma, domina as força dos vínculos espirituais que sabem fundir as almas, for-
paixões, guia as ações, faz fremir o coração – só este Deus é mando e mantendo a unidade ideal acima de qualquer forma e
vida. Portanto é necessária a desventura, para que o espírito contra qualquer ataque material.
atire fora o manto e se apresente de novo nu diante de Deus. Como na sua grande visão da nova Jerusalém, aflora hoje
Que importa a forma quando nós, na substância, sacrificamos nos espíritos um vago pressentimento da nova civilização do
a Moloque e só a admiração de seu fausto está em nosso cora- terceiro milênio, na qual a Igreja será verdadeiramente podero-
ção? Então, também nos templos suntuosos, Deus se cala, sa e invencível, porque feita apenas de espírito.
porque se afastou de nossa alma. E Deus se vai e fala em ou- Oh! Que tremendo trabalho este nascer, viver e morrer, para
tra parte, aos humildes, aos cansados viandantes do ideal, que renascer, reviver e morrer novamente – este dever de evoluir
estão sempre a caminho, como São Francisco, golpeados por para levantar-se da queda, para redimir-se na dor, para libertar-
todos e sozinhos com Deus. se e retornar ao espírito!
Então, o destino bate às portas da história, tocam as trombe- Voltamos às fontes, à virgindade das origens, à pureza da
tas anunciadoras, os profetas ressurgem, porque o mundo des- primeira nascente. Surge a eterna visão que abalou Zacarias.
perta. Quem ouve e compreende entre tantas vozes falsas e con- E a história pulsa e palpita pelos mesmos eternos movimen-
fusas? Devemos então repetir o fatal “Dies irae dies illa”41 ain- tos que a empurram laboriosamente para frente. O mal triunfa
da hoje vivo na arte, na liturgia, na música, o “Dies irae” do abertamente, e os puros de coração, que sofrem inclinados
profeta Sofonias?42. De que será feito este povo-resíduo que se- sobre os sulcos, enquanto regam com o seu suor a nova se-
rá semente da futura civilização? Será um povo não visto hoje, menteira, olham e dizem: “Onde está o nosso Deus de justiça,
como era o primeiro grupo de soldados de Cristo na grandeza se os malvados são felizes e os violentos têm sucesso?”. Mas
romana, um povo feito de humildes e piedosos, que hoje so- eles não sabem quanto a dor é fecunda. Tudo germina, ba-
frem, sentem e esperam. E de que servirá ao mundo a força sem nhado por linfa divina. Só assim nascem as coisas grandes e
o direito, o poder sem a justiça, a ciência sem a consciência? Ai fortes, que resistem às ventanias e desafiam os séculos, en-
de quem usar a espada, porque morrerá pela espada. A ordem quanto as criações do mal são pó que tornarão ao pó, lança-
ética despedaçada trará destruição. das longe pelo turbilhão do tempo. Quem semeia pelos cami-
Como se ora de outro modo quando o destino ameaça e a nhos do bem semeia e segue, porque a semente germina, con-
dor golpeia, diferente de quando tudo é tranquilo, o Céu parece tendo já na trajetória do seu movimento a sua lei de vida e a
assegurado e a vizinhança de Deus garantida pela autoridade da disciplina de seu desenvolvimento.
Terra! Mas a fé é tempestade, e não um trono de glória; é tor- Esta ideia da presença de Deus no destino do homem e dos
mento de ascensão, não aquiescência passiva. É um dinamismo povos, esta ideia que emerge de cada página da Bíblia, ideia
incessante, tremendo, um espasmo de alma à procura de Deus. que percorre e une todo o profetismo de Israel, não é um absur-
Quereria gritar com Jeremias: “Oh! O meu peito, o meu pei- do, ainda que hoje seja um anacronismo. É a ideia fundamental
to! Que sofrimento terrível! Oh! O meu coração! Como se so- que rege a vida, e essa ideia não morreu.
bressalta! Não posso ficar quieto, porque minha alma ouviu o É a ideia-eixo em torno da qual o mundo gira: Deus e ho-
som da trombeta, o grito da guerra!”. mem, homem e Deus. É a própria música do espírito, que do
Jeremias, que todo se plasmou segundo Oséias, por reviver- profetismo israelita se prolonga no misticismo cristão, como o
lhe todo o amor e toda a dor; Jeremias, a mais alta e pura ex- mesmo contato com Deus. É a mesma conquista de espírito que
pressão do Profetismo hebraico! Quereria repetir seus concei- se efetua, é sempre o mesmo problema que se agita e vive: o
tos, que exprimem a essência das religiões, ou seja, a superiori- das ascensões humanas.
dade da substância sobre a forma, de um coração puro sobre as
ações exteriores. Melhor: “... os pagãos que observam com ver- XVIII. OS ASSALTOS
dadeira fidelidade e com perfeita devoção a sua religião falsa e
insensata – eles são em verdade mais agradáveis a Deus do que Um dia, em que meu espírito estava prostrado pela demasi-
vós, que possuís o verdadeiro Deus, mas o esqueceis e lhes sois ada intensidade de sua vida e jazia abatido pelo cansaço da
desobedientes”. E Jeremias, que ousara dizer tão graves pala- carne, um espírito malvado, um semblante de Satanás, veio ao
vras, morreu em terra estranha, lapidado por seu próprio povo! meu encontro com o olhar oblíquo, riu-me na face e sussurrou
41
ao meu ouvido: “Palhaço!”. Era mentiroso e parecia ter esco-
“Dies irae dies illa...”: “O dia da cólera (justiça), aquele (terrível) lhido astutamente este momento, para me colher em falta, ten-
dia...”. Primeiros versos de um hino medieval de Frei Tomás de Cela- tando triunfar de minha fraqueza. Sentia-se forte, mas falava
no, discípulo e primeiro biógrafo de São Francisco de Assis. É uma
evocação do dia do Juízo Final – informa Paulo Rónai – e faz parte do
com a pressa do ladrão que rouba, que sabe ser breve a hora
oficio dos mortos. (N. do T.) propícia, que não volta depressa.
42
Considera-se o hino de Celano inspirado no profeta Sofonias: “Está As forças mais baixas, tão logo caia a tensão da ascese e se
próximo o grande dia de Jeová! Dia de angústia e de tribulação (...)” abra uma brecha na alma, podem surgir, por lei de equilíbrio.
(Sofonias, 1:14-18, 2:1.3). (N. do T.) Eu estava prostrado e triste. O céu estava fechado e este era o
48 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
conforto. “Palhaço”, ouvi repetir-me. “Onde está a tua força energias da vida e adquire forças com o vosso assalto. Acumu-
de espírito, o infinito, a harmonia da criação, a presença da la-se a reação e está próxima a hora em que explodirá seu grito,
Lei? Se és amigo de Deus, por que não desce Deus para te para dilacerar as trevas e reencontrar a luz.
confortar?”. O escárnio atroz dançava sobre o meu sofrimen- O espírito é um anjo que desceu de seus céus esplendentes
to. Estas são as horas tétricas nas quais os vastos horizontes se sobre a terra. Para amar, tornou-se inerme e deixou longe, já
fecham, o Céu permanece inacessível à percepção, torna-se ir- não sabe onde, todas as armas de sua defesa e aparece, fragran-
real e se evade no nada. te como uma flor, bom como uma criancinha. E chega ao infer-
Então, o espírito do mal me lançou ao rosto o seu hálito fé- no terrestre. Um riso de escárnio o recebe, um vento de tempes-
tido e me disse: “Palhaço!”. O mundo esplendoroso do espírito tade dá o primeiro golpe naquela fragilidade de sensitivo. O do-
está longe. A carne está ali, cansada, e grita seu tormento. Nos ce canto que ele trazia consigo, cessa, destroçado. É preciso
meus ouvidos não há senão o ruído da derrocada de minha alma aprender a cantá-lo aqui em baixo, no inferno terrestre. Aqui
abatida. Atiro-me ao solo. Não sei mais orar. reina a matéria, plena de força, armada de esperteza, conhece-
Estes são momentos medonhos na vida de quem luta por um dora de estratégias, atenta para colher o espírito em falta. Sabe
ideal. Formam-se na alma vácuos imensos e silêncios terríveis; as passagens, as armadilhas, a mentira que disfarça, a zombaria
passam-se horas de solidão e desolação, nas quais o eu mais pro- que abate, a traição que mata. O primeiro encontro é brutal. A
fundo se ausenta, deixando a alma cega e agonizante. O relâm- fera responde: “Não sou teu semelhante, odeio-te, não quero
pago da intuição me abandona, tenho medo daquela coragem luz. És uma criatura do céu descida cá em baixo? Pois bem, és
que antes tudo ousava; a minha fronte está no chão e se lacera tu o estrangeiro, não eu. Aceita as leis do meu mundo. Aqui
contra a pedra. É a revolta das forças biológicas, a desforra, a reina a força; guarda tua justiça, aqui ela não serve. Aqui reina
derrota de uma hora. Que está acontecendo no íntimo? Por que a mentira, guarda a tua verdade, que também não serve. Aqui se
Deus me abandona? Porque eu sei que naqueles silêncios sem maldiz e se odeia, portanto guarda a tua bondade e o teu amor.
nome e sem esperança estão os trajetos subterrâneos do caminho Que queres, louco ridículo? Teu Evangelho é loucura. Nós te-
das ascensões; sei que destas anulações ressurgem as grandes mos uma lei. É feroz, mas é nossa. Não aceitamos a tua. Some-
massas túrgidas de pensamento e de paixão, emerge o vórtice te, estrangeiro! Insistes? Nós te destruiremos”.
maravilhoso onde esplendem todas as luzes. É no fundo desses Mas o anjo avança. Começou a luta, mas ele está acostuma-
abatimentos, quando a alma vive suas horas mais atrozes, que do a sofrer. Então, o ataque muda. A matéria veste-se de adula-
ela ouve a primeira nota de onde nascerá a criação. Pois que fé e ção e mentira, a ferocidade se esconde e reaparece sorridente de
concepção jorram destes espasmos de alma, que, para lançar graça. O terreno se faz mais pérfido. O anjo avança num mundo
centelhas, deve se atirar contra os penhascos ásperos e cortantes. de aparências inconsistentes e mutáveis, de formas falazes. Vai
Os meus pensamentos são gotas de sangue espremidas de um colher uma flor e colhe um escárnio; acredita estar contemplan-
tormento interior, onde minha alma se debate para fazer nascer a do a verdade e é uma máscara que se desprende, gargalhando.
concepção. Esta floração de escritos é martírio e holocausto de Cada ser tem duas faces; mostra a falsa e esconde a verdadeira.
cada dia. Cada afirmação espiritual é um pedaço de carne deixa- É um mundo irreal, no qual tudo foge e se desfaz; é uma dança
do sobre as sarças do caminho. Caminhar e sangrar é a vida do macabra de esqueletos doidos que acreditam ser sábios e lindos.
pensamento. Produção contínua significa sofrimento continuo. É o triunfo dos ouropéis, um perfume que recende mal, um bei-
Existem momentos em que a realidade brutal da vida, o jo que morde, uma carícia que mata, um mundo de luzes falsas,
mundo das imperiosas necessidades, retoma a direção e recor- onde tudo são trevas e silêncio.
da asperamente ao espírito livre a sua escravidão, que é a ver- Mas o espírito avança. A força não o venceu, e a mentira
dade do momento. A matéria tem as suas desforras, as suas não o vence. Vê a cor real da vida e deseja lenir o sofrimento
vinganças tremendas. Reinam, então, as trevas, a mentira triun- de que ela é feita. Vê ouro e fome, exércitos e cruzes, poder e
fa, o sarcasmo sorri, a incompreensão alarga-se. E o ignorante, sangue. São poderosas as ordens do deus prazer! O mundo
o falso, o malvado, que tem na mão os meios materiais, enfren- pede-lhe amor falso; é feito de forças inferiores, mas deseja
tam-nos, gritando: “Dinheiro! Dinheiro! Eu sou o poder! realizar-se a si mesmo. E a luta continua. Satanás se disfarça
Quem reina sou eu!”. E, então, a Terra é, em verdade, um de- em seus infinitos semblantes e muda de tática. Vejo-o voltar e
serto sem esperança. A fonte seca, o canto emudece. As lágri- não me diz “Palhaço”. Está razoável e ladino. Diz-me: “Refle-
mas caem sobre o solo seco, e o egoísmo humano bebe avida- te, deixa a utopia, depressa. A vida é bela, e é preciso gozá-
mente a dor alheia. A ideia se dispersa ao vento, a fé dúbia es- la”. É lento e paciente o cerco da lisonja. É uma imaginação
capa. E ele, o herói do pensamento e do amor, fica abandonado interior; nasce inadvertida nas raízes do desejo. Insinua-se en-
e só. Só, com os olhos arregalados na escuridão, onde a luz de ganosa, por toda parte. Parece nada e já envolve o espírito em
seu sonho se apagou. Só, com o coração despedaçado, ao qual seus tentáculos. E quando este percebe, já está preso e aprisi-
do alto já não chega o amor; só, com a mente arruinada, onde o onado. Insinuação prudente, de gesto lento, de mil braços de
canto dos céus já não tem ressonância. polvo, aperta acariciando num longo sufocamento. Age com
Era muito linda a embriaguez do sonho e a felicidade de cautela e tem fascínio, como a serpente. Assim se forma o
imolar-se longe da Terra. Vai, alma cansada, pela deserta terra, sorvedouro onde se submerge o mundo.
sem esperança. Deus te olha, mas o teu castigo é não vê-Lo A luta continua. Pobre de minha alma! Tem sede e não deve
mais. Deus te ajuda, mas o teu martírio é não o saber. Deus te beber: a fonte está poluída. Tem fome e não deve comer: o ali-
ama, mas teu tormento é não O sentir. Tua lira partiu-se. Em mento está envenenado. Está exausta e não pode repousar: o
teu coração há uma derrota de paixão que já não sabe chorar. terreno é malseguro.
Aquele olhar cintilante de pensamento e de bondade abaixou- Mas muda ainda a aparência de Satanás. O meu ventre está
se, humilhado. Aquele gesto estendido em ato de amor abateu- satisfeito. Que beatitude! Inércia de espírito, toda a sua vibra-
se, envilecido. Aquela cabeça que concebeu os mais altos con- ção neutralizada numa pausa de calma. A animalidade domina,
ceitos da vida está coroada de espinhos. o jogo da vida reduziu-se aos planos mais baixos, a consciência
Não o conforteis. É a sua hora. As trevas se apressam em inferior cochila satisfeita no equilíbrio das funções primárias,
exauri-la; a dor se apressa em polir aquela alma com seus gol- na felicidade do bruto. As tempestades estão longe. Que ale-
pes maiores. Apressai-vos, forças do mal, porque estais encer- gria, finalmente, repousar! Quantos ventres satisfeitos vão pela
radas no tempo que vos segue e vos destrói. O espírito se cala e vida, acreditando serem tudo, felizes apenas por estarem cheios.
se atemoriza, mas vós vos exauris. Ele se concentra, atrai a si as Pequenas almas situadas no ventre! O ventre deseja, opina, es-
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 49
colhe – beatitude de carne saciada. Conheci também isto, à es- Esse insulto é Satanás. É uma força baixa, brutal, enorme,
pera de que o leão despertasse, rompesse a inércia com o seu negra, imersa na inconsciência. É uma investida estúpida e feroz;
rugido e tornasse a mergulhar o olhar nos céus. explode, desafoga-se, esgota-se, extingue-se e para, estupidamen-
O espírito avança, mas também o inimigo caminha e penetra te, sem ter alcançado a meta, sem nada ter compreendido de si.
na fortaleza da mente. A fé desagrega-se na dúvida. Terei eu lu- Tenho vivido estas lutas. Então, a alma se sente oscilar à
tado e sofrido tanto em vão? O pó das coisas não cobrirá todas beira de um abismo, que abre as fauces para tragá-la. O grande
as minhas fadigas? Investi todo o meu capital de pensamento e sonho realizado no tormento de cada dia parece ameaçar ruína.
atividade no Evangelho. Para esta inversão dos valores huma- ◘ ◘ ◘
nos perdi as vantagens positivas, tangíveis, reconhecidas. E, Começa a luta. O inimigo desce dentro de mim e toma lu-
afinal, se fosse ilusão? Arrastei-me assim toda a vida, humana- gar em meu coração.
mente destruído, e só por um sonho? E se o espírito me traísse? Sou eu ou é ele? Quem é que nega e quem é que afirma
Onde está Cristo, se eu não o vejo? Por que jamais um sinal de dentro de mim? Como me posso cindir assim, entre a minha
evidência? Onde está esse mundo que ninguém percebe e que alegria e o meu tormento, entre o triunfo e a derrota, entre a
todos os fatos negam? Por que, por que acreditar? Que desilu- minha ascensão e a minha abjeção?
são tremenda recolher quimeras! E esse mundo é tão pronto a Dentro de mim se reúnem as forças do bem e do mal. Sou
se desvanecer, e eu aconselhei e sofri na realidade – e a última aquelas e estas; duas metades de mim mesmo se digladiam
compensação será a derrota! “Tolo, não confies”, diz Satanás, horrivelmente.
“Por que crer? Era uma quimera, e agora és um vencido. Mere- Começou a luta, e em ambos os lados recebo feridas pro-
ceste. Rebela-te, libera-te, derruba e destrói o edifício das ilu- fundas.
sões. Salva pelo menos as últimas horas. Goza. Não te deixes “Tu me traíste”, diz em mim o homem ao espírito. “Sê
trair para sempre. Esta é a vida, não vês? Não há outra vida se- maldito, traidor de minha vida”.
não esta. A minha alegria está aqui, o Céu está longe”. “Estou exausto”, diz o espírito. “Não sou mais, não vejo
Mas o espírito avança. E então, depois do ataque do escár- mais. Senhor, tem piedade de mim”.
nio, da dor, da necessidade, da força, da mentira, do gozo, da A minha alma se arrasta, perseguida pelo inferno terrestre.
inércia, da dúvida, desfere-se o assalto do desespero. Sinto-o A realidade de todos me insulta e me repudia. “Idiota”, dizem-
aproximar-se sob a forma de um fantasma e sinto terror. Aden- me. A multidão repete: “Louco, morre. Bem o mereces”.
sam-se as trevas em torno da minha alma. Estou cego e mudo Meu corpo tem fome, está cansado. A fonte de meus cantos
em poder da tormenta. Penetra-me um choque diabólico de to- estancou na garganta seca. O mundo me diz: “Morre”. No en-
do meu ser, e a minha alma mergulha no inferno. É uma preci- tanto foi por sua dor que eu ouvi, me comovi e me entreguei.
pitação involutiva de plano em plano, uma perda de luz, de le- Peço auxílio. Motejando, Satanás murmura: “Se estás ao
veza, sempre mais para baixo, num invólucro sempre mais lado de Deus, pede-lhe que te salve e te levante”.
denso. O assalto agarrou-me, aperta-me em seus tentáculos, ar- Mas tudo permanece indiferente do lado de fora. Portanto
rasta-me de sorvedouro em sorvedouro, mutilando-me, sufo- eu estou errado e os outros é que têm razão.
cando-me. O inimigo rompeu as cadeias e está em mim para Levanto, então, os olhos e grito: “Senhor!”. E o céu se
me torturar. É a sua hora, a hora das trevas, a hora tétrica de abre, e uma voz que desce do Alto diz: “Acalma-te, filho!”.
sua vingança. Atira-se contra mim. Minha alma debate-se em Então, encontro força para dizer: “Vade retro, Satana!” 43. E
seus tentáculos. Vão os dias arrastados no duro e necessário o mal se afasta.
trabalho, vão as noites sem repouso, vai o tempo que me deixa ◘ ◘ ◘
arruinado. As trevas me destroçam. Preciso correr e não posso No entanto Satanás volta. Minha mente duvida, e o mundo
andar. Tenho que fugir e estou amarrado. Petrifico-me numa grita ainda: “Louco! O teu ideal é absurdo. Não é aqui neste
dor muda, negra, sem lágrimas, sem esperança. Ignoro Deus, mundo que se pode realizar. Onde está o homem de que falas?
entorpeço-me, estou perdido. Onde está a punição profetizada, a justiça de Deus? Utopias.
Então, a minha sensibilidade se torna um porto aberto a todos No mal, o mundo caminha mais alegremente que nunca. Vai,
os ádvenas. Mil forças barônticas aparecem, tremendas e confu- tolo, caminha sozinho. O mundo sabe divertir-se sem ti”.
sas; mil faces se desenham no raio de minha consciência. Sou le- “Duvidas? Então invoca teu Deus para que te ilumine, para
vado numa esteira de tormenta que me atravessa o espírito. que desencadeie a tempestade saneadora, para que refaça o ho-
Depois, quando a força do mal está saciada de todos os seus mem. O mundo conhece o seu caminho e não precisa de ti”.
assaltos, em todos os seus aspectos, ouço-a fugir, zombando, E em verdade, o mundo caminha e não pede salvação.
feliz de sua esplêndida chacoteação. Grito, então: “Senhor, ajuda-me! Eu me perco! Que posso
fazer só e cansado contra o mal organizado e poderoso, rápido e
XIX. TENTAÇÃO tenaz?”. E o Céu se abre, e uma luz desce do Alto e escreve no
meu coração: “Acalma-te, filho!”.
Quanto mais a alma sobe, tanto mais é agredida pelas forças Então, reencontro a luz e posso dizer: “Vai-te, Satanás”. E
do mal. A lei do equilíbrio contém suas reações. Quanto mais ele se vai.
sofreres e mais subires, mais subirás e mais serás tentado, po- ◘ ◘ ◘
rém mais forte também serás para vencer. Satanás, porém, volta ainda. Meu coração é um deserto. Ca-
Estas forças adquirem figura concreta: Satanás. É a imagem da amor humano secou-se dentro dele. Estou só e desamparado.
do homem quando o mal se apossa dele; a força que se personi- Tenho frio. Primeiro gritou a fome do corpo, e eu venci. Depois
fica em nós quando somos malvados. Ele é, portanto, real e gritou a sede da mente, e eu venci. Agora grita a paixão do co-
próximo. É uma vibração presente em nossa consciência. Está ração, e não sei vencer.
entre nós, dentro de nós. 43
“Vai-te, Satanás” ou “Retira-te, Satanás”. Na tradução latina do
Aparece também nos grandes místicos o momento secreto e
Evangelho encontram-se estas palavras, dirigidas por Jesus a Simão
terrível, no qual o grande sonho sentido no ardor da fé se de- Pedro, quando este O censurou por haver anunciado aos discípulos
compõe num caos horrendo. É a desforra da baixeza, a hora das Sua grande rejeição, Sua morte e ressurreição (Marcos, 8:31-33). En-
trevas. É o Getsêmani, é a zombaria da loucura embriagada e contra-se também expressão semelhante na narrativa da Tentação
triunfante, que se diverte com o martírio do santo. (Mateus, 4:9,10). (N. do T.)
50 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
E o mundo me diz: “Louco! Quem queres que responda ao Senhor, enxota-me. Eu o mereço.
teu amor? Caminha, caminha. O mundo sabe bem amar sem ti. Eu estava na glória de tua luz, quando uma lisonja vã, te-
O teu coração geme? Pois bem, invoca o teu Deus. Ele que te naz, traidora, cheia de atrativos, como um polvo, avizinhou-
responda, que te satisfaça e demonstre aos homens o Seu amor”. se de mim lentamente, me estreitou com uma carícia; depois,
E vejo o mundo indiferente correr unicamente para suas estreitou-me mais fortemente, paralisou-me cada movimento
paixões. de defesa e me venceu. Quando eu quis reagir, era tarde. Le-
Então, elevo o coração para o alto e grito: “Senhor, amo- vou-me arrastado, cego, mudo, aturdido, amarrado, para as
Te!”. E o céu se abre, e uma palpitação desce do alto, freme profundezas.
dentro do meu coração e aí canta: “Paz, filho!”. O cansaço me venceu, diminuiu a tensão da subida; a maté-
Então, eu reencontro o amor, lanço a Satanás um olhar ar- ria, pronta para a vingança, se apossou de mim.
dente e digo-lhe: “Vai-te, Satanás, para sempre, porque eu venci. Deus meu! Como estou triste sem Ti!
Unido a mim, em meu coração, está o meu Deus. As tuas forças Porque, afinal, o veneno doce e traidor exauriu a sua viru-
não prevalecerão”. E Satanás foge precipitadamente, vencido. lência, o espírito começou a se reerguer e, só agora, vi meu de-
O meu corpo, a minha mente, o meu coração não puderam pauperamento.
renegar Deus. O caminho da dor era o verdadeiro. Não tenho mais coragem de orar, já não tenho força para
ascender, não tenho mais esperança para agir. Aqui em baixo,
XX. INFERNO o meu belo sonho é uma zombaria. Cristo é um absurdo, por-
que aqui reina uma verdade feita de estridor de luta e de ego-
Do longínquo passado de minha involução, pelo oceano in- ísmo. Aqui não existe a paz de alma. Aqui, tudo insulta meu
finito do tempo, uma onda desprendeu-se, veio ao meu encon- passado. O ideal pelo qual vivi e tudo dei é considerado um
tro, envolvendo-me ameaçadora. Agrediu-me e me submergiu. ideal de loucura. Reabre os olhos em uma luz tão turva, que é
Era uma força real, um impulso por mim uma vez enxertado quase apagada, obstruída por zonas e nesgas imensas de opaci-
no meu destino, emergindo do meu passado, da animalidade dade. Uma confusão de forças caóticas contorce em mim, nu-
ainda não vencida. ma dissonância penosa, a divina harmonia da vida. Vejo essas
Senhor, não soube nem quis vencer as forças do mal. forças se entrelaçarem em deformações horrendas, que me fe-
O meu coração, que era Teu, eu o atirei ao mar. E então a rem com seus ângulos pungentes, saltos ásperos e desordena-
onda me engoliu, e me aprofundei no abismo. dos, impulsos de luta e rebelião. Elas dançam em torno de mim
O archote de meu amor apagou-se. As águas negras me en- em vértices vertiginosos que me envolvem numa sensação de
volveram; as ondas se amontoaram sobre minha cabeça; a deso- espasmo, com emissão feroz de gritos desesperados, lá onde
lação me penetrou até ao fundo da alma. havia cantos harmoniosos e paz cheia de alegria. Essas forças
O sorvedouro imenso me apanhou, envolveu-me, e eu fui deslizam ao longo de um declive sempre mais íngreme, proje-
mergulhado até às raízes das montanhas.
tadas para medonhas profundidades abismais, e, lá em baixo,
As algas se enroscaram em torno de mim, fecharam minha
as trevas se tornam sólidas a tal ponto, que nenhuma espada
boca, impediram-me de respirar, e o mar, sobre mim, tornou a
flamejante de luz as poderá despedaçar. E o vórtice é aberto e
fechar-se para sempre.
ativo; uma vez presas as almas em suas espirais, a sua atração
Da profundeza do abismo a minha voz não pode mais che-
as atira para o abismo tenebroso. É um vórtice de forças no
gar até meu Senhor. Estou petrificado de horror. Meu desespero
qual se precipita um fluxo palpitante de almas a urrarem de-
é sem esperança. Minha alma se desfaz
sesperadas, agarradas ao seu desespero.
Que horrível não poder mais dizer: “Senhor. Senhor!”.
No terror dessa visão, o meu espírito desperta, e, pelo terror,
Mas eu o mereci. Ele deve punir-me. Sinto apenas a justiça,
recupero a força para tornar a subir, tenso, à atmosfera rarefeita
não mais o amor. Morro porque não posso mais vê-lo. Entre
de que tombei.
mim e Deus há um abismo que não sei mais superar.
Já não sei orar, não ouso invocá-Lo Aqui estou, só, nas pro- Desperta e, enquanto luta para retomar a subida, ainda o eco
fundezas do meu inferno. dos motejos o segue: “Tolo, tolo! Não vês que enquanto dás,
Onde está o meu Senhor? Procuro-o, mas estou cego e nem todos os outros só pretendem tomar? E quando tiveres dado tu-
o saberia mais ver. Estou surdo, não o saberia ouvir. Estou mu- do, estarás só e ludibriado. Sim, escarnecido ante a Terra e ante
do, despedaçou-se a lira do meu canto. Estou morto, no entanto o Céu, que, quando quer, fecha suas portas também para aquele
estou vivo e gostaria de poder morrer. que muito lutou e sofreu”.
Conheci Deus e perdi-O. A minha alma é um estrondo de Mas a ascensão está iniciada e recebe forças de seu pró-
desespero. prio impulso, e o eco dos gritos selvagens de insultos perde-se
Inferno, inferno, aniquila-me em tuas espirais, destrói minha sempre mais longe, encoberto pelo canto das harmonias do-
alma, para que tenha fim o meu desespero. minantes.
Minha alma retomou sua ascensão, reencontrou a tensão,
XXI. QUEDA DA ALMA atingiu a sua atmosfera, onde brilha a mais alta verdade do
Evangelho, e o eco já não repete o rugido selvagem do egoísmo
Que aconteceu comigo? Eu era feliz, dono da luz e da força que insulta, mas repete o canto que diz: “Dá e receberás, ama e
do espírito; dominava um panorama imenso, era livre e sobera- serás amado, perdoa e serás perdoado”.
no – e, daquela luminosa altura, fui precipitado a um mar de Cheguei. Estou numa aurora iridescente de luzes. Em Deus,
trevas. tudo resplandece numa alegria infinita, repousa numa harmonia
Volto a mim cansado, aturdido, nauseado de mim e da vida. suprema. A minha alma reencontrou a sua paz.
Que torpor nos membros! O dinamismo do espírito desva- Estes não são sonhos nem fantasias de poeta. São forças vi-
neceu-se, não ficou em mim senão a matéria preguiçosa e iner- vas em ação, entre as quais me movimentei, e que me abateram
te, já não sei arrastá-la. Sou pedra entre pedras, abandonada na e me reergueram; são realidades, contudo imponderáveis, mas
estrada. nem por isso menos verdadeiras e atuais.
Há um frio de morte nas minhas vísceras. Nos ossos, sinto É verdadeiro este drama que minha alma viveu, que a des-
sensação de vazio. Coleio pela terra viscosa, envolto em lodo. truiu e a regenerou, que sempre a frustrou, para que ela conhe-
Em meu coração há o sentido da minha inutilidade. cesse o terror da treva sem esperanças.
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 51
XXII. MEA CULPA Para lá do mutável, alcancei o Imutável; para lá do relativo,
atingi o Absoluto; para lá da diversidade, toquei a Unidade.
Pequei, Senhor. Mea culpa, mea culpa44. Perdi o senso da separatividade. Realizou-se em mim o mis-
Outrora, sorriam em mim, com o Teu sorriso, o céu e a ter- tério da unificação.
ra. Agora, tudo se me afigura tétrico, melancólico e deserto; Já não me envolvo nas espirais da dor, porque Teu amor a
perdi toda luz e toda ressonância em minha desolação. venceu, Teu amor me redimiu.
Morro, porque não posso viver sem Ti, Senhor. Apoderou-se de mim, Senhor, Tua vontade, e não sei distin-
Da profundeza de minha culpa, já não ouso erguer o olhar, guir-me, nem resistir.
nem sei tão pouco dirigir-Te minha prece. Teu pensamento desceu a mim, e já não sei pensar senão
Gela-se-me a alma, agora que já não me aquece Tua luz. em Ti.
Sou desprezível. Sei que Te traí e Te reneguei. Venceu-me o Teu amor, e já não sei amar senão a Ti.
Agora, já não tenho nada para ofertar-Te, a não ser minha Morri e depois ressuscitei. Pois que Tu vives em mim, eu
culpa. revivo em Ti.
Pronto estava o espírito para seguir-Te e ascender contigo. Tua mão, Senhor, a tudo sondou e revolveu na profundeza
Mas a carne recalcitrante quis volver ao lodo. de meu coração, para tudo reconstruir. Tu Te colocaste no cen-
Ela me acorrentou em baixo e me venceu. Não tive forças tro de mim mesmo, para aí procederes como dono.
para arrastá-la. Minha alegria consiste em abandonar-me em Ti, em não
Horroriza-me a minha baixeza, porque ainda estás junto a mais separar do Teu o meu minúsculo ser.
mim e me olhas. Sou transparente à Tua luz, que me invade por inteiro.
Olhas-me, como sempre, com um olhar feito de amor. Pene- Vivo no ritmo da Tua ordem, que inteiramente vibra em
tra-me a alma esse doce olhar de perdão e, todavia, mais do que mim.
qualquer exprobração, ele me aniquila. Nutro-me de beleza e da verdade em que Tu fulges; Teu
Sobre o coração experimento o peso imenso do remorso de amor me sacia.
quem traiu seu mais doce amigo. Estou em Teu regaço, ó Senhor, e já não quero reencontrar-
Ofendo-Te, e Tu me acaricias; insulto-Te, e Tu me perdoas; me.
Contemplo o desígnio do universo, ausculto o respiro da cri-
abandono-Te, e volves a buscar-me.
ação, sinto em mim mesmo a ressonância de Teu pensamento.
Não te aproximes, Senhor. Não sou digno de implorar per-
Revelaste-me a urdidura divina de amor que rege os seres, e
dão. Não sou digno, Senhor.
neles Te reencontro; somos todos obreiros de um vasto orga-
Naquele tempo, Tu vieste ao meu encontro e me disseste:
nismo, abertos no afã de retornar a Ti.
Tenho necessidade de tua alma. E eu, então te disse: Senhor,
Subir, subir, eis o cântico do universo. Teu amor a todos nos
toma-me a alma.
estreita, como irmãos.
No entanto ela está maculada de culpas. Não te repugna
Vivo da Tua Lei, porquanto em mim está a palpitação de
descer sobre tal esterqueira?
Teu pensamento e de Tua vontade.
Amo-te, disseste-me. E retomaste-me a alma repleta de tor- Na profundeza de minha alma reside Tua paz.
pezas, curaste-a com Teu amor. Só Tu, só Tu, Senhor, podias
fazê-lo, não eu. Outra coisa não possuo, nem outra criatura pos- XXIV. BEM-AVENTURANÇAS
so tornar-me.
Toma-me a alma, toma-me a vida. Ela Te pertence até o úl- Que importa se ganhei ou perdi, se estou bem ou mal, se sou
timo respiro. rico ou pobre, amado ou amaldiçoado, se Tu estás aqui, Senhor,
e eu não me encontro mais sozinho, e Tu estás ao meu lado e
XXIII. CÂNTICO DA UNIFICAÇÃO me animas?
Que importa riqueza ou miséria exterior, se dentro de mim
Ouço a voz de Deus cantar pelo universo; escuto os seres, canta a magnificência do universo?
que respondem num cântico sem fim. Que importa se nada mais possuo, se sou desprezado e igno-
Vejo a luz de Deus difundir-se e dar vida; vejo os seres nu- ro meu amanhã, se atingi a fonte das coisas eternas?
trirem-se de seu reflexo e progredirem em fileiras sem fim. Faz frio, mas eu me abraso, porque me queima o Teu amor.
Sinto palpitar no infinito o ritmo da ordem divina; ouço res- Está escuro, mas eu enxergo, porque me ilumina a Tua luz.
soarem, de esfera a esfera, as harmonias da criação. Tudo é silêncio, mas eu escuto a doce música da Tua voz.
Extasio-me na música das coisas divinas; a Verdade desceu Minha carne perdeu as forças no caminho do dever, mas
até minha alma. meu espírito exulta.
O centro de minha vida retraiu-se para a profundeza, aí on- Estão vazios meus sentidos, mas está saciada minha alma.
de Deus a todos espera. De Ti está cheio o universo, e eu Te possuo.
Superei os confins do ser, caídos jazem todos os véus. Atin- Acorrei criaturas irmãs! Vinde alegrar-vos comigo; ajudai-
gi o derradeiro termo das ascensões humanas. me a cantar o cântico do divino amor!
Rasgou-se o firmamento, e Tu, Senhor, sublime, apareceste Escutai! Muitos, muitos anos estive sozinho, mas agora está
nos céus e, então, prostrei-me para adorar-Te. comigo o meu Senhor.
Tu me arrebataste, e eu, que Te reencontrei, vou entoando Muitos, muitos caminhos percorri, mas agora cheguei.
um cântico de céu a céu. Muito, muito tenho lutado e sofrido procurando; agora achei
Perdi, no entanto, a consciência de mim mesmo. Tu és tudo; e sou feliz.
eu estou em Ti e Tu estás em mim. Onde está meu desespero? Não mais o encontro.
Em Ti, o nada que sou torna-se no tudo que Tu és. Ele se Onde estão os espinhos dolorosos do meu tormento? Não
identifica em mim, e eu me identifico n'Ele. vejo senão rosas...
Onde o rugir das forças desencadeadas do mal?
44
“A culpa é minha, a culpa é minha”. Primeiras palavras de uma anti- Vinde escutar. Canta dentro de mim a música da criação.
ga oração da Igreja, o “Confiteor” (“Confesso-me”): o orante reconhe- Vinde, ajudai a alegrar-me; não tenho forças para ser tão
ce, diante de Deus, seu pecado, culpa ou responsabilidade. (N. do T.) feliz!
52 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
Vinde, achegai-vos a mim, criaturas de Deus, auxiliai-me a XXVI. PAIXÃO.
cantar, a orar, a amar. ASSIS, QUINTA-FEIRA SANTA, 1937.
Compreendei o milagre. Eu estava encerrado num castelo
de dor, e o castelo desmoronou-se. Eu era cego e agora en- Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Se-
xergo. Era surdo e agora ouço. Meu coração estava compri- nhor.
mido em mordaça de ferro, e a mordaça despedaçou-se. Es- Despedaçaste todos os meus afetos humanos, um a um; qui-
tava imerso num mar de gelo e agora me acho envolto num seste que somente o Teu amor permanecesse.
incêndio de amor. E, quando o meu coração caiu por terra, ensanguentado,
Sobre minha fronte descansou o beijo do Eterno, e eu res- na estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolhes-
suscitei. te e me disseste: “Eu sou o teu amor. Somente a mim podes
Basta, Senhor! Reprime o êxtase do meu coração, que se amar”.
despedaça... Em mordaça de ferro comprimiste minha paixão; quando
Faz-me ainda sofrer, somente para que eu aprenda a amar- ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas
Te mais intensamente ainda!... e a lançaste dentro de mim, para que, nessa constrição, se tor-
nasse mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num
XXV. CÂNTICO DA MORTE E DO AMOR incêndio sempre maior, e no íntimo inflamasse, chamejando até
encontrar-Te, Senhor.
Desfere-se o derradeiro cântico da vida. Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, qui-
És bom e grande, ó meu Senhor. Tenho-Te concebido em seste que eu me aproximasse de Ti por minha busca e por es-
Tua infinita potência, no estupendo dinamismo do universo. forço meu.
Sinto, no entanto, que tudo em mim se acha exausto e já não sei
Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia
senão isto: morro e amo-Te.
chegar senão pela dilaceração de todo amor humano.
Ouço, como um grito dentro da noite, todo o turbilhão de
A Ti não se chega senão pela tempestade, porque és o turbi-
meu corpo, que não quer morrer. Elevo-me, porém, para Ti e
lhão e o poder, és a essência da força.
digo: Senhor, sustém minha alma, sinto-me fatigado.
Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança la-
Para chegar a Ti, Senhor, dilacerei minhas vestes sobre as
baredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodi-
sarças e as perdi ao longo do caminho; deixei sobre os seixos
da estrada, minha carne em farrapos e verti todo o meu sangue. lha à minha alma, aperta-a e agarra-a para atraí-la a si, no cen-
Cobri-me de poeira e desfiz-me através de longa fadiga. Já não tro do incêndio.
tenho lágrimas para chorar, nem voz para invocar-Te, nem for- Afrouxa, em seguida, a pressão e me deixa recair nas coisas
ças para andar e para sofrer. humanas, para retomar-me depois, outra vez, ainda outra, sem-
Enfrentei as forças titânicas da vida, para superá-las. Elas se pre mais forte.
rebelaram e fizeram de mim um farrapo. Tremi na solidão das Aquele incêndio me espera, e eu nele cairei.
noites de insônia; arrastei-me nas vias de meu dever, de unhas e ◘ ◘ ◘
cotovelos, quando os pés já me sangravam. Tenho vivido para É a Semana da Paixão e aproxima-se a hora santa em que
sofrer e tenho sofrido para amar-Te. Acreditei em Ti, sem que Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito da reden-
jamais pudesse ter direito ao sinal exterior, que persuade os ção e do amor.
sentidos. Amei-Te perdidamente, sem jamais poder experimen- Nestes dias, espadelaste minha alma, para que também eu
tar a alegria do amor correspondido. vivesse a tua paixão de dor e de amor.
O último esforço da minha vida consiste em alçar meu co- Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram
ração para confiá-lo ao Teu seio, ó Senhor. É minha última o choque brutal e o insulto feroz, e nela se hospedaram, sub-
dádiva. mergindo-se com alegria na minha dor torturante.
◘ ◘ ◘ Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu
Perdoa, Senhor, minha ânsia. Fraca é minha carne, e atroz é não o senti.
a sua tempestade. A nova dor, porém, reergueu até Ti minha sensação, e, nas
Sobe de minhas vísceras uma tristeza de morte; despedaça- profundezas do meu desgarre, eu Te reencontrei, assim como
dos se acham meus membros, submerge-me uma amargura tantas vezes eu Te perdi e, na minha prostração, vieste ao meu
inominável. Prostra-se-me a alma na luta extrema. encontro e de novo me apareceste.
Ergue, Senhor, a criatura que Te invoca. Que desejas de mim, Senhor?
No limiar da morte, busco-Te com um olhar, para que me Chego a Assis, ao anoitecer da Quinta-feira Santa. Sete ve-
salve Tua vista. las e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem, solitárias,
Já Te vejo, esplendente, no fundo de minha dor e já ouço a na basílica de Francisco45.
voz de Tua ressurreição. Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar lon-
Morre-me o corpo, e na profundeza da minha alma Tu can- go e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora,
tas; no fundo de minha agonia física entoa-se o cântico da vi- tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos
da maior. Ele ressoa pelos céus, nas noites cintilantes. A fron- históricos vitrais.
de, no poente, sussurra-o para outra fronde; a criatura, em ca- A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde
rícias, transmite-o à criatura irmã, e a onda repete-o para a uma lenta sonolência de morte, em que se extingue a agonia
onda, através dos mares ilimitados. Celebram-nos as luzes que da paixão.
cruzam o firmamento, propaga-o o raio tonante, irradiam-no Quando, porém, com a derradeira luz do dia, se apaga a
os sóis, e nele retumba e esplende o universo sem confins. O última vela, o último canto do salmo explode tão trágico e di-
cântico sobe das coisas para mim, dilata-se na minha agonia,
triunfa na minha morte. 45
Nessa basílica giottesca celebra-se, nas tardes de Quarta e Quinta-
É a minha vida nova. Deus de potência e de amor enfim, eu feira Santas, ao crepúsculo, o “Oficio das Trevas”, extremamente su-
Te sinto. Jaz desfeito o meu corpo, minha alma, porém, chegou gestivo pelo ambiente artístico, a liturgia e o canto solene, e sobretu-
a Ti. Finalmente, no grande cântico do universo todo, ouço a do pela quase ausência de assistentes, que, pela sua distraída incom-
voz do amor, que responde: “Criatura minha, amo-te”. preensão, sempre perturbam. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCESE MÍSTICA 53
lacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no so- E, quando, já sem forças, cair e vir chegar até mim a carícia
lo46, que minha alma tempestuosa se abate, porque então ou- sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qual-
ço em mim gritar a dor do mundo, que, súplice, chora com o quer repouso ou conforto e dizer: “Por amor de Ti, Senhor”.
Cristo que morre. Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto
Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está e pronto ao Teu comando.
apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a Com a minha renúncia, alimentarei todo dia a chama de
dor de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se meu amor por Ti.
abate desnuda aos pés de Cristo. Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. “É
Nesse ar triste, mas calmo; nessa atmosfera de dor, gran- por amor de mim, Senhor”.
de, mas consciente e resignada, escuto o clamor das multi- Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me
dões distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o em Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a
espasmo das marés humanas, que a dor e a paixão perseguem maturação prossegue no mundo e em mim por caminhos
e atormentam. opostos.
Minha alma treme. A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada,
Jaz abatida ao pé da cruz e olha, no alto, o drama de um já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força ◘ ◘ ◘
para viver. O cerco se aperta. O drama da Paixão de Cristo se faz inten-
Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até à cruz; so dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa
Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo. quem está lá fora.
Desço à cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.
Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho cora-
Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão for-
gem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado,
te, que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte
e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?
em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.
Eu o sei: dar-me-ás ainda lacerações tremendas; mas, a cada
Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim,
novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: “Por amor de Ti,
Senhor?
Senhor”.
Começo a balbuciar: “Toma minha alma”.
Estou à espera, vibrando, em tensão, sem palavras.
Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: “Segue-me,
segue-me”.
Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei.
Sinto solene a hora. Estás perto de mim, é Cristo, eu Te sinto.
Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me
contempla e me ajuda.
Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de
meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A
ideia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a
expresse, que a engaste em sua última forma.
Finalmente emerge a voz, e minha alma grita: “Senhor! Eu
Te seguirei até à cruz!”
Então, sinto dentro de mim, a cantar: “Tu estás no centro de
meu coração”.
Minha alma, liquefeita em lágrimas de júbilo, de amor e de
paixão, prostra-se, sem forças.
Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superi-
or47, da igreja baixa pintada por Giotto, no cântico que salmodia
até ao vértice de sua paixão, ressoa, como raio a ecoar toda a
explosão do meu tormento, condensando minha tempestade,
ressoa, no clamor da música e das vergas batendo no solo, o
grito derradeiro do Cristo que morre.
Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em
mim; abre-se uma fenda em minha alma.
O extremo apelo me convoca: é o lamento do Cristo, é a dor
do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e
inferiores; sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice
de forças titânicas, sinto a Voz instar dentro de mim, e repito:
(“O Gólgota” de E. Longoni)
Aproxima-se a hora santa em que Tu, Senhor, na Tua agonia,
“Senhor, seguir-Te-ei até à cruz”.
lançaste ao mundo o grito da redenção e do amor. Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene.
◘ ◘ ◘
Torno a subir à igreja média, pintada por Giotto.
46
Refere-se o escritor a um rito litúrgico da Semana Santa. Ao traduzir Apaga-se a última vela. É noite. Ouço ainda mais perto,
“Passione”, não entendendo esse trecho, recebi do Prof. Ubaldi a ex- dentro de mim, a repetir-se, o grito do Cristo a morrer.
plicação do mesmo, em carta de 3 de maio de 1950. É um rito da Igreja Ele aqui está, no momento, presente.
em que se representa a Paixão de Cristo, de que faz parte a cena da flage-
Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da Terra e do Céu.
lação (“scena deile battiture”), quando o Senhor foi preso a uma coluna e
açoitado com varas. No rito, as vergas, longas e delgadas, batem no solo,
47
exprimindo as flagelações impostas a Cristo. “Isso – escreve-me o Prof. A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpostas.
Pietro – produz um efeito lúgubre e triste. Naquela cena eu senti em A cena se passa na igreja do meio e na cripta que está em baixo, onde
mim a dor de Cristo flagelado pelas vergas”. (N. do T.) se encontra o túmulo do Santo. (N. do A.)
54 ASCESE MÍSTICA Pietro Ubaldi
O Céu chora a agonia e a paixão de amor de um Deus, a Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, por-
Terra treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval que agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço
sem nome. mais árduo me espera.
O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta O cântico cessou depois de seu último paroxismo.
hora suprema de paixão. Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no
Olho, atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se pro- escuro.
jeta para a Terra e vejo a Terra sacudida, agitada, submersa Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmani,
num mar de sangue. sua última desolação.
É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperan- Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo.
ça. O cerco estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fe- Naquele instante, verdadeiramente senti a Terra tremer.
chado e tarde será para escapar à compressão. ◘ ◘ ◘
A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão pron- Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre o
tas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Está próxima doce e extenso vale úmbrico e os reflexos do Tescio1, os pinhei-
a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz ros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores da dis-
quem não for vivo, então, sobre a Terra. tância!
O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio 2, a mole do
justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra. templo, irreal, entre pálidas luzes, e a imensa campina ador-
Há algum tempo, eu já disse – preparai-vos, preparai-vos – mecida.
e não ouvistes. Em breve, será demasiado tarde. Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado,
O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, res- no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recor-
soa desesperadamente no mais íntimo de meu espírito. dações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profun-
Repito: “Toma, Senhor, minha alma”. damente tenho vivido e que tanto tenho amado. Hora em que o
E três vezes repito: “Senhor, ofereço-te a mim mesmo pela Céu e a Terra refletem, amigos, um sorriso comum e se estrei-
salvação do mundo”. tam num fraterno amplexo.
“Seguir-Te-ei até à cruz”. Parecem em paz, mas é aparência do momento.
Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas me Vive dentro de mim a visão da realidade
aceitas e que estou unido à Tua paixão. Eu senti verdadeiramente a Terra tremer.
Compreendo que me guiaste até aqui, ao templo de São
Francisco, para que, sobre Seu túmulo, próximo Dele, eu Te re- FIM
petisse esta nova promessa, solene, decisiva, após a primeira,
após cinco anos de duro caminhar.

1
Torrente das proximidades de Assis. (N. do A.)
2
O monte Subásio, aos pés do qual está edificada Assis. (N. do T.)
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11 ) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12 ) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13 ) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16 ) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19 ) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20 ) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22 ) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23 ) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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