Professional Documents
Culture Documents
O MASSACRE
DA SERRA PITANGA Barthelmess, Verner Artur Conrado
O massacre da Serra Pitanga. Exumaç
de um genocídio. / Artur Barthelmess.
Apresentação: Orlando Pessuti
CDD 328 8
1
ARTUR BARTHELMESS
O MASSACRE
DA
SERRA PITANGA
exumação de um genocídio
-------------------------------------------
Versão eletrônica
2004
3
APRESENTAÇÃO O Autor do presente livro é filho do Vale do Ivaí
guarda a saga dos pioneiros belgas de que descend
Radicando-se em Curitiba tornou-se membro do Institu
Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense e
A Região do Vale do Ivaí abriga hoje uma numerosa
Centro de Letras do Paraná. É Professor jubilado
população que tira sua prosperidade de seu tenaz trabalho
Universidade Federal do Paraná, dedica-se à literatur
na lavoura e na pecuária bem como nas múltiplas
empreende pesquisas no campo da História e elabo
atividades de suas numerosas e importantes cidades. Mas
projetos de desenvolvimento regional que têm encontra
não esquece suas origens e faz questão de preservar suas
receptividade na Administração Pública.
raízes.
Escreveu no ano de 1990 “Ivahy Saga e Lena, Vi
Ocorreram aqui no passado situações que
e Lida”, uma epopéia em versos sobre a colonizaç
resultaram em pesados sacrifícios e graves sofrimentos.
franco-belga de que se originou Teresa Cristina, e ago
Hoje são por nós lembrados com muito respeito todos que
nos brinda com este seu novo livro “O Massacre da Ser
sofreram e morreram vítimas de conflitos e de doenças ou
Pitanga - Exumação de um Genocídio” onde esca
de penúrias da vida naqueles pesados tempos
episódios ocorridos em nossa Região na década de 19
O exemplo de sua coragem é importante para nós,
e que envolveram a chamada República Velha, anterior
eles iniciaram o desbravamento da Região a começar
histórica revolução de 1930.
pelos índios que “descobriram o Brasil primeiro” como diz
em sua entrevista o índio Pantu e descobriram O livro baseia-se, por um lado na pesquisa
principalmente como sobreviver quase sem recursos num campo efetuada na época do Natal de 1995 na reser
ambiente hostil. Somos igualmente gratos ao Dr. Jean indígena do ale do Ivaí, em Manuel Ribas, pela també
Maurice Faivre e a todos os pioneiros da colonização escritora Lídia Fazzini Ferraro, Membro da Academ
franco-belga de Teresa Cristina que trouxeram para cá sua Paranaense Feminina de Letras e funcionária
vontade de começar um mundo melhor. Foi a Assembléia Legislativa do Estado e, de outra parte, n
perseverança deles que encorajou mais tarde os outros investigações bibliográficas empreen-didas pelo próp
planos de colonização que acabaram tendo pleno êxito Autor do Livro nos clássicos da História Pátria e
especialmente depois que o convívio entre os diversos exaustivo escrutínio dos jornais diários da época d
grupos étnicos se tornou harmonioso. acontecimentos.
Hoje nossa região constitui um exemplo de convívio Contém o livro, além disto, depoimentos de pesso
harmonioso entre sertanejos, índios e descendentes dos próximas aos fatos que, se não fossem aqui publicado
imigrantes europeus bem como brasileiros afluídos de poderiam ficar perdidos para sempre como fontes
todos os quadrantes do País, tanto que agora todos esses Historiografia paranaense.
grupos integram a cultura brasileira como bem mostra o
caso do jovem índio Ivan Buibis Rodrigues que escreve
excelentes versos em português. Orlando Pessuti
5
SUMÁRIO
Vaehe victis!
[INDIOS FORA ! Vaehe victis,
Com a palavra os netos massacrados:
“Uma guerra pelos pinhões”
ai dos vencidos!
“Uma etapa do processo de conquista”
Uma agradável descoberta A História costuma ser escrita pelo vencedo
A voz do Poder Que cores toma um episódio histórico pungent
Rumo ao Oeste quando visto pelos olhos do vencido ou quando sã
GRÃO SENHORES, CACIQUES E CAPANGAS confrontadas, quadro a quadro, a verdade do vencid
A nova Canaã e a verdade do vencedor?
O Cacique Pinheiro e a paca na toca Cifrei em versos, no meu Ivahy Saga e Lend
O Cacique Paulino e a Justiça Indígena
Vida e Lida os lances épicos que a historiograf
O braço comprido dos “Obrageros”
GUERRA, BOATO COMO TERRA convencional costuma banalizar como uma revol
Irrompe a refrega inconseqüente dos índios coingangues dos pinhais d
“Os índios foram os agredidos, não os agressores” Guarapuava logo adequadamente dominada pel
A novela da demarcação autoridades.
EM MEIO AOS VENCIDOS Agora volto ao tema em texto explícito.
Rio abaixo Quem ler, verá.
As panelinhas
HOLOCAUSTO E RESSURGIMENTO A. B.
O choque de retorno
A hecatombe entre os imigrantes
Mal não há...
A origem do Inhambu
7
-I-
ÍNDIOS FORA!
9
Com a palavra
os netos dos massacrados
25
- Os guarapuavanos são os índios. Os outros são O Cacique Paulino
os portugue-Piquiri. A demarcação precisa respeitar isto
para o índio poder ficar sossegado ao menos dentro do e a Justiça Indígena
pinhal. Mas o pinhal o índio não entrega de jeito nenhum.
Sem o pinhão e a erva mate meu povo morre de fome. Se Um belo dia a Nação Caingangue fechou su
querem briga vão ter briga. Nos limpos o branco ganha do fronteiras.
índio mas no mato fechado o índio ganha de branco. No vale do Ivaí a comunicação se fazia toda por v
Ninguém pode com o índio dentro do mato. fluvial, em canoas. “Os endereços eram fluviais
- Mas veja o senhor: índio não tem metralhadora, fluvionáuticos / Casaram-se no Estirão Comprido / nasc
não tem canhão não tem aviação. no Estirão do Nhozinho / (era de Nhozinho Batista)” d
- Estas coisas modernas só funcionam em lugar meu Ivaí, Saga e enda. O referido Nhozinho Batista e
limpo. Índio se esconde atrás do pinheiro, índio se abraça um dos antigos quinhoeiros da Fazenda da Sociedade
no tronco e o avião não enxerga o índio. quem meu pai adquiriu a gleba na Costa do Ivaí, on
- E se a demarcação demorar mais do que o senhor morávamos, a meia distância entre Teresa Cristina e
espera? Colônia Velha.
- Enquanto ninguém se meter no pinhal o índio fica Soube-se da atitude dos índios pelos canoeiros q
lá parado comendo pinhão e matando paca na toca. remontavam o rio:
- A indiada fechou a passagem, abaixo da Colôn
Velha, na cachoeira do Pedrinho. Está montando guarda
dia e noite. Ninguém entra no território dos índio
ninguém sai. Não explicam nada:
- Não passa. Não passa e pronto.
- Que será?
- Nunca se sabe...
Oito dias depois levantaram o cerco. Sumiram-
como tinham aparecido.
Achou-se depois, rio abaixo, encalhado numa pra
de pedregulho, o corpo de um índio decapitado.
Quem será, quem não será? Os índios “não sabia
de nada”. Também nada sabiam do paradeiro do Caciq
Pinheiro.
O Cacique “Capitão” Paulino Arakxó assumiu
reassumiu a chefia geral. Era iletrado, mas astut
Decalquei dele o personagem Caicá do conto “Justi
Indígena” que escrevi quando eu tinha 15 anos e que
ultimamente publicado no final dos Contos Mágicos. Cai
27
significa “irmão mais velho” segundo eu tinha aprendido O Cacique Pinheiro começou a fazer muita fa
nas “Atualidades Indígenas” do sertanista Telêmaco Borba com sua diplomacia certamente um tanto sonhadora, m
publicadas em 1908 e que na época (1937) eu acabava de que, de qualquer modo, estava conseguindo retardar
descobrir. pior.
O conto está visivelmente romantizado, mas tem No ano seguinte quem estivesse em Guarapua
fundo verdadeiro: num engenho de aguardente, Ivaí poderia escutar alto e bem som nas conversas q
abaixo, ocorreu realmente uma briga entre sertanejos e rolavam animadamente no Cartório Alexandre Clèv
índios, todos bêbados, da qual resultou haverem dois observações como esta:
jovens brancos atirado e morto dois jovens índios depois - Este ano não deu quase pinhão. Os índios
do que, a conselho do dono do engenho, se entregaram estão passando fome. Logo vão atacar nosso gado
ao Inspetor de Quarteirão da Colônia Velha que os campo e daí teremos o motivo para partir para cima deles
prendeu em nome da Lei e os manteve presos. Não
demorou apareceu o Cacique Paulino em pessoa com
uma turba de índios querendo que se lhe entregassem os
presos para que os justiçasse, sem o que poria fogo na
casa. negociou-se um acordo segundo o qual os réus
seriam conduzidos escoltados a Guarapuava para serem
ali julgados na forma da Lei brasileira o que o cacique
solertemente aceitou desde que os presos seguissem
amarrados sobre suas montarias e que houvesse também
índios na escolta, o que tudo foi cumprido. Mas organizou
uma tocaia que surpreendeu a comitiva em meio da mata
abatendo os prisioneiros com uma saraivada de balas.
Estava consumada a Justiça Indígena.
O tema interessou-me na ocasião por seu lado
aparentemente paradoxal, uma situação de choque
ideológico de duas culturas, cada uma fiel a seus próprios
juízos de valor, querendo fazer valer seus próprios
procedimentos para fazer Justiça.
O caso não suscitou desdobramentos imediatos e
teve até certo sabor de empate técnico porque o Cacique
teve q seu favor o fato de ter executado sua tocaia com
precisão cirúrgica sem tingir os brancos da escolta um dos
quais o próprio Inspetor de Quarteirão. Mas o clima ficou,
de todo modo, mais pesado.
29
O braço comprido dos “obrageros” O rio Paraná ficava afastado da cidade
Guarapuava, embora no mapa o Município des
Havia na região, ao lado dos fazendeiros e dos abrangesse suas barrancas mas os ervais que
índios, um terceiro poder: eram os capangas dos obrageros exploravam estavam a meio caminho o q
obrageros que extraíam mate e madeira para exportação estimulava a fuga da mão de obra, em regra paragua
via rio Paraná. Eram empresários localmente todo- que ali era mantida em regime de servidão.
poderosos que tinham seus próprios portos no grande rio e No interior dos campos de Guarapuava não hav
que abriam por dentro das terras devolutas da floresta cercas, meu pai cansou de viajar dias e dias a cava
centenas de quilômetros de trilhas até os ervais nativos cruzando de fazenda em fazenda e de um ponto em dian
que na realidade se situavam em pleno Planalto, nos nem sequer trilha havia. Seguia-se a rumo:
atuais municípios de Guaraniaçu, Campo Bonito, Corbélia, - Está vendo aquele pinheiro sem galho. ao la
Iguatu, Anahí, Altamira do Paraná e Palmital dos Trinca, daqueles outros três pinheiros? Pois siga bem naque
Ubiratã e Campina da Lagoa. Uma terça parte da erva rumo.
mate exportada da década de 1920 seguia pelo rio Num ermo daqueles avistou meu pai uma famí
Paraná. inteira de paraguaios a pé, em fila indiana, só eles e Deu
O Conjunto dos obrages, que assim se chamavam entre o campo e o céu. Parou o cavalo e esperou q
suas empresas, formava - juntamente com a Companhia chegassem.
Mate Laranjeira cujos principais ervais se situavam no hoje - Aonde vão? perguntou.
Mato Grosso do Sul mas que mantinha a navegação a Responderam num castelhano arrevesado q
vapor tanto acima quanto abaixo das Sete Quedas e uma viajavam a rumo e perguntaram, por sua vez, pelo rum
estrada de ferro contornando ditas quedas - um extenso exato em que ficava Guarapuava. Prestaram imen
Império comercial que, dado seu isolamento dos centros atenção. Depois perguntaram em que rumo fica
de decisão brasileiros, funcionava sob alguns aspectos Laranjeiras do Sul, e seguiram firmes na direção
como se fosse um Estado independente tanto que anos bissetriz entre os dois rumos mostrados, para passare
mais tarde chegou a conceder soberanamente asilo e bem no meio, entre uma e outra destas localidades. É q
guarida a um Presidente deposto da vizinha República do em ambas havia capangas do espanhol Alica e do paren
Paraguai, à revelia do Governo Vargas que até então tudo e fac totum dele por nome Santamaría tido como cruel
tolerava mas que, sentindo-se desafiado, cobrou caro despótico, capangas estes encarregados de desestimu
desmantelando na base da ocupação pela tropa aero- as evasões mediante punição exemplar dos fugitiv
transportada todo aquele vasto enclave e aproveitou o porventura avistados.
barulho para subtrair ao Estado do Paraná a quarta parte Ditos capangas eram geralmente homens branc
de seu território para constituir um território federal com de fala espanhola. Na cidade de Guarapuava costumava
sede em Laranjeiras do Sul o que tanto trabalho deu aos parar em pequenos grupos nas vendas e nos bares m
paranaenses para reverter. sempre de boca calada.
31
Eram temidos. Quando certa feita apareceram em
número excessivo a sociedade local apavorou-se com
boatos sobre algum iminente ataque do Alica à própria
Cidade o que motivou a evacuação de mulheres e
crianças rumo às fazendas. Mas no geral sua permanência
estava legalizada por alguns serviços que este ou aquele
importante fazendeiro lhes confiava quando não queria ou
não podia usar neles seu próprio pessoal de segurança.
Todos os ingredientes estavam, assim, presentes
na região. Só faltava acender o estopim para desencadear
o grande massacre - III -
GUERRA,
BOATO COMO TERRA
33
Irrompe a refrega
Mil novecentos e vinte e três foi um ano tenso da
os ecos da revolução tenentista do ano anterior que visa
a modernização do País e que teve como episód
emblemático a resistência dos Dezoito do Forte
Copacabana, entre eles o mais tarde Brigadeiro do
Eduardo Gomes, até hoje um mito para muitos brasileiro
No próprio ano de 1923, para que este nada ficasse
dever, lavrava no Rio Grande do Sul uma revolução
moda antiga: maragatos versus pica-paus.
Arthur Bernardes governava o Brasil em Estado
Sítio reiteradamente reeditado durante todo o s
mandato. No Paraná pica-paus e maragatos tinha
conseguido fazer causa comum e fruíam o Pod
conjuntamente. Mas reinava certo estado de vigília, um
imponderável intuição de que aqueles poderiam ser, pa
o Regime, os penúltimos dias de Pompéia.
35
destroçada pela tropa federal a meio caminho, na Serra imigrantes da margem direita do rio Ivaí, notadamente
dos Medeiros, mas geraria em território paranaense o recém fundado Núcleo Colonial Dr. Cândido de Abreu q
ponto de partida da Coluna visionária do tenente gaúcho era a menina dos olhos da opinião pública curitibana q
Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança” que se então adorava os alemães e a Alemanha, como
tornaria figura mitológica para outros tantos brasileiros. E depreende da leitura dos mesmos jornais.
prepararia caminho para a revolução tenentista definitiva, No nível político cuidou o oficialismo estadual
a de 1930. lavar as mãos, mediante passar toda a responsabilida
pelo que viesse a acontecer para a autoridade fede
mais próxima, na pessoa do titular da Inspetoria dos Índi
no Paraná e Santa Catarina., que passou a s
subitamente atacado em Curitiba pelo jornal ofic
45
Rio abaixo
49
branco veio pra tirar
uma cisma da indiada
trouxe gente paraguaia
trouxe gente bem armada
terminada a refrega
caingangue retirou-se
perdeu tudo e muitas vidas
(as panelas sei quem trouxe)
51
caveirangue
caveirungue angue angue
ungue úngüe AVE-MARIA
pedia
por Nossa Senhora
Santíssima
52 53
-V-
HOLOCAUSTO
E
RESSURGIMENTO
54 55
O choque de retorno dissolver os clãs ao menor sinal de epidemia em
brenhando-se na mata distante em pequenos grupos ou
O destroçamento da nação da nação Caingangue até como indivíduos isolados.
e sua repentina substituição por uma colonização Quem fez fé na medicina dos brancos teve triste
compacta teve um impacto ambiental de conseqüências destino porque as autoridades sanitárias entenderam a
imediatas e terríveis. princípio que devia tratar-se de mais algum surto da
- Nunca houve malária por aqui antes. Foram os gripe espanhola que na ocasião grassava em todo o
alemães que trouxeram a Malária - asseveraram os mundo e quando finalmente se flagraram muitos
sertanejos da região. preciosos meses se haviam perdido e as vítimas fatais
Mas como, se não há Malária na Alemanha? se haviam acumulado catastroficamente.
Matutando chega-se lá. O vetor da Malária, o A partir de então a malária permaneceu endêmica
mosquito Anófeles, a que no mato chamamos mosquito- em toda a Região até a década de 1950 quando chegou
prego por causa da posição peculiar que assume quando ao Brasil o controle do mosquito mediante pulverização
pousa no teto ou na parede, tem restrita autonomia de domiciliar com inseticida, técnica desenvolvida na dé
vôo. Mosquitos eram comuns no vale do Ivaí, mas não cada de 1940 pelos americanos durante a guerra do
estavam infectados pelo microorganismo Plasmódio Pacífico e que se mostrou capaz de reduzir a quantidade
causador da Malária por falta de existir em seu pequeno de mosquitos a um nível inferior ao patamar mínimo
raio de alcance indivíduo portador da doença. necessário à infestação.
O território indígena de baixíssima densidade
demográfica com os toldos separados dezenas de
quilômetros uns dos outros funcionava como zona
tampão evitando que a doença, endêmica no Baixo Ivaí,
pudesse remonar o rio. Uma vez adensada a população
pela irrefletida implantação da Colônia alemã, picotada
em centenas de lotes minúsculos cada qual ocupado por
uma família de imigrantes, a barreira foi rompida e a
moléstia conseguiu saltar de casa em casa e atingir
indiferentemente imigrantes, sertanejos e os próprios
índios refugiados, agora compactamente aldeados na
escassa Reserva remanescente no Faxinal de Ca-
tanduvas.
O extermínio dos índios só não foi total porque
muitos deles retornaram ao costume ancestral de
56 57
A hecatombe entre os imigrantes aclimação caíram doentes quase que
todos de uma só vez. Ajunte-se a isto a
Os colonos, despreparados para seguir o exemplo escassez e a falta de variedade da
milenar dos indígenas, permaneceram em seus lares e alimentação, a maioria não dispunha
ali mesmo sucumbiram à febre, à fome e ao abandono. durante longos meses, de qualque
Um pioneiro radicado na região do vale do Ivaí espécie de gordura para preparar a
desde o limiar do século tudo relatou em cores vivas e comida. O milho, o feijão, as ervilhas, etc
fortes numa série de cartas dirigidas à irmã. Mme. de que haviam madurado muito bem e
Boé, que permanecera na Europa. São as “Cartas a prometiam excelente safra não puderam
Bruxelas” cujos originais me foram gentilmente cedidos ser colhidos por estarem seus
pelos herdeiros da destinatária e que serviram de eixo da proprietários doentes de modo que estes
narrativa sobre a qual urdi a epopéia em versos “Ivahy, vieram a sofrer muita fome.
Saga e Lenda, Vida e Lida”. “Mais da metade veio a morrer
Os originais das cartas estão em francês. famílias inteiras morreram sem serem
Transcrevi ali na língua originária aquela que se refere enterradas durante semanas por estarem
especificamente à hecatombe ocorrida na Colônia os vizinhos igualmente doentes. Muitos
Cândido de Abreu, encontrando-se o texto na página 124 morreram de fome cercados de suas
da Edição Especial publicada com Apoio dos Municípios lavouras, não tendo forças para socorrer
do Vale do Ivaí, única que no presente momento não se se; por vezes só morriam os pais
acha esgotada. deixando sem socorro 5 ou 6 crianças em
Agora vou dar aqui a tradução: tenra idade, tudo isto foi terrível.”
58 59
Das famílias
de colonos que Was wird nun?
provieram
d’Alemanha
quantas são
Was nur tun?
que inda restam
passados ralos Grosse Not und bitter Leid
dois anos?
restam vivas jede Hoffnung ist zeronnen
já se entende
que a malária
selbst der Tod
não ceifasse?
que a miséria
não dobrasse dem wir geweiht
que a fome
não matasse? lässt sich Zeit
Com os índios
cara a cara
will nicht kommen
igualmente
perecendo
(ficou um
ao que se conta
num toldo
de muita monta) SORTE IGNARA ASSASSINA
de gente recém chegada
QUE SERÁ DE NÓS AGORA?
sucumbiu
mais de metade MESMO A MORTE NOSSA SINA
O restante no que pôde TANTO TARDA E SE DEMORA
evadiu-se apavorado
60 61
PRANTO E PRECE
DESA PAI
LINHO do Céu
olha este povo
que trouxeste
sete palmos inda hoje de tão longe
é que queres? o trator acha
(e seguido
não te enxergas ao cavar
infeliz? a terra arada tens trazido)
PAI ó PAI
só arrepara
o que este povo
tem penado
na mão nossa
62 63
seus irmãos Lembra-TE
do Bequimão
e de quantos
Tiradentes
geração
por geração
e de todas
as Marias
já vendidas
“com suas crias”
mesmo em público
leilão
E agora
estes outros
que vieram
tão corados
mal dois anos
transcorridos
ei-los mortos
destroçados
em meio ao milagral
dos falhos
nossos projetos
das ocas
nossas promessas
dos falsos
64 65
nossos profetas E a pobre
da indiada
(que estava
aqui primeiro)
cruamente
exterminada
cujo crime
foi nascer
neste chão
que se cobiça
Temos tanto
magoado
Teu querer
singelo e santo
entretanto
nosso pranto
já é tanto
nosso pranto
é a prece
deste povo
que padece
quem nos tem
por seus parceiros
não precisa
outro castigo
(dois castigos não carece)
66 67
Tira o povo
do sufoco
PAI do Céu
Nosso Senhor
dá-nos outro
coração
(um que seja
susceptível
um que sinta
compaixão)
68 69
Mal não há contingentes integraram-se sem dificuldade e om o t
tornaram-se indistinguíveis dos das primeiras levas e da
que sempre dure brasileira em geral.
Despovoada a colônia alemã e dizimados os
Caingangues sobejou terra vazia que aos poucos foi sendo RENASCIDA
ocupada pela etnia hoje ali predominante.
Nossa Senhora teria aparecido em visão, no último Cândido é renascida
quartel do século passado, ao iniciador da colonização bela rica e ativa
polonesa no Brasil oferecendo ao Papa uma terra cercada de com asfalto e luminária
neblinas para que nele o povo polonês espremido na Europa hoje é sede de Comarca
entre Rússia e Prússia pudesse encontrar um novo lar que lhe
oferecesse paz e sossego. Esta terra entre névoas seria o Acabou-se
Estado do Paraná. a mortandade
Depois da Primeira Guerra recrudesceu também o acabou-se
fluxo imigratório eslavo. Na região do Ivaí os poloneses e o pesadelo
ucranianos vieram em massa para as Colônias de Miguel Por Milagre
Calmon, hoje Cidade de Ivaí, para São Roque, para o Areião, do Senhor
para o Erval Grande e o Ervalzinho, hoje Jaciaba e para a a malária
Colônia Apucarana, depois chamada Apucaraninha e foi-se embora
finalmente extinta. Ele deu
O vazio demográfico criado pela mortandade de cabeça boa
alemães e índios vitimados pela Malária após o Massacre da para certo inventor
Serra Pitanga acabou atraindo os descendentes desses inventar
colonos poloneses, hoje garbosos brasileiros, para o sítio da o jeito certo
esvaziada Colônia Cândido de Abreu onde demonstraram de acabar com
uma operosidade tão radical que o antigo Sertão virou lavoura o tal mosquito
de enxada não restando na área bromélia para servir de
berçário de Anófeles o que, ao lado da campanha do controle
do mosquito mediante a pulverização de DDT nas casas (Quem nunca curtiu sua maleita fique for
efetuada na década de 1950, tem conseguido de conter a conversa, pois vou dar meu veredicto:
ameaça de nova epidemia. - Bendito o mata-mosquito que salvou a nossa
Pouco antes da Segunda Guerra veio reforço da matriz que salvou a nossa vida.)
européia. Estabeleceu-se entre Cândido e Três Bicos a nova
Colônia Morska Wola, nome da empresa colonizadora que,
traduzido, quer dizer Onda do Mar. Os novos e grandes
70 71
A origem do Inhambu Aprendi muito na ocasião. Fiquei sabendo, por exemplo
a língua Kaingang se profere por definição em baixo vo
Para encerrar de modo mais ameno seja-me permitido de voz (a própria monitora fala bem mais alto, em portu
reportar-me à Tarde Literária promovida no dia 11 de e que o alfabeto latino não sabe representar todo
novembro de 1994 pela Coordenadoria de Literatura da fonemas do falar indígena. Notei, por exemplo, que tod
Fundação Cultural de Curitiba no átrio da Livraria Dario que aparece no texto latinizado se guturaliza em Kain
Vellozo onde foi apresentada em declamação bilíngüe a lenda para (n)g. Kainh(n)ga(n)g.
caingangue sobre a Origem do Inhambu. Para enriquecer o evento incluiu-se happning al
Eu vizinhara na infância com esses índios nascidos, segundo projeto da escultora Adriane Muller.
como eu, nas barrancas do rio Ivaí. Mas éramos O poema ficou assim:
reciprocamente mudos porque aqueles que conheci não
falavam nossa língua, nem eu a deles. Daí a avidez com que A ORIGEM DO INHAMBU NË VENH KÃME
devorei quando ginasiano, o livro em que Telêmaco Borba
dava voz a meus índios e traduzia-os para mim. Cativou-me a índio grande já fizera
lenda caingangue, por ele coligida, sobre a Origem do todos os bichos da terra
Inhambu: ave indefesa, quase sem cor, de modesto todos os bichos da água
desempenho e fraca aerodinâmica, teria sido o Inhambu todos os bichos do ar
criado por uma menina. Achei que devia amar o Inhambu por (até o galo da serra)
isto, por que feito por uma criança, como criança eu próprio
era. Kainhgág Kanhró tóg
Uma vida depois passei a lenda para versos que Nxén kar han.
saíram naquele Ivahy Saga e Lenda, da Série Textos Grxa kri ke kar
Sempre da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná. Goj xkrem ke kar.
Verificando que entre os indígenas, em virtude da kynhn ke kar.
aculturação e das peripécias, a lenda já não era conhecida, Pã nónh kri ke kar ke gé.
inventei que ela devesse traduzir-se de volta para a língua de
origem para ser restituída à cultura a que pertence. Foi nessa gastara toda a massinha
ocasião que conheci a Monitora Gilda Kuitá, indicada pelo e todos os potinhos de tinta
Cacique Pedro Cornélio para efetuar a transliteração de meus estavam de fundo rapado
versos para a língua caingangue.
Na ocasião da Tarde Literária p Átrio da Livraria estava Nén t hn hn jafã
ornamentado com artefatos indígenas cedidos pela Delegacia t tóg t ke m.
Regional da Funai. A apresentação se fez recitando o autor
seus versos em português e declamando a tradutora, após
cada estrofe recitada, a correspondente estrofe traduzida.
72 73
menininha caingangue
andava desconsolada
queria por tudo no mundo
fazer seu bichinho também
aí achou de repente
uns fiapinhos de fio
fez deles um novelinho
rolou na cinza inda quente
botou dois pés de palito
com dois carvões apagados
pôs-lhe olhos em negrito