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Edição gráfica. Curitiba :: Serviços Gráficos da Assemblé


Legislativa do Estado do Paraná . 1997

Versão eletrônica Versão eletrônica: Pollyanna Pedri de


Souza . 2004

O MASSACRE
DA SERRA PITANGA Barthelmess, Verner Artur Conrado
O massacre da Serra Pitanga. Exumaç
de um genocídio. / Artur Barthelmess.
Apresentação: Orlando Pessuti

I História do Brasil II H. do Paraná 1 Título

CDD 328 8

1
ARTUR BARTHELMESS

O MASSACRE
DA
SERRA PITANGA

exumação de um genocídio

-------------------------------------------

Versão eletrônica
2004

3
APRESENTAÇÃO O Autor do presente livro é filho do Vale do Ivaí
guarda a saga dos pioneiros belgas de que descend
Radicando-se em Curitiba tornou-se membro do Institu
Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense e
A Região do Vale do Ivaí abriga hoje uma numerosa
Centro de Letras do Paraná. É Professor jubilado
população que tira sua prosperidade de seu tenaz trabalho
Universidade Federal do Paraná, dedica-se à literatur
na lavoura e na pecuária bem como nas múltiplas
empreende pesquisas no campo da História e elabo
atividades de suas numerosas e importantes cidades. Mas
projetos de desenvolvimento regional que têm encontra
não esquece suas origens e faz questão de preservar suas
receptividade na Administração Pública.
raízes.
Escreveu no ano de 1990 “Ivahy Saga e Lena, Vi
Ocorreram aqui no passado situações que
e Lida”, uma epopéia em versos sobre a colonizaç
resultaram em pesados sacrifícios e graves sofrimentos.
franco-belga de que se originou Teresa Cristina, e ago
Hoje são por nós lembrados com muito respeito todos que
nos brinda com este seu novo livro “O Massacre da Ser
sofreram e morreram vítimas de conflitos e de doenças ou
Pitanga - Exumação de um Genocídio” onde esca
de penúrias da vida naqueles pesados tempos
episódios ocorridos em nossa Região na década de 19
O exemplo de sua coragem é importante para nós,
e que envolveram a chamada República Velha, anterior
eles iniciaram o desbravamento da Região a começar
histórica revolução de 1930.
pelos índios que “descobriram o Brasil primeiro” como diz
em sua entrevista o índio Pantu e descobriram O livro baseia-se, por um lado na pesquisa
principalmente como sobreviver quase sem recursos num campo efetuada na época do Natal de 1995 na reser
ambiente hostil. Somos igualmente gratos ao Dr. Jean indígena do ale do Ivaí, em Manuel Ribas, pela també
Maurice Faivre e a todos os pioneiros da colonização escritora Lídia Fazzini Ferraro, Membro da Academ
franco-belga de Teresa Cristina que trouxeram para cá sua Paranaense Feminina de Letras e funcionária
vontade de começar um mundo melhor. Foi a Assembléia Legislativa do Estado e, de outra parte, n
perseverança deles que encorajou mais tarde os outros investigações bibliográficas empreen-didas pelo próp
planos de colonização que acabaram tendo pleno êxito Autor do Livro nos clássicos da História Pátria e
especialmente depois que o convívio entre os diversos exaustivo escrutínio dos jornais diários da época d
grupos étnicos se tornou harmonioso. acontecimentos.
Hoje nossa região constitui um exemplo de convívio Contém o livro, além disto, depoimentos de pesso
harmonioso entre sertanejos, índios e descendentes dos próximas aos fatos que, se não fossem aqui publicado
imigrantes europeus bem como brasileiros afluídos de poderiam ficar perdidos para sempre como fontes
todos os quadrantes do País, tanto que agora todos esses Historiografia paranaense.
grupos integram a cultura brasileira como bem mostra o
caso do jovem índio Ivan Buibis Rodrigues que escreve
excelentes versos em português. Orlando Pessuti
5
SUMÁRIO
Vaehe victis!
[INDIOS FORA ! Vaehe victis,
Com a palavra os netos massacrados:
“Uma guerra pelos pinhões”
ai dos vencidos!
“Uma etapa do processo de conquista”
Uma agradável descoberta A História costuma ser escrita pelo vencedo
A voz do Poder Que cores toma um episódio histórico pungent
Rumo ao Oeste quando visto pelos olhos do vencido ou quando sã
GRÃO SENHORES, CACIQUES E CAPANGAS confrontadas, quadro a quadro, a verdade do vencid
A nova Canaã e a verdade do vencedor?
O Cacique Pinheiro e a paca na toca Cifrei em versos, no meu Ivahy Saga e Lend
O Cacique Paulino e a Justiça Indígena
Vida e Lida os lances épicos que a historiograf
O braço comprido dos “Obrageros”
GUERRA, BOATO COMO TERRA convencional costuma banalizar como uma revol
Irrompe a refrega inconseqüente dos índios coingangues dos pinhais d
“Os índios foram os agredidos, não os agressores” Guarapuava logo adequadamente dominada pel
A novela da demarcação autoridades.
EM MEIO AOS VENCIDOS Agora volto ao tema em texto explícito.
Rio abaixo Quem ler, verá.
As panelinhas
HOLOCAUSTO E RESSURGIMENTO A. B.
O choque de retorno
A hecatombe entre os imigrantes
Mal não há...
A origem do Inhambu

7
-I-

ÍNDIOS FORA!

9
Com a palavra
os netos dos massacrados

Os fatos são antigos e índios realmente velhos s


raríssimos. autorizada pela Delegacia Regional da FUN
no Paraná a escritora Lídia Fazzini Ferraro, da Academ
Paranaense Feminina de Letras, foi no final de 19
pesquisar o que ainda sabem sobre a Guerra da Ser
Pitanga os mais velhos dentre os índios que atualmen
vivem na Reserva caingangue do Município de Mano
Ribas descendentes que são dos próprios massacrado
Valeu-lhe o efetivo apoio da Monitora Gilda Kuitá que
dirige sua classe escolar bilíngüe. A todos agradeço
subsídios que por bondade me foram fornecidos.

“Uma guerra pelos pinhões”


Aquela pesquisadora encarou a tarefa de ach
índio que não se mostrasse demasiadamente arredio
esquivo diante do espinhoso tema e que fosse ao mesm
tempo suficientemente idoso para ficar próximo à épo
dos acontecimentos que datam da década de 1920.
Um depoimento que apesar de hesitante e reticen
encanta por sua lírica simplicidade é o do índio Joaquim
serve ao mesmo tempo para mostrar quão grande
mesmo na era do rádio e da televisão, a distância q
separa da nossa a cultura de um povo tradicionalmen
coletor e caçador. Para quem vive da mão para a boca,
hora da fome, vale mais o pinhão que é o pão que cai
céu de graça em abundância permitindo tirar por algu
meses a barriga da miséria.
11
Nada melhor que deixar a própria pesquisadora - Nóis caça e nóis briga com flecha... depo
relatar como decorreu a entrevista. com espingarda.
“Acompanhada por Gilda Kuitá esta indicou-nos o - Ah, depois com espingarda. Ficou mais moderno
índio Joaquim com quem tivemos a seguinte conversa em - É...
meio à maior desconfiança. Quando o abordei ele olhou - Conte-me uma coisa: Que tipo de caça voc
desconfiado para o gravador e perguntou: caçavam?
- Eu vai sair na televisão? - O tateto, porco do mato e anta também
Expliquei que a voz dele ficaria gravada numa fita. qualquer bicho né mata com flecha.”
Ele reclamou:
- Não. Eu quer aparece na televisão não aparece ”Uma etapa do processo de conquista”
na fita.
- O senhor pode dizer seu nome e idade. Pode Outro índio idoso apareceu mostrando uma visã
falar. histórica mais abrangente e sagaz. Ele relata a seu mo
- Eu chama Joaquim... (silêncio) como os índios que, segundo ele, “descobriram o Bra
- Que idade o senhor tem? Quantos anos o senhor primeiro” tiveram de recuar por sucessivas etapas atrav
tem? do território paranaense, sempre sob a pressão do bran
- Eu acha... sessenta cinco. É... sessenta cinco. colonizador, até culminar com a confrontação da Ser
- O senhor sempre morou aqui, “seu” Joaquim? Pitanga.
- É eu sempre mora aqui... nasce aqui. Vejamos como transcorreu a entrevista:
- O senhor sabe de alguma briga quem sabe com Entrevistadora: - seu nome e idade? ( aponta
outras comunidades ou talvez com outros índios? O seu para o microfone embutido). Pode falar aqui!
pai e seu avô falaram com o senhor sobre isto? - Aqui, eu? Meu nome...
- Pra briga? - É, pode falar. Não tenha receio, pode fala
-É (Aproxima o gravador que o entrevistado pega e tenta tir
- Ah... meu pai falô assim: brigo com bastante da mão da entrevistadora que resiste e insiste):
já.. ele falou que ali nos pinhão... falou assim que ali - É isso aí, pode falar!
no Pintanga, faz tempo já, ele brigo com o neto do O índio é muito hesitante:
branco. Por os pinhão. Pinhão sustento do índio. - Meu nome é José Pantu. Nome índio é Pantu.
- Ah é? - “Seu” Pantu, o que quer dizer Pantu na líng
- É brigô... matô... (silêncio) caingangue?
- Brigo e matou gente? Ele pensa, hesita e apenas pronuncia um:
- É matou muito gente... mas depois parou... - É... (e cai em silêncio).
- Seu avô contava muitas histórias de caça? Entrevistadora: - É um nome comum?
- Muito sim... muito... - É.
- E como vocês caçavam e como brigavam? - Que idade o senhor tem?
13
- Eu, sessenta sete. Índio (lacônico):
- Sessenta e sete anos? Parece novo ainda, não - Mhm...
mais que uns cinqüenta e cinco... “Seu” Pantu: já ouviu - Saiu muita morte por causa disto?
falar de uma briga que aconteceu muitos anos atrás de - Saiu muito morte...
Cainganges com outros, por causa de pinhão ou por outra - Obrigada seu Pantu, muito obrigada.
coisa? O que houve? O senhor conta a história para mim?
- Naquele tempo índio tem briga com branco no
Pitanga meu pai contou pra mim.
Silêncio demorado, afinal quebrado pela Uma agradável descoberta
entrevistadora:
- E mataram muita gente? A pesquisadora Lídia Fazzin Ferraro encontro
- Morre muito... branco mata muito índio, índio também, naquela ocasião, outro tesouro: um jovem índ
matô muito branco também. que escreve português densos versos de alumbramento
- E quando foi isso, o senhor se lembra? amor sofrido cuja publicação só aguarda patrocínio.
Pensa muito e demora para responder:
- Naquele tempo 1914 (sic) Ivan Buibis Rodrigues é índio caingangue, tem
- O senhor se lembra da história que foi contada de anos de idade e cursa a última série do segundo grau
Pitanga? Foi por causa de pinhão ou por outra causa? cidade de Manuel Ribas. Mora na reserva indígena p
- Naquele tempo índio descobre Basil (sic), basil preferência e opção (“No máximo transferir-me para out
inteiro. Depois ele faz picada pra cá. Daí parou no reserva indígena”).
Curitiba. Então índio faz nome naquele lugar: Curitiba! - Tem algum plano no futuro? Algum sonho, algu
Depois ele faz muita picada até o Guarapuava... projeto a realizar? - pergunta a entrevistadora.
Entrevistadora: - Sim quero fazer uma Faculdade. Qual curso ain
- Até Guarapuava? não tenho em mente.
- Então índio fez aquele lugar. Nome: - Diga-me Ivan: eu acabo de ler alguns poem
Guarapuava. Depois tem que fazer mais picada até o muitos bonitos. Sua irmã disse-me que é você que
Pitanga... Então índio fez aquele lugar Pitanga. Depois escreve. Você se dedica à poesia?
tem que fazer picada até o Corumbatá. - Eu escrevo assim por distração, à noite?
- Me diga aonde foi essa briga com os brancos, foi - Aqui não falta inspiração, não é mesmo, Ivan?
em Pitanga mesmo ou em outra parte? - É... a gente olha assim... a lua... as estrelas...
- Naquele tempo o branco apretá o índio lá no Ivan Buibis é um moço quieto. Não é alegre ne
Pitanga. triste. É poeta.
- Apertava é? Eles não queriam os índios lá? Vai aí uma amostra da arte dele.
- Não... não queriam, naquele tempo
- E morreu muita gente?
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A voz do Poder
É fácil verificar qual dos dois índios idos
entrevistados no ano de 1995 na Reserva Caingangue
Vale do Ivaí aprendeu melhor como funciona a cabeça d
IMAGINAÇÃO homem branco. Basta ler algumas Cartas Régi
expedidas no Rio de Janeiro por sua Alteza Real
Minha solidão se eleva Príncipe Dom João (mais tarde Dom João VI), Regente p
Numa tristeza profunda interdição Sua Augusta Mãe Dona Maria I - a mesma q
vinte anos antes firmara, como Rainha de Portugal,
Pela silenciosa noite escura Sentença de morte e esquartejamento do “inconfident
Onde as estrelas não brilham Tiradentes.
A noite é fria e tensa Em sua clássica História Geral do Brasil c
A chuva parece por vir Varnhagem quatro delas concernentes à quest
Riscos de brilho que aprecio indígena, datadas de 13 de maio, 5 de novembro e 2
Porque espero neles ver dezembro de 1808 e 1 de abril de 1809, respectivamen
A de 5 de novembro de 1808 que era endereçada
O teu rosto na escuridão Governador da Capitania de São Paulo e afeta
E embarcar naquela paixão diretamente os índios paranaenses acha-se transcritas
Que se fez no meu coração História do Paraná de Pilatti Balhana, Pinheiro Machado
Mas tudo acaba sem eu te ver Westphalen.
Foi apenas imaginação Nela o Príncipe determina:

IVAN BUIBIS RODRIGUES “... deveis organizar em corpos aquel


(Aos 21 anos) milicianos de Curitiba e do resto
(Membro residencial da Comunidade Caingangue da Capitania de São Paulo q
Reserva Indígena do Vale do Ivaí de Manoel Ribas - voluntariamente quiserem armar-
Paraná) contra eles e perseguir os mesm
índios infestadores de meu territór
(negritei), procedendo declarar que to
miliciano ou qualquer morador q
segurar alguns índios poderá consider
los por quinze anos como prisioneiros
guerra destinando-os ao serviço que ma
lhes convier.”
17
Para que não pairasse dúvida sobre quais índios Rumo ao Oeste!
perseguir especifica a mesma Carta Régia os Campos de
Guarapuava como alvo do planejada investida tanto que O recado não caiu em ouvidos moucos.
autoriza ao Governador conceder aos conquistadores, Num piscar de olhos criou-se a “Junta da Re
justamente em ditos campos, Sesmarias “proporcionais às Expedição de Conquista de Guarapuava” a qual organiz
Forças e cabedais dos que assim as quiserem tomar”. imediatamente uma poderosa expedição militar financia
com os recursos do novo imposto de 200 réis sobre ca
cabeça de gado vacum ou cavalar provenientes d
Capitanias do Sul arrecadado pelo Registro de Sorocaba
Encomendaram-se ao regimento de Milícias
Curitiba “duzentos soldados dos mais capazes” q
também soubessem lavrar a terra e serrar madeiras; do
índios que soubessem a língua e trabalhadores q
soubessem arriar tropas. Requisitaram-se peças
artilharia dos fortes de Santos, desfalcando a defe
costeira.
Os capitães-mores das Vilas de Curitiba, Castro
Lapa receberam ordens para forçar os fazendeiros d
Campos Gerais a concorrer com escravos e com gado
os lavradores com feijão e farinha, e a “forçar todos
vadios” (sic) a trabalhar nas estradas que lhe haveria
abrir para a Conquista. Esta última disposição foi p
vezes aplicada com tal radicalidade que Saint Hila
visitando dez anos depois uma das mencionadas Vil
encontrou-a grandemente despovoada quer pe
recrutamento forçado, quer pela evasão para out
Capitania de quem conseguiu evadir-se.
A promessa das Sesmarias e a esperança
encontrar riquezas deu água na boca a muita gente. E
Curitiba convergiram homens abastados de perto e
longe engrossando a expedição com suas montarias
bagagens, sua famulagem, escravos e animais.
A tropa curitibana e seus aderentes galgaram
Serra do Purunã que separa o Primeiro do Segun
Planalto paranaenses e cruzaram a amplidão d
19
fazendas que já então preenchiam os Campos Gerais,
recebendo pelo caminho os reforços e provimentos
requisitados. Depois, sempre a rumo de oeste penetraram
na mata de araucárias que cobre os sopés e as encostas
da Serra da Esperança, derrubando pau e cavando - II -
estrada para que pudessem as carroças da expedição
avançar e chegaram em junho de 1810 - ano e meio da
data da assinatura da Carta Régia - ao topo do Terceiro
Planalto num ponto a seis léguas dos campos viçosos e
GRÃO SENHORES,
virgens de Guarapuava pertencentes ao Príncipe Nosso CACIQUES
Senhor e que os malvados bugres andavam, havia
séculos, a infestar. E CAPANGAS
Os conquistadores até os dentes erigiram, sem
avistar índio algum, uma povoação fortificada a que
denominaram Atalaia; os índios que dias depois vieram
atacá-la foram aprisionados e “distribuídos entre os mais
abonados moradores”.
Palavra do Rei não volta atrás: os campos foram
dados, efetivamente, em Sesmarias aos mais poderosos.
O prosseguimento da ocupação deu-se com adesão
de sempre novos contingentes provindos notadamente dos
Campos Gerias e realizou-se, segundo consta, com muita
astúcia e com um grau de violência que para os padrões
da época foi considerado aceitável ou, quem sabe, até
cometido no que pese que nenhum índio nos legou seu
lado da História.
Houve tocaias e escaramuças, houve os conflitos
resultantes da instalação nas brenhas da mata de alguns
quilombos de negros foragidos das fazendas e que jamais
puderam ser totalmente reduzidos, mas com o tempo
estabeleceu-se entre invasores e inválidos, na base do
cansaço e do costume, uma tensa paz armada que pôde
ser milagrosamente mantida durante quatro gerações, até
o irromper dos acontecimentos que são objeto da presente
publicação.
21
A nova Canaã
Tudo era mais viçoso no Terceiro Planalto. A ca
mais farta, a erva mate mais doce, os pinheiros muitíssim
mais grossos e mais altos.
Os campos de Guarapuava, sobre os férteis sol
vermelhos derivados do basalto, suportavam, quase se
trato, três ou quatro cabeças de gado na mesma área e
que nos Capôs Gerais até então explorados pasta
malmente uma.
Quarenta anos depois de fundada, Guarapua
chegou, por um momento, a disputar com Curitiba
Paranaguá a primazia de ser escolhida Capital da jove
Província do Paraná. A aristocracia campe
guarapuavana granjeou no Império galardões de nobre
e tornou-se durante a Primeira República uma das vig
mestras da feliz Oligarquia que durante décad
monopolizou a política do Estado. A elite guarapuava
possuía automóvel, integrava o quadro social do Clu
Curitibano, freqüentava o Rio de Janeiro e Paris
graduava seus varões nas faculdades.
Os Caingangues expulsos dos camp
embrenharam-se na imensidão dos pinhais contínuos q
se estendiam para o noroeste e da inextricável ma
latifoliada do vale do rio Ivaí. Eram dezenas de léguas d
melhores pinhais e ervais do Estado, os pinheir
gigantescos encostados copa com copa.
Na década de 1920 o território indígena já
encontrava cortado por estradas carroçável unindo
cidade de Guarapuava à vila de Pitanga e caminhos
tropa de Pitanga até Campo do Mourão e até o
Corumbataí. Em Pitanga e ao longo da estrada algum
casas de negócio serviam aguardente e comerciavam co
índios trocando mercadorias de fora por “gêneros do Paí
entre os quais alguma erva mate.
23
Os índios moravam, entretanto, retirados, em O Cacique Pinheiro
dezenas de toldos afastados da estrada e distantes uns
dos outros. Cada toldo reunia sob o mesmo teto vinte a e a paca na toca
trinta famílias. A habitação coletiva era ampla com cinco
ou seis metros de altura com base retangular. A cobertura Meu pai, Eugênio Theodoro Barthelmess era e
era de folhas de palmeiras jerivá que pendiam até o chão 1920 assíduo em Guarapuava, onde desvencilhava n
servindo assim de telhado e de parede e dando ao cartórios os meandros das relações genealógicas e
conjunto uma feição ogival como de uma rústica nave labirintos das sucessões hereditárias cujo conhecimen
gótica. lhe era necessário para promover, como depois promove
Já eram católicos e alguns falavam português, mas a demarcação e divisão judicial na Justiça Federal
continuavam carentes de tudo. Apesar do frio andavam gleba denominada Fazenda da Sociedade situada no Va
geralmente nus - ou quase nus, portando apenas, para do Ivaí a qual com seus oito mil e tantos hectares abrang
resguardar o decoro, um escasso xiripá. ambas as margens do rio principiando, a montante,
Mas as velhas tensões não estavam mortas. Os Cachoeira de Baixo onde confinava com os lotes da anti
índios continuavam a nutrir uma convicção mítica de que Colônia Thereza, hoje Vila de Teresa Cristina
lhes pertencia de direito toda a área da qual haviam sido terminando na foz do rio Belo, onde encontrava a Colôn
desalojados, enquanto os brancos, material e Velha.
politicamente fortes como nunca, voltavam a sentir sede As pesquisas demandavam também freqüent
de expansão. Ainda mais que as terras de mato, antes idas a Curitiba. Viajando certa feita na diligência
relegadas, começavam a ter valor com a interiorização da Guarapuava a Curitiba sentou-se a seu lado o Caciq
colonização imigrante e com a aproximação da frente “Coronel” Pinheiro.
pioneira safrista que depois de esgotar a região do O cacique era homem versado e alegava poss
Açungui saltou para as áreas florestais do Interior onde em Diploma que o reconhecia como “General” de todos
passou a abrir extensas roças de milho e a praticar a Caingangues.
engorda de milhares e milhares de porcos destinados à - Vou a Curitiba falar com o Presidente do Esta
produção de gordura para o insaciável mercado sobre a demarcação do Território dos Índios. Na verda
consumidor do estado de São Paulo que vivia naquele todos os campos de Guarapuava pertencem aos índio
momento o auge da opulência da monocultura cafeeira. Os velhos que sabem das coisas antigas ensinam pa
Para não falar da valorização do próprio pinho que seus filhos e estes para os filhos deles que no começo n
viria a ser vinte anos mais tarde a riqueza mestra do existia o campo. O índio pôs fogo no mato e formou-
Estado. uma clareira. Foi ali que começou o campo. Queima-se
campo de novo todos os anos, dão o campo cresce e
mato diminui porque o fogo incendeia o mato. O campo
do índio porque o índio fez o campo, o senh
compreende?

25
- Os guarapuavanos são os índios. Os outros são O Cacique Paulino
os portugue-Piquiri. A demarcação precisa respeitar isto
para o índio poder ficar sossegado ao menos dentro do e a Justiça Indígena
pinhal. Mas o pinhal o índio não entrega de jeito nenhum.
Sem o pinhão e a erva mate meu povo morre de fome. Se Um belo dia a Nação Caingangue fechou su
querem briga vão ter briga. Nos limpos o branco ganha do fronteiras.
índio mas no mato fechado o índio ganha de branco. No vale do Ivaí a comunicação se fazia toda por v
Ninguém pode com o índio dentro do mato. fluvial, em canoas. “Os endereços eram fluviais
- Mas veja o senhor: índio não tem metralhadora, fluvionáuticos / Casaram-se no Estirão Comprido / nasc
não tem canhão não tem aviação. no Estirão do Nhozinho / (era de Nhozinho Batista)” d
- Estas coisas modernas só funcionam em lugar meu Ivaí, Saga e enda. O referido Nhozinho Batista e
limpo. Índio se esconde atrás do pinheiro, índio se abraça um dos antigos quinhoeiros da Fazenda da Sociedade
no tronco e o avião não enxerga o índio. quem meu pai adquiriu a gleba na Costa do Ivaí, on
- E se a demarcação demorar mais do que o senhor morávamos, a meia distância entre Teresa Cristina e
espera? Colônia Velha.
- Enquanto ninguém se meter no pinhal o índio fica Soube-se da atitude dos índios pelos canoeiros q
lá parado comendo pinhão e matando paca na toca. remontavam o rio:
- A indiada fechou a passagem, abaixo da Colôn
Velha, na cachoeira do Pedrinho. Está montando guarda
dia e noite. Ninguém entra no território dos índio
ninguém sai. Não explicam nada:
- Não passa. Não passa e pronto.
- Que será?
- Nunca se sabe...
Oito dias depois levantaram o cerco. Sumiram-
como tinham aparecido.
Achou-se depois, rio abaixo, encalhado numa pra
de pedregulho, o corpo de um índio decapitado.
Quem será, quem não será? Os índios “não sabia
de nada”. Também nada sabiam do paradeiro do Caciq
Pinheiro.
O Cacique “Capitão” Paulino Arakxó assumiu
reassumiu a chefia geral. Era iletrado, mas astut
Decalquei dele o personagem Caicá do conto “Justi
Indígena” que escrevi quando eu tinha 15 anos e que
ultimamente publicado no final dos Contos Mágicos. Cai
27
significa “irmão mais velho” segundo eu tinha aprendido O Cacique Pinheiro começou a fazer muita fa
nas “Atualidades Indígenas” do sertanista Telêmaco Borba com sua diplomacia certamente um tanto sonhadora, m
publicadas em 1908 e que na época (1937) eu acabava de que, de qualquer modo, estava conseguindo retardar
descobrir. pior.
O conto está visivelmente romantizado, mas tem No ano seguinte quem estivesse em Guarapua
fundo verdadeiro: num engenho de aguardente, Ivaí poderia escutar alto e bem som nas conversas q
abaixo, ocorreu realmente uma briga entre sertanejos e rolavam animadamente no Cartório Alexandre Clèv
índios, todos bêbados, da qual resultou haverem dois observações como esta:
jovens brancos atirado e morto dois jovens índios depois - Este ano não deu quase pinhão. Os índios
do que, a conselho do dono do engenho, se entregaram estão passando fome. Logo vão atacar nosso gado
ao Inspetor de Quarteirão da Colônia Velha que os campo e daí teremos o motivo para partir para cima deles
prendeu em nome da Lei e os manteve presos. Não
demorou apareceu o Cacique Paulino em pessoa com
uma turba de índios querendo que se lhe entregassem os
presos para que os justiçasse, sem o que poria fogo na
casa. negociou-se um acordo segundo o qual os réus
seriam conduzidos escoltados a Guarapuava para serem
ali julgados na forma da Lei brasileira o que o cacique
solertemente aceitou desde que os presos seguissem
amarrados sobre suas montarias e que houvesse também
índios na escolta, o que tudo foi cumprido. Mas organizou
uma tocaia que surpreendeu a comitiva em meio da mata
abatendo os prisioneiros com uma saraivada de balas.
Estava consumada a Justiça Indígena.
O tema interessou-me na ocasião por seu lado
aparentemente paradoxal, uma situação de choque
ideológico de duas culturas, cada uma fiel a seus próprios
juízos de valor, querendo fazer valer seus próprios
procedimentos para fazer Justiça.
O caso não suscitou desdobramentos imediatos e
teve até certo sabor de empate técnico porque o Cacique
teve q seu favor o fato de ter executado sua tocaia com
precisão cirúrgica sem tingir os brancos da escolta um dos
quais o próprio Inspetor de Quarteirão. Mas o clima ficou,
de todo modo, mais pesado.
29
O braço comprido dos “obrageros” O rio Paraná ficava afastado da cidade
Guarapuava, embora no mapa o Município des
Havia na região, ao lado dos fazendeiros e dos abrangesse suas barrancas mas os ervais que
índios, um terceiro poder: eram os capangas dos obrageros exploravam estavam a meio caminho o q
obrageros que extraíam mate e madeira para exportação estimulava a fuga da mão de obra, em regra paragua
via rio Paraná. Eram empresários localmente todo- que ali era mantida em regime de servidão.
poderosos que tinham seus próprios portos no grande rio e No interior dos campos de Guarapuava não hav
que abriam por dentro das terras devolutas da floresta cercas, meu pai cansou de viajar dias e dias a cava
centenas de quilômetros de trilhas até os ervais nativos cruzando de fazenda em fazenda e de um ponto em dian
que na realidade se situavam em pleno Planalto, nos nem sequer trilha havia. Seguia-se a rumo:
atuais municípios de Guaraniaçu, Campo Bonito, Corbélia, - Está vendo aquele pinheiro sem galho. ao la
Iguatu, Anahí, Altamira do Paraná e Palmital dos Trinca, daqueles outros três pinheiros? Pois siga bem naque
Ubiratã e Campina da Lagoa. Uma terça parte da erva rumo.
mate exportada da década de 1920 seguia pelo rio Num ermo daqueles avistou meu pai uma famí
Paraná. inteira de paraguaios a pé, em fila indiana, só eles e Deu
O Conjunto dos obrages, que assim se chamavam entre o campo e o céu. Parou o cavalo e esperou q
suas empresas, formava - juntamente com a Companhia chegassem.
Mate Laranjeira cujos principais ervais se situavam no hoje - Aonde vão? perguntou.
Mato Grosso do Sul mas que mantinha a navegação a Responderam num castelhano arrevesado q
vapor tanto acima quanto abaixo das Sete Quedas e uma viajavam a rumo e perguntaram, por sua vez, pelo rum
estrada de ferro contornando ditas quedas - um extenso exato em que ficava Guarapuava. Prestaram imen
Império comercial que, dado seu isolamento dos centros atenção. Depois perguntaram em que rumo fica
de decisão brasileiros, funcionava sob alguns aspectos Laranjeiras do Sul, e seguiram firmes na direção
como se fosse um Estado independente tanto que anos bissetriz entre os dois rumos mostrados, para passare
mais tarde chegou a conceder soberanamente asilo e bem no meio, entre uma e outra destas localidades. É q
guarida a um Presidente deposto da vizinha República do em ambas havia capangas do espanhol Alica e do paren
Paraguai, à revelia do Governo Vargas que até então tudo e fac totum dele por nome Santamaría tido como cruel
tolerava mas que, sentindo-se desafiado, cobrou caro despótico, capangas estes encarregados de desestimu
desmantelando na base da ocupação pela tropa aero- as evasões mediante punição exemplar dos fugitiv
transportada todo aquele vasto enclave e aproveitou o porventura avistados.
barulho para subtrair ao Estado do Paraná a quarta parte Ditos capangas eram geralmente homens branc
de seu território para constituir um território federal com de fala espanhola. Na cidade de Guarapuava costumava
sede em Laranjeiras do Sul o que tanto trabalho deu aos parar em pequenos grupos nas vendas e nos bares m
paranaenses para reverter. sempre de boca calada.

31
Eram temidos. Quando certa feita apareceram em
número excessivo a sociedade local apavorou-se com
boatos sobre algum iminente ataque do Alica à própria
Cidade o que motivou a evacuação de mulheres e
crianças rumo às fazendas. Mas no geral sua permanência
estava legalizada por alguns serviços que este ou aquele
importante fazendeiro lhes confiava quando não queria ou
não podia usar neles seu próprio pessoal de segurança.
Todos os ingredientes estavam, assim, presentes
na região. Só faltava acender o estopim para desencadear
o grande massacre - III -

GUERRA,
BOATO COMO TERRA

33
Irrompe a refrega
Mil novecentos e vinte e três foi um ano tenso da
os ecos da revolução tenentista do ano anterior que visa
a modernização do País e que teve como episód
emblemático a resistência dos Dezoito do Forte
Copacabana, entre eles o mais tarde Brigadeiro do
Eduardo Gomes, até hoje um mito para muitos brasileiro
No próprio ano de 1923, para que este nada ficasse
dever, lavrava no Rio Grande do Sul uma revolução
moda antiga: maragatos versus pica-paus.
Arthur Bernardes governava o Brasil em Estado
Sítio reiteradamente reeditado durante todo o s
mandato. No Paraná pica-paus e maragatos tinha
conseguido fazer causa comum e fruíam o Pod
conjuntamente. Mas reinava certo estado de vigília, um
imponderável intuição de que aqueles poderiam ser, pa
o Regime, os penúltimos dias de Pompéia.

- “Será a Revolução?” pergunta em sua prime


página em 9 de abril de 1923 o DIÁRIO DA TARDE d
Curitiba “a folha de maior circulação no Paraná”
completa: “Guarapuava está ameaçada por índios”.
Não era a Revolução. Não ainda, a segun
revolução tenentista só estouraria em 1924, em S
Paulo, chegaria a ocupar via rio Paraná o oes
paranaense, a marchar rumo a Guarapuava e a s

35
destroçada pela tropa federal a meio caminho, na Serra imigrantes da margem direita do rio Ivaí, notadamente
dos Medeiros, mas geraria em território paranaense o recém fundado Núcleo Colonial Dr. Cândido de Abreu q
ponto de partida da Coluna visionária do tenente gaúcho era a menina dos olhos da opinião pública curitibana q
Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança” que se então adorava os alemães e a Alemanha, como
tornaria figura mitológica para outros tantos brasileiros. E depreende da leitura dos mesmos jornais.
prepararia caminho para a revolução tenentista definitiva, No nível político cuidou o oficialismo estadual
a de 1930. lavar as mãos, mediante passar toda a responsabilida
pelo que viesse a acontecer para a autoridade fede
mais próxima, na pessoa do titular da Inspetoria dos Índi
no Paraná e Santa Catarina., que passou a s
subitamente atacado em Curitiba pelo jornal ofic

Revoluções à parte o jornal rival, a GAZETA DO


POVO, “o maior diário paranaense” já tinha dado o furo
antes, publicando já em 31 de março, também em primeira
página, a notícia da possibilidade de “Um ataque de
índios”, mas no corpo da notícia mostrava-se incrédulo A REPUBLICA, enquanto no Rio de Janeiro contra e
diante do insólito: “Hoje, quasi todos domesticados (sic), passou a verberar na Câmara Federal a banca
trazidos à civilização e à obediência às leis pela obra paranaense.
ingente do Serviço de Inspeção dos Índios mantido pelo A GAZETA DO POVO passa então a aderir
governo da União, os ferozes selvagens tornaram-se
mudança do local da crise e revê também a opinião quan
obedientes trabalhadores integrando-se na civilização ao antes elogiado órgão federal indigenista, passando
brasileira integralmente”. publicar em 4 de março em primeira página “O caso do
Ambas as versões causaram mal-estar ao Poder índios do Ivahy. O serviço de Proteção aos Selvicol
estadual que sabia muito bem o que estava para
estará perseguindo os Caincangs?”
acontecer e partiu para a ação em três níveis diferentes. A autoridade federal atacada exerceu o direito leg
No plano prático tratou deslocar prontamente tropa
de resposta o que ensejou a publicação em 6 de ab
estadual para Guarapuava para dar cobertura militar e relegada a duas páginas internas, da maté
logístico e resguardo institucional ao iminente mutirão
“O sr. Inspector da Protecção aos Selvicolas escrev
para-militar orquestrado por interesses locais decididos a sua defesa. Como s. s. explica os factos” sendo que
esmagar a nação caingangue pela força das armas. próprio jornal se encarregou no dia 9 da tréplica “O cas
Enquanto isto cuidou de sensibilizar a opinião pública dos índios do Ivahy. Urge uma devassa na Inspector
mediante fazer crer que se tratava de defender as colônias
dos Índios” e volta à carga contra ele no dia 11 com “
37
caso dos índios do Ivahy” para refutar o teor de uma increpações, soluços dos que em retira
carta publicada na véspera pelo Inspetor no DIÁRIO DA desordenada, passavam famílias inteiras q
TARDE. abandonavam seus lares e seguiam sem mesm
Dessa data em diante termina o obscurecimento saber para onde. Mulheres arrastavam crianç
quanto ao local dos eventos. Sai definitivamente das pelas mãos, e estas em voz inocente indagava
manchetes curitibanas o nome “Ivahy” e rreaparece o de para onde as levavam. Corriam autos regu
Guarapuava que depois vai sendo, por sua vez, eclipsado gitando de pessoas em debandada, seguin
pelo de Pitanga, o palco real dos acontecimentos. O para Prudentópolis, Ponta Grossa e outros em v
topônimo Pitanga era usado no masculina: “o” Pitanga, a e vem contínuo..... Os próprios doentes deixava
Serra “do” Pitanga. Ou simplesmente Serra Pitanga. o leito de dor e sahiam tomando destino ignora
Os índios continuam em cartaz na GAZETA dos para todos os lados para fora da cidade.” (DIÁR
dias 16, 22, 23, 27 e 28 de abril de 1923, e no DIÁRIO DA DA TARDE 17/4/1923, 1ª página).
TARDE de 11, 13, 17 e 19 de abril bem como 7 e 15 de No dia seguinte, o grande alívio: um reservis
maio do mesmo ano. comandando seis dezenas de valentes teria derrotado
Os dois jornais sendo rivais bebem, contudo da atacantes na Palmeirinha em campo raso e perseguind
mesma água: não há correspondentes de guerra no local
os mato a dentro. Terceiro dia, o desmentido: O Tenen
da refrega. As notícias são todas captadas na Cidade de Raposo inspeciona o local e verifica que nunca houve
Guarapuava e de relatórios das próprias autoridades batalha nem houvera índios ali concentrados.
protetoras da repressão. Outro patriota que tivera saqueada uma casa
Guarapuava está para sucumbir aos boatos nela negócios, enche-se de indignação cívica e arma duzent
mesma gerados ou provindos do Pitanga. A cidade inventa
paisanos para atacar os índios em seus próprios reduto
heróis e anti-heróis. Na noite de 16 de abril ninguém
Monta-se um Feindbild, uma imagem apavorante
dorme em Guarapuava --“Hannibale ante portas!”,
inimigo; os índios são catalogados como bandoleiro
concentradas a apenas vinte quilômetros dali, no local sediciosos, canibais que degolam grávidas e extraem-lh
Palmeirinha, as hostes inimigas formadas de milhares de o facão o fruto do ventre e picam cadáveres “como
índios dali e de fora estariam prontas para subir contra a fosse para guisado”. Noticia-se também associação d
Cidade.. índios com ciganos, com aventureiros disfarçados e
“Hontem à noite a cidade estava em verdadeiro
Padres, com videntes e fanáticos adeptos do “Monge”
delírio de pavor..... o pavor invadiu todos os lares
Contestado e dirigidos por alguns facínoras notórios.
e em quase todas as casas havia aprestos para
fuga. A cidade envolvida em negra escuridão, pois Em meiko à boataria os próprios mercenári
a luz está interrompida, em trevas aterrorizava argentinos e paraguaios provenientes dos obrage
ainda mais há um mês as ruas lamacentas, contratados para dar cabo dos caingangues, acaba
desenvolvendo-se então cenas comovedoras. confundidos com estes
Ouvia-se em toda a parte lamentações,
39
“Os índios foram os agredidos, bem, há dias reuniram-se na sua pequena Igreja para d
expansão a seus sentimentos religiosos quando fora
não os agressores” inopinadamente atacados por um grupo armado
moradores do local, na sua maioria allemães, em cu
Lentamente a poeira se assenta e a imprensa ataque perderam a vida diversos índios e um pad
começa a noticiar que os padres que estão ao lado dos que oficiava. Em represália entôo os índios detonara
índios são autênticos e que os índios “foram os agredidos, suas armas sem contudo occasionar mortes.
não os agressores”. Depois dessas ocurrencias o delegado de Políc
Eis, para exemplo, o que passa a publicar em 23 de de Serra Pitanga (Barra Preta) Dulcidio Caldeira organiz
abril a GAZETA DO POVO. um bem armado grupo para ir ao local restabelecer
ordem alterada, e qual não foi o espanto dos morador
“As ocorrências do Pitanga. daquella localidade (índios na maioria) quando viram
APPARECE A VERDADE E JÁ AGORA SE SABE soberano mirim (Caldeira) fuzilando índios a torto e
QUE OS ÍNDIOS FORAM OS AGREDIDOS E NÃO OS direito, queimando suas propriedades e rebanhando
AGRESSORES animais!
E tudo sem a menor cerimônia.....
“Estão chegando agora os depoimentos das Pela publicação destas fica-vos muito grato.....
pessoas que testemunharam os acontecimentos do Dulcido Costa Pinto
Pitanga. Ainda ontem publicamos uma correspondên- Ypiranga 19-4-23
cia daquella zona onde se afirma que os índios
estavam rezando quando foram atacados. Cinco dias depois, a 28 de abril na mesma Gazet
“Hoje offerecemos ao juízo do público e como à guisa de desagravo, uma louvação a algumas persona
subsídios ao inquérito das autoridades esta carta que dades:
recebemos.
“Ilmo Sr. Redactor da GAZETA DO POVO - ..... “Felizmente não se consumou uma verdade
Curitiba. carnificina por reagirem os corajosos e humanitário
“Sendo o vosso jornal o paladino dos opprimidos cidadãos Pedro Mendes, Dulcidio Caldeira, Adriano Cai
peço-vos agasalho para os factos que vou narrar e para os e outros que defendendo suas propriedade reuniram
quais a justiça se faz mister. defenderam também famílias de outros habitantes.”
“Tendo chegado hoje da Serra Pitanga onde fui a
serviço de minha profissão e como já obtive informações Mas já não teve a mesma boa imprensa. O texto
exatas dos factos ultimamente ocorridos..... Existe em saiu sob a rubrica “Á PEDIDOS”, sem o endosso, portant
Serra Pitanga (Barra Preta) um toldo de índios que vivem da Redação do jornal.
honestamente de seu trabalho e, como todos os homens
que tem religião, rendem o seu culto ao nosso Deus. Pois
41
A novela da demarcação funcionário local da Inspetoria de Proteção aos Índios, p
nome Laurindo Borges os repreendeu e intimou a
A falta da demarcação de suas terras colocava os dispersarem. O Inspetor do Serviço de Serviço d
índios à mercê de intrusos de todo gênero, do avanço das Proteção aos Índios havia mencionado o nome des
roças dos grandes safristas e, principalmente, da cobiça funcionário em sua polêmica defesa na impren
dos poderosos detentores de uns antigos títulos de curitibana dizendo havê-lo incumbido de tal providênc
domínio pleno, conhecidos na época, segundo os mesmos “como em casos anteriores” e também desta vez os índi
jornais, por “bedengós” cujo teor muitas vezes dúbio dava se dispersaram pacificamente como me foi relatado p
ensejo às mais elásticas interpretações. um colono que de tudo foi testemunha ocular.
O Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios a A cultura indígena tem peculiaridades que é preci
entrou como Pilatos no Credo, num enredo decorrente de compreender para se poder lidar com ela. Meu avô, pai d
uma incoerência estrutural do federalismo brasileiro. As meu pai, contratou certa feita com um grupo de cin
terras dos índios eram da União, a quem cabia demarca- caingangues a feitura de uma roça em terreno
las, mas cabia aos Estados fixar mediante decreto, a propriedade dele. Os índios roçaram a foice todo o su
extensão e localização das áreas a demarcar. bosque, com exemplar capricho e radicalidade e e
O libelo contra o funcionário federal acusava-o de seguida desapareceram sem explicação. Voltaram o
não ter providenciado em tempo a demarcação das terras dias depois, inteiramente nus em meio à maior chuva
indígenas, mas esta era, na realidade, impossibilitada pelo trovoada, para derrubar a machado as árvores grand
próprio Estado cujos sucessivos Decretos definiam e áreas que tinham ficado, as quais, segundo eles, com o peso
e localizações cada vez diferentes e todas sempre água nas copas caem mais facilmente. Terminada a tare
incompatíveis com a situação de facto o que motivava uma desapareceram de vez, sem virem apanhar o pagamen
interminável romaria dos Caciques a Curitiba e obrigava o combinado.
Inspetor a um sempre repetido ir e vir entre a Capital e os Um sertanejo vizinho convidou um índio, de que
toldos em busca de algum tipo de consenso nunca se tornara amigo, para uma caçada de tateto
alcançado. Conseguiram encurralar a vara toda numa furna, onde
Enquanto isto a Comissão estadual do povoamento sufocaram com fumaça. Os tatetos escapavam de um e
do Solo decidiu localizar em território de ocupação um; o sertanejo atirava, o índio, de facão em punho, cor
indígena imemorial uma comunidade de imigrantes recém atrás, acabava matar e arrastava a presa para o lado
egressos da Primeira Guerra Mundial muitos deles ainda uma barroca, enquanto o sertanejo já alvejava outro
portadores das trágicas e inevitáveis psicoses de guerra. mais outro. Mataram treze, mas quando o sertanejo
Resultou que os estrangeiros ao avistarem o primeiro índio alertou não encontrou tateto algum. Apenas entreviu
seminu organizaram patrulhas armadas e cavaram mata fechada a figura de outro índio que passa
trincheiras como se ainda estivessem diante de Verdun. silenciosamente para um terceiro índio o último tate
Os índios entenderam que os alemães queriam briga e Conseguiu a duras penas resgatar este último pa
agruparam-se, por sua vez, nas proximidades até que o desencanto do restante da fila dos índios que se estend
43
barroca abaixo e que o convidavam para participar do
grande banquete que haveria no toldo.
Doutra feita os índios plantaram roça em seu
próprio território, venderam a mesma roça repetidamente a
vários compradores e depois foram eles mesmos colhe-la
em ponto de milho verde estranhando que os diversos
compradores não estivessem ali para fazerem o mesmo.
Comportamentos interessantes para uma tese
acadêmica de antropologia cultural, mas que na cabeça de
algum imigrante despreparado não podia fazer qualquer
sentido. - IV -
Daí os freqüentes sustos e mal-entendidos, mas
não há registro de violência entre índios e brancos nos
núcleo de colonização, notadamente Cândido de Abreu.
Toda a confrontação armada ocorreu muito longe dali, do
EM MEIO AOS VENCIDOS
outro lado do rio, no Planalto de Guarapuava contrapondo
diretamente aos índios os poderosos interesses da
aristocracia campeira que dominava a política.
A GAZETA DO POVO noticiou, como foi visto
acima, a participação de imigrantes numa matança de
índios num toldo em Serra Pitanga. Não é implausível que
alguns mais desvairados trazendo ainda nos pulmões a
fumaça das hecatombes da Guerra Mundial recente
possam ter sido recrutados para participar da chacina em
íntima parceria com os mais grupos genocidas que não
tinham porque desprezar apoio potencialmente tão
excelente

45
Rio abaixo

Tanto não ocorreu na ocasião na margem direita d


Ivaí nenhuma operação bélica que foi aí que
Caingangues destroçados vieram refugiar-se.
Toda a chacina durou menos de três semanas, e
Estirão do Nhozinho, onde morávamos, minha famíl
isolada pela temporada de chuva não sabia de nada tan
que, quando as águas baixaram, meu pai e minha m
desceram o rio de canoa, na maior inocência, para retrib
visita social que meses antes fizera a nossa casa o cas
Laurindo Borges, sendo ele por coincidência o mesm
funcionário da Inspetoria de Proteção que dissolv
pacificamente a concentração dos índios quando do m
entendido de Cândido de Abreu.
Chegados ao porto dos Borges nada de diferen
notaram, mas ao entrarem na casa depararam com vári
dezenas de armas de fogo baratas quase todas mu
antiquadas. Ninguém fez perguntas, mas o dono da cas
depois da primeira rodada de chimarrão tomou a iniciativ
- Venha o senhor comigo ver uma coisa lá fora..
Numa capoeira muita rala que havia logo atrás
casa avistou-se um braseiro no chão, o fogo mantido be
baixo para não fazer clarão nem fumaça. E em tor
acocorada uma vintena de índios, homens, mulheres
crianças, no mais absoluto silêncio como se estivesse
paralisados pelo terror; nem mesmo as crianças de co
emitiam a menor pio. Logo adiante havia outro brasile
igual, e mais outro e mais outro e outro.
- Cruzaram o rio durante a noite. São pouco ma
de cem. Foi tudo o que sobrou de toda aquela imen
indiada da Serra Pitanga depois que o peãozada d
fazendas caiu em cima deles com a Polícia por detrás e
que foi pior: mais a bandidagem paraguaia, bem armad
47
ajuntada pelo pessoal que trabalha pro Alica. A ordem era
pegar o último. Sem índio não precisava mais a
Demarcação. As panelinhas
- O que é que a turma do Alica tem a ver com isto
tudo? quis meu pai saber. O tempo passou. Muitos daqueles índios nun
- Parece que está correndo muito dinheiro. mais quiseram voltar para a margem esquerda do rio. Um
Depois lá dentro, seu Laurindo explicou como tudo índia cesteira que permaneceu para sempre na reserva
começara. Faxinal de Catanduvas contou a meu pai como foi q
- Começou na Palmeirinha. É ano de fome, a fome saquearam lá na Pitanga o toldo dela).
tira o juízo Quatro índios famintos inventaram saquear a - Chegaram atirando. Muita gente atirando. Eu
venda onde costumavam beber cachaça.houve reação, quem estava junto e mandava atirar. Nós saímos corren
com morte dos dois lados. Violência como acontece em para salvar a vida e nos escondemos nas barrocas m
toda parte neste sertão. Se algum branco tivesse feito depois que serenou eu voltei para pegar nossas pan
aquilo seria crime comum. Quando é branco contra branco linhas. Senão como a gente ia cozinhar, pensei. O tol
diz-se que foi crime. Quando índio mata índio a gente estava queimado e eles tinham levado minhas panelinha
muitas vezes nem fica sabendo. Mas quando é índio e Eu sei quem levou as minhas panelinhas. O mesmo q
branco daí de repente vira a guerra de uma raça contra mandava atirar: (E disse a meu pai o nome do figurão q
outra. ficou com as panelinhas dela).
Minha mãe indagou da dona da casa se naquele Foi em lembrança dessa índia que eu fiz aque
momento estavam correndo perigo. poema A Dança das Panelinhas que publiquei no “Iva
Minha mãe indagou da dona da casa se naquele Saga e Lenda”.
momento estavam correndo perigo.
- O Laurindo acha que o perigo maior já passou.
A DANÇA DAS PANELINHAS

Foi nos longes anos vinte


que se deu esta história
(Era eu mui pequeno
mas já tinha boa memória)

tem o rio da Borboleta


que roncando desce a Serra
mora índio nesse rio
caingangue bom de guerra

49
branco veio pra tirar
uma cisma da indiada
trouxe gente paraguaia
trouxe gente bem armada

terminada a refrega
caingangue retirou-se
perdeu tudo e muitas vidas
(as panelas sei quem trouxe)

gente muito fazendeira


mas morando na cidade
(pra calar a minha boca
tenho já bastante idade)

ralas quinze panelinhas


de fajuta fundição
todas pretas de fuligem
e de sica de pinhão

minha flauta cai ingá as panelas


lauta lauta e cai ingangue elas elas
de taquara no massacre são caveiras
quara quara do caigangue eiras eiras
as panelas as panelas a dançar
magricelas sei quem trouxe a dançar
a dançar as panelas assombradas
a dançar trouxe a gangue ao luar

51
caveirangue
caveirungue angue angue
ungue úngüe AVE-MARIA

água que verte


água que rola
A dó que não dava...
pedra que roda
pedra que amola
Outra vez passou-se tempo e um dia veio ter
pedra que afina
conosco alguém que tinha participado ativamente da
pedra que afia
carnificina e resolveu contar, como se fosse para
defender-se de si mesmo, como tinha sido duro para ele,
pela memina
homem de tanto sentimento, fazer aquilo, mormente com
que era franzina
as crianças. Daí fiz logo dois poemas em vez de um, fiz
primeiro “Sentimental”, repetindo o que o homem dissera
pela fé dela
e depois “Ave-Maria” lembrando a religiosidade da
que era singela
menina.
Pedra que afina
SENTIMENTAL
pedra que afia
argu’a das menininha
Ora pro nobis
sabia falá em brasilêro
Ave-Maria
pedia de joêio
me dêxa vivê

pedia
por Nossa Senhora
Santíssima

a dó que não dava


no mata elas
a dó que não dava

52 53
-V-

HOLOCAUSTO
E
RESSURGIMENTO

54 55
O choque de retorno dissolver os clãs ao menor sinal de epidemia em
brenhando-se na mata distante em pequenos grupos ou
O destroçamento da nação da nação Caingangue até como indivíduos isolados.
e sua repentina substituição por uma colonização Quem fez fé na medicina dos brancos teve triste
compacta teve um impacto ambiental de conseqüências destino porque as autoridades sanitárias entenderam a
imediatas e terríveis. princípio que devia tratar-se de mais algum surto da
- Nunca houve malária por aqui antes. Foram os gripe espanhola que na ocasião grassava em todo o
alemães que trouxeram a Malária - asseveraram os mundo e quando finalmente se flagraram muitos
sertanejos da região. preciosos meses se haviam perdido e as vítimas fatais
Mas como, se não há Malária na Alemanha? se haviam acumulado catastroficamente.
Matutando chega-se lá. O vetor da Malária, o A partir de então a malária permaneceu endêmica
mosquito Anófeles, a que no mato chamamos mosquito- em toda a Região até a década de 1950 quando chegou
prego por causa da posição peculiar que assume quando ao Brasil o controle do mosquito mediante pulverização
pousa no teto ou na parede, tem restrita autonomia de domiciliar com inseticida, técnica desenvolvida na dé
vôo. Mosquitos eram comuns no vale do Ivaí, mas não cada de 1940 pelos americanos durante a guerra do
estavam infectados pelo microorganismo Plasmódio Pacífico e que se mostrou capaz de reduzir a quantidade
causador da Malária por falta de existir em seu pequeno de mosquitos a um nível inferior ao patamar mínimo
raio de alcance indivíduo portador da doença. necessário à infestação.
O território indígena de baixíssima densidade
demográfica com os toldos separados dezenas de
quilômetros uns dos outros funcionava como zona
tampão evitando que a doença, endêmica no Baixo Ivaí,
pudesse remonar o rio. Uma vez adensada a população
pela irrefletida implantação da Colônia alemã, picotada
em centenas de lotes minúsculos cada qual ocupado por
uma família de imigrantes, a barreira foi rompida e a
moléstia conseguiu saltar de casa em casa e atingir
indiferentemente imigrantes, sertanejos e os próprios
índios refugiados, agora compactamente aldeados na
escassa Reserva remanescente no Faxinal de Ca-
tanduvas.
O extermínio dos índios só não foi total porque
muitos deles retornaram ao costume ancestral de

56 57
A hecatombe entre os imigrantes aclimação caíram doentes quase que
todos de uma só vez. Ajunte-se a isto a
Os colonos, despreparados para seguir o exemplo escassez e a falta de variedade da
milenar dos indígenas, permaneceram em seus lares e alimentação, a maioria não dispunha
ali mesmo sucumbiram à febre, à fome e ao abandono. durante longos meses, de qualque
Um pioneiro radicado na região do vale do Ivaí espécie de gordura para preparar a
desde o limiar do século tudo relatou em cores vivas e comida. O milho, o feijão, as ervilhas, etc
fortes numa série de cartas dirigidas à irmã. Mme. de que haviam madurado muito bem e
Boé, que permanecera na Europa. São as “Cartas a prometiam excelente safra não puderam
Bruxelas” cujos originais me foram gentilmente cedidos ser colhidos por estarem seus
pelos herdeiros da destinatária e que serviram de eixo da proprietários doentes de modo que estes
narrativa sobre a qual urdi a epopéia em versos “Ivahy, vieram a sofrer muita fome.
Saga e Lenda, Vida e Lida”. “Mais da metade veio a morrer
Os originais das cartas estão em francês. famílias inteiras morreram sem serem
Transcrevi ali na língua originária aquela que se refere enterradas durante semanas por estarem
especificamente à hecatombe ocorrida na Colônia os vizinhos igualmente doentes. Muitos
Cândido de Abreu, encontrando-se o texto na página 124 morreram de fome cercados de suas
da Edição Especial publicada com Apoio dos Municípios lavouras, não tendo forças para socorrer
do Vale do Ivaí, única que no presente momento não se se; por vezes só morriam os pais
acha esgotada. deixando sem socorro 5 ou 6 crianças em
Agora vou dar aqui a tradução: tenra idade, tudo isto foi terrível.”

“O Governo brasileiro criou há cerca No “Ivahy Saga e Lenda” estilizei a tradução da


de três anos, Ivaí abaixo, uma Colônia carta nos versos que passo a transcrever agora.
bem defronte ao povoado indígena Um deles verti-o, em respeito aos mortos, para a
situado na margem direita do rio, língua deles. O sentido em nossa língua consta no bloco
chamada ‘Cândido de Abreu’. Em pouco ao pé do cruzeiro.
tempo se estabeleceram aí mais de Por fim compus, em sinal de contrição por todo o
quinhentas famílias, em sua maioria mal que foi imposto durante toda essa tenebrosa
alemãs. Já no primeiro ano surgiram os epopéia tanto aos índios quanto aos colonos, o poema
primeiros casos de malária. O segundo “Pranto e Prece” que também ora se segue.
ano foi terrível: os infelizes que já
estavam sofrendo por causa da

58 59
Das famílias
de colonos que Was wird nun?
provieram
d’Alemanha
quantas são
Was nur tun?
que inda restam
passados ralos Grosse Not und bitter Leid
dois anos?
restam vivas jede Hoffnung ist zeronnen
já se entende
que a malária
selbst der Tod
não ceifasse?
que a miséria
não dobrasse dem wir geweiht
que a fome
não matasse? lässt sich Zeit
Com os índios
cara a cara
will nicht kommen
igualmente
perecendo
(ficou um
ao que se conta
num toldo
de muita monta) SORTE IGNARA ASSASSINA
de gente recém chegada
QUE SERÁ DE NÓS AGORA?
sucumbiu
mais de metade MESMO A MORTE NOSSA SINA
O restante no que pôde TANTO TARDA E SE DEMORA
evadiu-se apavorado

60 61
PRANTO E PRECE

DESA PAI
LINHO do Céu
olha este povo
que trouxeste
sete palmos inda hoje de tão longe
é que queres? o trator acha
(e seguido
não te enxergas ao cavar
infeliz? a terra arada tens trazido)

quem te dera o despojo que plantaste


ter ao menos em desalinho
em terra nova
quem rasinho que sobrou nesta terra
te cobrisse da epopéia brasileira
com a terra dessa gente pra brotar
que quiseste européia com viço agreste
qual renovo
com a terra que sonhara
de videira
que tu quis ser feliz

PAI ó PAI
só arrepara
o que este povo
tem penado
na mão nossa

62 63
seus irmãos Lembra-TE
do Bequimão
e de quantos
Tiradentes
geração
por geração
e de todas
as Marias
já vendidas
“com suas crias”
mesmo em público
leilão

E agora
estes outros
que vieram
tão corados
mal dois anos
transcorridos
ei-los mortos
destroçados
em meio ao milagral
dos falhos
nossos projetos
das ocas
nossas promessas
dos falsos
64 65
nossos profetas E a pobre
da indiada
(que estava
aqui primeiro)
cruamente
exterminada
cujo crime
foi nascer
neste chão
que se cobiça

Temos tanto
magoado
Teu querer
singelo e santo
entretanto
nosso pranto
já é tanto
nosso pranto
é a prece
deste povo
que padece
quem nos tem
por seus parceiros
não precisa
outro castigo
(dois castigos não carece)
66 67
Tira o povo
do sufoco
PAI do Céu
Nosso Senhor
dá-nos outro
coração
(um que seja
susceptível
um que sinta
compaixão)

68 69
Mal não há contingentes integraram-se sem dificuldade e om o t
tornaram-se indistinguíveis dos das primeiras levas e da
que sempre dure brasileira em geral.
Despovoada a colônia alemã e dizimados os
Caingangues sobejou terra vazia que aos poucos foi sendo RENASCIDA
ocupada pela etnia hoje ali predominante.
Nossa Senhora teria aparecido em visão, no último Cândido é renascida
quartel do século passado, ao iniciador da colonização bela rica e ativa
polonesa no Brasil oferecendo ao Papa uma terra cercada de com asfalto e luminária
neblinas para que nele o povo polonês espremido na Europa hoje é sede de Comarca
entre Rússia e Prússia pudesse encontrar um novo lar que lhe
oferecesse paz e sossego. Esta terra entre névoas seria o Acabou-se
Estado do Paraná. a mortandade
Depois da Primeira Guerra recrudesceu também o acabou-se
fluxo imigratório eslavo. Na região do Ivaí os poloneses e o pesadelo
ucranianos vieram em massa para as Colônias de Miguel Por Milagre
Calmon, hoje Cidade de Ivaí, para São Roque, para o Areião, do Senhor
para o Erval Grande e o Ervalzinho, hoje Jaciaba e para a a malária
Colônia Apucarana, depois chamada Apucaraninha e foi-se embora
finalmente extinta. Ele deu
O vazio demográfico criado pela mortandade de cabeça boa
alemães e índios vitimados pela Malária após o Massacre da para certo inventor
Serra Pitanga acabou atraindo os descendentes desses inventar
colonos poloneses, hoje garbosos brasileiros, para o sítio da o jeito certo
esvaziada Colônia Cândido de Abreu onde demonstraram de acabar com
uma operosidade tão radical que o antigo Sertão virou lavoura o tal mosquito
de enxada não restando na área bromélia para servir de
berçário de Anófeles o que, ao lado da campanha do controle
do mosquito mediante a pulverização de DDT nas casas (Quem nunca curtiu sua maleita fique for
efetuada na década de 1950, tem conseguido de conter a conversa, pois vou dar meu veredicto:
ameaça de nova epidemia. - Bendito o mata-mosquito que salvou a nossa
Pouco antes da Segunda Guerra veio reforço da matriz que salvou a nossa vida.)
européia. Estabeleceu-se entre Cândido e Três Bicos a nova
Colônia Morska Wola, nome da empresa colonizadora que,
traduzido, quer dizer Onda do Mar. Os novos e grandes
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A origem do Inhambu Aprendi muito na ocasião. Fiquei sabendo, por exemplo
a língua Kaingang se profere por definição em baixo vo
Para encerrar de modo mais ameno seja-me permitido de voz (a própria monitora fala bem mais alto, em portu
reportar-me à Tarde Literária promovida no dia 11 de e que o alfabeto latino não sabe representar todo
novembro de 1994 pela Coordenadoria de Literatura da fonemas do falar indígena. Notei, por exemplo, que tod
Fundação Cultural de Curitiba no átrio da Livraria Dario que aparece no texto latinizado se guturaliza em Kain
Vellozo onde foi apresentada em declamação bilíngüe a lenda para (n)g. Kainh(n)ga(n)g.
caingangue sobre a Origem do Inhambu. Para enriquecer o evento incluiu-se happning al
Eu vizinhara na infância com esses índios nascidos, segundo projeto da escultora Adriane Muller.
como eu, nas barrancas do rio Ivaí. Mas éramos O poema ficou assim:
reciprocamente mudos porque aqueles que conheci não
falavam nossa língua, nem eu a deles. Daí a avidez com que A ORIGEM DO INHAMBU NË VENH KÃME
devorei quando ginasiano, o livro em que Telêmaco Borba
dava voz a meus índios e traduzia-os para mim. Cativou-me a índio grande já fizera
lenda caingangue, por ele coligida, sobre a Origem do todos os bichos da terra
Inhambu: ave indefesa, quase sem cor, de modesto todos os bichos da água
desempenho e fraca aerodinâmica, teria sido o Inhambu todos os bichos do ar
criado por uma menina. Achei que devia amar o Inhambu por (até o galo da serra)
isto, por que feito por uma criança, como criança eu próprio
era. Kainhgág Kanhró tóg
Uma vida depois passei a lenda para versos que Nxén kar han.
saíram naquele Ivahy Saga e Lenda, da Série Textos Grxa kri ke kar
Sempre da Secretaria da Cultura do Estado do Paraná. Goj xkrem ke kar.
Verificando que entre os indígenas, em virtude da kynhn ke kar.
aculturação e das peripécias, a lenda já não era conhecida, Pã nónh kri ke kar ke gé.
inventei que ela devesse traduzir-se de volta para a língua de
origem para ser restituída à cultura a que pertence. Foi nessa gastara toda a massinha
ocasião que conheci a Monitora Gilda Kuitá, indicada pelo e todos os potinhos de tinta
Cacique Pedro Cornélio para efetuar a transliteração de meus estavam de fundo rapado
versos para a língua caingangue.
Na ocasião da Tarde Literária p Átrio da Livraria estava Nén t hn hn jafã
ornamentado com artefatos indígenas cedidos pela Delegacia t tóg t ke m.
Regional da Funai. A apresentação se fez recitando o autor
seus versos em português e declamando a tradutora, após
cada estrofe recitada, a correspondente estrofe traduzida.
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menininha caingangue
andava desconsolada
queria por tudo no mundo
fazer seu bichinho também

kainhagág s fi tóg fy tgt


Fy t nén hyn sór n gé.
Hã k fi tóg fy tgt.

aí achou de repente
uns fiapinhos de fio
fez deles um novelinho
rolou na cinza inda quente
botou dois pés de palito
com dois carvões apagados
pôs-lhe olhos em negrito

k fi tóg vãfe kyky vy génh k


Vé so sigség m, ty rónror he m
Mrnhjé ry kri virr ke m.
ka juryry kasr t ki kafg
Pránh régre nhynhyn ky ti kan
sá ki vinvin.

A menina Renata, filha do Maestro Gerardo


Gorosito, ajoelhada junto à mesa, ocupava-se com
algum labor que o público não podia dis-cernir, até que
ao final da declamação súbito ela se alçou de pé em-
pinando, seguro pelas pernas de palito, um novelo de
barbante que estivera a ajeitar, representando o
inhambuzinho da lenda caingangue.
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