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ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
I CONSELHO FEDERAL

ADVOCACIA CRIMINAL
UMA ESCOLA DE CIDADANIA

Edson Freire O'Dwyer

Palestra proferida na XVIII Conferência


Nacional dos Advogados, promovida pelo
Conselho Federal da OAB, no per.íodo de
11 a 15 de novembro de 2002, na cidade
do Salvador/BA.

Brasília, DF - 2003
©Ordem dos Advogados do Brasil
Conselho Federal, 2003

DIRETORIA:
APRESENTAÇÃO

Rubens Approbato Machado


Presidente Ao ser organizado o Temário da XVIII Conferência Naci­
Roberto Antonio Busato
onal dos Advogados, que se realizou na encantadora terra baiana
Vice-Pres idente
de Salvador, de 11 a 15 DE NOVEMBRO DE 2002, tendo por
Gilberto Gomes
Secretário-Geral tema central definido pelo Conselho Federal da OAB o trinômio
Sérgio Alberto Frazão do Couto "Cidadania, Ética e Estado", deliberou-se que seriam proferi­
Secretário-Geral Adjunto das, em cada um dos três dias de painéis, palestras magnas de
Esdras Dantas de Souza
abertura. No primeiro dia, 12 de novembro, a conferência foi
Diretor Tesoureiro
proferida por um renomeado jurista estrangeiro, professor André
Jean -Arnaud, que discorreu sobre o tema "O D ireito e a.
Globalização". No segundo dia, 13 de novembro, coube a um
Capa: Suse\e Bezerra Miranda jurista brasileiro, fora das terras baianas, permanentemente ho­
menageado pela cultura jurídica internacional, Ministro Evandro
Organização e diagramação: Luiz Carlos Maroclo
Lins e Silva, que falou acerca do tema "Ética, Advocacia e J us­

Tiragem: 2.000 exemplares tiça". Para o dia do encerramento dos painéis, 14 de novembro,
a OAB, homenageando os advogados e juristas da Bahia, sede da
Conferência, convidou para proferir a palestra magna um mestre
da área do direito penal, reconhecido internacionalmente por sua
inteligência, capacidade e dotado de profunda sensibilidade, o
FICHA CATALOGRÁFICA
Professor EDSON FREIRE O'DWYER, a quem coube falar so­
bre "ADVOCACIA CRIMINAL - Uma Escola de cidadania".
O'Dwyer, Edson Freire
Advocacia criminal- uma escola de cidadania / Edson Freire O'Dwyer,

-BrasIlia: OAB, Conselho Federal, 2003. A exposição do Professor Edson O'Dwyer, a par da pro­
24 p.. . fundidade dos conceitos emitidos, foi emocionante. A clareza
dos do Brasil. Conse-
1. Advocacia criminal- Cidadania. I. Ordem dos Advoga
de seus pensamentos, difundidos por uma palavra sensível e apai­
Ih Federal. II. Título.
CDD: 341.415 xonada, levou, em diversos momentos, os presentes às lágrimas.
Sentia-se, em cada palavra, o amor à advocacia, ao ser humano.
Não foi uma conferência: foi um hino de louvor à advocacia e,
em especial, à injustiçada advocacia criminal. Como um dos mais
sentimentais advogados criminalistas do país, se lamentou pelas
injustiças de uma sociedade dirigida pelo chamado "clamor po-
11I1I1I1I1I1I1I1I........Ii....iI....�......���..��....��__ ������·�==·� . . .; . . ." . ',. .. .

p
pular", ao relembrar da constante incom reensão do direito de defesa, �eleza de su � �� b�e profissão, e de renovar essa emoção àgueles gue
afirmando: "ao defender os homens maus é difícil que nos entendam". tIveram o pnvIleglO de terem-na escutado na sagrada terra de Salva­
dor.
A sua apreciação sobre a "justiça técnica" é primorosa. Brasília, 12 de dezembro de 2002.

Disse, do alto de uma experiência vivida, que "a justiça técnica,


o julgamento técnico, esquece sempre o homem. "Os autos não
o retratam, nem sua fisionomia é lembrada porque o julgador, RUBENS APPROBATO MACHADO

em regra, só o viu no dia do interrogatório. Mas os fatos, estes Presidente do Conselho Federal da OAB

são de importância extraordinária. O juiz os conhece, os estu­


dou, é capaz de narrá-los bem na parte expositiva da sentença.
E se julga habilitado a sentenciar. E quando condena faz u m
cálculo matemático, sempre técnico, considerando o s quantitati­
vos mínimo e máximo dó tipo, e dorme tranqüilo, certo de que
cumpriu seu dever. Esquece ele que os fatos e o crime não esta­
vam em julgamento, e que os fatos e o crime não seriam conde­
nados, como não seriam absolvidos. A condenação ou a absolvi­
ção volta-se para o homem, o homem acusado, aquele que tem
alma e sentimentos. E a este ele, o Juiz, não conhece, não co­
nheceu, não lembra sequer sua fisionomia. Não lembra que era
um ser humano, um cidadão, aquele a quem ele julgou sem
conhecer."

Por esses rápidos extratos pode se ver a imagem de um


ser humano amadurecido nos embates judiciais, onde procurou,
através da Justiça, em quem sempre confiou, o caminho de uma
sociedade civilizada, consciente de que a ela só se chega condu­
zido por advogado ético, inteligente, estudioso, combativo e,
porque não dizer, ousado.

A conf erência proferida por esse ser i r r epetível e


inigualável advogado, Edson O'Dwyer, merece ser reproduzida,
lida, relida, trelida, como uma verdadeira Bíblia da advocacia
criminal, uma escola real de cidadania. Essa é a razão que levou
o Conselho Federal da OAB a publicar, como separata, a sua
conferência, para que se dê aos advogados brasileiros, que não
tiveram a ventura de estar presentes à XVIII Conferência Nacio­
nal dos Advogados, a oportunidade de se emocionarem com a
"Advocacia Criminal - escola de cidadania", é sobre o que

lhes devo f alar, e essa fala haverá de destacar os pontos em que


uma coisa e outra se encontram ou se identificam. Não me parece
difícil fazê-lo.
Em verdade, quem entende a advocacia criminal como algo
que ultrapassa o simples exercício profissional, que se alonga para
significar defesa de valores integrativos do direito do homem, sua
vivência social e política, o que tudo compõe sua cidadania, haverá
de reconhecê-la como a forma mais efetiva de a esta defender e
fazer respeitada. Cidadania não é só o que as leis dizem que seja,
mas é, também, o reconhecimento de que o homem é mais do que
um número de estatisticas, é u m ser social que se quer igual aos
demais e assim tratado.
Na medida em que o advogado criminal luta por alguns dos
direitos mais essenciais, entre. os quais a liberdade avulta, ele está
lutando, exaltando ou construindo cidadania.
É por isso que a vida profissional do advogado criminal, sua
atuação perante os tribunais ou fora deles, é uma luta permanente
pela cidadania, ainda que às vezes não haja plena consciência dis­
so.
Essa luta diária é uma escola. Uma escola onde o advogado
e nsina e aprende.
Se bem observarmos, há dois tipos de cidadania, como há
dois tipos de direitos humanos. Um, é o que está escrito nas leis,
nos tratados, nas convenções, nos livros, às vezes nas sentenças e
sempre nos discursos. É uma cidadania teórica, aparentemente co­
nhecida e defendida por todos. É uma cidadania divulgada, exal­
tada, unânime. O outro, o outro tipo de cidadania, o outro tipo de
direitos humanos, a cidadania que é direito de poucos, direitos
humanos reconhecidos a poucos, cidadania e direitos que a muitos
incomodam até porque nivelam, estes são os direitos humanos e a cidada-

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nia com os quais nós, advogados criminais, estamos permanentemente gem são a escola de cidadania em que se constitui a advocacia criminal.
envolvidos. Quando falo em advocacia criminal estou falando do exercício éti­
Não são muitos os que vivenciam as profundas diferenças en­ co da profissão. Se assim não for, se não houver respeito às regras éticas,
tre cidadania escrita e cidadania vivida. Uma, a escrita, só aparece não haverá garantia, direito, ensino, nem aprendizagem. Constatar-se-á,
na Constituição, expressamente referida com seu nome próprio - ci­ apenas, com sentimento, que os valores essenciais do direito e da Justiça
dadania - duas vezes: no artigo primeiro, inciso III, quando é aponta­ estão e estarão sendo conspurcados, porque sem ética não há direito, nem
da como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, e justiça, nem valores.
no art. 22, inciso XIII, quando se fixa a competência exclusiva da Depois de mais de 50 anos de profissão, posso falar de ad­
União para sobre ela legislar. É pouco, é muito pouco, para uma Cons­ vocacia criminal e cidadania.
tituição que se quis Cidadã. A outra, a cidadania vivida, esta nós E para falar em advocacia criminal e cidadania eu resolvi
advogados criminais a conhecemos bem, porque somos principalmen­ lhes contar uma história. Uma história verdadeira, e essa história
te nós os que a defendemos. que 'lhes quero contar são muitas histórias, todas as histórias de
A importância ao culto da cidadania precisa estar mais em advogados criminais, dos éticos, apenas desses, dos que talvez ain­
.
nossas consciências, já que não está definida em leis n em nos textos da sejam um pouco românticos, dos que sacrificam comodidades,
constitucionais. Cuida-se tão pouco de cidadania, cidadania real, a lazeres, não temem distâncias, ameaças ou incompreensões e se
que efetivamente nos interessa, que também os dicionários não a arriscam a perder boa fama ou, mais que isso, às vezes até a liber­
definem. Então, cidadania é o que cada um sente que seja, o que LAC HAUD e DE SÉZE, ZOLA, HELENO
dade. Lembro de
deve ser reconhecido por todos para diminuir desigualdades, para que FRAGOSO e EVARISTO DE MORAIS.
ela se constitua, verdadeiramente, no repositório dos direitos mais E essa história que lhes quero contar há de começar como
essenciais do homem. começavam todas as histórias.
Cidadania, na prática e juridicamente, é, assim, o conjunto de Todas as histórias, no meu tempo, naqueles tempos, "velhos
regramentos e direitos nominados de garantias: as do devido proces­ tempos, belos dias", começavam assim: era uma vez ... Fossem estó­
so legal, as da tutela jurisdicional do Estado, e todas as demais ínsitas rias da carochinha, fossem reais ou inventadas, começavam sempre
no art. 5° da Constituição ou daí decorrentes. E quando se fala em aSSIm: era uma vez . . .
cidadania e garantias, sobrelevam as que, com todas as limitações, Eu resolvi lhes contar u m a história. Uma história d e vida.
sustentam a liberdade. Não será propriamente a história de minha vida. É a história de um
Falando em advocacia criminal e liberdade, lembro ter ouvido advogado, um advogado criminal, qualquer advogado criminal. Não
do saudoso J. B. Viana de Morais, em bela oração, que o advogado somos iguais, não temos as mesmas lembranças nem vivemos os
criminal se distingue dos outros, porque ele não fala em liberdade mesmos episódios, mas somos parecidos. E como vou lhes contar
sem se emocionar. uma história, façam de conta que todas as nossas histórias são iguais.
E sob o domínio de suas emoções o advogado ensina e apren- Era uma vez ... um jovem igual aos outros. Entrou para a
de. Faculdade de Direito aos 18 anos.
ROGÉRIO LAURIO T UCCI, com suporte em RUY BAR­ Naquele tempo a Faculdade tinha um nome bonito: era a
BOSA, vincula, muito bem, direitos e garantias, e na medida em que FACUL DADE UVRE DE DIREITO DA BAHIA.
o advogado pleiteia garantias em favor de seu cliente e sua causa O primeiro ano era de matérias básicas, mais ou menos pre­
Ê I
está ele pleiteando reconhecimento de direitos, direitos que em seu paratórias para o resto do curso: I NTRO D UÇÃ O À CI NC A D O
conjunto são direitos de cidadania. E esse ensino e essa aprendiza- DIREITO, TEORIA GERAL DO ESTJillO, DIREITO ROMA NO e ECO-

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pais, irmãos, esposos, filhos, amigos, desafetos, adversários. São protago­
NOMIA POLÍTICA.
nistas· de dramas e comédias. A todos, o advogado, vê e ouve, a todos
C hegavà-se ao segundo ano e lá estavam as primeiras maté­
conhece, muito ou pouco. Com todos dialoga, a muitos apenas aconselha
rias que integrariam a fase profissionalizante: DIREITO CONSTITU­
e a outros patrocina.
CI aNAL, FINANÇAS, DIREITO CIVIL e DIREITO PENAL. E um dia
Entre clientes e advoga dos há uma estreita relação de
o jovem estudante recebeu as primeiras lições de Direito Penal.
MANOEL BANDEIRA é um de meus poetas preferidos. confiabilidade, entrega, esperança e às vezes decepção.

E ele diz assim num trecho de seu belo poema EVOCAÇÃO De muitos clientes nós, advogados criminais, recebemos ho­

DO RECIFE: norários, de outros apenas agradecimentos. De outros mais nem


uma coisa nem outra. N ão sei o que mais me recompensou, me
agradou, o que mais me serviu, o que mais me estimulou. Teriam
"Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
sido os dinheiros que nos ajudam a viver e sustentar a família?
Fiquei parado, o coração batendo
Tenho sérias dúvidas. O dinheiro nunca me emocionou, mas não
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento". foram poucas as lágrimas diante de um "muito obrigado" ou de um
"Deus lhe pague", também ditos entre lágrimas.

O Direito Penal é na Faculdade o primeiro alumbramento. O Direito Penal foi também, qual o jovem da história, o meu

São mais de 50 anos de vida profissional. Aquele jovem se primeiro alumbramento. E quando ainda jovens estudantes, nos

tornou advogado. E já são 50 anos ininter ruptos de advocacia cri­ deixávamos por ele seduzir, quando ainda não sabíamos nada da

minal. Envelheceu advogando, vai morrer advogado: são 50 anos advocacia, nada do direito, nada da vida, a defesa criminal já se

de compromisso com a liberdade e a cidadania. transformava no ideal de futuro, no que deveria vir a ser definitivo.

Todos os que envelhecem advogando no foro criminal jun­ É nessa fase que o estudante de direito já se antevê na tribuna do

tam de sua experiência e de suas vivências as lições que receberam júri, principalmente nela, a fazer o auditório e os jurados se emoci­

da vida, da vida profissional. Lições que alguns não aprenderam, onarem e a se emocionar também, e a tentar, às vezes sem sucesso,

mas que são lições de ética e cidadania. que uma lágrima mais afoita, incontida, incontrolável, não lhe salte

Foram 50 anos de delegacias, juízos, tribunais, estradas, cár­ dos olhos na peroração.

ceres, quartéis, tensões, dúvidas, medos, alegrias, decepções, rai­ Passado aquele instante de beleza do espetáculo judiciário

vas, surpresas. Foram dias e noites de trabalho incessante, foram do júri, as togas, as becas, os debates, a oratória, a tensão da vota­

histórias contadas e ouvidas, Joram relatos emocionados, foram rai­ ção, para a maioria a realidade vai ser outra . E os bacharéis se

vas incontidas, ambições incontroláveis, justificativas inaceitáveis, albergam no Direito Civil, Comercial, Tributário, Trabalhista, etc ...

mentiras deslavadas, arrependimentos irreversíveis. Foram paixões, São poucos os que ficam. E esses poucos sabem que não

ira, ímpetos, desespero. Foram defesas e acusações. estão indo ao encontro da glória, do poder e da riqueza. O seu
horizonte é a liberdade.
Durante os anos em que se desdobra a vida do advogado
A figura do advogado criminal é sempre a mais admirada.
criminal desfilam ante seu olhos e ouvidos todos os sentimentos,
humores, paixões, dúvidas e esperanças de um número tão grande Lendas, histórias, casos, exemplos, defesas brilhantes, gestos de

de pessoas que não será possivel estimar ou calcular. São pessoas coragem e desprendimento, tudo nos faz diferentes dos demais

de todas as espécies. São pessoas comuns e especiais. São pessoas profissionais do direito aos olhos alheios. A fama dos bens sucedi­

letradas e ignorantes. São ricos e pobres. São culpados e inocentes. dos seduz.

São verdadeiros e mentirosos. São vítimas e autores. E são também O que nem todos sabem é que há um espaço muito grande ocupa-

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do por horas insones, por dúvidas atrozes, por expectativas bem vam em julgamento, e que os fatos e o crime não seriam condena­
diferentes daqueles momentos fugazes de alegria, euforia, emoção, dos, como não seriam absolvidos. A condenação ou a absolvição
às vezes de aplausos. volta-se para o homem, o homem acusado, aquele que tem alma e
Nesse espaço de ansiedade e tensão, o advogado é mais ci­ sentimentos. E a este ele, o Juiz, não conhece, não conheceu, não
dadão do que nunca e por isso o ânimo do cumprimento do de­ lembra sequer sua fisionomia. Não lembra que era um ser huma­
ver não se deve tornar menor. E é então que se pode distinguir o n o, um cidadão, aquele a quem ele julgou sem conhecer.
advogado, aquele que faz de sua atividade um exercício de cidada­ A Justiça do júri é diferente. O acusado ali está, os jurados
nia, daquele que simplesmente advoga. Enquanto um norteia seu ouviram de viva voz sua história, sentiram seu olhar, talvez te­
trabalho para os resultados que não interessam apenas a seu patro­ nham identificado seu arrependimento ou sua arrogância, sua hu­
cinado, mas se refletem no todo social, o outro dá-se por satisfeito mildade, seu discernimento, suas origens e valores. E podem julgá­
quando escreve a última palavra de sua petição ou quando pronun­ lo melhor, porque ele, o réu, é um homem de sua comunidade. É
cia a última frase da defesa oral. um homem igual a eles.
O júri é o instante mágico da defesa. Ele nos ensina, mais do Ali no júri talvez seja onde se tem a certeza de que é mais
que possamos aprender em outros momentos profissionais, o quan­ importante ter bons juízes do que boas leis.
to é complexa e diversificada a alma humana. Ali se erra e se acerta, como em todos os tribunais. já vi o
É no júri que a Justiça está mais próxima de Deus. E Deus é, júri errar levado pela oratória da defesa ou pelas influências polí­
também, coração e emoção. ticas ou financeiras, alheias ao direito e à Justiça. Mas já vi pre­
Quando RUY afirmou que não há justiça sem Deus, ele cer­ sentes as mesmas influências em outros Tribunais, os mesmos er­
tamente estava querendo dizer que não há justiça sem emoção, sem ros em outros Tribunais. Nunca vi o Júri errar, propositalmente,
coração. Que não há Justiça quando o Juiz só vê à sua frente a Lei, contra o acusado: mas já vi em outros Tribunais.
quando sua preocupação ao sentenciar está voltada, apenas, para Em minha vida profissional já houve dezenas, muitas de­
os fatos, as provas, os testemunhos, as perícias, as contradições, as zenas de júris. Já defendi culpados e inocentes, já vi condenações
verdades e mentiras dos autos. RUY sabia que a justiça criminal e absolvições, já vi, repito, erros e acertos. Todos os que advoga­
técnica esquece o homem, o homem na sua complexidade, na sua mos no Júri já os vimos. No julgamento popular todos já ensina­
cultura, nos seus condicionamentos, no seu passado, na sua educa­ mos e aprendemos cidadania.
ção, nos seus vínculos familiares, em sua for mação advinda dos Tenho, ainda, paixão pelo Júri. O espetáculo judiciário que
exemplos, bons ou maus, que recebeu. Esquece que
. o homem acu- ali se desenvolve continua a ter o mesmo encantamento do pri­
sado tem alma e sentimentos. meiro a que assisti, recém ingressado na Faculdade. Lembro que
A justiça técnica, o julgamento técnico, esquece sempre o naquele momento, como se dissesse a mim mesmo, senti que era
homem. Os autos não o retratam, nem sua fisionomia é lembrada aquilo que eu queria p'ra minha profissão, p'ra minha vida, des­
porque o julgador, em regra, só o viu no dia do interrogatório. Mas lumbrado que estava com tudo que via. Mal sabia eu que a vida
os fatos, estes são de importância extraordinária. O Juiz os conhe­ dos advogados criminais é também feita, e muito, de insegurança
ce, os estudou, é capaz de narrá-los bem na parte expositiva da e de solidão. É bom que os jovens não saibam disso para não se
sentença. E se julga habilitado a sentenciar. E quando condena faz intimidar. Mas se a alguns fizermos confissão nesse sentido deve­
um cálculo matemático, sempre técnico, considerando os quantita­ mos lhes dizer, também, que dúvidas, medos, inseguranças, soli­
tivos mínimo e máximo do tipo, e dorme tranqüilo, certo de que dão, tudo isso faz parte da vida.
cumpriu seu dever. Esquece ele que os fatos e o crime, não esta- Não sei de instante maior de cidadania do que quando o

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homem comum, o servidor público, o operário, o comerc
iante, o jornalis­ dos em 88 e é o mesmo que está agasalhado pelos tratados e convenções
ta, o engenheiro, o balconista, o vendedor, é feito Juiz,
julgador de um seu pertinentes a direitos humanos recepcionados pela nossa Lei Maior e a ela
igual. Ele, o jurado, está ali por ser respeitável, respeita
do, confiável. Só integrados na condição de cláusulas pétreas. É o cidadão que precisa do
por isso. Sem títulos nem pompas.
advogado, o que está lutando por ter seus direitos reconhecidos e assegu­
Para usar uma expressão bem nordestina, bem provinc
iana, rados.
fico matutando comigo mesmo se não era no jurado,
no Júri popu­ Direitos humanos e cidadania não são exclusividade de nin­
lar, no juiz leigo, que ELLERO estava pensando
quando afirmou guém. Brancos e negros, ricos e pobres, doutores e analfabetos,
que
homens e mulheres, adultos e crianças, todos os têm. Mas há uma
diferença: em regra, os brancos, os ricos, os doutores e os homens
"julgar é uma função q ue o homem usurpou a pensam ter mais ... e lutam por ter mais.
Deus". Nossa escola de cidadania é feita, em maior parcela, na de­
fesa daqueles que não são considerados homens bons: os que de­
Não há, não deve haver, advogado que já tenha participado fendemos, nós advogados criminais, estes são os tidos como ho­
de um Júri, criminalista ou não, que não haja verificado que o mens maus! E esta é uma das imensas dificuldades e incompreensões
julgamento por homens do povo é um exercício de cidadania, uma contra as quais lutamos para exercer nossos misteres e cumpnr
escola de cidadania. E quando Se fala em cidadania é necessário nossos deveres, o que não nos intimida ou desestimula, ou pelo
que nos conscientizemos de que ela traz em si toda a carga de menos, não nos deve intimidar ou desestimula r. Ao contrário, é
imperfeição do homem, mas mesmo imperfeitos, como somos, tem nessas defesas que o advogado se realiza, é nesses instantes que
de ser cada vez mais exercitada, mais consciente, mais integrada ele é mais do que um advogado, ele é um protetor, é um amigo, é
nos bens e nos males da Justiça. mais que isso, é um irmão.
Estamos falando de cidadania.
Ao defender os homens maus é difícil que nos entendam.
É preciso destacar aqui que a cidadania de que
falamos não Mais fácil é que nos julguem e a eles nos nivelem ou comparem.
é aquela que tradicionalmente identificava os
que podiam ou não Mais fácil é que nos condenem.
votar, ou os que adquiriam ou perdiam a nacion
alidade. Também Mas pouco nos importa como nos vejam ou nos julguem.
não é o mesmo conceito clássico e antigo, quand
o cidadão era o VIEIRA dizia que não nos causa mal algum o que falam de nós
que podia participar da vida política do local
onde vivia. mentindo. Não é bem assim. Muito do que dizem de nós, mentin­
O cidadão de quem lhes falo é aquele para
quem se voltou do, nos causa incômodo, raiva, decepção, e a alguns, marca indelé­
a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, ainda vel e negativamente. Que fazer? Desistir? Não! Conscientizar-se de
que mais preocupada ela com o homem do
que com o cidadão. O uma verdade contida em aconselhamento de RUY a EVARISTO DE
cidadão de quem lhes falo é o que se conse
guiu definir ou identifi­ MORAIS, sobre críticas e incompreensões para com o advogado e
car nas regras da Declaração Universal de 1948
e na Conferência de sua missão, como EVARISTO julgava sofrer.
Viena de 1993.
RUY nos ensinou que apesar de tudo,
Mas o cidadão que nos importa não é o dos textos legais
nem dos discursos, o que nos importa é o cidadão que eu conheço, " ... nem por isso o papel do advogado é de menos
que é igual a mim, que é meu vizinho, meu patrão e meu emprega­ necessidade ou menos nobre".
do, meu irmão e meu colega, meu cliente e meu amigo. Este cida­
dão é o que está protegido pelos regramentos constitucionais edita- E se preferirmos lembrar, outra vez, MANOEL BANDEIRA,
14 IS
quando assim for, quando nada mais puder ser feito para explicar o que é um homem!
r a cidadania. Ou o
somos e o que fazemos, quando, à semelhança do tísico nada mais puder Fazer isso é, tamb ém, defender e exalta
definitiva, não é um cida­
ser tentado, sequer um pneumo-tórax, versejamos com ele: acusado, mormente antes da condenação
mesmo depois de conde­
dão? Não tem ele direitos? E não os terá
" ... a única coisa a fazer é tocar um tango argenti- nado?
ado criminal não
no ... " assim e por isso que as tarefas do advog
É
cliente. Elas transcendem
se dirigem unicamente à proteção de seu
indiretamente, a todos. O
Estou a lhes falar de nós, advogados, advogados cnmtnats. E à individualidade e alcançam, direta ou
to de seus deveres, os cus­
destes, os que, a meu juízo, merecem nossas atenções, nossos des­ exercício de suas funções, o cumprimen
labuta são um exercício de
taques, nossos louvores, são os advogados que todos deveriam ser, toS de seu trabalho, as canseiras de sua
sional, não só a seu patr�­
os sérios, os éticos, os que se entregam às causas, os que estudam, cidadania respeitante não só a ele profis
em civilizadamente, ext­
os que trabalham, os que vibram, os que se emocionam. cinado, mas a tantos quantos, para viver
utamente respeitadora de di­
Não dou o mesmo tratamento à queles que se escravizam gem uma prestação jurisdicional absol
aos honorários, aos inescrupulosos, aos anti-éticos, aos que subor­ reitos.
comunitária, uma ora­
nam ou tentam subornar, aos que se acumpliciam com bandidos e Assisti, faz pouco tempo, numa missa
suas invocações, o sacerdote
se fazem bandidos também, aos que vivem e sobrevivem às custas ção que até então não conhecia. Em
ão, sua tolerância, sua Jus­
do crime organizado, aos que usam diploma, titulação, identifica­ pedia a proteção de Deus, sua compreens
, os réprobos, o s assalta�­
ção profissional, para vantagens apenas financeiras e pessoais, o tiça, para com os bandidos, os criminosos .
maus. Eles prectsam maiS.
que não lhes dá, nunca, respeito, admiração, dignidade, nem cida­ tes e assassinos, enfim, para os homens
or, são tamb ém detentores
dania profissional. Mas lhes dá, e a eles oferecemos, o repúdio e a Bons ou maus, além de criaturas do Senh
o que limitada, e é impe-
execração a que têm direito. de direitos, detentores de cidadania mesm
Os que ensinam e aprendem cidadania com a advocacia rioso que a respeitemos. . .
criminal são aqueles que defendem, com o mesmo denodo, humil­ s depo sitári os da obrig ação de lutar por taIS garantlas,
Somo
nalistas. Às vezes não é fá­
des e poderosos. nós advogados, principalmente os crimi
s vidas, mas é preciso lem­
Se é dever defender liberdade, cidadania, ética, às vezes cil fazê-lo. Pouca coisa é fácil em nossa
te, a cada dificuldade, a
também se o faz na acusação. E na acusação também se aprende brar sempre, a cada instante, a cada emba
muito. Se na defesa os dotes oratórios, a literatura, a escolha das lição de GOR KI:
provas a serem destacadas e as teses jurídicas são estratégias lícitas,
já na acusação entendemos que só a verdade, a mais pura verdade, "só são homens os que se atrevem a encarar o sol
a verdade dos autos, pode sustentar a atuação do advogado. de frente".
Nesse lado da causa também se aprende muito, às vezes até
mais do que defendendo. Basta ver que é preciso aprender a con­ Vejam, meus colegas, que a cada instante, com dificuldades,

trolar os arroubos, a não exagerar na argumentação, a tratar com ensinamos e aprendemos, e devemos fazê-lo encarando o sol de

respeito o acusado, a entender seu lado humano, a não partilhar dos senti­ frente.

mentos e emoções das vítimas. O defensor pode ser público, escolhido ou nomeado.
É preciso não esquecer que, apesar de tudo, ele, o acusado, A vida é sempre mais difícil para os mais necessitados e não

16 17
m marcas físicas, que se ajuntam
há necessidade maior, em certos instantes, do que a de defesa nos tribu­ advogados criminais poucos, ainda traze
e do medo. Ainda bem que são pou­

n s. Mas as defesas são onerosas, são caras, os advogados são profissio­ às psíquicas, decorrentes das torturas
defesa de políticos, presos ou não,
naIS que, como todos, com trabalho garantem seu sustento. E os que não cos. Mas muitos dos que atuaram em
entar-se em algumas delegacias e
podem pagar têm tanto direito à defesa quanto os que a pagam. Mas todos não esquecem de como era difícil apres
o
gado, como era difícil defender. Com
têm direito a uma boa defesa. E nem sempre é uma boa defesa a exercita­ em quartéis, como era difícil ser advo
s
ania. Mas o fizemos. Não queriamo

d por algumas defensorias públicas criminais, que têm sob sua responsa­ era difícil lutar por liberdade e cidad
. s, nem valentes. O que querí amos era
blltdade, dezenas, centenas de processos. Certamente não. Dai porque não ser, nem o fomos, heróis, nem bravo
que queriamos era defender direitos,
basta lutar pela criação e ampliação de defensorias públicas, é preciso ser advogados, apenas advogados. O
. O que queríamos era pleitear jus­
lutar por boas defensorias, sobretudo as criminais, para que elas realmente cidadania, pouco importando de quem
nos era permitido fazer. Em cada
exercitem a defesa na sua amplitude; que não se limitem ao cumprimento tiça. E o fizemos na medida em que
verso de THIAGO DE MELLO,
de �guns prazos e à elaboração de alguns recursos. Que não entreguem a defesa como que repetíamos o belo

malDr parte d e seu trabalho a estagiários ainda inexperientes e que era um grito de esperança:

despreparados. Que tenham disponibilidade de tempo e meios materiais


"Faz escuro mas eu canto - porque a manhã vai che­
para ir além do comparecimento às audiências. Que possam e saibam ou�
gar".
vir seus defendidos e que sejam capazes de se apaixonar pelas causas,
mesmo aquelas que não chegam à mídia e por isso não fazem a fama dos
Em tempos assim, qualquer que seja a pátria, alguns advo­
advogados.
gados se tornam símbolos. Basta lembrar, na França, de
BERRIER
Estou falando do defensor cuja função, segundo RUY:
eCHAEVAU - LAGARDE e no Brasil de RUY, SOBRAL PINTO e
" . EVANDRO LINS.
conslste em ser, ao Iado do acusado, inocente ou
Aqueles que profissionalmente freqüentaram delegacias, quar­
criminoso, a voz de seus direitos legais".
téis, prisões, certamente não estão esquecidos. E é um motivo de
orgulho não esquecer. Não esquecer que valeram tantos e todos os
Seja contratado, seja público, seja advogado nomeado, só é
sacrifícios. Não esquecer que de tudo ficou a lição de que mesmo

def nsor, na integralidade da expressão, aquele que seguir esse
sentindo medo, vale a pena não ser covarde. O advogado criminal
enS1namento.
é somente um homem, igual aos outros, às vezes frágil, mas em seu
Estar ao lado do acusado é protegê-lo. E essa proteção fal­
trabalho deve ter a fortaleza dos que não se abatem.
tou no julgamento de JESUS CRISTO:
Hoje, felizmente, os tempos são. outros. A manhã chegou.
Ele estava só!
Ainda que não em termos ideais, até porque não seria possível, e
Muitos vivemos os anos de chumbo, os tempos escuros da
talvez não o seja nunca . Já reconhecemos' qu e há uma consciência
ditadura, injusta, cruel, malvada, como são todas as ditaduras inde­
avantajada da importância da cidadania e dos direitos humanos. Já
pendentemente da ideologia, dos aplausos de muitos e do c nfor­ �
somos todos quase iguais. Padres, pastores e rabinos já celebram

mi mo de outros. No âmago, todas se parecem, se igualam, umas
cultos comuns. Homens e mulheres disputam as mesmas oportuni­
malS repugnantes, repulsivas, outras menos, mas todas desrespei­
dades. Brancos e negros convivem em paz. É ótimo que seja assim.
tando o homem, seus direitos, sua cidadania, suas idéias, seus so­
Mas não basta. Cidadania não é apenas isso. Cidadania é também
nhos, sua liberdade e até sua vida.
· alimentação, moradia, saúde, trabalho, justiça, o que tudo se pode
Foram tempos escuros.
resumir numa palavra: dignidade. E a busca da dignidade é uma
Muitos vivemos aqueles tempos. Alguns, felizmente entre os
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luta incessante. De uma parte dela nós advogados nos encarregamos, mas Tem fé, tem fé, no direito como o melhor instrumento
somos poucos e não tão fortes como deveríamos e gàstariamós de ser. para a conquista humana; na justiça como destino nor­
Ainda falta muito. Ainda não temos a pátria ideal. Tê-Ia-emos um mal do direito; na paz como substituto benevolente da
dia? E quando chegará esse dia? Quando tivermos consciência de que já justiça, e sobretudo tem fé na liberdade, sem a qual não
não é mais tempo de pedir. Será tempo de exigir.· Exigir tudo que nos é há direito, nem justiça, nem paz".
devido: exigir que se acabem as masmorras dos presidios e as torturas
dentro e fora de qualquer dependência oficial; exigir que os advogados
Nem cidadania.
sejam respeitados em delegacias e juizos. Exigir e receber o que é nosso
direito, sem ter de agradecer o pouco, o quase nada é só o que muitos têm.
Nesse dia, que há de chegar, não precisaremos mais cantar, com
CHICO BUARQUE DE HOLANDA, lembrado por ALBERTO SIL­
VA FRANCO:

"Por esse pão p'ra comer


Por esse chão p'ra dormir
A certidão p'ra nascer
A concessão p'ra sorrir
Por me deixar respirar
Por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça desgraça que a gente tem que engolir
Pela fumaça de graça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague."

Lutamos e vamos continuar lutando pela ética e pela cidada­


nia, certos de que cada causa, cada pleito, cada defesa, não é ape­
nas uma causa, um pleito, uma defesa, é uma luta. Que cada tese
que sustentamos pode aproveitar a alguns, a muitos, a poucos ou a
todos, pouco importa, e que ao lutar estaremos repetindo a lição aprendi­
da com COUTURE em um dos seus mandamentos, que é um hino para
nós advogados.

"Luta - teu dever é lutar pelo direito; porém quan­


do encontrares o direito em conflito com a justiça,
luta pela justiça;

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