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Lição III

O que é a Filosofia?

Ortega y Gasset

Ortega sublinha ter ficado limitado na lição anterior a um dos dois pontos de reflexão propostos.
O objectivo era analisar o pensamento dos filósofos no último século face ao domínio da física,
ditado pelos laboratórios. Foi o primado das Ciências Naturais, elemento constitutivo do próprio
ambiente, sendo este um “ingrediente” da personalidade. Quais as consequências? Se com as
ciências naturais se pode “tocar o occipital das estrelas”, o risco é a descaracterização da
personalidade. O ambiente, quando hostil, obriga-nos a uma perpétua “dissociação e
resistência”, deprimindo-nos e dificultando o desenvolvimento da personalidade, tal aconteceu
com o “imperialismo da física”. Não censura nenhum dos campos; até porque acredita que o
sucedido produziu efeitos benéficos. A humildade é uma “etapa forçada”, mas regeneradora. E
o importante é cada ciência ter compreendido as suas limitações essenciais, explorando o seu
competente campo da realidade e determinada pelos métodos de apuramento. Importa ter
estes condicionamentos presentes, não os tomando como negativos, mas necessários.
Foram oportunidade para a filosofia se voltar a situar, centrando-se no seu objecto de estudo.
Importa saber porque se interessaram novamente os filósofos, empenhando-se em voltar a
fazer filosofia. Sob o primado da física, a filosofia circunscrevera-se à teoria do conhecimento.
A atestá-lo os ensaios filosóficos publicados entre 1860 e 1920; curiosamente, nenhum
abordando a questão central de “o que é o conhecimento?”. Esta demissão deveu-se à pressão
do ambiente, que determinava pressupostos à própria questão, os quais considera deverem
constituir o primeiro objecto de discussão. Merecem tratamento separado, até porque se
aplicam a todo o conhecimento, sempre estruturado a partir de algo; ideia tão básica que acaba
por passar despercebida; apesar de sempre presente, é uma convenção-chave para perceber
o enigma.
Os supostos variam de geração em geração. Os valores possuem “dimensão histórica”,
relativamente à “cronologia vital humana”, acabando por tornar a própria verdade histórica.
A questão é identificar o eixo transversal e é precisamente este ponto fulcral que considera ser
a “questão do nosso tempo”.
Nos últimos 80 anos, o pressuposto era de que não existiria outra verdade para além da física.
Porém, tal não a torna única, antes remete á pergunta sobre o que é, verdadeiramente, o
“conhecimento exemplar, protótipo de verdade” se quiséssemos satisfazer com precisão o
sentido que acarreta a palavra conhecer.
Apenas com a determinação exacta do significado de conhecimento podemos também precisar
o âmbito a que se referem os que o homem já possui. Porém, o ‘calcanhar de Aquiles’ da
certeza física viria a ser ditado pela reformulação exigida face aos progressos deste próprio
conhecimento, abalando os seus princípios, pondo a nu as bases frágeis do seu sistema
doutrinal e indicado que era insuficiente para sustentar a própria verdade.
Desencadeou-se a Grundlagenkrice, revisão de princípios, necessariamente, tornando a
ciência mais vigorosa e firme. O cepticismo é indicador de “vigor intelectual” e a ciência nutre-
se da dúvida e não da “certeza ingénua”, necessariamente passando pelo crisol da dúvida e
derrubando as barreiras da “neurastenia” intelectual.
A reformulação dos princípios da física (solo) implicou, pois, o sair dela e partir para o que a
sustenta (subsolo). Os próprios físicos começaram a filosofar sobre o seu conhecimento,
abrindo a génese da “teoria do conhecimento físico”, advento marcado por Poincaré, Mach,
Duhem, Einstein e Weyl. Paradoxalmente, enquanto a filosofia venerava a física, esta
descobria a sua vulnerabilidade. A metáfora dos cabides ilustra a diferença entre
sistematização e conhecimento da “forma”, ilustrando o risco da mera “correspondência
simbólica” e deixando a necessária pertinência de determinação dos caminhos lógicos que
conduzem aos “princípios da teoria”, constatando-se que a fundamentação desta é sustentada
em meros motivos práticos.

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A experimentação é única intersecção entre o “doutrinal da física” e o “real da natureza”; e esta
já é manipulação humana pois trata-se de uma provocação á natureza exigindo sua resposta, a
sua reacção – facto –, que se nos torna acessível é condicional, manipulado pela pergunta. A
ciência pergunta quando e como, que instrumentos tem para dar a resposta e tal não é
interrogação radical. Deve ser missão da filosofia procurar a pura realidade e o apuramento
disto pelos físicos é vexame para os filósofos, que viram o erro de se terem centrado no
epicentro do protótipo, circunscritos pelo princípio criador dos conceitos. A física exigia um
“saltar para fora da sombra”, em oposição ao que marcara o último século fértil em equívocos
das diversas áreas sobre as esferas de competências, “transbordando-as ilusoriamente”, mas
deixando em aberto o verdadeiro objecto.
Este movimento dos físicos deixou os filósofos livres para a sua “própria vocação” e entregues
a “modelos de conhecimento verdadeiramente filosóficos”, sendo também a física limitada ao
seu campo de saber, livre de “místicas superioridades”, interesse evidente na realidade do
mundo de então.
O aceitar das limitações é o método positivo de uma ciência e factor de independência das
outras. Ilustra-o a libertação por Einstein da eminência das leis geométricas das físicas,
declarando a sua falsa jurisprudência e demarcando-se do raciocínio adaptativo de Lorenz,
análogo á reflexologia de Pavlov, por exemplo, num alhear das vertentes comuns entre físico e
psicológico. Mas mais paradigmático é ainda a libertação matemática da ‘estreiteza’ do axioma
lógico e, de modo idêntico, da teologia em relação ao jugo da razão, na vã tentativa de explicar
a Revelação através desta. Sublinhe-se o papel da teologia dialéctica em detrimento da
teologia antropocêntrica, marcado por Karl Barth e novo recentramento do pensamento
teológico em Deus, defendendo que tal não era possível a partir da “mente intra-humana”,
sendo esta apenas uma receptora e cabendo ao homem a purificação necessária para discernir
o que lhe vai sendo revelado, independente da verdade humana. Sublinhe-se que este ‘vício’
assumiu maiores proporções no catolicismo.
Ortega considera o movimento científico da altura inverso ao dos 40 anos precedentes, o fim
da tentativa de domínio de cada um dos saberes sobre o outro. Agora, tal não só não é aceite,
como veementemente repelido e isto marca uma nova época de fertilidade na intelecção
humana. Impõe-se; entretanto, a necessária articulação e tal só é possível da “terra firme” da
filosofia” e a atestá-lo está a sua solicitação permanente pelas várias ciências particulares. Isto
é o novo e propício ambiente que se apresenta ao filósofo para a sua tarefa, descobrindo nela
o interesse que, afinal, não é novidade mas “ânimo” que a fez crescer desde os primórdios.
Para tal, importa voltar a defini-la com “clareza”, para depois “responder ao porquê do seu
exercício”:
Voltar-se a chamar-lhe razão de ser do universo pode ser limitativo, já que tal corre o risco de
eliminar os saberes específicos, ensombrando muito do que é o pensar filosófico. Tal se
afigura, igualmente, redutora “oposição” à pretensão física de saber sobre a matéria. E convém
sublinhar que na física, tal como na matemática, se começa pela delimitação concreta do
objecto que se lhes concerne e “seus atributos essenciais”. Nesta perspectiva, a pretensão de
saber sobre o Universo apresenta-se como algo vago e, por outro lado, demasiado ambicioso
que pode abarca tudo quanto existe e cujos limites também não se conhecem. A solução será
então aceitar a limitação do saber ao campo do desconhecido, para o qual parte apenas com
as certezas de que “não é nenhum dos restantes objectos” e, por outro lado, que se trata de
“objecto integral e único que se basta”. Atributo não partilhado por nenhum dos objectos já
conhecidos e que remete para o Universo, porém, no sentido de objecto sobre o qual nada
sabemos e do qual “absolutamente ignoramos o seu conteúdo positivo”. Isto caracteriza a
filosofia, tem por “objecto o que exactamente não pode ser dado”. Passando a ser sua função
antes “buscá-lo”, permanentemente, demonstrando a sua insolubilidade, tornando-a puro
conhecimento teorético e constituindo-a “ciência universal e absoluta que se busca”, como o
dizia Aristóteles.
Mas o sentido da palavra conhecimento assume matizes diferentes das do âmbito das ciências
particulares, pois refere-se à “solução positiva e concreta para um problema”; ou seja,
penetração nele através do pensamento do filósofo, em persistente interrogação. E ainda que
tal se possa revelar meramente aporético e impenetrável, demonstra-o o ‘beco’ em que entrou
Schopenhauer com a descoberta da vontade aventureira que regeria o Universo, remetendo a
filosofia para a impossibilidade racional.

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Importa então definir que se o primeiro suposto se verifica – “aceder” ao Universo –, tal deve
ficar estabelecido através de uma “escala de valores de conhecimento com a maior ou menor
aproximação a esse ideal”. Todos os passos que antecedem este patamar são “graus
inferiores” que devem ficar em aberto e, definitivamente, a expressão “conhecimento do
Universo” em filosofia deve referir-se a um “sistema integral de atitudes intelectuais no qual se
organiza metodicamente a aspiração ao conhecimento absoluto”.
Consciencializando a impossibilidade de resolução teorética de todos os problemas, é dever da
filosofia enfrentá-los, ainda que apenas para demonstrar que são irresolúveis e isso
caracteriza-a face às outras ciências, que desistem de enfrentá-los face à falta de solução. O
mundo em si pode constituir um problema sem resolução e sua demonstração é tarefa para a
filosofia, ao contrário dos outros saberes que tomam por problema apenas o que tem
resolução. Nelas, o praticismo domina sobre a teoria e por isto se distingue a filosofia: na
sinceridade em aceitar um problema ilimitado mas que, simultaneamente, a torna uma espécie
de “modo cognoscitivo das ciências e particulares”. Contudo, aqui também emerge a mais
nobre vertente: este anseio é a atitude natural do homem e traduz a imanente necessidade de
sensação de unicidade, dissecada em sectores pelas outras ciências e é importante ter
presente que os resultados podem ser de outra ordem, não confinado ao rigor da exactidão das
previsões. O preço da sua obtenção pelas ciências experimentais é, precisamente, alhear-se
do universal e manter-se no campo dos “problemas secundários”, ao contrário, isto é
precisamente a virtude da filosofia que restitui ao saber a ‘vitalidade perdida’.
A limitação necessária dos saberes particulares limita-os também ao ‘não saber’ do homem na
totalidade e o filósofo explora a transversalidade deixada em aberto, recuando sucessivamente
até às causas primeiras dos fenómenos-objecto dos outros. É uma ambição que se “incorpora”
no espírito humano, governando a nossa existência com maior profundidade que o saber
científico.
O século que antecedeu Ortega foi, pois, marcado por esta demissão do saber a que ele
chama agnosticismo. A importância da ciência experimental não pode ‘ridicularizar’ o interesse
pelas questões ‘essenciais’, reduzindo-as às categorias de mitos e tendo-as como demagogia.
Esta demissão provocou ‘feridas’ no espírito do homem, porque o ensejo de pensar questões
como o sentido do Universo, a origem das coisas, etc; é-lhe imanente.
Em conclusão, a verdade científica não pode ser tomada por completa, mas apenas como
“penúltima”, integrando-se noutra verdade, ainda que “inexacta”, à qual Ortega não oferece
resistência em classificar como mito já que, paradoxalmente, se torna o “admirável mito
europeu”, motor de funcionamento a toda e qualquer verdade sociológica e científica.

Pedro Dias, 1º ano, Ciências Religiosas

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