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Módulo 05 – Professora Márcia Acioli1

Participação e Protagonismo2
Educação em Direitos Humanos

Ao tratarmos de questões como o estudo do Estatuto da Criança e do


Adolescente e o trabalho com esta lei na escola, é preciso que pensemos sobre o
olhar que temos em relação à infância e à adolescência. É necessário trazer a
perspectiva de um novo olhar, que é o olhar dos direitos para as relações humanas de
um modo geral, em especial na escola. O nosso olhar determina o tipo de relação que
construímos. Se temos um olhar de medo, de ternura, ou um olhar agressivo, toda a
nossa relação vai ser determinada por isso. Nós vamos estabelecer uma relação de
muito carinho, ou de medo, por exemplo. Vamos construir, a partir deste olhar, uma
possibilidade de relação, ou, ao contrário, a falta desta possibilidade.
Ao falarmos em direitos na escola, devemos colocar a possibilidade de abrir a
perspectiva humanista da escola, fortalecendo as relações, de modo que todos se
vejam e se percebam como pessoas de direitos, que têm um potencial integral a ser
cumprido, a ser realizado de forma a enriquecer a humanidade como um todo.
É preciso considerar que a escola é um espaço que reúne crianças e
adolescentes no Brasil inteiro, de norte a sul deste ‘pais-continente’, que é diverso e
gigantesco, e que tem uma diversidade enorme de expressões. A escola é um lugar
onde potencialmente, podemos ter a realização de uma humanidade mais rica e que
se reconheça na diversidade e na condição humana igualitária.
                                                            
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Márcia Acioli é arte educadora formada pela Universidade de Brasília, especialista em
Violência Doméstica, pela USP e mestre em educação. Foi professora da Secretaria de
Educação do Distrito Federal por 17 anos e Assessora Nacional do Programa de Defesa e
Promoção dos Direitos da Infância, Adolescência e Juventude da Cáritas Brasileira por 5 anos.
Desde setembro de 2008 é Assessora Pedagógica do Instituto de Estudos Socioeconômicos –
INESC (www.inesc.org.br)
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Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto
escrito. 1
 
 

 
 
 
 
 
 
O espaço da escola é absolutamente privilegiado, não só para a educação de
crianças e adolescentes, mas para a educação de uma comunidade inteira. É um local
especial para a transformação das relações. É claro que estas transformações não
dependem somente da escola, mas ela cumpre um papel fundamental.
Eu gostaria de colocar aqui alguns princípios que podemos considerar para o
desenvolvimento de um projeto político-pedagógico fundamentado nos direitos da
criança e do adolescente, e baseado na filosofia do Estatuto da Criança e do
Adolescente que é o nosso orientador máximo. É uma normativa que vem nos dar
suporte para esta nova realidade. Dentro destes princípios nós podemos criar
condições para desenvolver um projeto pedagógico que seja transformador de
relações humanas.
Em primeiro lugar, é fundamental que todos na escola e na comunidade
escolar se reconheçam como sujeitos de direitos, e, não somente isso, como sujeito
de saberes, como pessoas sensíveis e criativas. Não basta que tenham o
conhecimento teórico deste princípio, é preciso apropriar-se realmente desta
realidade, percebendo-a nas relações cotidianas.
Outro aspecto importante é considerarmos que os Direitos Humanos são
fundamentais na sociedade democrática. Não há verdadeira democrática enquanto
algumas pessoas concentram privilégios em detrimento dos direitos da maioria. Viver
os direitos na íntegra é viver numa realidade democrática.
A escola também deve, sempre, trabalhar com a diversidade de linguagens,
pois todas são importantes para a discussão sobre direitos. Nós podemos falar com o
corpo, com as cores, com palavras, sejam elas mais científicas ou poéticas; falar com
o teatro ou com a música. O que importa é que o saber seja tratado dentro de várias
possibilidades de linguagens que são complementares, uma não substitui a outra.
Outro princípio importante para criar um contexto de direitos é entender que a
participação é fundamental para a construção de novos conhecimentos e de novas
realidades. É preciso considerar que adolescentes e crianças são protagonistas no dia
a dia. Não somente no sentido de ‘levantar bandeiras’, de poder se expressar, mas
protagonistas na atitude absolutamente cotidiana. É fundamental que eles participem
diariamente, em diversas dimensões.
Um princípio fundamental é a compreensão da ética como a defesa do bem
comum, e que ela deve permear toda a experiência pedagógica, não só aquela que vai
tratar do Estatuto ou dos direitos, mas a ação da escola como um todo, no cotidiano
da escola e, fundamentalmente, no cotidiano da vida de cada pessoa que está dentro
da escola. Cada profissional da educação, seja um professor ou professora,
servidores, merendeiras, porteiras, cada aluno ou aluna devem ter a ética como o

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pano de fundo das suas ações e das suas práticas.
É importante também, como princípio, defender a ‘laicidade’, ou seja, não
colocar dogmas ou idéias pré-concebidas como suportes da experiência pedagógica.
Temos que trabalhar com uma abertura de possibilidades, de debates mais livres, esta
é uma dimensão fundamental na escola porque a liberdade permite o diálogo entre
várias perspectivas, vários modos de ver, na construção de novos saberes e
realidades.
O direito deve ser visto como uma nova ótica, como um novo olhar sobre a
vida. Isso modifica todas as relações dentro da escola, inclusive dos próprios
adolescentes, meninos e meninas que até podem ter algum envolvimento com
situações de conflitos mais graves, mas quando se trabalha com a perspectiva dos
direitos as pessoas se percebem em uma outra dimensão que é, fundamentalmente,
uma relação de respeito. Isso permite uma construção que pode não ser fácil, dado as
experiências históricas que acontecem em cada comunidade, ou no próprio país, mas
é interessante perceber como as relações se transformam quando a pessoa percebe
que ela é sujeito de direitos, e ela só é, verdadeiramente, sujeito de direitos quando
todas as pessoas também o são. É preciso partir para a compreensão da dimensão de
reciprocidade de direitos.
Eu gosto muito de chamar a atenção deste aspecto, porque na minha
experiência, ao dialogar com diretores e diretoras, nós vemos alguns deles meio
carrancudos quando dizemos que deve ser falado dos direitos dos alunos. Muitos
diziam: “Mas tem que falar de deveres!” É possível perceber até uma certa raiva na
fala. O que eu acho interessante é entender o seguinte: Quando falamos em direitos,
os deveres são imbuídos nos direitos. Isso é uma coisa que a gente ressalta muito no
diálogo com adolescentes. Quando falo em direito à dignidade, preciso perceber
sempre que eu só tenho dignidade porque outras pessoas também têm. Respeitar a
dignidade em nossa própria vida significa respeitar a dignidade de todo mundo. Se,
por exemplo, eu trato do direito à saúde, com alunos, logo questiono o que vem
sempre junto com este direito: a responsabilidade de cada um em cuidar da sua
saúde. É interessante perceber que o direito é uma ‘coisa’ colada aos deveres. Isto,
porém, não deve ser colocado como uma resposta rancorosa aos que tratam dos
direitos. Deve ser visto de forma tranqüila, natural: Uma pessoa tem direitos e, ao tê-
los, zela pelos direitos de todos.
É fundamental ressaltarmos que nenhum direito é menor do que outros. Todos
são igualmente importantes para exercermos a nossa humanidade na sua integridade.
É com um conjunto de direitos que construímos a dignidade humana. Não pode faltar
nenhum, e nenhum é mais importante. Todos caminham juntos. Tem gente que acha
que o direito ao brincar é menor, mas todos nós, professores e professoras, sabemos
que é fundamental que se brinque, e muito, na infância, que a infância tem o direito
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de brincar e que isso compõe a educação. Meninos e meninas e adolescentes
precisam ter o seu lazer, precisam brincar, até mesmo nós, adultos, precisamos
brincar também, ter lazer, porque isso compõe a nossa humanidade.
O mais importante, quando falamos de direitos, é desenvolver tudo na mesma
dimensão, com a mesma importância e, claro, dependendo do momento de vida de
cada um, será preciso incentivar, lutar ou buscar, por um direito que, naquele
momento está sendo ameaçado ou agredido, causando um desequilíbrio.
Por fim, é fundamental pontuar outros princípios importantes dos direitos
humanos, como a indivisibilidade; a interdependência, um direito sempre depende do
outro; e a universalidade, ou seja, todos os direitos são para todas as pessoas.
Independente de onde elas estejam.

Direitos enquanto vivência cotidiana


Ao defendermos o trabalho com o Estatuto na escola, ou seja, com os direitos
da criança e do adolescente, é interessante perceber que nós, educadores e
educadoras, temos que conhecer o que o Estatuto preconiza. Quais são os direitos, as
formas de defendê-los, que diferenças eles podem fazer na sociedade e na vida das
crianças e dos adolescentes. Mas, como recurso ou como objetivo pedagógico, não é
necessário pegar item por item e fazer uma aula de direitos, não é exatamente isso
que importa. O importante é que a noção de direito e de ser sujeito de direitos seja
percebida, sentida, experimentada na própria vida de crianças e adolescentes. Que
eles percebam o que fazer para defender a realização plena destes direitos, já
garantidos pelo ECA, e também a realização de outros que serão necessários ao
longo da vida.
Eu costumo partir, em minha experiência pedagógica de trabalho com direitos,
do artigo quarto do Estatuto que é, para mim, uma espécie de “espírito do ECA”, ou
seja, aquilo que ilumina o restante, que ilumina todo o resto que é detalhado a seguir.

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do


poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.

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Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de
relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas
sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
ECA - Artigo 4o

Desse artigo decorre uma série de coisas que são fundamentais, são
essenciais. Quero destacar que compreender-se como sujeito de direitos, dessa série
de direitos que estão elencados neste artigo e em todo o Estatuto, significa se dar um
novo lugar, perceber um novo lugar social para si. Isso é fundamental.
Cada criança e cada adolescente deve se perceber, se situar, dentro deste
contexto de direitos. Quando isso ocorre, muda o olhar da criança sobre si mesma, e
sobre o seu lugar no mundo. É importantíssimo, porém, pontuarmos que isto não
significa uma mudança arrogante, como alguns profissionais da educação debatem
muito comigo, quando dizem, por exemplo: “Se a criança se perceber como alguém
que tem direitos, então vai ter uma posição arrogante”. E isso não é verdade.
Perceber-se como sujeito de direitos estabelece uma posição de autoconfiança, de
percepção não subserviente. A criança percebe que não deve nada a ninguém, mas,
que tem direito. Percebe, por exemplo, que tem direito a estudar em condições
igualitárias, em uma escola de qualidade, que garanta o se desenvolvimento pleno,
tanto como para qualquer outra criança.
Obviamente, não dá para o professor sozinho trabalhar tantas coisas. Falar de
saúde, de educação, de alimentação, de tantas coisas. Portanto, se faz necessário um
diálogo com o extramuros, ou seja, para fora da escola. É possível convidar pessoas
para conversar sobre o que é o direito à educação, o que é uma alimentação
adequada, ou o direito a saúde em quais contextos ele se dá. Este diálogo com a
comunidade se faz necessário não só para se compreender melhor esta série de
direitos, como também é interessantíssimo para a própria comunidade, dialogar neste
patamar, com o pano de fundo dos direitos. As crianças e os adolescentes também
educam os nossos companheiros de comunidade. A educação é movimento, não é
uma coisa linear, é uma ação de diálogo de várias perspectivas. Portanto,
compreender a proteção integral, significa compreender a vida social de uma maneira
mais complexa também.

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Voltando para o papel do professor e da professora, nós temos algumas
possibilidades para trabalhar com os direitos nos vários espaços da escola, sempre
com a perspectiva pedagógica. É possível promover uma série de momentos
diferentes como gincanas, entrevistas na comunidade, fotografia, desenho,
observações sobre como o direito está sendo cumprido ou não, além do
reconhecimento de quais são os órgãos e lugares que existem para defender e
promover direitos na comunidade. Nesta experiência concreta, vai se internalizando e
naturalizando este novo lugar, que é o lugar de direitos. Uma série de atividades
diferentes e diversificadas, vão somar no amadurecimento deste processo.
Na secretaria de educação, no Distrito Federal, nós desenvolvemos um
trabalho que foi uma provocação a todos os diretores e diretoras de escolas públicas,
na época umas 600 escolas, para que os professores desenvolvessem alguma
proposta pedagógica na área de direitos e mais especificamente sobre o Estatuto.
É interessante perceber que as crianças, nesta experiência que utilizava a
linguagem artística, conseguiram captar da forma poética e traduzir de uma maneira
absolutamente profunda o que nenhum texto consegue dizer sobre os direitos. Elas
conseguiram chegar, às vezes poeticamente, a conclusões muito densas. Uma das
frases, que eu acho muito bonita, é de um garoto que trata da dignidade, dizendo o
seguinte: “Dignidade é a palavra que o surdo ouve e o cego vê”, ou seja, a
dignidade é uma experiência tão concreta que ela extrapola as próprias limitações.
Outra criança chegou à conclusão de que “a dignidade é uma palavra esquisita,
não sei bem o que é, mas acho que é um sentimento que, se destruído, dói por
dentro”. Percebam que crianças, quando passam por este tipo de experiência
pedagógica, jamais vão esquecer estes conceitos. É uma coisa que se internaliza, se
transformando em uma forma de perceber a própria vida.
Eu trago também uma experiência como visitante em escolas, organizando
adolescentes em oficinas para, juntos, efetivarmos uma aventura pedagógica que
movimenta a escola inteira. Nós possibilitamos, assim, um olhar mais crítico e
sensível. Esta é uma dimensão fundamental no processo, que constrói relações
absolutamente transformadoras, ou seja, que contemplam a participação e o
protagonismo. É preciso ressaltar sempre que educação em direitos e o protagonismo,
jamais têm a intenção de ser uma experiência de confronto de autoridades.
Infelizmente, muitos educadores ainda possuem esta visão de que protagonismo
significa questionar autoridade. Quando falamos de protagonismo, estamos tratando
de um campo de diálogo no qual todas as pessoas são importantes, pois se trata de
uma ação fundamentada no diálogo. Isso não significa dizer que o adolescente tem
sempre razão, mas sim, que ele tem opinião, assim como os professores, os pais e
mães etc, e que todas estas opiniões são colocadas para a construção de uma nova
perspectiva coletiva. Muitas vezes, não é possível construir consenso, mas sempre
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podemos intensificar o diálogo, e, quando isso acontece, as relações da escola se
transformam. As relações de conflito, por exemplo, deixam de ser agressivas, ainda
que o conflito continue existindo, pois ele é da natureza humana e da sociedade
democrática. Considerado necessário para a democracia, o conflito é visto como
negociação de realidade, de opiniões e de idéias. O que se transforma é a maneira de
lidar com os conflitos.
Quando defendemos uma educação em direitos, que trate da participação, ou
seja, de todos se colocarem dentro do processo para se construir novos saberes e
novas realidades, nós estamos falando de respeito, e isso é fantástico, é muito bonito.
E gostaria de chamar a atenção que muitas vezes nós, adultos, temos alguns vícios
que impedem a real vivência do protagonismo. Algumas coisas que podem parecer
detalhes mostram, como foi dito, que o nosso olhar determina o tipo de relação que
nós temos com qualquer pessoa, mas, em especial com os alunos, crianças e
adolescentes. Quando utilizamos, por exemplo, uma frase como: “temos que dar a voz
aos adolescentes”, ela significa que o entendimento é que a voz nos pertence, e nós a
concedemos aos outros. Mas não é assim. Todo mundo tem voz. Até aqueles que não
falam! Eles têm a sua voz simbólica, falam com as mãos, com desenhos, com a
escrita... Uma vez, no Fórum Social Mundial, em Quito, no Equador, eu vi uma frase
num muro que não me saiu mais da cabeça: “Pra que calar se eu nasci gritando?” Ela
nos lembra que não devemos silenciar o outro, mas ouvi-lo, e ouvir significa
considerar. Não necessariamente aceitando. Podemos não aceitar, mas devemos
considerar, como uma questão ou uma perspectiva importante do processo educativo
no qual todas as pessoas são importantes e se transformam, inclusive nós.

Compartilhando experiências
Eu gostaria de citar duas experiências para mostrar como não só é viável, mas
como é muito gostoso trabalhar com direitos na escola, vista como um local de
referência para a educação pedagógica em direitos. É possível trabalhar em todas as
faixas etárias. Eu tenho muita experiência com várias faixas etárias e várias etapas da
escola, mas quero citar duas, uma de quarta série e uma de ensino médio. Em
qualquer destas experiências, nós partimos dos recursos que temos, sejam eles
pedagógicos ou estéticos, pois trabalhamos muito com arte.
Na quarta série foi trabalhada a idéia de montar uma cidade. Perguntamos para
as crianças o que existe na cidade, elas foram falando e anotando: casas, edifícios,
lojas, farmácias, hospital, escola... Depois de citarem muitas coisas, problematizamos
um pouco mais, colocando questões como por exemplo: E se a pessoa morrer? “Ah,
tem que ter cemitério...” É muito interessante perceber como as crianças sempre
colocam muita diversão nas suas cidades. Sempre tem circo, zoológico, campinho de
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futebol, parquinho (aos montes), pista de skate... Depois das crianças falarem tudo o
que existe em uma cidade, elas foram desafiadas a representarem a cidade. Em
vários grupos desenhavam partes da cidade que depois era montada, formando um
imenso desenho. Temos alguns exemplos deste processo no material chamado
“Protagonismo Juvenil: Direitos, Cidadania e Orçamento Público”3.
Continuando o processo, foi discutido com os alunos a partir de questões
como: Nesta cidade as crianças estão felizes? Esta tudo bem ali? Os alunos
começaram a reparar que faltava um hospital, um posto de saúde, uma escola... E
problematizando cada vez mais, desafiamos as crianças a darem respostas mais
complexas, pensando sobre os direitos e como eles se realizariam na cidade. Foram
incluídos, então, nos desenhos, o Conselho Tutelar, a Defensoria Pública, o Ministério
Público, entendendo que este conjunto de instituições auxiliaria na garantia dos
direitos das crianças daquela cidade. Foi uma experiência bastante demorada, mas
divertidíssima, e muito gostosa de fazer com as crianças.
A outra experiência que quero relatar se refere ao ensino médio. Depois dos
alunos terem estudado a proteção integral, os direitos e o Estatuto de um modo geral,
propusemos que um direito específico fosse problematizado, para que eles
conhecessem mais a fundo os mecanismos que estavam colocados na lei. Foi
escolhido, coletivamente, o direito à educação, porque eles estavam na escola, e este
era um apelo muito forte naquele momento. A primeira atividade foi o levantamento da
concepção que estes adolescentes, meninos e meninas, tinham sobre o que
caracterizaria uma educação de qualidade. Isso representava uma coisa diferente da
escuta da secretaria de educação, por exemplo. Os próprios alunos colocaram o que
entendiam por um projeto político-pedagógico transformador da sociedade, com
gestão democrática dentro da escola.
Depois disto o grupo resolveu fazer uma pesquisa na escola, partindo da
questão: A escola real combina com a escola ideal? A problematização desta questão
foi feita como o uso de vídeos, fotografias e entrevistas. A escola inteira foi fotografada
e cada profissional foi entrevistado, para eles construírem uma conclusão. Também
passaram, para saberem como organizar os dados, por aulas sobre pesquisa. Isso foi
muito interessante porque esta aula de pesquisa, apesar de ser voltada para um
projeto específico, deu suporte para toda a experiência pedagógica, ou seja, para
outros momentos e atividades e não somente para esta pesquisa. Também fizemos
uma oficina de comunicação e o projeto foi concluído com um vídeo.
No mesmo ano, os alunos deste projeto participaram de aulas sobre orçamento
público, mostrando como é fundamental que se saiba a relação entre orçamento e

                                                            
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Disponível no site do INESC -
http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/cartilha/PROTAGONISMO%20JUVENIL.pdf 8
 
 

 
 
 
 
 
 
direito, porque para o direito ser de fato prioridade, como consta no Estatuto, é
essencial que esta prioridade seja traduzida como orçamento, ou seja, que o governo
destine recursos para efetivar a escola de qualidade que se espera. Após estudar o
orçamento e conhecer a escola, os alunos participaram de uma audiência pública e,
nela, questionaram a diminuição de valores que estariam destinados à melhoria da
educação. Por fim, concluindo o processo, eles apresentaram uma proposta de
emenda orçamentária que foi aprovada, no valor de dois milhões de reais. É
interessante dizer que no grupo de adolescentes que participaram nós tínhamos
deficientes e filhos e filhas de catadores de materiais recicláveis, por exemplo, que
conseguiram desenvolver argumentações importantíssimas, conquistando a efetivação
de um direito que beneficiou não só a escola deles, mas as crianças e adolescentes
de todo o Distrito Federal.
É muito interessante mostrar que isso não é complicado, não é uma coisa difícil
de fazer, pelo contrário, são momentos de extrema alegria. E eu quero destacar aqui a
alegria do ponto de vista de Espinosa, que diz que: A alegria é o aumento da minha
força interna e o aumento da capacidade de agir. E a tristeza é a diminuição da força
interna, a diminuição da capacidade de agir. É possível conseguir esta realização não
somente no plano pedagógico, mas no plano das realizações humanas. Eu gosto
muito de falar isso, de dar destaque a isso, porque não é difícil, pelo contrário, quando
nós estamos imbuídos deste sentimento de alegria, a experiência flui.
É preciso, porém, que estejamos bastante atentos sobre qual a melhor
linguagem para trabalhar em cada momento, e qual o melhor recurso pedagógico, mas
sempre considerando que o movimento é bom e desejável na escola. O movimento de
corpos, de idéias, o movimento humano de maneira geral. É interessante que as
pessoas saírem dos seus lugares, porque isso também significa sair simbolicamente
dos seus lugares atuais, construindo um novo lugar, ou seja, uma sociedade onde
todas as pessoas, adultos e crianças, adolescentes e jovens, homens e mulheres,
brancos, negros, deficientes e não deficientes, homossexuais, lésbicas, enfim, que
todas as pessoas tenham dignidade.

Escola e notificação de violações de direitos


É importante destacar ainda, o papel da escola em relação à criança que tem
os seus direitos violados. É papel da escola, como de qualquer autoridade, de
qualquer adulto, zelar pelos direitos e encaminhar situações de violação, porém,
alguns pontos são fundamentais.
Primeiro que toda a comunidade escolar tenha entendido, compreendido, o que
é o direito da criança e do adolescente. Entender, por exemplo, que o trabalho infantil
é uma violência, uma vez que rouba da criança a sua infância, a sua capacidade
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intelectual, inclusive de desenvolver plenamente a sua escolaridade em condições
igualitárias em relação a todas as crianças. É preciso que cada professor e professora,
cada servidor da escola, cada merendeiro e porteiro entendam que violência
doméstica é uma coisa inadmissível, que compromete profundamente a vida da
criança, não só no aspecto escolar, mas de um modo geral. É preciso compreender
que a existência de crianças envolvidas com a exploração sexual é um absurdo,
representando uma violência contra a humanidade inteira, contra todas as pessoas.
O próprio Estatuto responsabiliza a escola, os professores e professoras e
todos os adultos que estão em torno da criança, em relação à proteção e defesa de
seus direitos e encaminhamentos. Em relação a isso é preciso partir do lugar da
sensibilidade, do cuidado humano e não burocrático, apenas. A criança não é um
caso, é uma pessoa, com toda a complexidade e riqueza que todas as pessoas têm. É
fundamental que se trabalhe dentro dos princípios do sigilo, do cuidado com a sua
proteção, com a sua dignidade, agindo de forma a não expor a criança, para não
violentá-la novamente, dando os encaminhamentos através dos Conselhos Tutelares,
dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e dos Adolescentes.
Os encaminhamentos devem ser feitos, não somente porque estão previstos
na lei, mas, fundamentalmente porque nós estamos diante de uma pessoa que sofre,
e que muitas vezes, sofre sem saber que aquilo que ela está vivendo é uma violência.
Muitas vezes, a violência está colocada para ela como uma coisa tão cotidiana que ela
não percebe o que é a não-violência. Certa ocasião, em um trabalho no qual pedíamos
para as crianças falarem sobre direitos, muitas delas citavam o direito de não serem
espancadas todos os dias, ou de não serem violentadas sexualmente, ou seja, a
percepção passou a ser a de negação de uma violência, e muito raramente, as
crianças percebiam que tinham direitos acima disso, que tinham direito à condições
dignas de vida.
A obrigação de denunciar existe, como vemos no próprio Estatuto:
“os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos contra crianças e
adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da
respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”
ECA - artigo 13

E ainda.

“Deixar o médico, o professor, ou responsável pelo estabelecimento


de proteção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de
comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento
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envolvendo suspeita ou confirmação de maus tratos contra criança ou
adolescente, pena de multa de três a 20 salários de referência, aplicando-se
o dobro em casos de reincidência”.
ECA – artigo 245

Observem mais uma vez que estas providencias todas devem se dar sempre
no campo ético e do cuidado humano, e não apenas no campo da lei. Nós temos
responsabilidades, que são somadas às de outras estâncias e profissionais. Enfim,
todos devemos assegurar que todas as crianças e adolescentes tenham a sua vida
protegida, o seu desenvolvimento garantido.
Também quero destacar a fala de uma criança que reflete o que é viver em
proteção, em situação de direitos. Esta fala também foi produzida dentro de um projeto
pedagógico de escola, naquele momento estava sendo discutido o direito à liberdade,
e a criança diz: “sou livre quando sou capaz de amar o instante da vida que eu
tenho nas mãos”, portanto quando a gente fala de trabalhar com os direitos da
criança e do adolescente e o ECA na escola, nós estamos falando de garantir as
condições para que todas as crianças amem todos os instantes de suas vidas.
Ao trabalharmos com crianças pequenas sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente, é possível perceber que a compreensão delas sobre o Estatuto é que se
trata de um instrumento amoroso. Eu achei muito bonito e interessante isso, pois,
apesar de nós não legislarmos sobre o amor, a leitura que a criança faz sobre o
Estatuto é de um instrumento que defende relações amorosas. Em outra produção,
uma criança diz: “Eu tenho o direito a amor e carinho, mas não só no nascimento,
não. Eu também quero ter amor até o infinito” (Rafaela – 7 anos).
Creio que esta é uma dimensão fundamental que nós não podemos esquecer:
a amorosidade em relação às pessoas, e que o Estatuto, no fundo, nos traz esta
grande novidade. Embora não seja explícito, porque, como eu disse, não se pode
legislar sobre o amor, as crianças sentem que quando elas são educadas em um
contexto de direitos, de respeito à sua dignidade, elas estão num contexto amoroso.

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