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Sheba
Os heróis
Ver para crer
A Montanha
A floresta
Sonhos
Corpo e alma
Seguindo em frente
Noite imortal
A cilada
O de alma mais valente
A resposta
Em uma manhã, o povoado de Rin acordou e descobriu que
o córrego que descia pela Montanha e atravessava a
aldeia havia se reduzido a um pequeno filete de água. Ao
anoitecer, até aquele fio de água tinha sumido. A roda do
moinho estava imóvel. Não havia água para girar suas pesadas
pás de madeira. O pequeno lago onde os bukshas bebiam, do
outro lado da aldeia, permanecia parado. Nenhum fluxo de água
chegava até ele para que sua superfície borbulhasse, cheia de
vida, e o lago se mantivesse coberto até a borda.
Nada mudou no segundo dia, nem no terceiro. No quarto dia,
a água do lago estava densa e marrom. Os bukshas balançaram
suas pesadas cabeças e bateram as patas contra o chão quando
foram beber água de manhã e ao entardecer.
Depois de cinco dias, o lago estava tão raso que até a
pequena Annad, que só tinha 5 anos, conseguia tocar o fundo
sem molhar a manga de sua blusa. E a água continuava a não
aparecer.
Na tarde do sexto dia, o povo bastante preocupado reuniu-se
na praça do mercado para discutir o assunto.
- Os bukshas não conseguiram beber nada hoje - Lann
disse. Ela era a habitante mais velha da aldeia e um dia foi a
maior dentre todos os seus guerreiros. - Se não agirmos rápido,
eles vão morrer.
- Não a Estrela - Annad sussurrou para seu irmão, que era
o guardião dos bukshas. - A Estrela não vai morrer, vai, Rowan?
Você vai dar para ela um pouco de água do nosso poço.
- Os bukshas não podem beber a água do nosso poço,
Annad - Rowan explicou. - Eles precisam de água mais doce,
senão ficam doentes. Eles só podem beber a água que vem da
Montanha. Sempre foi assim. Se o córrego não se encher, a
Estrela vai morrer, como todos os outros.
Annad começou a chorar bem baixinho. As crianças de Rin não
deveriam chorar, mas Annad era muito pequena e amava Estrela.
Rowan olhava em frente, firme. Não havia lágrimas em seus olhos,
mas seu peito e sua garganta doíam cheios de tristeza e medo. A
tristeza era por Estrela, sua amiga buksha, a mais forte e ao
mesmo tempo a mais gentil de todos, e por cada uma das outras
enormes criaturas corcundas, cobertas de lã, que ele conhecia
pelo nome. O medo, no entanto, era por ele mesmo. Por ele, por
Annad, pela mãe deles e até mesmo por toda a aldeia.
Annad não sabia, mas Rowan sim: sem os bukshas, não haveria
mais o cremoso leite para se tomar, nem queijo e nem manteiga
para se comer. Não haveria mais a grossa lã cinza para fazer as
roupas. Não haveria mais ajuda para arar os campos ou carregar a
colheita. Não haveria mais costas largas para transportar as
cargas de grandes viagens até o litoral para trocar mercadorias
com o inteligente e tranqüilo povo de Maris. A vida de todo o
povoado de Rin dependia dos bukshas. Sem eles, a aldeia também
morreria.
Annad não conseguia imaginar o vale sem a aldeia, ao contrário
de seu irmão. Quando Rowan lia histórias antigas na biblioteca ou
quando ouvia, já meio adormecido, Timon dando aulas sob a
árvore e, principalmente, quando se sentava na grama ao lado do
córrego enquanto os bukshas pastavam no silêncio da manhã, o
garoto costumava imaginar como os colonos deveriam ter visto
aquele lugar pela primeira vez.
Centenas de anos atrás, eles tinham subido pelas colinas,
carregando nas costas as poucas coisas que possuíam, procurando
um local nessa terra estranha que pudessem tomar para si. Eles
tinham vindo de muito longe, do outro lado do oceano, após
lutarem contra um terrível inimigo. O povo nômade do litoral,
conhecido como os viajantes, tinha mencionado um lugar ao pé de
uma montanha proibida, bem longe da costa, no meio do
continente. Os colonos caminharam por muitos e muitos dias
procurando esse lugar. Eles estavam exaustos. Alguns até já
tinham perdido as esperanças. Então, em uma tarde, eles
chegaram ao topo de um morro e olharam para baixo. Ali,
abrigado entre uma montanha altíssima ao fundo e as colinas onde
eles estavam, havia um vale escondido, coberto de vegetação.
Eles ficaram ali, admirando a paisagem sem dizer uma palavra.
Viram árvores carregadas com pequenas frutinhas azuis e campos
de flores que não conheciam. Eles avistaram um córrego, um lago
e um rebanho de estranhas criaturas cinza levantando suas
cabeças com chifres que brilhavam ao sol para ver quem se
aproximava. Ali, eles encontraram silêncio, tranqüilidade, uma
terra rica e paz. Aquele era o lugar perfeito. Seria o lar desse povo.
Então eles desceram a colina e se misturaram com os enormes,
porém gentis, animais, que eram mansos e não se assustavam
com a presença daquelas pessoas. Eles foram chamados de
bukshas.
- O córrego vem da Montanha - a voz alta de Bronden, a
carpinteira, interrompeu os pensamentos de Rowan. Ele a
observou cortar o ar com seu dedo grosso, apontando ao longe. -
Então o problema deve ser lá. Tem alguma coisa errada lá em
cima. Alguma coisa está impedindo a água de descer.
Todos os olhos se voltaram para a altíssima montanha, com o
topo escondido pelas nuvens, como sempre.
- Temos que subir a Montanha para descobrir o que é -
Bronden continuou. - É a nossa única chance.
- Não! - Neel, o oleiro, balançou a cabeça. - Não podemos subir
a Montanha. Até os viajantes não se arriscam a ir lá. Há perigos
terríveis esperando quem se atrever a subir. E, lá em cima, no
topo... tem o Dragão.
Bronden zombou dele:
-Você está parecendo um viajante louco, Neel! Não tem dragão
nenhum. O Dragão é só uma história que contamos para as
crianças se comportarem. Se existisse mesmo um dragão, nós já o
teríamos visto. Ele viria caçar os bukshas... e o nosso povo.
-Talvez ele vá caçar em outro lugar. Não sabemos nada sobre
isso, Bronden - a voz calma e agradável de Allun, o padeiro, falou
no meio da multidão que cochichava. - Perdoe-me por parecer um
viajante louco... lembrando que o meu pai era um deles e que não
se poderia esperar outra coisa de mim... mas outras coisas nós
sabemos - seu rosto sempre sorridente estava sério quando ele
encarou Bronden. - Ouvimos o seu
rugido quase todas as manhãs e todas as noites. E vemos o seu
fogo nas nuvens.
Bronden girou os olhos com desprezo, mas Rowan estremeceu.
Quando cuidava dos bukshas nas frias e escuras manhãs de
inverno e nas tardes em que o sol se escondia atrás da Montanha,
Rowan ouvia o som do Dragão. Ele também já tinha visto o fogo,
no céu acima das nuvens. Os bukshas se agitavam e ficavam
bastante inquietos nesses momentos. Os filhotes berravam, e os
mais velhos baliam as patas contra o chão, fungavam e se
agrupavam com medo. Até Estrela soltava um gemido ao ouvir o
Dragão rugir e, quando Rowan a acariciava no pescoço para
acalmá-la, ele sentia suas veias pulando sob a sua fofa e espessa
camada de lã.
De repente, ele se deu conta de algo. Algo cm que ninguém
tinha pensado antes, ao que parecia. Ele precisava falar. Nervoso,
ele se levantou. O povoado o encarou curioso. O que Rowan, o
pequeno e tímido guardião dos bukshas, teria a dizer?
-O Dragão não rugiu mais desde que o córrego secou – Rowan
disse. - Nem de manhã, nem à noite.
Ele se esforçou para falar bem alto, mas sua voz parecia
pequena no meio daquele grande silêncio. Então o garoto se jogou
de volta em seu lugar.
-É mesmo? - Allun passou os olhos pelo povo. - O garoto tem
razão?
- Sim, ele está certo - Bronden confirmou devagar. - Estou me
lembrando agora. Na verdade, faz dias que não vem nenhum som
da Montanha - ela ergueu a cabeça - Então estou certa. Tem
alguma coisa errada lá em cima. Já disse o que temos que fazer.
- Mas não podemos fazer isso - Neel insistiu temeroso. - A
Montanha é muito íngreme, muito perigosa. Não conseguimos
subir.
- Será que alguém já tentou? - Allun questionou.
- Já! - confirmou Marlie, a alta e imponente tecelã e tintureira.
-No passado, algumas pessoas escalaram a Montanha em busca
de novas frutas para plantar em nosso pomar. Mas elas nunca
voltaram. Depois disso, o povo de Rin entendeu o aviso e deixou a
Montanha em paz.
- Está vendo só? - Neel se zangou. - Está vendo? Se subirmos a
Montanha, vamos morrer.
- Mas, Neel - Bronden retrucou -, se não subirmos a Montanha,
também vamos morrer.
- A Bronden tem razão. Temos que nos decidir - disse Jonn
Forte, o responsável pelo pomar. - Ou ficamos aqui e torcemos
para que o córrego se encha de novo sozinho, ou subimos a
Montanha e tentamos tirar do caminho o que estiver impedindo a
água de descer. As duas opções são arriscadas. O que decidimos?
Vamos ou ficamos?
- Temos que ir - Marlie opinou. - Não podemos simplesmente
ficar aqui esperando a morte atacar aos poucos a nossa aldeia.
Sou a favor de irmos.
- Eu também - Bronden gritou.
- Eu também voto a favor - Jonn Forte disse.
- E eu - Allun acrescentou.
- Sim! Nós concordamos! - gritou a forte Vai, a chefe do
moinho, que tinha ficado debaixo da sombra, ouvindo em silêncio.
Como sempre, ela estava ao lado de Ellis, seu irmão gêmeo. Val
e Ellis faziam um trabalho pesado no moinho, triturando os grãos
até virarem farinha e sempre limpando a enorme construção de
pedra, para que nenhuma partícula de poeira nem o menor
fiozinho de teia de aranha pudesse ser visto nas paredes. Jiller, a
mãe de Rowan, dizia que desde a infância ninguém nunca tinha
visto os dois separados.
-Sim!
-Sim!
-Sim!
Um por um, os moradores da aldeia se levantaram. Rowan
olhou em volta, vendo ao seu redor os rostos familiares, agora
sérios e firmes. Maise, que cuidava da biblioteca, estava de pé, ao
lado de seu casal de filhos. Também estavam de pé Timon, o
professor, Bree e Hanna, os jardineiros. A já grisalha Lann se
apoiava em sua bengala ao lado deles. Até mesmo o rechonchudo
e gentil Solla, que fazia deliciosos doces e bolos aos quais nunca
conseguia resistir, tinha se esforçado para ficar de pé. Então
Rowan viu Jiller se levantar lentamente e se unir a eles. Com o
coração batendo cheio de medo, ele esticou as pernas trêmulas e
ficou de pé ao lado da mãe.
Somente Neel e outras quatro pessoas permaneceram
sentadas.
- Então, está decidido - Bronden gritou triunfante. - Vamos nos
preparar e partimos ao amanhecer.
- Espere! - Marlie pediu. - Não devemos ir sem antes pedir a
opinião da Sheba.
- Aquela bruxa velha e louca? Aquela curandeira de dores no
estômago que faz as crianças terem pesadelos? O que ela tem a
ver com isso?
- A Sheba é velha, Bronden, mas não é louca - Marlie disse em
tom firme. - Qualquer um que tenha sido curado de alguma
doença com os remédios dela pode confirmar isso para você. A
Sheba entende de outras coisas além de ervas e feitiços. Ela
entende da Montanha como você e eu nunca conseguiremos
entender. A Sheba sabe o caminho até a Montanha. A Grande
Sábia que veio antes dela a ensinou o caminho secreto. Devemos
pedir para ela nos ajudar.
- É uma boa idéia - Jonn Forte concordou.
As pessoas começaram a murmurar. Muitos não confiavam em
Sheba, a Grande Sábia. Ela morava sozinha em uma cabana
depois do pomar, cultivando ervas medicinais e outras plantas e
vendendo os remédios, óleos e tintas que elaborava com o que
colhia. Ela praticamente não conversava com ninguém, só com os
que negociava. E, quando ela dizia algo, raramente era agradável.
As crianças de Rin eram uma turminha corajosa, como toda a sua
raça. Mas elas tinham medo de Sheba e não a chamavam de
Grande Sábia, mas de bruxa.
- Ah, por favor! Que mal pode fazer? - Allun disse,
arreganhando os dentes. - Se a velha puder nos dizer uma
coisinha que seja, o que eu duvido, ótimo. Se ela não puder, não
perdemos nada.
- A tolice dos viajantes! - Bronden criticou. - Isso aqui não é
brincadeira, Allun. Por que você não...?
- Já chega! - a idosa Lann gritou. Ela encarou Bronden, que
franziu a testa. - Estamos indo em direção ao desconhecido - ela
disse com firmeza. - E o tempo é precioso. Não podemos perder
nenhuma chance de pegarmos o caminho certo. Quem aqui é o
que mais conhece a Sheba?
- Eu a conheço um pouco - Jonn Forte afirmou. - Ela vive
apanhando uma erva que cresce debaixo das árvores de balango
lá no pomar.
- Eu sempre negocio com ela - Marlie disse. - Pego tintas roxas
e azuis em troca de tecido.
- Então vocês dois podem ir lá implorar para ela fazer um favor
para nós já que parecem tão dispostos - Bronden se intrometeu e
virou as costas para eles.
- Esperamos aqui até vocês voltarem - Allun disse. - Sejam
rápidos. Temos muito o que planejar - ele riu - e tomem cuidado
para não a insultarem. Ela é como a Bronden: não é mulher que
goste de gracinhas.
Jonn Forte olhou em volta, observando os habitantes que
assistiam à discussão. Então ele apontou alguém. Rowan deu um
pulo. O dedo de Jonn apontava para ele!
- Menino Rowan - Jonn Forte chamou. - Coelhinho, guardião dos
bukshas! Corra e pegue dois queijos na casa de frios. Dos mais
velhos, mais firmes, na prateleira de cima. Leve-os para nós, lá na
cabana da Sheba. A Sheba adora um queijo bem firme. O humor
dela vai melhorar
com o presente.
Rowan ficou de olhos arregalados e boca aberta, sem se mover.
Ele tinha pavor de Sheba. A mãe dele o cutucou.
- Eu vou - a pequena Annad se ofereceu, ao lado dele. - Eu não
tenho medo.
Alguns risos soaram no meio da multidão.
- Vá com ela, Rowan - Jiller pediu com um sussurro. - Faça o
que pedem para você. Pelo menos uma vez!
Rowan cruzou pelo meio do povo a passos largos.
- Esse garoto tem medo da própria sombra... - ele ouviu Val
cochichar para o irmão quando passou por eles. - Ele nunca vai ser
o homem que o pai dele foi.
Ellis concordou com um gemido.
Rowan continuou às pressas, com as bochechas queimando de
vergonha.
Rowan ofegava quando chegou à casa de frios. Tremendo, ele
subiu a escada e retirou da prateleira dois dos queijos mais
velhos. O local estava carregado de queijos, de barris com
coalhada cremosa e de tigelas cheias de manteiga. Havia mais
que o suficiente para todos. Mas não por muito tempo se novos
estoques não substituíssem os antigos, à medida que fossem
consumidos.
Ele saiu da casa de frios e se dirigiu correndo à cabana de
Sheba, que ficava logo depois do pomar. Ele podia ouvir o
barulho da multidão ainda reunida na praça do mercado e ficou
aliviado por não precisar passar por eles no caminho. Enquanto
ele se encaminhava para as margens do vilarejo, Rowan pensava
no que Vai havia dito. Tropeçando um pouco na grama
desnivelada, ele chegou até as árvores de balango. Enquanto
desviava dos galhos torcidos e dependurados, ele pensava em
Sefton, seu pai.
Uma noite, logo após o nascimento de Annad, ao sair tarde do
mercado, Sefton encontrou sua casa cm chamas. Um pedaço de
lenha havia caído da fogueira e começado a queimar o piso do
andar térreo. Chamas atacavam a escada, e a casa estava
tomada de fumaça. Sefton gritou por ajuda e em seguida pulou
por cima da escada flamejante. Ele retirou Jiller, já inconsciente, e
a pequena bebê de suas camas e as levou para fora, onde
estariam seguras. Então, enquanto as chamas aumentavam,
cada vez mais quentes e mais altas, ele jogou um cobertor sobre
sua cabeça e entrou novamente na casa, atrás de Rowan, que
estava no quarto do andar de cima. Disseram que ninguém
conseguiu impedi-lo, mesmo com o calor e a fumaça intensos o
suficiente para afastar todos os outros. Até Val e Ellis, o enorme
casal de irmãos do moinho. Até Jonn Forte, amigo de Sefton e
reconhecido por sua força.
As pessoas puderam ver Sefton pela janela do quarto de
Rowan, com o filho nos braços. Eles o observaram abrir a janela e
o ouviram gritar. Em seguida, correram para agarrar o que ele
atirava pela janela: seu filho, berrando de pavor, todo enrolado em
uma manta. Então, eles ouviram um barulho e viram o teto cair e
as chamas saltarem e zunirem. Jonn Forte, embalando Rowan em
seus enormes braços, soltou um grito de aflição. Sefton tinha
salvado sua família. Mas ele havia deixado seus familiares. Para
sempre.
Rowan havia crescido sabendo que seu pai tinha morrido para
salvá-lo. Ele também sabia, embora ninguém nunca tivesse dito,
que muitas pessoas da aldeia de Rin sentiam que a troca não tinha
sido justa. Hoje, o povoado se formava de fazendeiros e
comerciantes, mas todos descendiam de grandes guerreiros. Na
geração deles, quando Rin foi ameaçada, muitos dos mais velhos
haviam lutado para defender o vilarejo. A Guerra das Planícies
ainda estava viva na memória do povo e registrada em dezenas de
livros na biblioteca. O povoado de Rin tinha orgulho de sua história
de coragem.
Desde bem cedo, todas as crianças da aldeia aprendiam a
correr, escalar, saltar, nadar... c lutar. Rowan havia treinado junto
com os outros, mas nunca tinha sido bom cm nada. Ele sempre foi
pequeno para a sua idade, além de muito tímido. E, desde a noite
do incêndio, ele passou a ser ainda mais calado e nervoso do que
antes. "A Val está certa", ele pensou. Ele nunca seria o homem
que o pai dele havia sido. E também não teria a força de sua mãe,
que havia passado a trabalhar ainda mais depois da morte de seu
pai, lavrando os campos de trigo com Estrela, plantando e
colhendo, levando as safras para o moinho.
Rowan tinha ficado com a função de pastorear os bukshas
porque era fácil. Tomar conta das grandes e gentis criaturas não
exigia força nos braços nem muita coragem. Somente uma vez,
anos atrás, houve um episódio ruim com uma guardiã dos
bukshas. A entrada da mina na qual ela havia caído quando
tentava resgatar um filhote perdido tinha sido fechada havia muito
tempo. Uma criança bem mais nova que Rowan poderia fazer o
trabalho. Mas permitiram que ele continuasse cuidando dos
animais, fato que o garoto agradecia muito.
Os bukshas o adoravam e conheciam sua voz. Eles o
encaravam com seus doces olhos castanhos e acariciavam as
mãos do garoto quando ele estava triste, como se soubessem de
seus problemas. Em troca, ele se esforçava para fazer a vida dos
animais a mais confortável possível. Ele aprendia como curar suas
doenças, cuidando de seus machucados e arranhões da mesma
forma que sua mãe cuidava dos dele, retirava os nós de seus pêlos
e os espinhos que grudavam em sua lã. Quando a neve do inverno
atingia o vale, ele levava os mais velhos e enfraquecidos para o
abrigo, pois sabia que o vento gelado poderia matá-los, e ele não
suportaria perder nem um dos animais. Na primavera, quando o ar
ficava carregado com a doçura das flores do pomar, ele corria,
brincando com os filhotes, e levava para eles um punhado de
ervilhas que roubava dos jardins quando ninguém estava olhando.
Rowan parou para escutar. Ele podia ouvir as criaturas no
campo ali perto, resmungando e fungando umas para as outras
enquanto o sol começava a mergulhar atrás da Montanha. Ele
desejou estar com os bukshas, e não ali, tropeçando no próprio pé,
no meio pomar. Nos braços, os queijos com um cheiro forte; na
cabeça, temores dos quais sentia vergonha.
Rowan se desviou da cerca que demarcava os limites do pomar.
Seus passos diminuíram de velocidade quando viu uma luz
trêmula vinda da cabana de Sheba. Apesar do ar frio do
entardecer, a porta estava aberta, e sombras gigantes se
agitavam e rastejavam na estranha grama pálida que crescia ao
lado da cabana. Ele recomeçou a tremer quando se aproximou.
Dois dos filhos de Bree e Hanna uma vez tinham dito a Rowan
que Sheba poderia transformar qualquer pessoa em uma lesma
gorda se ela quisesse. Eles apontaram para as lesmas que
retiravam das folhas do repolho:
- Um dia, essas lesmas foram pessoas de verdade - eles
disseram. - Olhe só... Aquele ali é nosso tio Arthal. Sabemos que é
ele por causa da mancha na testa. Ele colocou um tomate podre
dentro da bolsa que deu para a Bruxa em troca de um remédio
para dor de estômago. Um tomate podre em uma bolsa com 20. E
foi isso o que ela fez com ele. Adeusinho ao tio Arthal! Agora
temos o tio Lesma. Quer dar um beijo nele?
Eles empurraram o bicho contorcido contra a boca de Rowan e
saíram gargalhando atrás dele enquanto o garoto fugia correndo.
Rowan sabia que aquela história era provocação deles. Sabia
mesmo. Mas às vezes, à noite, na cama, ou se um buksha ia parar
perto da cabana de Sheba e ele tinha que ir até lá para pegá-lo, a
brincadeira dos dois ressurgia em sua memória. Então ele se
lembrava daquela lesma gorda e lerda com a mancha na testa e
estremecia.
Quando Rowan estava no meio das sombras sobre a grama,
chegaram até ele algumas vozes vindas de dentro da cabana.
Eram Jonn Forte e Marlie. E outra voz, aguda, mas baixa. Era
Sheba.
- O córrego vem do topo da Montanha, de cima das nuvens –
ela dizia. - Da terra e das pedras ela sai para vir até Rin. Então
vocês devem escalar a Montanha, até o topo, meus bons amigos. E
ninguém conhece o caminho secreto, além da Sheba! - ela soltou
uma risada sarcástica.
Rowan pensou em deixar os queijos no chão, na soleira da
porta, e voltar correndo para casa. Entretanto, quando ele deu um
passo à frente, um galho se partiu debaixo de sua bota.
- Finalmente! - a cabeça de Jonn Forte apareceu na porta. Ele
colocou seu braço atrás das costas de Rowan e o forçou para
dentro da cabana. - O garoto com os queijos. Nosso presente para
você, Sheba – ele disse cordialmente. - Em troca por sua
explicação do caminho.
A velha sentada ao lado da fogueira cheirou o ar e estalou os
lábios com um tom de gula.
- Os queijos! - ela olhou com satisfação. Então franziu a testa e
espremeu os olhos - Traga-os aqui - ela pediu - mais perto,
menino.
Rowan hesitou. Marlie, que estava ao lado dele, deu-lhe um
leve empurrão. Seus pés pareciam ser de pedra. Ele os forçou para
a frente, um passo por vez.
- O que você está escondendo? - Sheba perguntou em tom
ríspido, levantando-se um pouco de sua cadeira. - Eu disse mais
perto, menino! Venha até aqui e deixe esses famosos queijos no
meu colo. Como é que eu vou saber se não estão me enganando?
Tentando me empurrar coisas de má qualidade?
- São os melhores que temos, Sheba - Marlie disse. - O próprio
Rowan os escolheu lá na prateleira de cima da casa de frios. Você
vai gostar.
- É o que você diz - Sheba fez uma careta.
Ela curvou os ombros e encarou Rowan. À luz da fogueira, seus
olhos pareciam vermelhos. Sobre sua testa, estava preso um trapo
roxo, e seus cabelos caíam como finas trancas cinza ao redor de
seu rosto. Ela cheirava a cinzas e poeira, a roupa velha e ervas
amargas. Rowan foi até a cadeira, colocou os queijos redondos
sobre o colo dela e recuou bem devagar, prendendo o fôlego e
tentando não olhar para ela.
Mas Sheba já tinha perdido o interesse por ele. Ela cutucava os
queijos amarelos com seus dedos ossudos, cheirando
cuidadosamente cada um dos dois. Rowan abraçou a si mesmo e
estremeceu enquanto se protegia daqueles terríveis olhos
vermelhos ao se esconder atrás da alta Marlie. E se ele tivesse
feito uma má escolha? E se os queijos afinal não fossem bons? E
se Sheba achasse que ele estava tentando enganá-la?
A velha levantou o olhar:
- Estão bons - ela anunciou. - Como você disse que estariam,
Jonn do Pomar.
- Obviamente - Jonn Forte fez uma reverência para ela.
- Agora, Sheba - Marlie começou com firmeza -, vai nos dizer o
que queremos saber?
- Ah, corajosa Marlie! - Sheba soltou uma risada desagradável.
Ela apanhou alguns gravetos de uma cesta ao lado dela e os
jogou na fogueira. À medida que os gravetos pegavam fogo, as
chamas aumentavam. As sombras dançavam no rosto de Sheba
quando ela se voltou para os outros:
- Corajosa enquanto faz seus tecidos, na segurança de sua
casa, e fica sonhando que todos a reconheçam por isso. Mas você
continuará corajosa na Montanha? A Montanha domina muito bem
mulheres corajosas como Marlie, que são tolas o suficiente para
tentar usar sua força contra ela. A Montanha tem muitas... muitas
formas de dominar vocês... como vão descobrir.
Rowan percebeu Marlie ficar tensa e viu suas bochechas
começarem a flamejar:
- Não precisamos de seus avisos, Sheba - ela disse em um tom
firme.
- E Jonn! Jonn Brasa, protetor das árvores! Um homem distinto,
alto! - a velha gracejou, ignorando Marlie. - Você vem até aqui
para me pedir um favor. Mas o que você foi um dia senão um
menininho esfarrapado, quase pelado, chorando pela mamãe
quando a Sheba passava por perto? - ela mostrou para ele os
compridos dentes marrons em um sorriso sinistro. - A Montanha
não irá testar sua força, Jonn. Ela irá destruí-la. Da mesma forma
como destruiu a força de homens duas vezes mais corajosos que
você. Você vai se contorcer e berrar como um bebê no berço
quando estiver na Montanha. Mas a Montanha não vai deixar você
escapar.
Houve um instante de silêncio. Rowan estava congelado de
terror.
Jonn Brasa riu. Então ele colocou as mãos no quadril e se dirigiu
com seriedade à velha:
- Pare com suas historinhas, Sheba - ele disse. - Elas não
impressionam, nem a mim, nem a Marlie. O pequeno Rowan é o
único que pode temê-las aqui. Você não pode achar que somos
tolos o suficiente para seguir o exemplo dele. Olhe só, você quase
matou o menino de susto, esse pobre coelhinho magricela. E ele
escolheu queijos excelentes para você! Você deveria pedir
desculpas a ele.
Sheba começou a arreganhar os dentes, mas seus olhos tinham
um brilho vermelho vivo.
- Então, ria, Jonn do Pomar - ela zombou. - Se o garoto é o
único com medo aqui, então ele é o único de vocês que está com a
razão. Não faria mal nenhum ser guiado por ele! - Novamente ela
se inclinou para a cesta ao lado. - E, realmente, devo pedir
desculpas a ele - Sheba gargalhou.
Então, rápida como o bote de uma cobra, ela jogou um graveto
na direção de Marlie, que gritou e pulou para o lado assustada,
deixando que o pedaço de madeira em chamas atingisse
diretamente Rowan.
O garoto cambaleou para trás e quase caiu. Ele agarrou o
graveto com as mãos e viu sangue começando a pingar de uma
ferida em sua testa. Jonn Brasa soltou uma exclamação de raiva e
deu um passo à frente com os punhos cerrados.
- Um presente da Sheba - a velha rosnou. - E eu lhe peço
minhas desculpas, Rowan dos Bukshas.
- Sheba, você foi longe demais! - Jonn Forte esbravejou.
Os lábios dela se curvaram:
- Fui? - ela perguntou. - Bem, então talvez seja hora de
encerrar esse encontro.
- Não até que você nos diga o que viemos aqui para ouvir -
Marlie intimou. Ela olhou Rowan, escondido nas sombras. - E
rápido! Precisamos cuidar da testa do menino.
- É só um arranhão - Sheba disse tranqüila. - Mas, de qualquer
forma, estou farta! Não agüento mais essa infantilidade de vocês.
Vou dizer o que vocês querem saber. Pelo menos, o que eu posso.
Esperem.
Ela se recostou em sua cadeira e fechou parcialmente os olhos.
Suas mãos acariciaram os queijos em seu colo como se fossem um
par de gatos. A fogueira ardia. Ela começou a sussurrar e
murmurar coisas para ela mesma. Por um tempo, ninguém
conseguia entender suas palavras. Então, finalmente, ela disse
com clareza:
***
***
***
***
***
Rowan enroscou seus dedos com mais força nos pêlos macios e
úmidos de Estrela.
-Em casa - ele repeliu, saboreando a palavra.
Sua cabeça estava a mil. Tudo tinha acontecido muito rápido. A
jornada deles de Rin até a caverna do Dragão havia levado longos
dias e noites. A volta, aquela terrível descida pelo córrego
subterrâneo, havia levado minutos.
Parecia incrível estar ali, a salvo no vale, com a grama sob seus
pés e a brisa da manhã cm seu rosto. Ele fechou bem os olhos, de
repente com medo que aquilo fosse um sonho c que ele ainda
estivesse no topo da Montanha, no meio do fogo, do gelo, do
terror e do desespero. Mas, quando ele abriu os olhos novamente,
os campos verdes de Rin ainda estavam ali, junto de Estrela e do
córrego borbulhando ao seu lado. Era verdade. Eles estavam em
casa. Eles estavam salvos. A água tinha voltado para Rin. E eles
tinham vindo junto com ela.
-Rowan! Rowan! - um grito soou agudo ao longe.
Rowan levantou o olhar. Alguém corria na direção deles, ao
lado da margem do córrego. Era Jiller, chamando por ele, com os
braços abertos. Annad corria atrás dela e, bem depois das duas,
surgia uma multidão. Parecia que o vilarejo todo estava ali,
correndo na direção deles. À medida que as pessoas se
aproximavam, Rowan podia ouvir que elas comemoravam,
gritavam e riam alegres. Mas seus olhos estavam marejados e ele
não conseguia distinguir as pessoas. Ele só conseguiu ver Jiller se
aproximando dele e, finalmente, envolvendo-o em seus braços,
apertando-o como se nunca mais fosse soltá-lo.
Rowan se agarrou à mãe, ouvindo as palavras que ela não
parava de murmurar para ele, sentindo o alívio e a gratidão
imensos dela pela volta do seu filho, que achou que tinha perdido,
e do seu amor, que o garoto finalmente compreendeu. Naquele
instante, a antiga dor fria que ele tinha em seu coração se
derreteu como a neve diante do fogo: sem deixar vestígios.
Juntos, eles tiraram Jonn das costas de Estrela e se ajoelharam
ao lado dele.
-Acho que ele quebrou a perna - Rowan disse em voz baixa. -
Ele
está sofrendo muito, mas está vivo.
Os olhos de Jonn se abriram e ele encarou os dois rostos
preocupados inclinados sobre ele. Tão diferentes e ao mesmo
tempo tão parecidos. Ele tentou dizer alguma coisa, lutou para se
levantar, mas logo caiu no chão com um gemido.
-Jonn, fique deitado - Jiller pediu. - Não tente falar. Não precisa.
O homem todo ferido umedeceu os lábios rachados com a
língua.
-Preciso sim - ele disse. Rowan percebeu que cada palavra era
um enorme esforço para ele, mas Jonn estava determinado a
continuar.
-Há uma coisa que preciso lhe dizer, Jiller. Eu prometi... prometi
que
traria seu filho de volta para casa. Mas foi o Rowan que me trouxe
de
volta. Ele me fez continuar quando eu ficaria aliviado em me
deixar
cair e morrer. Ele lutou contra o frio e o fogo por mim quando
poderia
ler se salvado. Ele enfrentou o Dragão sozinho.
Rowan se agachou na grama, com uma mão sobre a mão de
Jiller e a outra sobre o peito de Jonn. Ele não tinha percebido a
multidão que havia se reunido atrás dele. Ele não viu os olhares
admirados em seus rostos quando ouviram as palavras de Jonn.
Mas Jonn viu. Com grande esforço, ele levantou a voz:
-Foi graças ao Rowan que o córrego voltou a ter água - ele
disse.
-Ele nunca desistiu. Ele nunca desistiria. O menor e mais fraco
de todos nós provou, afinal, ser o mais forte c o mais corajoso. Rin
fica em grande dívida com ele.
Só houve silêncio. Um passarinho cantou em uma árvore por
ali. E então se ouviu um enorme estardalhaço. Rowan se virou
assustado. Ele viu as pessoas comemorando em volta dele. Ali
estavam Allun e Marlie, com os rostos ainda manchados de lama,
gritando e rindo e dando tapinhas um nas costas do outro. Ali
estavam Bronden, batendo palmas, e os irmãos Val e Ellis,
encarando-se admirados. Ali estavam Neel, o oleiro, com a boca
escancarada em um enorme sorriso, os jardineiros e o professor,
Timon. E todos os outros.
-Rowan! Rowan! - eles grilavam. - Rowan, o guardião dos
bukshas! Rowan, o guardião de Rin!
Jonn sorriu.
-Coelhinho magricela - ele sussurrou c, satisfeito, viu Rowan
começar a rir.
Estrela gemeu para si mesma. Em silêncio, ela se afastou e foi
em direção à margem do córrego, agora cheio até a borda de
água corrente, doce c límpida. Ela ficou escutando. Gritos de
alegria vindos da aldeia entraram baixos por seus ouvidos. A água
tinha chegado ao lago dos bukshas.
O rebanho estava salvo. Rowan estava salvo. O córrego fluía outra
vez.Tudo estava como deveria. Finalmente, Estrela baixou a cabeça
para matar sua sede.