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Infiéis Transgressores:

os contrabandistas da fronteira
(1760-1810)

Tiago Luís Gil

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em História
Social do Instituto de Filosofia e Ciência
Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso

Rio de Janeiro
2002
Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810)

Tiago Luís Gil

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em História
Social do Instituto de Filosofia e Ciência
Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História.

Banca Examinadora:

_____________________________________
Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso – Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________
Prof. Dr. Karl Martin Monsma
Universidade Federal de São Carlos

_____________________________________
Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________
Profª. Drª. Sheila de Castro Faria (suplente)
Universidade Federal Fluminense

_____________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Gouvêa (suplente)
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro
2002
Em março de 1763 a vila de Rio Grande
era invadida pelas tropas espanholas.
Em meio à confusão, um soldado
(cujo nome ignoramos)
lembrou-se de salvar os livros da
Provedoria da Fazenda Real.
Hoje estes livros encontram-se num Arquivo,
à disposição dos pesquisadores,
graças à diligência daquele soldado.
A este desconhecido dedicamos nosso trabalho.
AGRADECIMENTOS

Quem escreve uma dissertação é porta-voz de um número indeterminado


de pessoas, ainda que estas não tenham culpa pelos erros do pronunciamento. É
chegado o momento de fazer os devidos agradecimentos. O primeiro vai para o
grupo de trabalho coordenado pelo Prof. João Fragoso, junto ao Laboratório
Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Ao professor João pela presença
constante e atenta ao longo destes dois anos. Esteve sempre disponível e
disposto para qualquer orientação, em todos os momentos. Sua inteligência
tornou este trabalho muito melhor. Ao Roberto Guedes e a Silvana, pela
amizade e auxílio acadêmico. Sem vocês não teria sido tão legal. À Cuca
Machado, pelos preciosos comentários aos textos e pela ajuda na identificação
de alguns sujeitos envolvidos em contrabandos. À Luciana Batista, pelas
discussões etílicas e acadêmicas, que poderiam ter sido mais freqüentes. À Célia
Muniz, a quem agradeço os comentários nas reuniões e fico devendo a visita. À
Daniela Barreto, que desertou para o IBGE, mas que deu boa contribuição ao
seu tempo. Ao Carlos Engemann, pelo companheirismo. À Martha Hameister o
agradecimento deve ser muito maior. Discutiu cotidianamente a pesquisa e
contribuiu permanentemente até a última hora. Valeu mesmo. Agradeço à ela
também pelo Miles Davis.
Aos professores da UFRJ: José Murilo de Carvalho, Carlos Gabriel
Guimarães e Monica Grin, pelas proveitosas discussões nas disciplinas. Um
agradecimento especial para o prof. Manolo, pela camaradagem e por aceitar
participar da banca.
Aos professores e amigos da UFRGS: Fábio Kuhn, Eduardo Neumann,
Silvia Petersen, Susana Bleil de Souza, Enrique Padrós e Luis Dario. Um saúdo
especial para o Paulo Terra e pro Mauro Messina.
Outras pessoas, com seu talento, também ajudaram na pesquisa. Em
Porto Alegre, Alessandra Gasparotto, Rodrigo Favreto e Jonas Moreira Vargas
levantaram muitos documentos e o Marcelo Vianna contribuiu com sua
sabedoria. Rodrigo Weimer e Fabrício Prado discutiram oportunamente o
trabalho e trocaram muitas informações. No Rio de Janeiro, Alexandre Vieira
deu uma grande ajuda nas transcrições mais difíceis.
Aos amigos mais distantes: ao Tufy Cairus, em York; à Professora Judith
Farbermann, em Quilmes.
Em Curitiba fica o agradecimento à Mara Barbosa e à profª Maria Luiza
Andreazza. Sua contribuição foi fundamental para o desenvolvimento deste
trabalho.
Em Manaus, para o amigo, professor e antropólogo Raimundo Nonato.
Em Florianópolis, para o viajero e camarada José Basini. Sempre
lembraremos da Feira de São Cristóvão.
Em Campinas, para nossa “colega de casa” Elisabete Leal que discutiu
muitas vezes o trabalho. Também para o prof. Karl Monsma, que nos franqueou
sua biblioteca e aceitou participar da banca. Para o César Kieling que nos
recebeu em sua casa quando preciso.
Para São Carlos, por dívida minha, vai o agradecimento à Carin e ao
Eduardo, que me receberam com carinho.
À Mirta, no Rio de Janeiro, e à Elvira em Porto Alegre, pelo
companheirismo e amizade.
Em Belém fica o agradecimento para o Durval de Souza, pela amizade e
ajuda nas horas difíceis.
Em Resende, aos amigos Tiago Bernardon e Manuela que participaram
com sua amizade.
Para minha querida amiga Flavia Miguel de Souza vai um agradecimento
especial. Participou desde a escolha do título deste trabalho até a última palavra.
Ao Paulista (Clevinho), Kátia, Marcelo, Adalberto, Rita e André, pela
presença sempre constante e pela enorme amizade. Tudo isso deu estímulo a
este trabalho.
À CAPES e à FAPERJ, por financiarem a pesquisa.
Para meu pai e minha mãe, que se esforçaram sempre por mim. Para
minha tia Ester que sempre me incentivou. Sem vocês não teria sido possível.
RESUMO

Este trabalho estuda a importância do comércio de contrabando nas fronteiras


do Rio Grande e do Rio Pardo, ponto de confluência entre os Impérios luso e
espanhol no sul da América, entre 1760 e 1810. Aponta para a existência de
redes de relacionamento, ancoradas em postos de governo, agindo como base de
sustentação do contrabando. Discute a questão da fronteira imperial,
problematiza as interpretações sobre o comércio ilícito e analisa as estratégias
desenvolvidas pelos contrabandistas.
Infiéis Transgressores:
os contrabandistas da fronteira (1760-1810).

ÍNDICE

Introdução...................................................................................................................................... 10
A historiografia............................................................................................................................ 12
Os “informantes” ......................................................................................................................... 15
A organização............................................................................................................................... 20

Capítulo 1 – Os embaraços da fronteira: guerreiros, peões e contrabandistas............... 21

A fronteira como um embaraço.................................................................................................... 23


Uma fronteira “Imperial”.................... .......................................................................... 27
Peões e guerreiros: formas de sobrevivência................................................................................ 35
A guerra. ....................................................................................................................... 36
A ação de Santa Bárbara. .............................................................................................. 37
São Martinho................................................................................................................. 38
A “escalada” de Santa Tecla........................................................................................... 43
O contrabando como desembaraço de uma sociedade................................................................. 47
A formação do rebanho.................................................................................................. 47
O custeio da guerra........................................................................................................ 49
Uma prática que perpassava toda a sociedade............................................................... 50

Capítulo 2 – Entre o justo e o certo: o pensamento sobre o comércio ilícito................... 53

O comércio ilícito segundo Sua Majestade................................................................................... 53


Alguns incidentes……………………………………………………………………............................... 55
Um mestre dos disfarces: Luís de Vasconcelos e Souza………………………....................... 64
O caso das vinte mil mulas…………………………………………………………............................. 74
O contrabando na interpretação dos vassalos.............................................................................. 76
O caso das vinte mil mulas – continuação……………………………………….......................... 76
Entre ambiciosos e belicosos: os vereadores de Viamão………………………...................... 78
O “monstro” da lagoa Mirim: Rafael Pinto Bandeira……………………………..................... 82
O entrosado: Antero José Ferreira de Brito………………………………………........................ 83
O forasteiro: o provedor Osório Vieira…………………………………………............................ 87
“O bom e único mercado”: Fernandes Pinheiro e o contrabando………………................. 90

Capítulo 3 – Os caminhos do mercado..................................................................................... 94

A venda do gado: mercados e dinâmicas antes do “contrabando”................................................ 94


O grande mercador……………………………………………………………….................................. 97
O início do contrabando………………………………………………………………......................................... 108
Os “fornecedores”.......................................................................................................... 109
“...aquellos semibárbaros colonos...”: os espanhóis da banda oriental.......................... 109
Os “infiéis” Minuanos…………………………………………………………………............................ 115
Outras notícias da Banda Oriental………………………………………………............................. 119
Capítulo 4 – A produção social da mercadoria....................................................................... 122

O bando: a “pedra filosofal” do comércio ilícito........................................................................... 122


A formação do bando……………………………………………................................................... 124
O passado como herança……………....…………………….....…............................... 124
As formas de cooptação……………………………………………………………............................... 127
“.os aplausos.”…………………………………………………………................................. 128
Negociando medos e expectativas: a acumulação “troglodita”........................ 130
“.sua numerosa parentela.”……………………………………..................................... 135
As contrapartidas de guerra………………………………………………........................ 140
”Pois assim se mata?”: notas sobre a “proteção” negociada............................ 145
“.é o próprio que se apossa do terreno.”…………………………….......................... 149
As características do Bando………………………………………….…………................................ 152
Estratégias e artimanhas: os contrabandistas em ação……………………………................................ 159
Negócios certos e negócios malfadados.………………………………………….......................... 159
A produção social da mercadoria................................................................................................. 162

Capítulo 5 – Direituras diversas: o escoamento da “produção” e o Império................... 183

O escoamento da produção ......................................................................................................... 183


O trote das bestas……………………………………………………………………............................... 183
O negócios dos couros……………………………………………………………….............................. 187
Poder local e Império................................................................................................................... 195

Conclusão........................................................................................................................................ 201

Fontes Primárias........................................................................................................................... 203

Referências Bibliográficas................................................................................................ 208


I NTRODUÇÃO

Tornar-se um criminoso pode parecer uma tarefa fácil. Ingressar no


mundo do crime, certamente não o é. Tentar entender, então, as regularidades
de uma transgressão, que bem pode ser chamada de “mercado”, torna-se uma
tarefa árdua.
Se a falta de fontes sobre um tema pode ser considerada um problema
para os historiadores, em nossa pesquisa preferimos entendê-la como uma
demonstração da competência dos contrabandistas ao ocultar suas ilícitas
transações. Nosso trabalho valeu-se de alguns pequenos e escassos deslizes que
nossos investigados cometeram ao longo de suas carreiras de negociantes.
Esta dissertação poderia tomar, muitas vezes, a feição de um relatório de
delegacia, onde estariam contidos os crimes de uma série de bandidos e
delinqüentes, não fossem estes alguns dos mais importantes homens daquela
terra. Podemos adiantar parte do serviço, informando que pouquíssimos destes
bandidos realmente foram detidos. Alguns chegaram mesmo a ocupar postos de
grande relevância, como o comando da fronteira e o governo do Rio Grande de
São Pedro. Rafael Pinto Bandeira, por exemplo, teve seus negócios investigados
por pelo menos quatro devassas, saindo ileso de todas, antes de tornar-se
governador pela segunda vez e de ser recebido pela Rainha.
Mais de duzentos anos depois o processo é reaberto. Desta vez não há a
preocupação em julgar ou incriminar, mas de perceber as relações entre os
acusados, e destes com o restante da sociedade. O cenário dos crimes era uma
região bastante ampla, que perpassava territórios lusos e espanhóis próximos ao
Rio da Prata. Isso englobava, pelo lado português, Viamão, Rio Pardo e Rio
Grande. Pelo lado espanhol, considerava a localidade de Cerro Largo e suas
11

adjacências, assim como as proximidades do Rio Cebollatí.1 O período vai de


1760, aproximadamente o momento em que se inicia o tipo específico de
contravenção que abordarmos, até cerca de 1810, quando as notícias deste
contrabando passam a ser menos freqüentes.
O contrabando era um negócio que ultrapassava as fronteiras Imperiais,
ainda que só tivesse sentido com a existência destas. Deste modo, buscamos
analisar as formas como se dava esta relação aparentemente contraditória, que
possuía um profundo sentido para os homens que a criaram.
A ilegalidade do oficio não era ignorada pelos contrabandistas. Mas a
forma de interpretar estas negociações variava o suficiente para garantir uma
ampla margem de ação aos negociantes. Examinamos como estas interpretações
contribuíram para criar uma legitimidade para o ilícito, de acordo com as
negociações entre os súditos e as Coroas Ibéricas. Ao trabalhar com um mercado
tido como clandestino, investigamos o quanto este estava articulado com as
estruturas mais típicas da sociedade que o reproduzia.
Por fim, atentamos para as ligações do trato ilícito com outros negócios
coloniais, a fim de perceber como uma economia de Antigo Regime2 se valia
também deste mercado em sua reprodução diária.
Em 1764 o rei de Portugal deliberou a proibição do comércio de mulas
entre os territórios lusos e espanhóis no sul da América. Com o passar do
tempo, outros produtos foram também proibidos, entre os quais o couro.
Todavia, a circulação destes produtos continuou, de forma diferente. A partir de
então, eram relacionamentos ancorados em importantes postos de governo,
envolvendo espanhóis, portugueses e indígenas minuanos, que garantiam a
circulação dos bens proibidos.
Era um grupo que envolvia sujeitos de todos os estratos da sociedade.
Peões, changadores, lavradores, negociantes, estancieiros, militares, oficiais da

1
Seria difícil apresentar dados demográficos confiáveis destas áreas, especialmente dos territórios sob
domínio espanhol, dos quais não temos estatísticas. A população do Rio Grande de São Pedro, em
1780, estaria próxima de vinte mil pessoas, o que indica que era um espaço parcamente povoado em
comparação com outras áreas coloniais como o Rio de Janeiro, que na época somava cerca de duzentas
e quinze mil pessoas. Cf. IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, 1986. pg. 19
2
Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro & FLORENTINO, Manolo Garcia. Arcaísmo como Projeto.
Mercado atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro 1790-
1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
12

Coroa, todos articulados em uma rede permeada por relações de reciprocidade e


parentesco.
Durante o período que tomamos, o negócio ilícito foi de um modo ou de
outro, tolerado pelas autoridades lusas, que sempre estiveram informadas de
sua ocorrência. Não se tratava de um simples descaso. Tal negócio, pela sua
saliência econômica e social, era praticado por alguns dos sujeitos mais
relevantes, não só no governo local, como também na defesa dos territórios.
Eram, grosso modo, concessões que a Coroa acabava fazendo, diante de sua
incapacidade de prover militarmente seus domínios e mesmo de reprimir os
tratos ilícitos. Era um território instável, sujeito à ocupação dos espanhóis.
Falamos da importância econômica e social do contrabando não apenas
porque fosse um negócio vantajoso, que trouxesse benefícios materiais, mas
também porque, através dele, a rede de relacionamentos se mantinha e se
multiplicava, agregando qualidades diferentes de homens ao grupo.
Em suma, o comércio de contrabando era marcado por características
típicas de uma economia de Antigo Regime, se mantendo através de redes de
relacionamentos associadas aos postos de controle políticos locais. Era, enfim,
praticado por algumas das “melhores famílias da terra”, descendentes dos
conquistadores que ainda mantinham-se como elite do lugar. O contrabando
contribuía na manutenção daquela sociedade e o fazia não apenas engrossando
os cabedais daquelas famílias, mas servindo de ligação entre os mais diversos
estratos sociais, permitindo que poucos tivessem acesso a ganhos e
relacionamentos vedados a maioria da população, reproduzindo assim a
exclusão e a hierarquia social típicas daquele mundo.

A historiografia

Disse Michelangelo, certa vez, que a escultura que talhara não fora obra
sua, que ela sempre estivera naquele lugar, no coração da pedra, e lhe coubera
apenas retirar a matéria que a encobria. De certo modo, o pensamento dos
historiadores nacionalistas não foi muito diferente. Para eles a nação estava no
pensamento de cada homem do passado. Nesta visão, a fronteira sempre esteve
demarcada.
Um tema como contrabando no Rio da Prata sempre foi deixado de lado,
13

silenciado na medida em que poderia revelar outras relações entre portugueses


e espanhóis além dos conflitos e disputas. Da mesma forma, uma historiografia
preocupada em resgatar os grandes heróis fundadores da nação não poderia
admitir em seu panteão sujeitos com a mácula do comércio ilícito.
É provável que a primeira obra que considera a importância dos negócios
com o Prata na economia colonial do Brasil seja a de Roberto Simonsen,
História Econômica do Brasil.3 Herdeiros desta obra são os trabalhos de
Alfredo Ellis Junior4, Mafalda Zemella5 e especialmente Alice Canabrava.6 Todos
estes trabalhos seguem uma mesma linha de análise, atentando para as trocas
do Prata com a colônia lusitana na América. De um modo geral, esta influência
platina seria reivindicada como uma das marcas do regionalismo paulista,
presente no momento de elaboração destas obras.
Boa parte da historiografia sul-rio-grandense seguiu uma vertente muito
mais nacionalista, reivindicando uma fronteira estável e uma “brasilidade”
incontestável. Mais do que ninguém, eles acreditavam que a fronteira sempre
estivera ali. O tempo só teria retirado as aparas. Um dos poucos trabalhos que
trata sobre o contrabando é o de Guilhermino Cesar, O contrabando no sul do
Brasil,7 que aborda o comércio ilícito ao longo de duzentos anos, sem explicá-lo,
tratando do problema de modo superficial e sem historicidade.
Nos últimos trinta anos, com a profissionalização da atividade do
historiador no Brasil, surgiram interessantes contribuições. Obras como a de
Helen Osório8, Augusto da Silva9 e Martha Hameister10 que abordam

3
SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1937.
4
ELLIS JUNIOR, Alfredo. O Ciclo do Muar. Revista de História. USP: São Paulo, vol. 1, n. 1, 1950.
5
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec-Edusp, 1990.
6
CANABRAVA, Alice P. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1984.
7
CESAR, Guilhermino. O contrabando no sul do Brasil. Caxias do Sul: UCS, 1978.
8
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: PPGHIS-UFF, 1999. (tese
de doutoramento Inédita).
9
SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os
poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999.
(Dissertação de Mestrado Inédita).
10
HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes
de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de
Mestrado Inédita).
14

tangencialmente o contrabando, já que têm outros objetos em mente. O recente


trabalho de Fabrício Prado percebe no contrabando realizado em Sacramento
um importante elemento dinamizador das redes de relacionamentos,
envolvendo oficiais de ambos os impérios ibéricos.11
Por seu turno, a historiografia argentina já aborda o tema há muito
tempo. No século XIX, em meio à construção da idéia de “nação” argentina,
Bartolomé Mitre mencionava em suas obras o contrabando com os
portugueses12 e o fazia justamente para demonstrar que a única troca possível
com os lusos era a criminosa. A historiografia argentina tendeu a seguir a
postura nacionalista de Mitre até recentemente. Grande exceção é a obra de
Carlos Sempat Assadourian, que apresenta um cenário onde as trocas regionais
são freqüentes e complexas.13 Mais recentemente, o trabalho de Zacharias
Moutoukias vem explorando com primor as estratégias utilizadas pelas elites
espanholas no contrabando, a partir de estudos de redes de relacionamentos
vinculadas ao Império espanhol e com desdobramentos em vários espaços
coloniais.14
Cabe uma nota de reconhecimento. Nosso trabalho não seria possível se
não fosse por três importantes historiadores, pouco reconhecidos nos dias
atuais, que com sua inteligência produziram textos refinados, valendo-se de
muita observação e sensibilidade. Nos referimos a Aurélio Porto15, Geraldo José
Pauwels16 e Emilio Coni17. Poderíamos apontar certas insuficiências de seus

11
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto
Alegre: F. P. Prado, 2002.
12
MITRE, Bartolomé. Ensayos Historicos. Buenos Aires: La Cultura Argentina, 1918.
13
SEMPAT ASSADOURIAN, Carlos. El Sistema de la economía colonial. Mercado Interno, regiones
y espacio económico. Lima: IEP, 1982.
14
MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo XVII - Buenos Aires, el
Atlantico y el espacio peruano. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1987. e
MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires
en el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).
15
PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação de povoadores. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929). p. 49.; PORTO, Aurélio. História das
Missões Orientais do Uruguai. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. e PORTO, Aurélio.
Noticia sobre o Visconde de São Leopoldo. IN: PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da
Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, v. 1978.
16
PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. (s.d.). p.
17
CONI, Emilio. Historia de las vaquerias de Rio de la Plata 1555-1750. Buenos Aires: Devenir, 1956.
e CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942.
15

trabalhos, além de discordar de seus compromissos sociais. Mas não se pode


negar que fizeram trabalhos magníficos. Com mais fôlego, sem dúvida, que
muitos de seus críticos.

Os “informantes”

Ainda que os contrabandistas que estudamos estivessem amparados por


articulações sociais sólidas, eles evidentemente não tiveram a menor
preocupação de registrar seus negócios ilícitos. Uma boa forma de recuperar
suas atividades e trajetórias foi a partir de denúncias. Estas se davam em
situações extremas, quando nossos investigados extrapolavam os limites
socialmente aceitos de atuação. Diante das denúncias, as autoridades lusas
realizaram algumas investigações que foram analisadas neste trabalho. A partir
destes documentos elaboramos uma lista de todos os envolvidos com as
acusações que lhes foram imputadas. Primamos por analisar as trajetórias dos
homens que se dedicaram ao comércio ilícito, buscando compreender as
estruturas que estavam subjacentes àquele mercado.
Demos prioridade ao estudo de membros da elite. Fizemos esta opção
não apenas por serem casos bem documentos, mas especialmente por que
através deste procedimento pudemos observar melhor a organização e a
hierarquia daquela sociedade, assim como outras características que lhe eram
inerentes.
Isto feito, fomos buscar por estes sujeitos em uma grande variedade de
documentos, tais como registros eclesiais, correspondências oficiais, listas de
moradores, relatos de cronistas, relatórios, inventários, testamentos, mapas,
livros de contabilidade, entre outras fontes possíveis, que foram cruzadas nos
mais diferente sentidos. Realizamos, assim, uma investigação onomástica,
utilizando o “nome” como “fio condutor”18 da pesquisa.
Em função da dificuldade que tivemos no acesso a documentos
produzidos nos domínios espanhóis, nosso trabalho acabou privilegiando a
participação de portugueses no trato ilícito, ficando sub-registrada a ação dos
súditos espanhóis.

18
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. IN: GINZBURG,
Carlo. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: DIFEL/Bertrand Brasil, 1989. pg. 175.
16

Os cronistas

Utilizamos quatro relatos de indivíduos que estiveram por aquelas


paragens. Tivemos o cuidado de contrapor estes cronistas com outros
documentos e relatos, além de consultar uma historiografia recente e crítica,
que abordou temas descritos por eles.
O primeiro cronista que utilizamos foi Concolorcorvo19, que percorreu o
caminho de Montevideo a Lima, passando por Buenos Aires e pelas principais
localidades do “camino Real” por volta de 1770. Utilizamos este autor para falar
da “Banda Oriental”, territórios espanhóis a leste do Rio da Prata.
Outra obra que utilizamos foram os diários de um demarcador de limites,
o oficial espanhol Andrés de Oyarvide, que anotou minuciosamente suas
andanças nos trabalhos de delimitação da fronteira na década de 1780. Este
cronista fez importantes observações sobre o contrabando, relatando não
apenas indicando os lugares onde tal negócio se realizava, mas apontando
alguns dos interessados.20
Textos de outros dois demarcadores também foram de grande valia: José
de Saldanha e Félix de Azara. O diário do astrônomo português José de
Saldanha, escrito também na década de 1780, fazia preciosas observações sobre
os indígenas minuano.21 De Azara utilizamos a “Memória Rural do Rio da
Prata”, escrita no início do século XIX. Neste documento, além de fazer
observações sobre o contrabando, Azara chega a propor sua legalização.22

Os oficiais da coroa

Utilizamos ao longo do trabalho vários documentos oficiais, produzidos,


em sua maioria por autoridades como o Vice-rei do Brasil, Luis de Vasconcelos,
o Provedor da Fazenda do Rio Grande de São Pedro, Inácio Osório Vieira, o

19
CONCOLORCORVO. (Don Calixto Bustamante Carlos) El Lazarillo de Ciegos Caminantes. Desde
Buenos Aires hasta Lima – 1773. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1942.
20
OYARVIDE, Andrés de. Diario de demarcación. IN: CALVO, Carlos. Recueil Historique Complet
des traités. Paris, 1866.
21
SALDANHA, José de. Diário Resumido, e Histórico ou Relação Geográfica das Marchas e
Observações Astronômicas, com Algumas Notas sobre a História Natural, do País. IN: Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. LI. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde –
Serviço Gráfico, 1938.
22
AZARA, Félix de. Memória Rural do Rio da Prata. IN: FREITAS, Décio. O Capitalismo Pastoril.
Porto Alegre: EST - SLB, 1980.
17

governador do Rio Grande, Marcelino de Figueiredo, e um emissário especial do


Marquês do Lavradio (Vice-rei), Francisco José da Rocha. Ponto comum entre
todos estes é a sua avaliação crítica do contrabando.

Os revoltados

Como já dissemos, documento especial para perceber o funcionamento


do contrabando é a denúncia. Trabalhamos com duas denúncias muito
circunstanciadas, que deram base para a instauração de “devassas”.
A primeira denúncia partiu de uma carta anônima, chamada “Capítulos
contra Rafael Pinto Bandeira”, que continha várias acusações, especialmente
sobre contrabandos e abusos de poder do Coronel Rafael Pinto Bandeira. Esta
carta foi enviada ao Vice-rei Luis de Vasconcelos em 1783, e uma investigação
para apurá-la foi realizada em 1784.23
Outra denúncia foi feita em 1787 pelo Capitão de Ordenanças Manuel
José de Alencastre. Este não apenas assumiu a autoria das acusações, como teve
que retirar-se para o Rio de Janeiro para evitar perseguições. Segundo o
denunciante, tudo começou com uma briga entre ele e um cunhado do Coronel
Rafael Pinto Bandeira, Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, em função de
uma rês desgarrada do rebanho de Alencastre que fora parar no “rodeio” de
Custódio. Com o desenrolar dos acontecimentos, Custódio Ferreira acabou
prendendo Alencastre, tendo, inclusive, o ameaçado de retirar suas distinções
militares e seu uniforme de Capitão “...com que Sua Majestade foi servido
honrar o suplicante [Manuel José de Alencastre] e o distinguir da plebe...”.24
Alencastre, indignado, redigiu uma enorme carta-denúncia ao Vice-rei,
delatando não apenas os problemas que teve com Custódio, mas todo tipo de
abuso que este e seus aliados (todos vinculados a Rafael Pinto Bandeira)
cometiam naquela fronteira. Como decorrência desta denúncia, foi feita uma
grande “devassa” para apurar aqueles pontos.

As testemunhas

Ao longo do período investigado, encontramos seis devassas, sendo que

23
“Capítulos contra Rafael Pinto Bandeira”. Cód. 104. Vol. 06. pg 143. Arquivo Nacional.
24
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
18

destas, quatro foram examinadas com cuidado, por envolverem questões mais
próximas de nosso objeto.
A primeira destas é relativa à entrega da vila de Rio Grande aos
espanhóis, feita em 1764, e menciona alguns de nossos investigados.25 A segunda
devassa, feita em 1773, tratava exclusivamente sobre contrabandos. A partir
desta fonte, construímos um banco de dados que considerava os envolvidos, os
lugares dos contrabandos, a quantidade e qualidade dos animais e as demais
circunstâncias relatadas. Nesta devassa, testemunharam quinze pessoas entre
militares, criadores e lavradores. É difícil apontar os critérios de escolha das
testemunhas, pois era um grupo bastante heterogêneo.
Em 1779 alguns desentendimentos entre o governador Marcelino de
Figueiredo e o Coronel Rafael Pinto Bandeira acabaram gerando uma outra
investigação, que somou quarenta e seis testemunhas. Desta terceira devassa
abordamos apenas aspectos pontuais, sem esgotá-la, já que privilegiava
questões militares. Como decorrência desta investigação de Marcelino de
Figueiredo, foi realizada uma quarta devassa, um “Conselho de Guerra”, espécie
de tribunal militar.26 Este documento contém informações preciosas sobre
vários envolvidos no contrabando.
A partir dos “Capítulos contra Rafael Pinto Bandeira” foi feita em 1784
uma quinta investigação. Segundo seu organizador, o governador Sebastião
Cabral da Câmara, o critério de escolha das testemunhas privilegiou pessoas de
boa qualidade, e não da “...classe inferior da Republica...”.27 Nesta ocasião
foram chamadas nove pessoas, sendo dois negociantes, um oficial da
administração lusa e seis militares.
Em 1787, uma nova devassa foi feita a partir da já mencionada denúncia
de Manuel José de Alencastre.28 Foram ao todo vinte e uma testemunhas. No
primeiro dia, foram quatro depoimentos, todos de militares das tropas regulares
de Sua Majestade. Mais quatro militares depuseram em dias posteriores. Depois

25
Devassa sobre a entrega da Villa do Rio Grande às tropas castelhanas. – 1764. Rio Grande: Biblioteca
Riograndense,1937.
26
HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo Regime. IN: Mattoso, José. História de Portugal.
Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 162.
27
Cód. 104. Vol. 06. pg. 137. Arquivo Nacional.
28
Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional
19

destes, foram os “negociantes”, que testemunharam no mesmo dia, 22 de


novembro de 1787. Logo após, foi a vez dos “lavradores” e “estancieiros” do
“Caí” e “Sinos”. Foram oito depoimentos destes no mesmo dia, 24 de novembro.
Foram chamados ainda um condutor de canoas, que havia sido referido na
devassa, um tenente de “Dragões” e um oficial da Fazenda Real.
Se os militares trataram principalmente de violências contra soldados e
de contrabandos, os lavradores do “Cai” e “Sinos” trataram de ratificar as
acusações feitas a Custódio Ferreira, que era comandante do distrito do “Caí”.
Os negociantes, por sua vez, falaram principalmente sobre algumas mazelas que
tiveram em negócios com Rafael Pinto Bandeira, detalhando informações sobre
contrabandos. Notamos que tal devassa fora minuciosamente dividida em três
partes, sendo que cada segmento do processo envolveu grupos de testemunhas
distintos que eram chamados a depor separadamente, prestando informações
apenas no que a eles era referido de forma específica.
Um ponto importante a ser ressaltado é a metodologia que utilizamos
para trabalhar com as “devassas”. Estas eram investigações que abrangiam
grande número de testemunhas, e se pautavam especialmente pela realização de
interrogatórios sobre um tema pontual. Os depoimentos são em si um conjunto
inconsistente pois as impressões de cada informante são bastante diversificadas,
e eram adaptadas por um cânone discursivo criado pelo escrivão a partir de
questões previamente formuladas e com as respostas basicamente já elaboradas.
Analisamos tais documentos como um conjunto único, passível de comparação,
contraste e análise geral, cruzando os testemunhos e suas contradições, bem
como as pequenas diferenças nas respostas.
Algumas histórias só se tornam inteligíveis quando contrastamos todas as
versões dadas sobre elas. Além de considerar quem eram os autores dos
depoimentos, consideramos também suas respostas tomando-as como
tentativas (às vezes vãs) de defender um ponto de vista. Este último aspecto fica
um tanto frustrado pelo filtro imposto pelo escrivão, que tendia a padronizar as
respostas. Há, sem dúvida, o risco de perder a noção de processo ao tomar as
devassas, que são de tempos diferentes, como um único conjunto. Por isso,
examinamos cada qual ao seu tempo, buscando perceber as transformações
ocorridas ao longo do período estudado.
20

A organização

O primeiro capítulo, por invocação “Os embaraços da fronteira: guerreiros,


peões e contrabandistas”, trata da fronteira como algo pertinente ao estudo do
contrabando. Fala das opções espaciais que foram tomadas, dando especial
ênfase para a noção de “fronteira imperial”, tal como será definida. Também se
ocupa dos conflitos bélicos entre lusos e espanhóis, e das relações destes
embates com o comércio ilícito. Destaca, por fim, a importância do contrabando
para aquela sociedade.
O segundo capítulo, chamado “Entre o justo e o certo: o pensamento sobre o
comércio ilícito”, pretende discutir as diferentes interpretações acerca do
contrabando, o significado prático destas interpretações, e sua importância
social.
No terceiro capítulo, “Os caminhos do mercado” serão abordados os
antecedentes do contrabando, especialmente no que tange ao comércio de gado.
Destaca-se a figura do “grande mercador” como dinamizador deste comércio.
O quarto capítulo, que chamamos “A ‘produção’ social da mercadoria”, trata
do “bando”, organização social que dava suporte ao comércio ilícito e se valia
deste. Analisa também como o “bando” atuava no comércio clandestino, dando
especial atenção para as articulações sociais.
O quinto capítulo, designado “Direituras diversas: o escoamento da
‘produção’ e o Império” apreende as ligações dos contrabandistas com outros
espaços coloniais, no escoamento das mercadorias e nas relações com o Império
Luso destacando o negócio de mulas para Curitiba e Sorocaba, e o de couros
para o Rio de Janeiro.
Acreditamos poder contribuir para ampliar o quadro de estudos da
economia colonial. Através dos indícios que nos foram deixados por aqueles
homens, pudemos perceber o quão complexa era a sua sociedade.
CAPÍTULO 1
OS EMBARAÇOS DA FRONTEIRA: GUERREIROS, PEÕES E CONTRABANDISTAS

Fronteira é uma destas palavras que se prestam para uma série de


desígnios. Além de polissêmica, a palavra possui alguma difusão entre o senso
comum, que trata de a definir como algo estático e formal. Também entre os
estudiosos, o conceito já foi desenvolvido e trabalhado inúmeras vezes, sob os
mais diferentes olhares e circunstâncias.1 Diante de tudo isso, seria muito
conveniente afastar-se, em benefício próprio, de qualquer discussão que se

1
ZUSMAN, Perla. ¿Terra Australis - "Res Nullius"? El Avance De La Frontera Colonial Hispánica En
La Patagonia (1778-1784). Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. v.
45, (1999). ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. IN: EINAULDI, ENCICLOPEDIA. Estado e Guerra.
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 14. 1989. VERA, Francisco Escamilla. Las fronteras
conceptuales de un debate: el significado en Norteamérica del término "Frontier". Biblio 3W. Revista
Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 164, (1999). TURNER, Frederick Jackson. The
frontier in American History. New York: Henry Holt, 1958. RIBEIRO, Júlio Cézar &
GONÇALVES, Marcelino Andrade. Região: uma busca conceitual pelo viés da contextualização
histórico-espacial da sociedade. Terra Livre. v. 17, (2001). RATZEL, Frederick. As Raças Humanas
IN: RATZEL. Geografia. São Paulo: Ática, 1990. PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o
estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul. v. (s.d.). OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na
Constituição da Estremadura Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822.
Niterói: - PPGHIS/UFF, 1999. (tese de doutoramento Inédita). NEUMANN, Eduardo. A fronteira
tripartida: índios, espanhóis e lusitanos na formação do Continente do Rio Grande. XXI Simpósio
Nacional da ANPUH. Niterói. 2001. KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-
americanos. vXXV. (1999). HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. HEVILLA, María Cristina. El Estudio de la Frontera En América. Una
aproximacion bibliografica. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v.
125, (1998). GOMES, Flávio dos Santos & QUEIROZ, Jonas Marçal de. Entre fronteiras e limites:
identidades e espaços transnacionais na Guiana Brasileira - séculos XVIII e XIX. Estudos Ibero-
Americanos. v. XXVIII, 1 (2002). p. 21-50. GOMES, Flávio dos Santos & NOGUEIRA, Shirley
Maria Silva. Outras paisagens coloniais: notas sobre desertores militares na Amazônia
Setecentista. IN: Nas Terras do Cabo Norte. Fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira.
Séculos XVIII-XIX. Belém: NAEA/UFPA, v. 1999. GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes,
bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. ESCAMILLA, Francisco. El significado del término "frontera". Biblio 3W.
Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. v. 140, (1998). SANTOS, Milton. Por uma
geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: HUCITEC, 1990.
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto
Alegre: F. P. Prado, 2002.
22

remeta a este problema. Todavia, nossa opção não foi pela conveniência.
A questão da fronteira é fundamental para se entender o contrabando.
Não apenas para recolocar o problema diante de tudo o que já foi dito, mas
também para refinar tal conceito situando-o no tempo e no espaço que
propomos. O que chamamos de fronteira aqui é referente a uma região. É nesta
região que se desenvolvem as tramas que estudamos, que compreendem
conflitos, negócios, meios de sobrevivência e outros relacionamentos. Por outro
lado, ao propor uma definição de fronteira, não deixamos de lado as noções
específicas do período que tomamos. Aqueles homens, que viveram a segunda
metade do século XVIII, possuíam referências espaciais distintas, muito
orientadas por seus relacionamentos e experiências.
Antes de prosseguir, são necessárias algumas ressalvas. Ao construir o
“cenário” onde se desenrola a “trama”, elencamos apenas elementos que
estavam diretamente vinculados à experiência daqueles sujeitos que
identificamos como contrabandistas. Isso significou a exclusão de uma
infinidade de outros problemas, que não serão mencionados aqui. Nossa
restrição acabou privilegiando três pontos que nos pareceram cruciais no dia-a-
dia daqueles homens: a guerra, o trabalho e o próprio comércio ilícito. Estes três
elementos estavam, por sua vez, profundamente articulados a partir de relações
de parentesco e reciprocidade, geradas e reproduzidas entre aqueles sujeitos.
Não temos dúvida que, diante destes problemas, estes homens tinham a sua
própria noção de fronteira e sua forma de jogar com ela. Pedimos ao leitor que
faça um esforço para desconsiderar a idéia de fronteira nacional, que é própria
dos dias atuais. A idéia de nação não faz o menor sentido para os homens que
estudamos, sendo uma criação do século XIX.2

2
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del
nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
23

A fronteira como um embaraço

Mesmo no vocabulário dos homens do século XVIII, inclusive entre


aqueles que estamos estudando, a palavra fronteira era polissêmica. Das várias
referências que colhemos de seu uso na documentação, ela apresenta pelo
menos dois significados muito visíveis: o primeiro é de uma área que engloba as
localidades próximas aos territórios vizinhos e, portanto, passíveis de invasão.
Esta noção variou mesmo no curto período que delimitamos, pois o território
em questão foi parcialmente invadido em 1763. Neste momento, então, eram as
localidades de Viamão e Rio Pardo, e suas adjacências, que correspondiam à
fronteira.
O outro significado, mais utilizado depois da retomada lusa, pós-1777,
diz respeito a áreas específicas, chamadas de “fronteira do Rio Grande” e
“fronteira do Rio Pardo”. Designava, em suma, uma espécie de “corredor”
comum de passagem entre os territórios espanhóis portugueses. Estes
“corredores” eram espaços privilegiados para a ação dos contrabandistas.
A fronteira, num sentido mais amplo, definida como os territórios
passíveis de invasão do inimigo (espanhóis, no caso) foi uma expressão utilizada
certamente entre 1771 e 1808, pelas indicações que temos. Ela se apresenta,
algumas vezes, como sinônimo da delimitação administrativa chamada
“Capitania do Rio Grande de São Pedro”, mas profundamente carregada de
significados. Seu uso está sempre associado a um discurso de ameaça, de
contínua tensão frente ao perigo que representavam os espanhóis vizinhos.
As primeiras referências claras que temos do uso deste termo remontam
a 1771, quando a Câmara de Viamão escreveu várias cartas ao Rei. Nelas, se
referiam ao “...Governador desta Fronteira...”, aos “...povoadores desta pobre
fronteira...” , os “...moradores desta fronteira...” e aos “...pobres desta
fronteira...”, todos como potenciais vítimas da circunstância de serem vizinhos
de um inimigo tão ameaçador aos interesses lusos.3 Poderiam falar na “capitania
do Rio Grande de São Pedro”, mas optaram pelo termo fronteira. Neste sentido,
trata-se de uma opção retórica bastante saliente, com o objetivo de demonstrar
os riscos que corriam aqueles súditos como parte do Império Luso. Tinham lá

3
AHU-RS. Cx. 2. Docs. 168, 170, 173.
24

seus motivos. Ao escreverem aquelas linhas, a vila de Rio Grande estava sitiada
pelos espanhóis. Era um problema bastante concreto.
Assim como aqueles vereadores, também nós optamos por utilizar o
termo fronteira para designar aquela região que abrangia Rio Pardo, Viamão e
Rio Grande (esta última localidade, somente antes de 1763 e após 1776, período
de ocupação espanhola) e suas adjacências. Tomamos este caminho por várias
razões. Em primeiro lugar porque era justamente o fato de ser uma região
próxima a territórios de outro império, o que conferia sentido ao “contrabando”
e aos conflitos militares, que eram, como já dissemos, elementos que faziam
parte da vida dos sujeitos que investigamos. Também é neste espaço que se dava
o processo de transformação do contrabando em mercadoria, como veremos
adiante.
Seria uma abordagem demasiadamente unilateral (e ingênua diante das
fontes) se considerássemos apenas o lado português do problema. Caberia,
neste sentido, observar os territórios espanhóis próximos àquelas povoações
lusas citadas. Estes territórios sob domínios de Espanha também estavam
ameaçados pelo cômputo de conquista do Império Luso, e eram da mesma
forma, permeados pelo negócio ilícito. Deste modo, há uma ampla região, com
características semelhantes (seja a ameaça da invasão, a manutenção diária de
certo contrabando e as redes de relacionamentos) que ultrapassa os domínios de
ambos impérios ibéricos e que tem profunda articulação.
Havia também uma definição mais restrita de fronteira, que dizia respeito a
especificamente duas áreas próximas às localidades de Rio Grande e Rio Pardo. São
as expressões “fronteira do Rio Grande” e “fronteira do Rio Pardo”. Estas
utilizações eram muito freqüentes, e se consagraram após a retomada de Rio
Grande pelos lusos em 1777.
A primeira referência que temos do uso “fronteira do Rio Pardo” é de um
documento de 1768, quando o tropeiro Manuel Munhoz tentou por ela passar com
alguns animais e foi barrado por alegação de andar com contrabando.4 Também se
referia a ela o astrônomo de Sua Majestade, o demarcador José de Saldanha,
quando falava das contínuas visitas que os índios minuano faziam àquela fronteira.5

4
F1243, 153, 153v. AHRS.
5
SALDANHA. Op cit.
25

FIGURA 1
26

A “fronteira do Rio Grande” só é mencionada, na documentação que


utilizamos, após a reconquista lusa da vila de mesmo nome. Tal expressão era
muito freqüente em depoimentos de devassas, devido a sua utilização corrente,
especialmente entre os anos de 1784 e 1787.6 Da mesma forma, o provedor da
Fazenda usou esta definição em 1787, quando falava dos contrabandos que por
lá passavam.
Uma carta ao Vice-rei, escrita em 1784 pelo então governador do Rio
Grande, Rafael Pinto Bandeira, indica a noção destas duas fronteiras como
corredores de passagem, inclusive de contrabandos. Pinto Bandeira dizia que
tanto na fronteira do Rio Grande, como na do Rio Pardo, havia o comércio
ilícito, no qual espanhóis introduziam seus animais nos territórios de Sua
Majestade Fidelíssima. Não obstante seu zelo, Rafael Pinto Bandeira era um dos
que mais se beneficiava de tal comércio.7
Outra carta escrita ao Vice-rei, desta vez pelo provedor da Fazenda Real,
Inácio Osório Vieira, falava que a provedoria ficava muito distante “...das duas
fronteiras...”, o que demonstra o quanto era comum a noção de que havia dois
corredores de acesso junto aos domínios espanhóis, por onde circulavam
homens e mercadorias.8
Estes corredores de circulação também abrigavam a maior parte das
guardas de repressão ao contrabando e defesa do território. Por via lacustre ou
terrestre, havia um relativo controle destas passagens. E quando dizemos
“relativo”, não queremos dizer que era pouco ou precário. Não era o controle
“possível”, mas o “conveniente”. Era, a seu modo, efetivo, mas permitia fugas,
seja sob forma de suborno ou através de redes de relacionamento existentes
entre os contrabandistas e os oficiais encarregados, quando não eram estes os
mesmos sujeitos. Mais do que relativo, este controle era relacional, possuindo
um caráter bem marcante, que é o de existir para uns, mas não para todos. As
articulações sociais serviam de passaporte.
Nestas fronteiras havia também uma grande quantidade de

6
Depoimentos de Antonio José Feijó, Antonio Pinto da Fontoura. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol 09.
pg. 327. Arquivo Nacional. Depoimentos de José Antunes da Porciúncula e Francisco de Oliveira Dias.
Investigação de 1784. Cód. 104. Vol 06. pg. 137. Arquivo Nacional.
7
Códice 104. Vol. 06. pg. 122.
8
Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional.
27

estabelecimentos produtivos, como estâncias e lavouras. O próprio Rafael Pinto


Bandeira possuía uma estância na “fronteira do Rio Grande”, chamada “do
Pavão”.9 Estes eram os cenários mais comuns do comércio ilícito, especialmente
porque era nestas fronteiras que o contrabando começava a transformar-se,
através da ação humana, em mercadoria comercializável.

Uma fronteira “Imperial”.

Tomamos as localidades de Viamão, Rio Grande, Rio Pardo, Cerro Largo


e as proximidades do Rio Cebollatí como uma fronteira porque fizemos uma
opção clara pelos aspectos relacionados à guerra e ao controle comercial. Estes
dois elementos estão indissociavelmente ligados a presença de Impérios nesta
região, no caso, Portugal e Espanha. Trata-se, neste sentido, de uma fronteira
que chamaremos de “Imperial”.
Uma análise de longa duração nos revela que os conflitos entre lusos e
espanhóis no Rio da Prata eram estruturais àquelas sociedades que habitavam
as áreas de conflito. Eles iniciaram com a fundação de Sacramento em 168010 e
se manifestaram de modo continuado e cumulativo durante todo o século XVIII
e inícios do século XIX. Nos primeiros anos da década de 1760 vamos perceber
um acirramento desta tensão. Neste momento aconteceu o ataque espanhol a
territórios portugueses, que se iniciou em 1762. Daí até 1777 ocorrem derrotas e
vitórias de ambos os lados, que acabaram com a reconquista lusa dos territórios
perdidos. De certo modo, o século XIX ainda ficaria muito marcado por estes
conflitos.11
Também nos primeiros anos da década de 1760 passa a ser considerado
contrabando todo o negócio de mulas e “machos” existentes entre os territórios
lusos e espanhóis na América.12 Mesmo com tal proibição, verificamos a
continuidade deste comércio, que se reproduz até o final do século XVIII.

9
07. 02. 1425 e 07. 02. 1441. Mapas do Arquivo do Exército e depoimento de Antonio Pinto da Fontoura.
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional.
10
Alguns autores proporiam que tais conflitos remontariam aos primeiros anos que se seguiram ao fim da
união ibérica. Um exemplo é ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do
Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia da Letras, 2000. Todavia, são os problemas gerados a
partir de Sacramento que têm ligação direta e conseqüências mais imediatas para nosso problema.
11
PAULA CIDADE, F. de. Lutas, ao sul do Brasil, com os espanhóis e seus descendentes (1680-
1828). Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1948.
12
F1243. 5. AHRS.
28

FIGURA 2
29

Percebemos que o comércio ilícito entre portugueses e espanhóis ocorre


ao mesmo tempo em que seus impérios estão em guerra. Esta é apenas uma,
frente a muitas outras características das relações estabelecidas entre lusos e
espanhóis em tempo de guerra. Kühn percebeu através dos registros de batismo
e casamentos de Viamão, nos domínios portugueses, uma grande quantidade de
uniões matrimoniais e de compadrio entre lusos e hispânicos durante o período
da invasão espanhola em Rio Grande.13
Isto nos faz observar que criar laços socioeconômicos e guerrear
simultaneamente com os mesmos agentes, era algo possível para estes homens.
Mais do que possível, algo desejado. Por um lado, a guerra significava, além das
honras, possibilidades de mercês e lucros com o butim. Da mesma forma,
manter negócios e laços com os “castelhanos”, mesmo em tempo de paz, era
algo muito proveitoso. Em tempo de guerra os animais escasseavam,14 e tais
negócios tornavam-se ainda mais interessantes.
Esta situação de simultaneidade de conflito e relacionamentos com os
mesmos agentes já foi percebida para outras regiões coloniais, que eram
também fronteiras. Na Amazônia, durante a maior parte do período colonial,
houve conflitos intensos e disputas territoriais entre portugueses e franceses.
Questões semelhantes com a fronteira platina, como deserções, contrabando,
entre outros negócios, se davam paralelamente aos conflitos dos Impérios. Da
mesma forma, muitas destas relações eram desenvolvidas pelos próprios
soldados e oficiais que estariam encarregados de combatê-las.15
Também entre Sacramento e Buenos Aires percebemos a existência desta
dupla função, e com as mesmas regularidades. Durante o bloqueio espanhol da
Colônia, na década de 1740, num momento de profunda tensão militar, havia

13
KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-americanos. v. 2. nº XXV (1999).
14
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: PPGHIS/UFF, 1999. (tese
de doutoramento Inédita).
15
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Economia e Sociedade em área coloniais periféricas: Guiana
Francesa e Pará (1750-1817). Rio de Janeiro: Graal, 1984; GOMES, Flávio dos Santos. & QUEIROZ,
Jonas Marçal de. Entre fronteiras e limites: identidades e espaços transnacionais na Guiana Brasileira.
séculos XVIII e XIX. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXVIII, n.1, p. 21-50, junho de 2002;
GOMES, Flávio dos Santos & NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. Outras paisagens coloniais: notas
sobre desertores militares na Amazônia Setecentista. IN: Nas Terras do Cabo Norte. Fronteiras,
colonização e escravidão na Guiana Brasileira. Séculos XVIII-XIX. Belém: NAEA/UFPA. 1999.
30

um fluxo contínuo de comércio entre os súditos dos dois Impérios rivais.16 Os


trabalhos de Moutoukias e Prado17 apontam para uma proeminência de alguns
grupos nas atividades de contrabando no Rio da Prata. Em tempos diferentes,
ao longo do século, alguns grupos mantiveram franquias maiores do que outros,
especialmente para o trato comercial que se desenvolvia em períodos de tensão
militar. Neste ponto, sua análise se aproxima muito do que definimos como um
controle “relacional” do que podia ou não circular pela fronteira.
De fato, restaria perguntar como estas atividades, aparentemente
opostas, poderiam coexistir. Como o contrabando e a defesa dos territórios
imperiais poderiam ser feitas pelos mesmos sujeitos? Talvez quem melhor
soubesse a resposta fosse o Vice-rei Luís de Vasconcelos. Em 1784 ele falava de
um destes sujeitos, o coronel Rafael Pinto Bandeira. Segundo o vice-rei, Pinto
Bandeira se valia de sua autoridade de comandante militar para advogar em
causa própria e mesmo, fazer contrabandos. Ainda assim, o Vice-rei não achava
conveniente criar atritos com o dito comandante, pois ele possuía um talento
especial, o de “...espantar os espanhóis...”.18 De fato, se observarmos a
importância de Rafael Pinto Bandeira nos conflitos ocorridos entre 1763 e 1777,
perceberemos que ele não apenas comandou várias das mais bem sucedidas
investidas lusas no contra-ataque, como despendeu de seu patrimônio pessoal
para a guerra, além de arregimentar homens para a luta contra o inimigo.19 As
tropas regulares de Portugal, enviadas para o conflito, provavelmente não teriam
a força necessárias para o contra-ataque luso.
Esta situação não fora específica daquela fronteira. Havia uma grande
deficiência de Portugal de atuar em áreas periféricas, até mesmo na península.20

16
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto
Alegre: F. P. Prado, 2002. pg. 122-127. Outras evidências também em MOUTOUKIAS, Zacarias.
Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires en el Siglo XVIII.
ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).
17
PRADO op cit. MOUTOUKIAS op cit.
18
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos, em outubro de 1784,
sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Ano IX. 1929. pg. 28.
19
Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto Bandeira. IN:
Revista do Museu e Archivo Público do Rio Grande do Sul. Nº 23. MAPRGS/Livraria do Globo,
1930
20
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
31

No Estado do Brasil, a dificuldade era ainda maior. Havia uma necessidade


contínua de negociar a autoridade com os poderes locais para manter a unidade
do Império. Deste modo, a coroa dependia, em muito, da atuação das elites
locais na defesa territorial com seus recursos humanos e bélicos. Por outro lado,
esta circunstância forçava o centro a conceder regalias às elites locais, como
certa autonomia e a tolerância de determinadas práticas. 21
Esta tampouco era uma especificidade do Império Luso. Durante a época
moderna, foi constante a necessidade dos Impérios negociarem com os poderes
locais a manutenção territorial, entre a possibilidade de conquista e a defesa das
áreas ocupadas.22
Estas questões tendiam a fazer a Coroa lusa tolerar as práticas dos
contrabandistas, especialmente quando se tratava de um membro da elite local,
capaz de armar homens para a guerra. De certo ponto de vista, o fortalecimento
destas elites podia ser conveniente como mais uma forma de garantir a defesa
daqueles territórios. Como diziam os vereadores de Viamão, em 1771, se fossem
satisfeitos, ficariam os “...moradores desta fronteira contentes e prontos com
seus filhos e fazendas em uma cega obediência às ordens de Vossa
Majestade...”23
Há nisso tudo um outro problema: a questão dos limites.24 Paralelamente
aos resultados de conflitos, havia a negociação diplomática entre Portugal e
Espanha sobre o traçado de separação entre os dois Impérios. Não vamos aqui,
explorar ou esgotar o tema, já amplamente discutido por diplomatas, militares e
historiadores.25 Vamos apenas apontar alguns elementos que são relevantes
para nossa investigação, e que possuem relação direta com nosso objeto.
Quando dois Impérios chegam a um acordo sobre limites é porque estão
assumindo publica e mundialmente que chegaram a um esgotamento (ainda

21
GREENE, Jack. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history.
Charlottesville & London: The University Press of Virginia, 1994.
22
PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e
Territórios nas Monarquias Européias dos Séculos XVI e XVII. Penélope - Fazer e desfazer a
história. v. 6 (1991). p. 119-144. e GREENE. op cit.
23
AHU-RS. Cx. 2. Doc. 170.
24
Com a expressão “limites” estamos nos referindo exatamente a uma linha que delimitaria os territórios
pertencentes a cada um dos Impérios em questão.
25
GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a
formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
32

que temporário) de seu potencial de conquista daquele território. Analogias


poderiam ser feitas com o limes romano, que se iniciou como uma pequena
estrada de ligação entre postos avançados, sendo fortificado mais tarde, e que
garantia a manutenção das conquistas daquele Império, num momento de
recrudescimento de seu potencial ofensivo.26
Portugal e Espanha não colocariam marcos de mármore lavrado como
indicadores dos limites, como foi feito no Tratado de Santo Ildefonso,27 se
tivessem planos imediatos de conquistas das terras vizinhas. Faziam isso para
manter os territórios resultantes de um último avanço ou resistência possíveis.
Podemos ser acusados de dar demasiada atenção para estas questões,
mas acreditamos que elas eram realmente importantes para alguns dos homens
que viviam na fronteira. Não fosse isso, não haveria motivo para que um sujeito
como Rafael Pinto Bandeira enviasse cartas ao Secretário de Ultramar,
Martinho de Melo e Castro, reclamando urgência na demarcação dos limites.28
Algumas denúncias da década de 178029 apontavam que Rafael mantinha
espiões na Lagoa Mirim e em outras paragens, que lhe informavam da
circulação de contrabando pertencente a outros negociantes. Rafael tratava de
perseguir outros contrabandistas com “multas” e confiscos, fazendo isso pelo
“...autorizado posto, que ocupa...”,30 como dissera o Vice-rei Luís de
Vasconcelos ao comentar este problema.
A existência de limites poderia, neste sentido, interessar a um sujeito
como Rafael. Seu controle de decidir o que era ou não passível de apreensão
seria facilitado através marcos estabelecidos pelos Impérios em questão e
avalizados por estes. Rafael teria, por um lado, a chancela do Império para
reprimir o contrabando (alheio). Paralelamente, desfrutava da deficiência do
mesmo Império em atuar nas áreas periféricas, podendo assim, tocar seus
negócios ilícitos. Por outro lado, o conhecimento exato das terras pertencentes a
Portugal possibilitaria aos súditos sua reivindicação na forma de concessões de

26
ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. IN: EINAULDI, ENCICLOPEDIA. Estado e Guerra. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 14. 1989.. pg. 311.
27
GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas. Um ensaio sobre a
formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pg. 197.
28
AHU-RS. Cx. 3. Docs. 262 e 265.
29
Cód. 104. Vol. 06. pg. 143. e Relatório apresentado ao governo de Lisboa... op cit.
30
Relatório apresentado ao governo de Lisboa... op cit.
33

datas e sesmarias. Isso também contribuiria para a manutenção da autoridade


Régia, com a criação de laços de reciprocidade.31 Se uma demarcação de limites
poderia satisfazer a um Império com dificuldades de empreender a conquista,
ela poderia contentar igualmente uma elite local bem estabelecida e ávida pela
manutenção de seu status, que se colocava como signatária das decisões do
centro, e com chancela deste.32
Este tipo de relação entre elite local e Coroa é freqüente na formação do
Estado Moderno, tanto no caso português como em outros Impérios. As formas
de relação variavam, mas de modo geral, havia uma tendência bastante grande
das elites regionais capitalizarem as suas relações com os poderes centrais, e
destes, em garantir sua manutenção com o apoio daquelas.33
Até aqui tratamos dos entraves e condicionamentos existentes para a
circulação na região que tomamos. Isso poderia sugerir que se tratasse de uma
área intransitável, o que seria um grande equívoco. Ainda que os limites de ação
de cada homem estivessem mediados por questões como os relacionamentos e o
poder local, havia uma ampla circulação humana e certamente o “mapa” que
havia na cabeça daqueles homens não era o mesmo que havia na mente do
monarca. Os limites, neste sentido, possuíam significados diferente para os
súditos e a Coroa. Para esta, era a definição de seus territórios. Para os súditos,
era o que separava o comércio do contrabando.
Também seria um tanto reducionista afirmar que houvesse territórios de
identificação comum para todos os súditos. A experiência de cada grupo
“delimitava” uma área de atuação própria. Os indígenas minuano, por exemplo,
que já andavam no Rio da Prata antes de portugueses e espanhóis, mantinham
algumas rotas de circulação de acordo com suas referências ancestrais. Não há
dúvida de que estas experiências se modificaram com a chegada do europeu, e
há vários relatos apontando para isso. O astrônomo demarcador, José de
Saldanha, dizia, em 1784, que os minuano costumavam ir ao Rio Pardo e outras

31
HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do
Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de
Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.
32
Trataremos com mais vagar o tema do controle do contrabando nos capítulos 3 e 4.
33
PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e
territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope. nº 6. 1991.
34

povoações lusas em sinal de paz. Além disso, costumavam realizar tratos


comerciais com os portugueses, levando cavalos e recebendo cachaça e fumo.34
Como poderíamos comparar a noção de espaço de um açoriano recém
chegado àquela fronteira com a de um mestiço nascido ali, e que poderia se
valer do contrabando para viver? E como comparar qualquer destas com a de
um soldado lisboeta, que de sua pátria fora para a Índia, desta para a África, e
de lá para Rio Grande? Estas noções estavam determinadas pela herança das
gerações passadas e pela própria experiência destes sujeitos, e seria bastante
cômodo supor que aquele hipotético soldado lisboeta encarasse aquela fronteira
como mais um canto do Império Luso. Ao chegar naquelas terras, alguns
elementos contribuíam na construção de noções comuns. Para o período que
estudamos, a guerra contra os espanhóis foi um especial momento de
sociabilidade entre homens oriundos dos mais distantes confins do Império e da
própria fronteira. No campo de batalha se construíram e ampliaram redes de
relacionamentos que deram base sólida para a tropa e também para negócios
convenientes como o contrabando.

34
SALDANHA. op cit.
35

Peões e guerreiros: formas de sobrevivência.

Os conflitos existentes entre lusos e espanhóis no Rio da Prata do


oitocentos são completamente distintos da noção de guerra existente no século
XX e XXI. Ao acampar com suas tropas em frente à fortaleza espanhola de Santa
Tecla, Rafael Pinto Bandeira queria, muito mais do que ameaçar a vida daqueles
espanhóis, demonstrar o poderio que tinha de arregimentar homens e recursos.
Na marcha para estas operações militares, que objetivavam reconquistar
territórios considerados lusos, iam homens livres, membros da elite local,
escravos, indígenas, peões de todo tipo, pequenos proprietários e posseiros.
Esse conjunto de homens, com representantes de todos os estratos da
sociedade, movimentava-se para o conflito pelas mais diversas razões, entre as
quais o pertencimento a uma rede de relacionamentos e as possibilidades de
obter ganhos, tendo em vista a distribuição do butim, que se fazia logo a pós a
conquista.
Ao trabalhar com estes problemas, enfrentamos o desafio de encontrar na
parca documentação existente elementos que possam nos auxiliar a
compreender melhor esta sociedade. Ainda que os casos que estudamos não
componham um número significativo, eles nos informam sobre as
possibilidades que se apresentavam àqueles homens, e sobre suas opções. As
devassas sobre o Conselho de Guerra que utilizamos foram publicadas durante a
década de 1930, pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, sendo que os
originais encontram-se no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.35 Trata-se de
um corpus documental que inclui depoimentos, prestações de contas,
correspondências, devassas anteriores, entre outros documentos, todos
reunidos para formar parte do processo instaurado em 1779 pelo governador do
Rio Grande de São Pedro, José Marcelino de Figueiredo. Esta documentação
revela dados acerca do desenvolvimento do conflito entre lusos e espanhóis no
Rio da Prata, especialmente pela prestação de contas do butim de guerra e pelos
depoimentos de muitos dos soldados e oficiais que participaram das operações,
que se desenvolveram entre 1773 e 1776. A participação de escravos e peões foi

35
Autos principaes do conselho de guerra a que foi submetido Raphael Pinto Bandeira. Códice 68. Vol. 1.
Arquivo Nacional.
36

muito significativa em todo o conflito, ainda que nenhum cativo tenha sido
depoente no processo.

A Guerra

No decorrer da década de 1750, exércitos espanhóis e lusos se uniram


para marcar os limites e expulsar os aldeamentos e missões existentes nas áreas
que seriam entregues a Portugal. Contudo, um novo Tratado, o de “El Pardo”, de
1761, anulou o de “Madri”, e abriu caminho para novas disputas territoriais, que
se iniciaram em 1762, com a tomada da Colônia do Sacramento pelos espanhóis
e, em seguida, da Vila de Rio Grande, sede do governo do Rio Grande de São
Pedro.36 Os espanhóis não tiveram muita dificuldade em tomar as povoações e
fortalezas lusas até chegarem ao Rio Pardo, onde foram detidos em 1763.37 A
luta pela retomada dos territórios perdidos ganhou fôlego a partir de 1773, no
contra-ataque a novas investidas espanholas. Do conjunto das operações de
retomada lusa, três ataques nos interessam neste momento. Foram as tomadas
das fortalezas espanholas de Santa Bárbara (1774), São Martinho (1775) e Santa
Tecla (1776).38 O recorte se justifica, na medida em que o comandante destas
operações, o Coronel Rafael Pinto Bandeira, fora investigado pelo Vice-rei Luis
de Vasconcelos, em 1780, através de um Conselho de Guerra. Pinto Bandeira
fora acusado de descaminhos, contrabandos, entre outros, pelo governador do
Rio Grande, José Marcelino de Figueiredo. Para efeito de aumentar o peso da
culpa do oficial, o governador Marcelino incluiu ainda uma devassa de 1773
sobre contrabandos, na qual havia muitas referências às atitudes ilícitas de
Rafael Pinto Bandeira. Além dos ataques citados, também atentamos para
alguns saques realizados por oficiais subordinados a Rafael, e que foram
igualmente narrados nos processos.

36
CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período Colonial. São Paulo: Editora do
Brasil, 1970. Pg. 161. e PAULA CIDADE. Op cit.
37
PAULA CIDADE. Op cit.
38
RMAPRGS. notas de fim. A partir de agora, utilizaremos apenas a abreviatura “RMAPRGS” para
referir aos “Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto
Bandeira”, já que tal publicação contém o documento na íntegra.
37

A ação de Santa Bárbara

Em dois de janeiro de 1774, sob o comando de Rafael Pinto Bandeira e


outros oficiais, um grupo de mais de cem homens assaltava a fortaleza
castelhana de Santa Bárbara, rendendo um grupo que somava, entre indígenas
das missões, oficiais e soldados espanhóis, cerca de oitenta combatentes. A
fortaleza foi ocupada e desmantelada, sendo o produto da conquista distribuído
entre os participantes vitoriosos. Aos espanhóis coube “...se entregarem uns, e
fugirem os mais para o mato...”, sendo depois capturados.39 Segundo Rego
Monteiro, os indígenas e “vaqueanos” das proximidades que estavam na
fortaleza conseguiram fugir para suas casas.40
No corpo luso predominavam três grupos militares, os Dragões,
corporação permanente e regular do exército de Sua Majestade, a chamada
“Cavalaria Ligeira”, formada por diversos sujeitos da localidade, e sob o
comando direto de Rafael Pinto Bandeira.41 O terceiro grupo era o das tropas
auxiliares, compostas também por locais, entre outros, mas recrutadas apenas
em circunstâncias especiais. Os auxiliares tinham um leque de recrutamento
maior.
Pelo que pudemos verificar, na ação de Santa Bárbara a predominância
fora de homens livres, não havendo referência a participação de escravos no
lado português. A listagem de distribuição do butim indica apenas membros da
cavalaria ligeira e das tropas auxiliares, sendo que todos foram, como se dizia,
“por sua conta”42, ainda que indicassem Rafael Pinto Bandeira como o
arregimentador. Seguindo esta listagem, percebemos uma grande diferenciação
do pagamento dos participantes, associada à hierarquia militar e de diferenças
entre os regimentos. Tal critério era comum na distribuição do butim sendo o
nível mais baixo da hierarquia os chamados “inferiores”, que incluíam soldados
e peões43 Contudo, as listas de butim são incompletas, quando as comparamos

39
RMAPRGS. pg. 258.
40
REGO MONTEIRO, Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-
1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979.
41
Essa corporação é tida como “particular” de Rafael Pinto Bandeira por VELLINHO, Moysés.
Fronteira. Porto Alegre: Editora Globo/EdUFRGS, 1975.
42
RMAPRGS. pg. 382-383.
43
RMAPRGS. pg. 226.
38

a outros documentos, como os depoimentos da devassa instaurada, nos quais os


soldados e oficiais contavam suas participações e ganhos. Muitos destes
militares presentes em Santa Bárbara, e que haviam recebido sua parte do
montante, não foram citados pelas listagens. Ainda assim, alguns testemunhos
são coincidentes com as listas e nos fazem pensar que apesar de incompletos, os
dados apresentados são exatos, pois são coerentes com os dos depoimentos.
Pelas condições de combate que se dispunham aos lusos no momento do
ataque, podemos entender a ação de Santa Bárbara como uma contra-ofensiva
realizada pelos membros do quadro militar mais estáveis. Ainda não estavam
cotados para a guerra um grande número de indivíduos. Adiante se incluiriam
escravos. O montante dos empregados na tomada era constituído de forças
locais, na medida em que a ação de retomada efetiva ainda estava sendo gestada
pelos oficiais lusos.44
Do lado espanhol a situação era diversa. Na fortaleza estavam encerrados
não apenas militares permanentes, mas também grande número de indígenas
guarani, convocados dos povos missioneiros que restavam da expulsão dos
jesuítas. Além dos guarani, é possível que muitos dos oitenta soldados
“correntinos” que participaram da operação45 fossem indígenas “abipones”46 que
eram continuamente incorporados nos contingentes militares daquela
localidade, como nos indica Djerendejian47. Infelizmente não sabemos até que
ponto tais indivíduos ganhavam com estes conflitos, mas é possível que a
própria incorporação no exército já fosse uma alternativa, em um tempo de
“vacas magras” da economia correntina.48

São Martinho

Um ano e alguns meses depois do ocorrido em Santa Bárbara os


grupamentos comandados por Rafael Pinto Bandeira voltavam a ação na

44
REGO MONTEIRO, Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-
1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. Pg. 260.
45
idem. Pg. 225.
46
Indígenas naturais de Corrientes, nos domínios espanhóis. Cf. DJENDEREDJIAN, Julio. ¿Un aire de
familia? Producción agrícola y mercados desde Corrientes y Entre Rios a Rio Grande do Sul,
fines del siglo XVIII y comienzos del XIX: algunas reflexiones comparativas. Primeras Jornadas de
História Comparada. Porto Alegre. 2000
47
DJENDEREDJIAN. op cit.
48
Idem.
39

importante posição espanhola de São Martinho.49 Desta vez, seu corpo militar
incluía efetivamente um leque social mais amplo. A tropa contava com duzentos
e cinco “oficiais inferiores, soldados, agregados, bombeiros, peões e
escravos”.50 No forte espanhol havia oficiais, cerca de dezoito soldados dragões
espanhóis e vinte e um índios, além dos cento e tantos indígenas que fugiram
durante o ataque.51
Ao tomarmos as listas de butim, verificamos uma maior heterogeneidade
nos participantes dos ganhos, já que citam grupos auxiliares, de cavalaria
ligeira, bem como peões e agregados que acompanharam membros dos
grupamentos auxiliares. Tal é o caso do espanhol Lucas Coitinho e seu fiel peão,
Paulo, que foram juntos para o combate, pelo lado português, e recebendo
juntos a quantia de 15$720 réis, resultado do butim. Contudo, também havia
aqueles senhores que enviavam alguém em seu lugar no combate, como o
tenente João Barbosa da Silva, que mandou o índio Lourenço para a ação, e que
nada recebeu. A falta de pagamento não deve estar associada ao fato do
guerreiro ser indígena, mas, pelo fato do pagamento não ser imediato e de nem
sempre haver cobrança pelos interessados.52 De qualquer modo, não podemos
afirmar isso com certeza. O que podemos acrescentar é que outros sujeitos, não
índios e não escravos, também ficaram sem nada receber, como Albino Ribeiro
Bayão e Isidoro de Faria.53
Para a tomada de São Martinho dispomos do cálculo realizado para a
divisão do butim. O valor total do saque, retirado o quinto de Sua Majestade, foi
calculado em 6.015$184 réis.54 Para fins de divisão cada oficial inferior, soldado,
agregado, bombeiro, peão ou escravo participante foi contado como um. Os
oficiais subalternos foram contados como dois. Os capitães tiveram peso três, e
o comandante, peso doze.

49
REGO MONTEIRO. Op cit. Pg. 259.
50
RMAPRS. pg. 189.
51
MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. Op cit. Pg. 259.
52
Tal é o caso do furriel de Auxiliares, José Alves Coelho: a “presa se dividiu pelas partes interessadas e
que ele testemunha também não recebera a sua parte nessa ocasião por estar distante em Viamão, e
também porque ele testemunha por não ter necessidade a não procurou, mas tanto que a teve foi pedi-la
ao procurador do Coronel Rafael Pinto Bandeira, que era João Luis morador no Rio Pardo, o qual logo
sem repugnância alguma lhe satisfez”. RMAPRGS. pg. 108.
53
RMAPRGS. pg. 384.
54
Do espólio de guerra era retirado o “quinto” para Sua Majestade.
40

Se atentarmos para quem eram estes sujeitos, seus patrimônios e


trajetórias, verificaremos que hierarquia militar e social se confundem. No caso
da operação de São Martinho, os oficiais subalternos, os capitães e o
comandante eram todos provenientes da elite, não apenas por pertencerem a
famílias que ocupavam cargos importantes na localidade, como pelos seus
recursos, redes de relacionamentos e por suas propriedades. Da mesma forma,
os chamados “oficiais inferiores”55, assim como os soldados e a gama de
escravos, agregados e peões que faziam parte do último segmento de
distribuição, eram indivíduos com poucos cabedais e recursos.
Ainda que estes estratos inferiores não fossem privilegiados na
distribuição dos bens adquiridos na guerra, estas ações ainda significavam para
eles possibilidades bem interessantes de melhoria de vida. Se considerarmos, tal
como nos sugerem as listas de distribuição, que um escravo ganhava cerca de
25$000 réis por uma operação como a de São Martinho, estaremos diante de
um cativo que tem amplas possibilidades de adquirir sua liberdade. Pelo preço
de inventários da época, um escravo adulto do sexo masculino podia ser vendido
entre 50$000 e 80$000 réis.56 A guerra, neste sentido, era uma forma extra de
aumentar o pecúlio. Mesmo para os agregados e peões, assim como para muitos
pequenos proprietários, o conflito representava a sua incorporação a um
determinado grupo, o que poderia muito bem lhes render importantes vínculos
e relacionamentos, que poderiam ser significativos para uma melhoria social ou
material.
As regras para distribuição do butim foram definidas de cima, pelo
próprio Marques de Lavradio. Seu conteúdo é bastante claro, e trata da parte
que caberia a cada um dos combatentes, de acordo com sua posição e “sem
exceção alguma”. Ao comandante se daria ¼ do total, aos seus subordinados,
outro ¼. Aos demais, ½ do total do butim. Em momento algum se excluem da
possibilidade do ganho os escravos ou quaisquer outros baixos estratos
empregados no serviço de guerra.
Havia ainda formas menos convencionais de ganhos resultantes da

55
São os oficiais da patente de Alferes para baixo.
56
APERGS. Inventários post-mortem de Bernardo Baptista: 1º Cartório de Órfãos e ausentes. Nº 68.
maço 6.
41

guerra, especialmente o chamado “descaminho”, ou seja, o desvio de


propriedade comum apresada em ataque. Esta contravenção não atingia apenas
os interessados na divisão, mas significava perda de parte do quinto de Sua
Majestade, o que motivou as autoridades a investigar o butim. Os depoimentos
dados ao Conselho de Guerra, assim como a devassa que o precedeu informam
sobre a estrutura social que está por detrás desta corrupção.
O capitão de Dragões Francisco Alves de Oliveira prestou interessante
relato em seu depoimento, quando do Conselho de Guerra de Pinto Bandeira.
Segundo ele, logo após a ação de Santa Bárbara, tomou o caminho de Rio Pardo
junto com dois combatentes auxiliares, Gabriel Aires e Mateus José. Durante o
percurso os dois queixavam-se do excesso de descaminhos que as presas de
guerra estavam submetidas, sendo que pouco ficaria para a divisão, e seriam
todos prejudicados. Ao saber disso, o Capitão Francisco Alves inquiriu a ambos
a razão pela qual Rafael Pinto Bandeira, enquanto comandante da ação, não
punha um fim a estes abusos, ao que ambos responderam que “...como havia de
por cobro se diziam que o dito Coronel Rafael Pinto Bandeira também entrava
nos mesmos descaminhos...”.57 Esse depoimento, em muito corroborado por
outras fontes e testemunhos, nos indica a participação e o controle por parte
desta elite dos ganhos resultantes dos ataques.
Tal controle não definia apenas o acesso de alguns a esta parte “oculta”
do butim, que seria provavelmente distribuída entre os participantes do desvio,
mas também definia o quando tais informações poderiam circular, e o quanto
convinha, muitas vezes, não ter ciência destes fatos. O almoxarife da Fazenda
Real, responsável pelo controle dos animais apreendidos, teve a vida ameaçada
em determinada situação, quando tentou barrar uma movimentação de animais
desencaminhados. Um dos combatentes envolvido sacou a pistola do coldre e
disse: “...hora se você tivesse vontade de morrer, eu não tinha dúvida de o
matar...”58. Ainda assim, o almoxarife Antonio da Silveira Ávila depôs, pelo
menos no processo feito em Porto Alegre, que antecedeu o Conselho de Guerra.
Talvez o medo de que algo semelhante lhe acontecesse fez com que Miguel
Martins Serra, lavrador de Rio Pardo, testemunhasse indicando os delitos de

57
RMAPRGS. pg. 73.
58
RMAPRGS. pg. 313.
42

Rafael Pinto Bandeira, mas afirmando veementemente que “...que ele


testemunha nunca crera a semelhantes ditos...”59, ainda que neste caso, a
testemunha tivesse relações especiais com Rafael.
Mais do que este controle, tais ocorrências nos informam das articulações
entre os membros da elite. O cabo de Dragões Ricardo José de Magalhães, em
seu depoimento, afirmou que sabia do descaminho e que após a tomada dos
animais, julgara, junto com outros companheiros, que “...o dito coronel Rafael
Pinto Bandeira tivesse mandado alguns animais para sua estância e para a do
capitão João da Costa Severino...”.60 Em outro caso, o tenente auxiliar
Francisco José Martins alertou para o desvio de gado logo após o ataque de
Santa Bárbara “...sendo tudo conduzido até as margens do Rio Pardo a uma
estância do Capitão Cipriano Cardoso, em cujo sitio nessa primeira noite foi
desencaminhada a maior parte da dita cavalhada...”.61
Estamos diante de três membros da elite local, que eram igualmente o
alto comando do ataque terrestre aos espanhóis nestes anos de conflito. Rafael
Pinto Bandeira, Cipriano Cardoso e João da Costa Severino eram grandes
estancieiros e estavam conectados ao esquema que definia a parte dos ganhos
do butim. Esta lógica de organização não apenas estava orientada pela
hierarquização da sociedade, como era parte do esquema que reproduzia e
sustentava esta ordem social. Os recursos materiais estavam ali dispostos, era
preciso que alguém os administrasse de modo a manter a ordem social vigente.
Não seria esta guerra que iria desorganizar a sociedade. Não apenas a elite, mas
o conjunto da sociedade, incluindo os homens livres pobres, os escravos e os
outros tantos com vários estatutos de subordinação estavam de acordo com esta
norma, e sabiam muito bem os caminhos que deveriam seguir para chegar a
algum lugar na estrutura social. A participação destes homens no esquema de
desvio do butim e seu compromisso com estas relações demonstram o quanto
sabiam jogar, dentro das possibilidades de ação que lhes eram oferecidas. Não
apenas o medo os fazia silenciar frente a acusações contra Pinto Bandeira. A
esperança de entrar para seu bando e poder obter alguma inserção, era

59
RMAPRGS. pg. 60.
60
RMAPRGS. pg. 84.
61
RMAPRGS. pg. 57.
43

igualmente uma opção válida, quando muitas outras podiam estar já


descartadas. A sobrevivência estava, sem dúvida, acima da legalidade.

A “escalada” de Santa Tecla

Na tarde de 24 de março de 1776 houve o encontro derradeiro entre o


comandante luso Rafael Pinto Bandeira e o capitão espanhol Luis Ramires:
“Logo que nos topamos, o primeiro cotejo foi dois abraços, e depois três beijos,
dois nas faces, e um nos beiços, cumprimento, que é a primeira vez, q’ vejo:
ofereceu-se-me com toda a Fortaleza...”62. Este amigável colóquio encerrava a
negociação realizada para a entrega de um dos últimos baluartes espanhóis das
guerras entre lusos e castelhanos no Prata, entre 1763 e 1777: a fortaleza de
Santa Tecla. Mais do que a espada, eram a negociação e o jogo de honras as
armas mais potentes nas mãos de portugueses e espanhóis nestes conflitos. Isso
não significa que a estratégia militar, além do impacto técnico e numérico não
fossem importantes. O fato de muitos castelhanos, como já citamos, fugirem
“para o mato” 63 nos dá a importância desta artimanha. Contudo, ainda assim
havia uma transação, que concedia espaço para a fuga, como um passo possível
para a rendição.
Deste conflito saíram muitas investigações, que resultaram em mais de
sessenta depoimentos, além de uma grande quantidade de correspondências e
outros tantos documentos.64 Neste montante, raríssimas são as ocorrências
concretas de agressões e de mortes. A morte e o extermínio não eram os
objetivos destes conflitos, mas suas conseqüências últimas. A ação de Santa
Tecla é, neste sentido, um bom exemplo. Aqui as táticas militares que envolviam
a tomada de assalto não funcionaram e as tropas lusas tiveram que acampar
durante dias, aguardando um momento para o ataque, que acabou igualmente
frustrado. Durante vários dias, as tropas continuaram aguardando, até o
momento em que os espanhóis resolveram render seu forte. Desta entrega
resultou o contato que acima narramos, bem como uma carta de capitulação de
onze itens, nos quais os espanhóis procuram garantir certas prerrogativas, que

62
RMAPRGS. pg. 375.
63
RMAPRGS. pg. 258.
64
RMAPRGS.
44

envolviam a manutenção de honras militares e o atendimento aos feridos.65


Aparte a negociação oficial estabelecida entre os dois comandantes,
houve um pequeno embate de dádivas, nos momentos que se seguiram aos
cumprimentos dos briosos oficiais. O capitão espanhol mandou entregar ao
comandante luso “...um pouco de biscoito, erva e tabaco...” e Rafael Pinto
Bandeira, em troca, “como não tinha que mandar-lhe dei uma moeda d’oiro a
cada soldado, dos que trouxe o mimo.”66. Fica ainda presente uma certa
“humildade”, frente à recepção do presente. Afirmar que nada possuía além de
umas moedas de ouro, diante de um presente constituído de gêneros
absolutamente comuns na região, como a erva-mate e o tabaco, significa uma
demonstração do poderio de Rafael, capaz de arregimentar elevado número de
homens, recursos e ainda se colocar com superioridade tenaz em uma troca de
presentes.67
Pinto Bandeira triunfara não apenas na conquista da fortaleza, com seus
artefatos bélicos, com seus homens, estratégias e cavalos, mas triunfara
igualmente no campo da honra, acolhendo o inimigo em sua derrota,
negociando os termos de rendição e administrando com eficácia o
relacionamento com o comandante espanhol.
A partir dos depoimentos de Santa Tecla verificamos algumas
características daquela sociedade em guerra. Se atentarmos bem, observamos
que o ritmo do conflito é bastante lento. Ainda que os ataques de Santa Bárbara,
São Martinho e Santa Tecla representem uma contra-ofensiva lusa na área, um
momento de acirramento da ação portuguesa, os intervalos entre um e outro
combate são largos, tendo, no mínimo, seis meses entre as ações de São
Martinho e de Santa Tecla. Isso significa que, para as populações afetadas mais
diretamente pela guerra, especialmente as residentes em Rio Pardo, Triunfo e
Viamão, aquele conflito não representava uma transformação na rotina. Muito
mais importante era um possível engajamento nestas operações, como uma
forma de ganho por parte de alguns, mas também como uma possibilidade de
criação e manutenção de laços com aqueles oficiais que detinham não apenas o

65
Tal documento foi transcrito por REGO MONTEIRO. Op cit. Pg. 284.
66
RMAPRGS. p. 375.
67
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.
45

controle das operações, mas que representavam o que havia de mais expressivo
na elite local.
Rafael Pinto Bandeira foi submetido a um Conselho de Guerra que ainda
está longe de ser explicado68. Sua prisão, seu julgamento e sua absolvição pela
própria Rainha ainda devem ser tomados de forma mais atenta. Ainda que a
escolha das testemunhas que foram enviadas para o Rio de Janeiro seja algo
difícil de compreender, alguns aspectos são interessantes de serem observados.
Entre as 20 testemunhas, selecionamos dois “lavradores” para uma
aproximação: Antonio Dutra e Manuel Gomes Porto.
Antonio Dutra veio para a América da Ilha do Faial. Tinha cerca de 27
anos quando depôs junto ao Conselho de Guerra, em 1780. Esteve nas operações
de Santa Bárbara e Santa Tecla, sendo que, desta última, prestou interessante
relato. Segundo ele, depois de todos os ataques, e do cerco à fortaleza, as tropas
tomaram o caminho de Rio Pardo, para onde também iam os bens tomados dos
espanhóis. Ele, testemunha, “viera na mesma condução acompanhando as
carretas”69, só não chegando ao Rio Pardo porque “sua casa ficava perto e se
retirou, e deixou ficar os mais companheiros”70. Dutra, membro do corpo
auxiliar, havia se juntado aos soldados de Cipriano Cardoso, antes da formação
dos grupos maiores que reuniam vários comandos, e que partiam,
posteriormente, para os ataques às fortalezas.71
Partindo da definição “lavrador” que lhe foi atribuída pelo Conselho de
Guerra e considerando a descrição que fez de sua trajetória pós-combates,
podemos entender Dutra como um produtor sem muitos recursos, que se valia
de alternativas de serviço como a guerra, para obter ganhos inesperados.
Através da guerra também podia articular contatos não apenas com os
comandantes, como Cipriano Cardoso e Rafael Pinto Bandeira, mas igualmente
com outros tantos combatentes. A expressão “companheiros”, utilizada por ele e
repetida por outros tantos depoentes do processo, nos indica o quanto estes

68
O trabalho de Augusto da Silva é o que mais se aproxima, ainda que tenhamos discordâncias com sua
análise. SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre
os poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999.
(Dissertação de Mestrado Inédita).
69
RMAPRGS. pg. 70.
70
RMAPRGS. idem.
71
RMAPRGS. pg. 70.
46

acampamentos eram espaços de sociabilidade daqueles homens. Em uma destas


noites de acampamento, antes da capitulação de Santa Tecla, o próprio Rafael
Pinto Bandeira reuniu todo o grupo e “...dizia que cuidassem todos em se
empregar com valor, porque permitia o governador do Continente José
Marcelino que se não pagasse o quinto...”72. Esta passagem também foi referida
por outras testemunhas, como Manuel Pereira Lagoas, “que por ele testemunha
estar distante não ouviu, mas disseram os camaradas era para se não pagar
quinto”73. Estes instantâneos do acampamento nos indicam, além da constante
preocupação com o resultado econômico do ataque, o referido grau de
sociabilidade que aquele conflito proporcionava.
Manuel Gomes Porto chegava ao Conselho de Guerra para testemunhar
quando contava cerca de 37 anos.74 Alguns anos antes, em 1764, se encontrava
na condição de capataz do quartel do Rio Pardo durante curto período, entre os
meses de fevereiro e dezembro daquele ano.75 Seu caso parece ser semelhante ao
de muitos outros seus contemporâneos. O emprego sazonal, fosse na guerra,
fosse como capataz em algum posto ou estância, eram atividades que
interessavam aos pequenos proprietários, ainda que não saibamos da situação
de Manuel durante aquela década de 1760. Passados os conflitos Manuel
reivindica para si uma sesmaria no Rio Pardo, onde mantinha em 1784 um
pequeno rebanho de trezentas reses e quarenta cavalos.76 Só em 1800 é que sua
propriedade é reconhecida, com a concessão do Conde de Rezende.77 A principal
função de Manuel fora a de observar e explorar o campo inimigo. Essa função
fora muito importante, especialmente no cerco de Santa Tecla, quando temia-se
que os espanhóis enviassem reforços para os sitiados. Da mesma forma que
Antonio Dutra, Manuel Porto participou das operações de Santa Bárbara e
Santa Tecla, ausentando-se de São Martinho.

72
RMAPRGS. pg. 63.
73
RMAPRGS. pg. 68.
74
RMAPRGS. pg. 81.
75
F1242. 224. AHRS.
76
RMAPRGS. pg. 489. Nota 29.
77
F1249. 170v. AHRS.
47

O contrabando como desembaraço de uma sociedade.

A importância do comércio ilícito para uma parcela significativa da


população daquela fronteira não foi pequena. É difícil dizer quantas pessoas se
envolveram diretamente no contrabando, mas a maior parte das fontes que
utilizamos indica uma grande disseminação desta prática. Alguns elementos,
contudo, podem nos fornecer algumas pistas para apurar o quanto este negócio
era importante para aquela sociedade. O contrabando guarda relação com o
próprio desenvolvimento da produção pecuária na fronteira, como também com
formas alternativas de sobrevivência e manutenção de status.

A formação do rebanho.

Sendo o gado muar um dos principais gêneros contrabandeados,


comecemos observando a relação entre a sua produção na fronteira e aquele
comércio ilícito.
Um mapa de animais, feito em 1741, não contava entre seus listados nem
burros nem mulas,78 em oposição às mais de vinte mil éguas.79 Em 1804, um
mapa semelhante apontava a existência de mais de cinco mil burros que unidos
às mais de cem mil éguas de cria, produziam mais de vinte mil mulas anuais.80
Estes sessenta anos testemunharam um enorme crescimento desta criação.81
Não é possível, através destes dados, verificar o quanto este rebanho é resultado
da criação, pois o período compreende várias guerras, quando os animais eram
muito utilizados e sua produção diminuía.
Seria difícil identificar um momento em que o rebanho asinino82 passa a
ser significativo na fronteira. O primeiro registro que encontramos de ingresso
destes animais na região é em 1753, através da ação de Cristóvão Pereira de
Abreu, que adquiriu os animais nos domínios espanhóis, dispondo inclusive da

78
Quando falamos “burro”, estamos nos referindo ao “Equus asinus”, que também é conhecido como
“jumento”. Do cruzamento induzido de um burro com uma égua “Equus cavalus” sai um híbrido
estéril, a que chamamos “mula”.
79
Mapa das Fazendas povoadas de gado no Rio Grande de São Pedro. AHU-RS. Cx. 1 doc. 38.
80 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.
81
OSÓRIO. op cit. pg. 104.
82
Gado Asinino é relativo a burros e burras.
48

permissão do Governador de Buenos Aires para tal feito. 83


Em 1763 já havia uma quantidade significativa de burros e mulas na
fronteira, que foi relatada por ocasião da invasão espanhola.84 Outra evidência
deste fato, é a manifestação contrária dos súditos do lugar a uma lei régia que
proibia a existência de mulas no Estado do Brasil. Argumentavam eles que se
dedicavam àquela criação, e que teriam muitos prejuízos com a lei.85
Acreditamos que o início efetivo da produção de muares na fronteira se
deu no final da década de 1750. Todavia, paralelamente ao desenvolvimento
desta produção, ocorre um contínuo contrabando destes animais. Isso pode nos
indicar o quanto o ingresso ilegal de animais pôde contribuir para o
desenvolvimento da pecuária naquela região.
Em 1768 o governador do Rio Grande, Sá e Faria, dava ordem para o
estabelecimento da criação de muares, que seria feita apenas com os burros
apreendidos dos contrabandistas.86 Nos anos de 1767 e 1768 identificamos três
tropas de gado que levavam burros dos domínios espanhóis para os territórios
lusos. Uma delas, conduzida pelo espanhol Eugenio Barragam, levava onze
burros e quatrocentas éguas, o que seria uma quantidade de animais muito boa
para se iniciar uma produção de mulas. No mesmo período Manuel Munhoz
tentou introduzir cerca de 30 burros, sendo detido. A quantidade que traziam
era significativa. Em 1784, dos sessenta e dois proprietários de burros da
freguesia do Triunfo, próxima a Viamão, apenas dezenove possuíam mais do
que onze burros, e somente oito daqueles criadores possuíam mais do que trinta
destes animais. Tal freguesia possuía, àquele tempo, um dos maiores rebanhos
asininos da fronteira.87

83
Carta de Christovão Pereira de Abreu a Don. Joseph de Andonaegui. Sala IX, Legajo 3.8.2. AGN.
Agradeço a Fabricio Pereira Prado pela cessão do documento. Uma boa análise sobre Cristóvão Pereira
de Abreu está em HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os
homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ,
2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).
84
Relação apresentada pelo Senado da Câmara do Continente do Rio Grande de São Pedro. APUD:
OSÓRIO. Op cit. pg. 107.
85
F1243. 5.
86
REGO MONTEIRO. op cit. pg. 172. baseado no Cód. 104. Vol. 15.
87
SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e Sociedade do Rio Grande do Sul: século XVIII. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984.
49

O custeio da guerra.

Em uma carta datada de dezembro de 1774, o Marquês do Lavradio falava


sobre Rafael Pinto Bandeira. Dizia que Rafael seguira ao pai, Francisco Pinto
Bandeira, em muitos pontos, ainda que não chegasse “...ao ponto de ter as
88
outras boas circunstâncias que ele teve...” Isso acontecia porque Rafael
deixara a tropa de Dragões para, posteriormente, ser capitão de cavalaria ligeira
irregular “...para continuar com sua tropa a fazer as corridas de gado e
cavalhadas e ainda sem ordem para isso, em que tem feito um grande
cabedal.”89 Essa informação de que Rafael fazia junto de outros sócios arreadas
de gado nos campos inimigos, foi minuciosamente descrita para Lavradio por
um oficial seu, destacado na fronteira, chamado Francisco José da Rocha.90
Rocha afirmava, ainda, que Rafael lhe teria dito que era o único rico o suficiente
para montar duzentos e cinqüenta homens para estas arreadas.
Não eram só as arreadas que lhe garantiam o enriquecimento. Em 1773, o
provedor da Fazenda Real, Inácio Osório Vieira, promovera uma devassa para
apurar denúncias de contrabando ocorridas naquela fronteira. Das quinze
testemunhas, oito apontaram Rafael Pinto Bandeira como interessado naqueles
negócios. E as denúncias apontavam um esquema bastante elaborado de
compra e venda, envolvendo peões, criadores e oficiais da Coroa.
Mas não era apenas o enriquecimento que movia Rafael. Ao comando da
recém criada cavalaria ligeira, também conhecida como corpo de aventureiros,
Rafael pôde destacar para o serviço uma boa parcela de aliados e agregados,
reforçando os laços e estabelecendo uma hierarquia bastante clara e formal.
Muitos dos componentes da cavalaria ligeira estavam, ao lado de Rafael,
envolvidos em contrabandos e arreadas. Tal é o caso Joaquim Rodrigues de
Aguiar, que já andava ao lado de Rafael em vários outros negócios, e teve grande
ascensão em seus postos da cavalaria.91 Era através de uma refinada rede de
reciprocidades que Rafael conseguia reunir, e “montar”, aqueles duzentos e
cinqüenta homens que teria mecionado ao oficial luso.
88
AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189. Grandes trechos da carta de Lavradio são citados neste documento.
89
AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189.
90
Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73.
91
RMAPRGS. Pg. 179.
50

Resultado de tudo isso foi o número significativo de homens que Rafael


levou para a guerra contra os espanhóis. No ataque de São Martinho, por
exemplo, temos a confirmação de vinte e quatro sujeitos que foram junto de
Rafael, de um total de duzentos e cinco homens. Todavia, vinte e quatro é o
mínimo, sendo que poderiam ser muitos mais.92 Inclui-se ainda a possibilidade
de Rafael ter armado muitos destes homens, uma vez que dificilmente a Coroa
teria condições para tal, visto que mal dava conta dos soldos e fardas.93
Através destas relações e do próprio serviço de contrabando, Rafael
contou com uma base social indispensável para o custeio da guerra. O Estado
Luso teve grande dificuldade de investir naquela guerra, e teve na ação daqueles
homens, que também se dedicavam ao contrabando, um auxílio imprescindível.

Uma prática que perpassava toda a sociedade.

Assim como foi fundamental no abastecimento de reprodutores do


rebanho e contribuiu para bancar os conflitos contra os espanhóis, o
contrabando possuía um significado mais geral, perpassando todas os estratos
sociais como uma forma de sobrevivência e reprodução da vida social.
De todos os sujeitos que identificamos como contrabandistas nenhum
pareceu manter uma dedicação exclusiva a este negócio. Eram lavradores,
soldados, criadores de animais, oficiais da coroa, negociantes, entre outras
atividades possíveis, que se valiam do comércio ilícito como uma alternativa
extra para obter ganhos econômicos, relacionamentos ou outras benesses
possíveis. Esta diversidade de empregos é uma característica de sociedades pré-
industriais, como a que estamos tomando.94
Miguel Martins Serra era um destes homens. Ao testemunhar em 1780,
em um Conselho de Guerra, dissera que vivia “...das suas lavouras...”. Fora
enviado antes da guerra para espionar a Colônia do Sacramento a pedido do
governador do Rio Grande. Nesta mesma oportunidade levou por conta de
Rafael Pinto Bandeira algumas fazendas para trocar por animais, conduzindo na

92
RMAPRGS. pg.190 e 384.
93
OSÓRIO. op cit.
94
GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux au XVII siècle - Beauvais et Beauvasis 1600-1730.
Paris: Flamarion, 1968.
51

volta tropas de animais para Rafael.95 Atuou também de mensageiro e depois


como soldado. Participou nas ações de Santa Bárbara e Santa Tecla, sendo que
96
na segunda fora como carreteiro da tropa, levando parte dos mantimentos.
Neste sentido, o comércio ilícito era para Miguel Martins uma atividade sazonal
e complementar. Assim como ele, muitos outros tinham no contrabando uma
alternativa de sobrevivência, frente a possíveis incertezas na lavoura, na criação
ou em outras atividades.
Também a elite local percebia no contrabando uma forma de garantir sua
posição e manter conexões com o restante da sociedade. Um sujeito como
Rafael Pinto Bandeira, após ser acusado de contrabandista por inúmeras
pessoas e passar sem constrangimento por várias investigações, assumiu o
governo interino da capitania do Rio Grande de São Pedro por duas vezes.97
Também várias pessoas associadas a Rafael exerciam postos importantes na
fronteira. O capitão de Dragões Carlos José da Costa e Silva era cunhado de
Rafael e possuía um dos mais importantes postos militares da região. Da
mesma forma, seus irmãos Felisberto e Evaristo, assim como outro cunhado,
Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães, eram comandantes militares de seus
distritos, possuindo um grande poder entre a população.98
Ao morrer, em 1795, Rafael teria provavelmente a maior fortuna da
“fronteira”, possuindo várias propriedades. Em apenas uma delas, a “Estância
do Pavão”, Rafael possuía quarenta e nove escravos, e cerca de trinta mil reses.99
Neste sentido, o contrabando contribuía também para a manutenção da
hierarquia social.
Para se manter enquanto um negócio interessante, o contrabando
necessitava de certas garantias sociais. Em primeiro lugar, uma ampla base
social que desse sustentação a quem o praticava. Isso se materializa na ampla
rede de relacionamentos que Rafael Pinto Bandeira liderava. Junto a ele
estavam lavradores, criadores, peões, negociantes, estancieiros, oficiais da

95
Devassa de 1773. 1ª testemunha. RMAPRGS. pg. 316.
96
RMAPRGS. pg. 488. Depoimento na Devassa...
97
SILVA. op cit.
98
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo Nacional.
99
Inventário de Rafael Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 211. maço
13. APERGS.
52

Coroa e militares, todos associados através de relações de reciprocidade100 e


parentesco, numa grande teia. Da mesma forma, era também a posição de
Rafael e de outros seus associados na estrutura social e no acesso aos postos de
mando político que garantia a manutenção do comércio ilícito por eles
desenvolvido.
Percebemos assim, que o comércio ilícito está profundamente
determinado por aspectos típicos de uma economia de Antigo Regime, baseada
em redes de reciprocidade e no controle do mercado a partir de instâncias
políticas e sociais, em uma sociedade fortemente hierarquizada e desigual. De
sua parte, também o contrabando era responsável pela manutenção desta
ordem. Permitia que determinadas pessoas tivessem acesso a negócios vedados
à maioria. Estando à frente de postos de governo, especialmente o controle das
fronteiras, Rafael Pinto Bandeira prendera várias pessoas por contrabando,
mantendo para isso espiões nos caminhos de passagem entre os domínios lusos
e espanhóis.

100
O tipo de reciprocidade variava de acordo com cada relação. Veremos isso no capítulo 4.
CAPÍTULO 2
ENTRE O JUSTO E O CERTO: O PENSAMENTO SOBRE O COMÉRCIO ILÍCITO

O contrabando segundo Sua Majestade

Ao aconselhar o magnífico Lorenzo de Médicis, Maquiavel pontuou três


modos possíveis para se preservar as cidades e principados conquistados:

“O primeiro é aniquilá-los. O outro é residir neles. O terceiro é deixá-los


viver com suas leis, retirando uma renda e criando internamente um
governo de poucos que manterá o consenso. Tal governo, consciente do
fato de existir pela vontade do príncipe, sabe que depende de sua
benevolência e poder e tem todo o interesse em agir de modo a conservar a
situação.” 1

O florentino concluía afirmando serem mais oportunos o extermínio e a


residência do que a condescendência com os súditos. Contrariando o receituário
maquiavélico, foi a benevolência o principal meio utilizado pelos monarcas
portugueses. No trato com as colônias, sempre agiram de forma muito contida,
delegando poderes aos locais e contando com o apoio destes na conservação dos
vastos territórios d’aquém e d’além mar.2 Longe de qualquer suspeita de inépcia
por parte das autoridades lusas, esta prática estava profundamente orientada
pelo pensamento ibérico do século XVII e que, além de dialogar com a obra de
Maquiavel, mantinha uma postura crítica em relação a este. 3

1
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Paz & terra, 1996. Pg. 33.
2
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN:
FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. e também em
GREENE, Jack P. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history.
Charlottesville and London: The University Press of Virginia, 1994.
3
É o caso de Baltasar de Faria Severin. HESPANHA. António Manuel. A fazenda. IN: O Antigo
Regime. História de Portugal. vol. IV. Lisboa: Editorial Estampa. Pg. 181.
54

A mais destacada corrente de pensamento na península ibérica durante


os séculos XVII e XVIII estava ancorada nos princípios da chamada “segunda
escolástica”.4 Tal vertente postulava um retorno à filosofia clássica,
especialmente Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Um dos mais importantes
princípios defendidos era a mediação popular. Defendia a possibilidade de
colocar em xeque a legitimidade, não da monarquia, mas do monarca, pelo
atributo de incapacidade ou tirania. Ao povo, cabia reivindicar o direito de ser
bem governado com justiça e honra. Subjacente a este princípio havia outro,
igualmente importante, que versava sobre o “bem comum” (utilitas publica).
Esta noção sustentava a supremacia do interesse da comunidade em detrimento
do interesse particular. Para resguardar este interesse havia a figura do Rei
como guardião da justiça, primeira das atribuições reais. Tais noções estavam
amplamente difundidas, e mais de uma vez os súditos reivindicaram o direito a
rebelião, partindo do pressuposto da ilegitimidade de certas posturas da Coroa,
especialmente no ultramar.5 Estas noções permanecem vivas até o final do
antigo regime, ainda que ocorram profundas mudanças na gestão do governo
durante a segunda metade do século XVIII.6
A manutenção do Império, das possessões e senhorios do Rei fora de
Portugal era garantida, além da administração oficial diretamente vinculada à
corte, por uma densa rede de relacionamentos que estava ancorada nos poderes
locais. Não era apenas por uma questão de princípios que o Rei de Portugal não
poderia aniquilar os territórios ou residir neles, como teria sugerido Maquiavel.
A política lusa dependia de uma constante negociação com as elites locais. Era
do resultado desta negociação que se garantia a manutenção territorial e política
do Império, e conseqüentemente, para a Coroa, uma ampliação do número de
súditos e de ganhos econômicos.7

4
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
5
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN:
FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. (Agradeço a
Martha Hameister pela indicação deste texto).
6
SUBTIL, José. Governo e Administração. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN:
MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.
7
HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
55

Por causa desta fragilidade havia interesse, por parte da Coroa, em


manter uma negociação constante e diversificada. Por vezes tinha que dar conta
da demanda de grandes parcelas de súditos, que revoltados, exigiam a defesa do
bem comum pelo Rei, diante da atitude ambiciosa de algum particular. Em
outros casos, a Coroa dava vazão às solicitações de determinados grupos ou
particulares, o que muitas vezes colocava por terra o almejado princípio do
utilitas publica. Contudo, mesmo nestas ocasiões, a justificativa para a
concessão se fazia em nome da comunidade, do bem comum. Estamos diante de
uma prática muito recorrente no ultramar luso e que dizia respeito diretamente
à manutenção deste universo. Por outro lado, esta também era uma prática
argumentativa bastante convincente e que, à sua maneira, também contribuiu
para a manutenção da ordem social do Império português.
Procuramos saber as formas de que se valeu a Coroa lusa para garantir o
controle social frente a um tipo específico de insubordinação e transgressão: o
contrabando. Tratamos de perceber a maneira como a Coroa e alguns de seus
emissários mais próximos (como Alexandre de Gusmão e o vice-Rei Luís de
Vasconcelos e Souza) percebiam e lidavam com o problema do contrabando,
fosse na atitude frente aos transgressores ou nas fórmulas que criavam para
compreendê-lo.

Alguns incidentes.

Em inícios de 1741 foram presos dois mercadores portugueses em Lisboa,


sob acusação de contrabando. A mercadoria apreendida consistia em um caixote
de relógios ingleses de propriedade de Rodrigo Xavier Teles de Meneses (Conde
de Unhão). Ainda que esteja fora de nosso recorte, tal ocorrido serve para ajudar
a compreender alguns dos casos que encontramos no rio da Prata. Em 21 de
março daquele ano, um dos principais assessores do Rei, Alexandre de Gusmão,
escrevia ao referido Conde, cobrando-lhe reflexão sobre seu ato. Nesta carta,
Gusmão iniciava abusando do superlativo, afirmando que tal transgressão
mereceria “exemplaríssimo castigo”. Na seqüência, contudo, entra em cena um
dos principais recursos discursivos da monarquia: a piedade.
56

“...como príncipe magnânimo e pio, conhecendo que V. Exa. Ignora as


obrigações de vassalo e as regras do ofício do bom governador, usando de
sua piedade, é servido ordenar – ‘que V. Exa. se abstenha de passar
semelhantes ordens, não favorecendo nem ainda permitindo ou tolerando
que haja, nem passem contrabandos nos portos desse Reino...”8

Como punição, o Rei solicitava ao dito Conde que adquirisse as


Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas) e as fizesse ler por um secretário
pelo período de seis meses. Destacamos dois aspectos que ficam salientes: a
dissimulação do monarca e o argumento da piedade.
A dissimulação, que fica evidente quando o problema é encarado como
uma simples desinformação do acusado, era uma forma de negociação frente a
impossibilidade de impedir com eficácia o contrabando. Por outro lado, era uma
forma velada de informar o acusado do pleno conhecimento que a Coroa tinha
do comércio ilícito e de seus envolvidos, ainda que não tivesse interesse em
punir a todos, quanto mais alguém de importância social no Reino. Para as
autoridades lusas, ainda que o contrabando não fosse algo aceitável, era melhor
que o rompimento com um nobre.
Tal atitude dissimulada era encoberta pelo discurso da piedade Real. Ao
minimizar a pena de Teles de Meneses, o Rei assumia um de seus papéis mais
importantes, o de supremo juiz:

“... ao ameaçar punir (mas punindo, efetivamente, muito pouco), o Rei se


afirmava como justiceiro, dando realização a um tópico ideológico
essencial no sistema medieval e moderno de legitimação do Poder, ao
perdoar, ele cumpria um outro traço da sua imagem – desta vez como
pastor e como pai -, essencial também à legitimação. [...] Tal como Deus,
ele desdobrava-se na figura de Pai justiceiro e do Filho doce e amável.” 9

O problema do “perdão”, como um dos atributos do Rei, foi tomado pelos


coevos de modo muito sistematizado, também dentro do pensamento da
“segunda escolástica”. Domingos Antunes Portugal apontava em 1673 que para
a concessão do perdão havia necessidade de uma justa causa. Ao mesmo tempo,
afirmava que uma justa causa seria a vontade do príncipe, ou seja, retornava ao

8
GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1981. Pg. 34.
9
HESPANHA. António Manuel. A punição e a graça. IN: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O
Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 221.
57

jogo da piedade, enquanto um elemento de afirmação do poder Real frente a


uma variedade de vassalos a julgar.10
A clemência era objeto da preocupação de Maquiavel, ao se questionar se
era melhor ser temido do que amado. Ao responder à pergunta, pontuava que
era preferível ser ambas as coisas, ainda que, por vezes, o terror fosse um tanto
necessário. De certo modo, Maquiavel postulava de forma quase caricatural o
que a Coroa lusa fazia com muita sutileza e dissimulação. Ambos sabiam que
“...o temor é mantido pelo medo de ser punido, o que nunca termina.” 11
Tempos antes de Gusmão enviar aquela carta, no sul da América
portuguesa, o governador André Ribeiro Coutinho publicava uma portaria para
o degredo de alguns homens presos por introdução de mercadorias dos
domínios espanhóis nos territórios de Sua Majestade Fidelíssima. Tais sujeitos
pretendiam “...vender alguns gêneros de fácil consumo, que sobejam
ordinariamente aos lavradores, e levam ouro em peças e moeda e ainda em
prata, que é a substância das monarquias, fazendo-se réus de crime...”.12
Acabaram todos presos na Ilha de Santa Catarina.13
Desconsiderando a completa ausência de chances que tais sujeitos
tiveram de obter o perdão de Sua Majestade, talvez por sua falta de importância
social ou pouca relevância na defesa do Império, o documento nos informa um
pouco mais sobre o problema do ingresso ilícito de bens nos domínios lusos. A
menção aos valores, especialmente o metálico, é significativa. Por trás disso
havia a preocupação com o saldo positivo no comércio externo, além da
expectativa de acumulação dos metais, imprescindíveis para a estabilidade
econômica. Na teoria financeira dos séculos XVII e XVIII, a acumulação de
metais e o equilíbrio no comércio exterior eram alguns dos pontos necessários
para o crescimento da riqueza do Reino, juntamente com o crescimento
populacional, da indústria e da agricultura14. Um dos maiores expoentes da
teoria financeira do século XVII foi Baltasar de Faria Severim. Ao criticar os
autores que tomaram como objeto o governo político, como Maquiavel, Severim
10
Idem. Pg. 220.
11
MAQUIAVEL. op cit. Pg. 101.
12
ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. vol.1. pg. 126.
13
idem. pg. 127.
14
HESPANHA. António Manuel. A Fazenda. IN: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo
Regime. IN: MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. Pg. 182.
58

dizia que estes “...escrevem dos grandes tesouros e rendas que o Príncipe há de
ter, e não dão remédios para se ajuntar este dinheiro, e para as rendas do
presente se desempenharem.”15
Tal problemática continuou atual durante o século XVIII. Em 1748, o já
referido Alexandre de Gusmão escrevia uma pequena carta ao Rei, falando dos
problemas da receita do Reino:

“O dinheiro é o sangue das monarquias extraído do corpo delas enfraquece


da mesma forma que acontece aos corpos humanos quando se lhes tira o
sangue. A este modo de fraqueza se vai conduzindo Portugal, pois que
tanto se trabalha em extrair-lhe a moeda que ele caminha para a pobreza e
por conseqüência para a ruína.” 16

Impressiona a semelhança com o texto já citado de André Ribeiro


Coutinho, quando fala da prata como “substância das monarquias”. Gusmão
“carrega nas tintas” propondo uma analogia que tem como conseqüência final a
“morte” do Reino. A analogia do corpo é bastante convincente, na medida em
que neste período prevalece a noção corporativa de sociedade, onde cada parte
constitutiva do Reino estaria ligada ao restante, na mesma relação em que os
órgãos estariam para o corpo humano. A extração da substância vital faria todo
o corpo social desfalecer, não apenas a cabeça, entendida na figura do Rei.17 É o
que se percebe na continuação do documento: “...continuamente se vai
empobrecendo com perda irreparável para seus habitantes que sentem este
dano sem lhe poderem aplicar remédio.”18 Isoladamente, os habitantes não
teriam condições de remediar o problema, e cabia a ação de Sua Majestade,
como protetor e “cabeça” da sociedade. Esta perspectiva também era objeto da
“segunda escolástica”, e se enquadrava no princípio, já referido, da mediação
popular. Se a cabeça não organizasse a sociedade de modo justo, diante da
dificuldade, era legítimo trocá-la ou revoltar-se.

15
Severim, Baltasar de Faria. Advertimentos dos meios mais eficazes e convenientes que há, para o
desempenho do patrimônio real e restauração do bem público destes Reinos de Portugal sem
opressão do povo e com comum utilidade de todos. APUD: HESPANHA. António Manuel. A
Fazenda. op cit. Pg. 181.
16
Lata 3. Doc. 19. IHGB.
17
HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do
Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de
Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. pg. 118.
18
Lata 3. Doc. 19. IHGB.
59

Ter no Rei o “cabeça” da sociedade é uma noção que marca o final do


Antigo Regime português. Já no termo do século XVIII a figura do Rei centraliza
grande parte das prerrogativas do governo, através de uma estruturação mais
eficaz dos meios de gestão.
Ao tomar esta problemática, estamos apenas apresentando alguns dos
caracteres do pensamento político dos séculos XVII e XVIII. Questões como a
mediação popular (especialmente na sua forma mais comum, a representação
ao Rei) e a preocupação com o equilíbrio do comércio externo serão pontos
reincidentes na documentação que trata do contrabando.
Tais preocupações não eram as únicas da Coroa em sua atuação no drama
do comércio ilícito. A manutenção do Império em regiões remotas dependia de
uma intrincada rede de relacionamentos, uma teia densa, que se expandia por
todo o Império luso e que se valia das mais distintas alianças. Além destas
alianças, havia a prática, por parte da administração lusa, de fazer vista grossa a
toda uma sorte de atitudes ilícitas de seus vassalos, ainda que isso tivesse um
limite. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo aponta a dissimulação e o
segredo como algumas das principais táticas empregadas pelos administradores
lusos a partir do século XVII19. Muito mais do que a repressão violenta estas
eram as armas que garantiam a continuidade territorial e populacional de
Portugal no Ultramar, frente a qualquer tipo de rebelião. Segundo o autor,
havia, por trás desta prática, uma profunda adesão a uma “teoria da
legitimidade da dissimulação” que influenciaria todas as esferas da gerência
lusa.
Partindo desta noção podemos procurar entender alguns casos
interessantes da atuação de Sua Majestade em negócios no Ultramar. Em 1749 a
Coroa intervinha diretamente na cobrança de dívida que um comerciante
português, Feliciano Velho Oldemberg, tinha a receber na praça de Buenos
Aires. Para efetuar a cobrança, a Coroa valeu-se da ação de seu representante
mais próximo daquela cidade, Luís Garcia de Bivar, governador da Colônia do
Sacramento. Novamente era Alexandre de Gusmão o interlocutor indicado pelo

19
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN:
FURTADO, Junia FerReira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. Pg. 229.
60

Rei. Em sua correspondência com Garcia de Bivar, Gusmão demonstra a política


de dissimulação adotada pela Coroa em relação ao contrabando. Ao solicitar
intervenção de Bivar junto ao governador de Buenos Aires, Gusmão deixava
claro o quanto a Coroa sabia do comércio de contrabando existente no rio da
Prata:

“...ainda que o comércio dos Portugueses nesses continentes da colônia e


Buenos Aires seja manejado continuamente em uma negociação
clandestina, toda dependente de um mero contrabando [...] sendo, como é,
proibido pelas leis e ordens dos governos de Portugal e Castela, contudo,
com o lapso do tempo na continuada tolerância do mesmo comércio, de
muitos anos a esta parte, pelos governadores e oficiais de Justiça e
Fazenda das ditas duas praças fronteiras, mediante a boa harmonia e
amizade das Coroas e dos vassalos de ambos os Reinos...” 20

Gusmão não somente admitia ter plena ciência das atividades ilegais,
como assumia, igualmente, a permissividade com que a Coroa tratava tal tema,
pelos ganhos que seus súditos obtinham deste negócio. Ao assumir seu
conhecimento do assunto e sua benevolência em relação àqueles vassalos
contrabandistas, o Rei se colocava na figura de um pai generoso. Contudo, esta
postura exigia uma reciprocidade, esperada de filhos leais:

“...com a mesma tolerância, que Sua Majestade proteja os seus


vassalos interessados no mesmo comércio, me ordena o dito Senhor que
avise V. Sª. para que se empenhe com a maior eficácia com o governador
de Buenos Aires a favor de Feliciano Velho Oldemberg...”21

Neste documento ressalta-se, com efeito, a adoção da teoria da


dissimulação como forma de atuação da Coroa em locais onde se fazia difícil sua
intervenção efetiva. A expressão “tolerância” é continuamente utilizada, não
apenas explicitando a dissimulação, mas indicando a benevolência e a piedade
Real frente ao pleno conhecimento das atividades ilícitas e passíveis de punição.
Além disso, Gusmão afirmava que o contrabando era executado e tolerado “de
muitos anos a esta parte”22, denotando a ancestralidade da política de
dissimulação frente ao problema do comércio ilícito no rio da Prata.

20
GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1981. Pg. 54.
21
Ibidem. Grifo nosso.
22
Ibidem.
61

Da mesma forma, ressalta-se no texto a intenção de negociar. Esta


permitia aos vassalos que transgredissem a lei e cobrava esta permissão quando
necessário. Assim, o Rei não deixava de beneficiar os súditos, de modo geral,
garantindo que todos tivessem acesso a alguma permissividade Real,
especialmente quando estavam distantes de sua magnificência e longe de atingir
alguma graça. De certo modo, era uma forma de evitar as temidas revoltas.23 Por
outro lado, era uma forma possível de colocar em prática o velho princípio do
bem comum, ainda em voga.
Durante os anos 1750 algumas capitanias do Brasil foram atingidas por
um grande infortúnio. Além da seca, que afetara em cheio às plantações, as
criações de cavalos da Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão sofriam a
concorrência do “...grande número de cavalgaduras que os espanhóis
introduziram nas Minas, de que resultava depreciamento no valor dos Cavalos
daquele sertão...”, como dizia o governador do Maranhão, em 1754.24 Por conta
desta situação, os habitantes daqueles sertões haviam solicitado junto ao Rei
medidas que lhes favorecessem.
Em 1761 o monarca atuava em defesa daqueles homens, proibindo a
entrada e saída de bestas muares de seus domínios no Estado do Brasil. Fazia
isso em defesa do “bem comum dos lavradores dos sertões da Bahia, de
Pernambuco e do Piauí”, que eram prejudicados pela introdução daqueles
animais. A arte da negociação aqui se mantém, sob a continuada alegação do
bem comum. Interessante notar que neste caso a expressão “bem comum” é
qualificada, referindo-se apenas aos lavradores dos sertões, e não ao um
abstrato conjunto de súditos. Seguia presente a idéia da mediação popular, não
apenas como legítima, mas como indispensável para a boa sobrevivência do
Reino. Foram aqueles lavradores que reivindicaram a justiça do Rei. Era para
eles que se devia dar mercê e praticar a justiça.
Nem todos os vassalos de Sua Majestade ficaram satisfeitos. Os
moradores do Rio Grande de São Pedro fizeram uma representação ao Rei,

23
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo das alterações
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português – séculos XVII e XVIII. IN:
FURTADO, Junia Ferreira. Diálogos Oceânicos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001.
24
Cód. 952. Vol. 38. pg. 413. Arquivo Nacional.
62

afirmando que eram criadores de bestas muares, que dependiam daquelas


criaturas para manter-se naquelas paragens.25
Em 24 de dezembro de 1764, o Rei deliberava outra vez a respeito do
assunto. Desta vez, concedendo e incentivando a criação de muares, bem como
sua circulação na colônia. Novamente, invocava o princípio da utilidade comum
para referendar sua decisão. Ao contrário da posição anterior, desta feita era o
“bem comum dos meus vassalos”26 que era o fundamento e base da vontade
Real. Ainda assim, o Rei não havia desagradado aos criadores dos sertões da
Bahia, Piauí e Pernambuco, pois mantinha a proibição aos muares vindos dos
domínios espanhóis, até mesmo porque tal introdução prejudicava aos vassalos
criadores de muares do sul.27
Ao afirmar sua atitude, o Rei demonstrava-se novamente na figura de um
pai zeloso. A própria forma como apresenta sua mudança de opinião denota
isso: “Que por quanto não podia ser da minha Real intenção prejudicar aos
Meus Fiéis vassalos que dentro do continente do Estado do Brasil se tinham
louvadamente aplicado à criação das bestas muares…”28. Era mais uma vez a
cabeça da sociedade corporativa funcionando e garantindo sua conservação
econômica e política. Esta preocupação legislativa da Coroa é mais uma
característica do pensamento político do final do antigo regime. Como parte
integrante do processo de centralização do poder do Rei, e da reestruturação e
fortalecimento do aparato administrativo, as leis vinham a delimitar cada vez
mais as liberdades e espaços dos vassalos. Emanada pelo monarca, a legislação
contribuía para seu fortalecimento como “cabeça” da sociedade e reforçava sua
posição de mantenedor do bem-estar e da segurança. 29
Textos produzidos pela Coroa ou por seus administradores que tratassem
sobre a circulação de gados dos domínios espanhóis para os territórios lusos na
América seriam escassos entre 1765 e 1780. Entretanto, na colônia, os
problemas estavam apenas começando. Tal comércio nunca chegara a ser
25
ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec-Edusp, 1990.pg. 93.
26
Carta do Rei ao Vice-Rei Conde da Cunha. APUD: SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do
Brasil. São Paulo: CEN, 1940. Pg. 191.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
SUBTIL, José. Governo e Administração. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN:
MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998.
63

considerado ilegal, e muitos se dedicavam a ele. Por outro lado, ao proteger


aqueles vassalos criadores de muares, o Rei ficara em crédito. Todo pai zeloso
merecia a lealdade de seu filho. Essa questão, muito discutida, especialmente no
Rio Grande de São Pedro, dera motivo para a criação de muitos documentos.
Por hora estaremos atentos para o que pensavam o Rei e seus encarregados
mais próximos.
Após estes incidentes a Coroa não mais tratou de deliberar com especial
atenção para o problema das bestas muares da América. De certo modo, já era
farta a legislação a respeito. Além das instruções acima citadas, as próprias
Ordenações Filipinas previam a restrição da circulação de animais entre
Portugal e Espanha. Eram permitidas apenas as mulas estritamente necessárias
para o transporte. A própria circulação de gados era objeto importante desta
legislação que previa penas severas para os infratores que circulassem grande
quantidade de gado. Exceção à regra, os burros (equus asnus), poderiam
circular livremente, tanto na Europa como na América, ainda que este fosse um
ponto freqüentemente polêmico e discutível.30
Mesmo tendo criado esta legislação, a Coroa lusa utilizou-se ainda de
novos princípios jurídicos para justificar embaraços a negócios de gado no rio
da Prata. Ao barrar uma negociação de gado em 1780, o governador do Rio
Grande de São Pedro alegava como motivos as proibições Régias ao comércio
com estrangeiros, e nem sequer mencionava as proibições ao ingresso de
muares:

“...as Reais ordens de Sua Majestade Fidelíssima que expressamente


proíbem a compra e venda nos seus domínios e portos da América de
quaisquer gêneros pertencentes a estrangeiros, exceto em caso de urgente
necessidade…” 31.

Neste episódio a política adotada pelo governador foi, ainda, a do


segredo. Deu-se que uma tropa de animais foi apreendida pela guarda
portuguesa quando ingressava no continente do Rio Grande, vinda dos
domínios espanhóis. Após o confisco e a retirada do quinto, os animais foram
30
Ordenações Filipinas. Versão ON LINE. Versão para internet baseada na edição de Cândido Mendes,
Rio de Janeiro, 1870. http://www.uc.pt/inti/proj/filipinas/ORDENACOES.HTM. Consultado em
08/08/2002.. Pg. 1268.
31
Cód. 104. Vol. 02. pg. 164-170. Arquivo Nacional.
64

entregues a um comissário espanhol encarregado de receber a devolução dos


gados contrabandeados. Este retirou parte do gado para distribuir entre seus
soldados e tratou logo de vender o restante para um estancieiro do Rio Grande,
o reverendo padre Pedro Pereira Fernandes de Mesquita. O estratagema foi logo
descoberto e o governador da capitania, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da
Câmara ordenou que se devolvessem os gados e o dinheiro para as partes, mas
sob total sigilo, especialmente pelo envolvimento de um sujeito dedicado ao
combate ao contrabando.32
Poucos anos depois a rainha Dona Maria, a louca, baixava um alvará
sobre contrabandos e descaminhos no Estado do Brasil. É provável que tal
documento objetivasse um controle maior sobre outros negócios ilícitos da
colônia. Contudo, tal alvará foi utilizado por autoridades locais para regulação
do contrabando de animais. As suas principais deliberações previam a cobrança
de quinto dos contrabandos apreendidos, assim como a perseguição, prisão e
multa aos contrabandistas. Aqueles que prendessem contrabandistas em
flagrante delito ficariam com 4/5 do total da carga. Tampouco haveria jurisdição
para a ação anticontrabando. Qualquer pessoa poderia prender contrabandistas
em qualquer lugar.
Tal documento nos demonstra a continuada preocupação que a Coroa
mantinha com os contrabandos. Segundo a rainha, tal alvará se dava não só
pelos contínuos prejuízos da Real Fazenda com os extravios, mas,
especialmente, pelo “...dano irreparável do comércio lícito e legal de meus leais
vassalos...”. Novamente a preocupação com os vassalos era argumento para a
atitude régia. O “bem comum” continuava a ser um bom artefato discursivo.
Contudo, tal documento é mais interessante pela sua recepção, especialmente
na fronteira.

Um mestre dos disfarces: Luís de Vasconcelos e Souza.

Numa tarde de maio de 1789 o vice-Rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e


Souza, dava ordem de prisão para dois homens acusados de conspiração.
Joaquim da Silva Xavier e Joaquim Silvério dos Reis estavam envolvidos numa

32
Cód. 104. Vol. 02. pg. 164-170. Arquivo Nacional.
65

grande trama que acabou passando para a história com o nome de


“Inconfidência Mineira”.33
Naquele dia, Vasconcelos e Souza não perdeu um minuto sequer. Ao
saber das acusações e desconfianças, tratou logo de encarcerar a todos que
podia.34 Havia sido aconselhado por um sobrinho a agir de forma muito
diferente. Luís Antonio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena, havia
sugerido total sigilo e discrição para o caso, a fim de negociar com os
conspiradores, “...sem grande publicidade...”35, especialmente pela força que
aqueles homens tinham na localidade. Uma clara política de dissimulação
estava presente no pensamento de Barbacena.36 Todavia, Vasconcelos e Souza
prendeu aqueles homens e ordenou que se fizesse uma rigorosa devassa para
apurar o crime de conspiração, bem ao contrário do que esperava Barbacena.
Talvez porque Barbacena lembrasse que em outros momentos era a
dissimulação uma das principais armas de que se valia Vasconcelos e Souza.
A maneira como o mesmo Vice-rei lidava com certos problemas
relacionados com a fronteira do Rio Grande e, em especial, com o contrabando,
não frustraria nenhuma das expectativas de Barbacena. O porquê de
Vasconcelos não ter dissimulado em relação aos inconfidentes é uma questão
que não se propõe agora, ainda que a comparação seja interessante. O que nos
interessa é verificar a atitude de Vasconcelos em relação a outras transgressões,
e que da mesma forma que o motim mineiro, colocavam em risco a manutenção
da totalidade do Império.
Em oito de novembro de 1783 Luís de Vasconcelos enviava duas cartas.
Possuíam um conteúdo muito semelhante e eram destinadas a dois oficiais da
Coroa portuguesa que exerciam seus postos no Rio Grande de São Pedro. Os
destinatários eram o governador do Rio Grande, Sebastião Cabral da Câmara e o
comandante da fronteira, Gaspar José de Matos Ferreira e Lucena.
Aconteceu que o Vice-rei havia recebido uma carta, assinada pelos
“pobres da fazenda Real”37 como se pretendiam seus autores. A mensagem

33
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da devassa. São Paulo: Paz e Terra. 1985. pg. 178.
34
Ibidem.
35
Idem. Pg. 177.
36
Idem. Pg. 169.
37
Cód. 104. Vol. 06. Pg. 145v. Arquivo Nacional.
66

continha uma extensa lista de acusações que era feitas ao coronel Rafael Pinto
Bandeira, a maior parte delas relativas ao comércio ilícito praticado por tal
sujeito.38 Diante de uma listagem tão grande de reclamações de um número
ignorado de súditos, Luís de Vasconcelos ordenara, secretamente, a dois oficiais
distintos que apurassem as queixas.39 Para o governador Cabral da Câmara
ordenou que devesse “... procurar informar-se com o maior segredo de todo
o seu conteúdo [das denúncias]...”.40 Da mesma forma, ordenara ao comandante
da fronteira, Gaspar José de Matos Ferreira e Lucena, que procurasse
“...debaixo do maior segredo descobrir a verdade ou falsidade de todos
aqueles fatos para me dar a mais exata e fiel informação...”.41 O governador
Cabral da Câmara, contudo, enviou alguns dias depois uma carta afirmando a
impossibilidade de levar a investigação secreta a cabo, devido à falta de
confiança que tinha de possíveis testemunhas. O Vice-rei lhe escrevia
novamente em março de 1784, reafirmando a necessidade de uma investigação
discreta:

“a opressão do povo, como os interesses da Fazenda Reais eram e deviam


ser os verdadeiros estímulos para Vossa Senhoria procurar adquirir as
informações mais exatas, ainda que estas se viessem a alcançar por um
modo indireto, para a tempo se aplicarem os meios mais próprios para
se evitarem as péssimas e enormíssimas [sic] conseqüências que se podem
recear daqueles sobreditos fatos [...] não faltam pretextos nem
deixam de haver muitos rodeios para se conhecer a verdade sem
que esta pareça estranha e ofensiva a qualquer que haja de ser dela o
informante...”42

Seguindo as instruções de Vasconcelos e Souza, tanto o governador como


o comandante da fronteira realizam suas investigações. Cabral da Câmara
acabou fazendo uma pequena devassa, interrogando várias pessoas sobre
pontos genéricos das denúncias, de modo a despistar eventuais desconfianças
sobre o real fim da investigação. O governador remeteu para o Vice-rei, logo

38
Analisaremos tal documento com mais atenção na próxima parte. Um autor que trabalhou com esta
fonte de modo muito sério e com outro enfoque foi SILVA. op cit.
39
SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De Bandoleiro a Governador. Relações entre os poderes
privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: 1999 (Dissertação de mestrado –
PPGH/UFRGS).
40
Cód. 104. Vol. 5. Pg. 175. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
41
Cód. 104. Vol 5. Pg. 175-176. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
42
Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
67

depois, não apenas os autos dos interrogatórios, mas toda a descrição do


procedimento utilizado, onde se percebe a total preocupação com a discrição.43
Já o comandante da fronteira, Ferreira e Lucena, enviou um relatório
sucinto onde citava as denúncias e declarava, abaixo de seu conteúdo, a
veracidade das informações. Não citou fontes nem testemunhas, mas confirmou
a maioria das denúncias.
Durante todo o processo, Vasconcelos e Souza manteve uma preocupação
muito séria de manter sob total sigilo a investigação realizada. Novamente
temos tônica da dissimulação como uma estratégia bem elaborada de
manutenção da ordem social. Não se tratava apenas de uma prática regular dos
administradores portugueses, mas sim, do resultado de um esforço intelectual
metropolitano, que se enquadrava dentro da problemática dos poderes e
deveres dos príncipes. Já em meados do século XVII, no Conselho Ultramarino,
tal noção se fazia presente para legitimar a posição frente aos conflitos na
colônia: “porque, quando as forças não são conformes ao respeito dos fins, é a
dissimulação em tais matérias o meio mais seguro entre a conservação do
estado e autoridade dos príncipes”44 Talvez isso ajude a explicar a ação forte de
Vasconcelos e Souza frente aos inconfidentes, na medida em que neste incidente
conseguira agir com rapidez, prendendo logo aqueles que ele chamava de
“cabeças”.
Já no caso das denúncias de contrabando, o Vice-rei encontrava-se frente
a um dos mais conceituados militares que a Coroa portuguesa contava no Rio
Grande. Rafael Pinto Bandeira havia se destacado por comandar o ataque e
tomada de importantes fortalezas castelhanas e de contribuir, deste modo, para
a retomada de territórios reivindicados pela Coroa e súditos lusitanos. O Vice-
rei sabia bem disso. Em um relatório45 que fez ao secretário de Estado e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, Vasconcelos declarara que tinha por
verdadeiras aquelas denúncias feitas contra Rafael, mas que, ainda assim:

43
Cód. 104. Vol. 9. Pg. 233. Arquivo Nacional.
44
Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se
tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra. Rio de Janeiro, 1644. AHU – Bahia.
Luisa da Fonseca. Doc. 1077. pg. 6-7. APUD.: FIGUEIREDO. Op cit. Pg. 230.
45
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos, em outubro de 1784,
sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929.
68

“...não me pareceu conveniente romper inteiramente com o dito oficial, que no


tempo da guerra é muito necessário naquele continente pelo préstimo que tem
de espantar os espanhóis e conhecer pela experiência aquelas vastas
campanhas que tem pisado...”.46
Para tentar coibir as atitudes ilícitas de Rafael, o vice-Rei adotara a
dissimulação, fazendo-se “desentendido”47 do problema, e indicando o citado
oficial para comandante da “maior vigilância sobre os contrabandos, e o fiz
responsável da falta de providência que fosse necessária para o reprimir.”48
Fica patente a manutenção da teoria da dissimulação até fins do século
XVIII. A atitude e os argumentos utilizados por Vasconcelos demonstram esta
permanência. Diante da impossibilidade de coibir com eficácia o contrabando,
Vasconcelos optou por utilizar-se de armas mais sutis, na esperança de que
Rafael contivesse seus ilícitos negócios, ainda que soubesse que “sendo o
remédio paliativo, o será também a emenda”. Para Vasconcelos, a opção que
restava seria trazer Rafael para o Rio de Janeiro, afim de afastá-lo dos
contrabandos por algum tempo. O Vice-rei estava ciente de sua impossibilidade
de agir, e da necessidade de bancar o desinformado, para em momento
oportuno, agir convenientemente.
O assunto não se encerrou por ali. Novamente, em um ofício de dezembro
de 1786, o Vice-rei queixava-se da continuidade dos contrabandos, dos
problemas diplomáticos que isso gerava com os domínios espanhóis e da
responsabilidade de Rafael Pinto Bandeira:

“... me pareceu muito conveniente ao serviço de Sua Majestade e ao sossego


recíproco de ambas as fronteiras, mandá-lo retirar para esta capital
debaixo do pretexto de me ser necessário ter com ele uma secretíssima
conferência sobre diversos negócios daquele continente...”.49

Novamente surgia a idéia de retirar Pinto Bandeira da fronteira, com o


objetivo de tentar eliminar ou diminuir o contrabando. Algo neste documento
guarda relação com as cartas enviadas pelo vice-Rei tempos antes, para o

46
Idem. Pg. 28.
47
Ibidem.
48
Ibidem.
49
Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ano IX. 1929.
69

governador e para o comandante da fronteira. Não apenas o sigilo era


necessário para o bom desempenho da política de dissimulação, como também a
necessidade contínua de “pretextos” para as atitudes tomadas, o que demonstra
a fragilidade do poder das autoridades lusas no contexto. O governador
necessitava de pretextos para realizar uma investigação e para inquirir diversas
pessoas sobre um tema que era de sua responsabilidade, o que, por si só,
dispensaria qualquer pretexto. Da mesma forma, o vice-Rei, autoridade máxima
na colônia, carecia de pretextos para chamar um Oficial para o Rio de Janeiro.
Na continuação da carta, o Vice-rei dá mais algumas pistas sobre os
relacionamentos entre a Coroa e os súditos dentro da política de dissimulação.
Não se tratava de uma via única, com a dissimulação praticada exclusivamente
pela Coroa. Segundo Vasconcelos e Souza, um súdito como Rafael Pinto
Bandeira sabia muito bem desta situação como também sabia jogar com ela:

“...ele sabe figurar com grande astúcia e sutileza para se mostrar muito
necessário naquele continente, capacitando-se talvez que todos os seus
procedimentos por péssimos que sejam devem ser disfarçados e tolerados
por quem governa apesar das funestas conseqüências que possam
produzir...”.50

A dissimulação, neste sentido, adquiria uma dimensão muito maior. Os


súditos faziam-se de fiéis vassalos e a Coroa tratava os problemas como se deles
ignorasse, tentando, de algum modo, colocar-lhes barreiras. Rafael sabia muito
bem o papel que tinha a desempenhar. Nisso destacava-se com ótimas atuações.
Neste mesmo ofício, Vasconcelos e Souza informava a Coroa sobre as
novas medidas anticontrabando. Já que Rafael Pinto Bandeira estaria no Rio de
Janeiro, a seu pedido, o vice-Rei iria indicar um governador para o Rio Grande
que pudesse “... com todo o disfarce e segredo possível adquirir as notícias
mais exatas sobre os referidos contrabandos e os seus principais cabeças que
os tem promovido...”.51 Era a nova tentativa que tinha de apurar fatos sobre o
comércio ilícito. Continuava, depois de vários anos de tentativas frustradas, com
a intenção de manter o disfarce e o segredo, como algumas das poucas armas
que lhe restavam. As investigações continuaram, mas sem efeito. Rafael Pinto

50
Ibidem.
51
Ibidem.
70

Bandeira foi ao Rio de Janeiro, e dali para Lisboa, onde foi recebido com honras
pela Rainha. Retornou, depois, para o Rio Grande de São Pedro e aos seus
negócios, lícitos ou não.52
A teoria da legitimidade da dissimulação, incorporada pela administração
lusa concebia uma condição para seu uso. Se atentarmos novamente para as
palavras dos membros do Conselho Ultramarino, que talvez seja quem melhor
explicitou este ideário, era “quando as forças não são conformes ao respeito
dos fins”53 que a dissimulação se fazia necessária para conservar a autoridade, e
subentendam-se, os próprios territórios do príncipe. Frente a este ponto, resta
saber o que justificaria o emprego da dissimulação no lugar das “forças”, no
combate ao contrabando no sul da colônia lusa.
Um elemento recorrente nos documentos produzidos por Vasconcelos e
Souza é o temor (real ou não) da perda do Rio Grande para os espanhóis.
Quando o Vice-rei escreveu ao governador e ao comandante da fronteira
pedindo investigações sobre os contrabandos, fazia pouco mais de cinco anos
que os portugueses haviam retomado terras que reivindicavam na região. Um
dos grandes responsáveis pela vitória lusa fora Rafael Pinto Bandeira.
Para Vasconcelos, o Rio Grande era um território arriscado, “... sendo
54
tantas vezes atacado e quase sempre ameaçado de inimigos tão vizinhos...”.
Esta preocupação com a ameaça espanhola é constante em todo o relatório que
fez ao secretário de Estado e Ultramar em 1784. A possibilidade da guerra, como
a alternativa mais factível para a retomada de terras também acompanha o
texto. Em diversos momentos Vasconcelos falava de suas iniciativas visando a
ampliação dos rebanhos para o abastecimento das tropas, seja com rações ou
montarias. Da mesma forma, em algumas partes, relembrava o acontecido de
1762, quando os espanhóis tomaram a vila de Rio Grande sem maiores
dificuldades. No oficio que enviou em 1786 para Lisboa, Vasconcelos e Souza
novamente retomava a questão da possibilidade da perda do Rio Grande, e
demonstrava toda sua preocupação com as sutilezas necessárias para a

52
SILVA. op cit.
53
Parecer do Conselho Ultramarino e Treslado de uma junta que se fez sobre os avisos que agora se
tiveram do Rio de Janeiro e da morte de Luiz Barbalho Bezerra. Rio de Janeiro, 1644. AHU – Bahia.
Luisa da Fonseca. Doc. 1077. pg. 6-7. APUD.: FIGUEIREDO. Op cit. Pg. 230.
54
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos... Op cit. Pg. 24.
71

manutenção da ordem naquele território, especialmente no trato com os


espanhóis.55
A preocupação de Vasconcelos reflete uma inquietação de boa parte da
administração portuguesa em relação à manutenção de seus domínios no sul da
América. Ainda assim, Vasconcelos construía, em seus documentos, um cenário
de profundas incertezas, onde qualquer erro ou falta de tato político poderia
colocar em risco a fronteira. Tendo em conta que estamos analisando
documentos produzidos para a própria administração lusa (um relatório e um
ofício) e considerando que o público leitor era constituído especialmente pelo
secretário de Estado e Ultramar e pela Rainha, era conveniente a Vasconcelos
justificar toda a flexibilidade de sua conduta pela ameaça continuada da perda
dos territórios. Neste sentido, a constante referência aos espanhóis vizinhos e
belicosos não deixava de ser uma parte importante da argumentação utilizada
pelo Vice-rei, ainda que fosse baseada em problemas concretos.
Dentre os problemas analisados por Vasconcelos e Souza relativos a
fronteira, o contrabando tinha especial destaque. O Vice-rei faz uma
interpretação bastante refinada sobre a questão, propondo uma diferenciação
entre os agentes envolvidos no comércio ilícito e suas principais motivações.
Para iniciar seu argumento, Vasconcelos criava um cenário de
decadência. Na narração do Vice-rei56 surgiam vítimas e culpados, governadores
extravagantes e comerciantes ambiciosos. O Rio Grande era um vasto território
onde não havia produção suficiente e nem comércio significativo. Uma área sem
esperança para os povos, onde as iniciativas distintas da criação do gado
estariam fadadas ao fracasso. A Coroa tentara iniciar ali a produção de linho
cânhamo e de cochonilha, mas só obtinha insucessos e despesas avultadas. A
criação de animais nas fazendas de Sua Majestade estava em total decadência,
quase não havia animais para a remonta das tropas militares. Não fosse
suficiente, a Coroa sustentava, sem nenhuma compensação, aldeias inteiras de
índios ociosos, que em nada contribuíam para a Fazenda Real.
A tragédia tinha culpados. Os principais vilões, segundo Vasconcelos e
Souza, eram os governadores do Rio Grande: “A maior parte dos que tem

55
Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro... Op. Cit.
56
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op. Cit.
72

ocupado aquele governo ou tem ali estado sem se moverem do lugar da sua
residência, entregues ao ócio e a indolência ou tem governado por mera
fantasia...”57 Entre os principais problemas estavam a falta de alternativas
econômicas viáveis para os súditos e a falta de ação contra o comércio ilícito. O
governador José Marcelino de Figueiredo foi um destes, que, governando por
aparências e “ ...deixando viver os povos sem indústria e sem comércio, não
procurou fechar a estrada... ”58 propiciando assim o crescimento do
contrabando. Com esta afirmação, o Vice-rei preparava a apresentação de mais
dois personagens da trama: os vassalos miseráveis e os ambiciosos
contrabandistas.
Seguindo uma linha de análise que considerava a administração colonial
dentro da esfera de responsabilidades do Rei como pai de seus súditos,
Vasconcelos impunha aos governadores a necessidade de criação de alternativas
de sobrevivência para os vassalos. Neste sentido, na falta destas alternativas,
qualquer desvio de conduta dos súditos não só era legítimo como aguardado:

“...a origem principal dos mesmos insultos [atividades ilícitas] que tinha
sua raiz no desmazelo, no ócio dos povos, e na falta da precisa
regularidade com que se devia procurar aplicá-los a industria e ao
trabalho para nele se entreterem abandonando os seus reprovados
costumes.”59

Uma das primeiras medidas necessárias para acabar com aquela situação
miserável era dar outra forma a distribuição de terras na área. A distribuição
que havia estava longe da que Sua Majestade gostaria. A exclusão do acesso a
terras, na óptica de Vasconcelos era mais um agravante na decadência daquela
fronteira. O problema, contudo, não estava na hierarquização que privilegiava
uns em detrimento de outros. Estava na concentração demasiada que havia
naquelas paragens, onde uns dispunham de grandes extensões que manejavam
a seu critério, de forma ambiciosa e contra as ordens de Sua Majestade, que
concedia terras conforme as condições e qualidades de cada suplicante, sem
abuso e preocupado com o “bem comum”:

57
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit. Pg. 17.
58
Ibidem.
59
Idem. Pg. 18.
73

“... para haver de qualquer providência se estender a todos os vassalos de


Sua Majestade devem uns cooperar para a felicidade de outros, de modo
que, sendo as utilidades particulares, possam em comum fazer a felicidade
do Estado [...] que não façam a uns mais abundantes e a outros muito
indigentes, devendo conseqüentemente a balança para bem universal
conservar um equilíbrio tão certo e proporcionado que possa regular a
possibilidade e a impossibilidade, reduzindo-se os ociosos ao trabalho e
convocando-se os dispersos e sem domicilio a sociedade de outros já
estabelecidos.” 60

Novamente a tônica do “bem comum” permeia as argumentações do


Vice-rei, que se apresenta zeloso da justiça entre os vassalos como todo
administrador fiel deve ser. Esta preocupação com o bem estar dos vassalos não
afetava de modo algum o bem estar particular. Como o próprio Vasconcelos
afirmou, a felicidade geral depende das utilidades particulares, desde que não
houvesse abuso ou ambição por parte de uns. Esta noção, criada no século XVII,
dentro do paradigma corporativo da “segunda escolástica”, ainda mantinha-se
forte em fins do século XVIII.61
Não era a preocupação com o bem estar dos súditos, contudo, que regia a
vida na fronteira do Rio Grande. Além dos governadores ineptos ou
desinteressados, havia outra sorte de gente que prejudicava o Real interesse no
bem dos povos. Ao reafirmar em seu Relatório a falta de oportunidades que
havia para os vassalos no Rio Grande, Vasconcelos nos diz quem eram aqueles
homens ambiciosos, e como eles agiam. Havia, segundo ele,

“grande número de indivíduos brancos, índios e mestiços que andam


vagando por aqueles distritos sem meios de subsistirem e sem agências
para os procurarem, seguindo quase por necessidade um modo de vida
servil debaixo da subordinação dos famosos mestres dos
contrabandos, que os chamam e convidam para os acompanharem nos
rodeios e caminhos que ele tem praticado no giro de seus ilícitos
comércios.”62

O problema, para Vasconcelos, residia na falta de zelo de uns e na


desenfreada ambição de outros, contribuindo assim para o mal estar geral e

60
Idem. Pg. 29.
61
Mais sobre o assunto em HESPANHA, Antonio Manuel (org.). O Antigo Regime. op cit. Pg. 118-122.
62
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit. Pg. 29. Grifo
nosso.
74

decadência daquelas paragens. Ainda que pudesse verificar no contrabando


uma forma de inclusão daqueles homens miseráveis, a preocupação com os
conflitos com Espanha e com as grandes perdas que havia nos rendimentos da
Fazenda Real eram argumentos muito mais significativos para Vasconcelos.

O caso das vinte mil mulas

Ignora-se quando foi feito o requerimento. Tudo o que sabemos é que o


despacho de Dom João VI, permitindo que Antônio Manuel de Jesus e Andrade
ingressasse nos domínios do Brasil com vinte mil mulas fora dado em meados
de 1802. Sabemos também, pela resposta Régia, que o argumento utilizado por
Jesus e Andrade fora de que tinha dívidas para receber de alguns castelhanos
que estavam do outro lado da fronteira, no valor de setenta mil cruzados. Tal
dívida havia sido contraída na casa de comércio que Jesus e Andrade dizia ter,
no Rio Grande de São Pedro. Como não tinham outra forma de pagar o que lhe
deviam, os castelhanos ofereceram a Jesus e Andrade vinte mil mulas, para o
ingresso das quais ele pedia licença ao Príncipe.
Ao conceder a permissão, Dom João argumentava que era justa a
solicitação daquele vassalo, ainda que fosse sempre preferível reprimir o
contrabando. O negócio, contudo, foi entendido por Sua Alteza como uma
importação necessária, dentro da mesma perspectiva que o governador Cabral
da Câmara havia tomado em um caso anterior, já citado:

“...é contudo de recíproco interesse das nações não estorvar as importações


que qualquer particular se arrisque a fazer de gêneros necessários ou
mesmo úteis ao país, como são as bestas muares, de que não há criação
suficiente...”63

Além da necessidade, Dom João considerou importante o recebimento da


dívida por parte de Andrade e Jesus, além da tributação que tal negocio iria
proporcionar à Coroa.
É possível supor que o argumento da criação insuficiente de muares
tenha sido apresentado por Andrade e Jesus. Este foi considerado legítimo pelo

63
AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.
75

Príncipe Regente, após a consulta à Real Junta de Comércio e Navegação.64 O


parecer desta Junta foi determinante, e Dom João nem mesmo averiguou as
informações dadas por Jesus e Andrade. Seria mesmo verdade?

64
AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.
76

O contrabando na interpretação dos vassalos.


“...nenhum negro é tão bruto que confunda
o mar com um Rio, por grande que seja...”
(Governador de Angola, 1772) 65

A palavra “interpretação” presta-se ao título por dois motivos. O primeiro


refere-se às formas como os vassalos encaravam o comércio ilícito, sobre seus
pontos de vista. Uma segunda leitura diz respeito à encenação, à aparência com
que alguns destes vassalos tratavam o problema do qual eram atores. Ainda que
lhes fosse oferecido um leque de possibilidades de ação, havia um papel muito
claro para representar frente ao Rei, a partir do que se esperaria de um fiel
vassalo.

O caso das vinte mil mulas – continuação.

A produção de muares nos domínios portugueses havia sido bem maior


que a demanda, ao contrário do que pensava o Príncipe. Nenhuma das
afirmações de Jesus e Andrade puderam ser confirmadas.66 Jesus e Andrade não
havia sido honesto com o Príncipe. O que pretendia, então, este estranho
vassalo? Conseguiria ele dar prosseguimento ao seu plano?
Em outubro de 1804 um número elevado de súditos (163), ditos todos
criadores de mulas, enviou um “abaixo-assinado” ao Rei pedindo a suspensão
da licença que este havia concedido a Jesus e Andrade para introdução de vinte
mil mulas nos domínios portugueses. Entre as pessoas que notoriamente
apoiaram a solicitação estavam o governador Paulo Gama e o comandante da
fronteira e portos do Rio Grande, Manuel Marques de Souza. Tal documento é
extraordinário, e fornece muitos elementos sobre o pensamento daqueles
súditos criadores de mulas.
A elaboração deste documento teve um interessante processo. No período
de tempo imediatamente após o pedido de Jesus e Andrade, cerca de doze
estancieiros, que já se designavam “povo desta capitania que vive da criação de

65
Carta de d. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, [governador e capitão geral de Angola], em
resposta a José de Azevedo Monteiro de Faria, tenente encarregado do governo do presídio de
Caconda, sobre a diligência da qual está encarregado para descobrir nos Rios de Sena o comércio de
ouro, prata e pedras preciosas. 1772. DL 81, 02. Doc. 20. fl. 62-63. IHGB.
66
AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.
77

bestas muares”67, escreviam ao governador solicitando apenas a elaboração de


uma relação dos estancieiros que criavam mulas no Rio Grande, com a
discriminação do números de bestas muares, dos reprodutores e dos animais
produzidos em 1803 e anos anteriores. Era o início do processo que barraria os
negócios de Jesus e Andrade. Nesta primeira solicitação, diziam ao governador
que necessitavam da relação “para justo requerimento que intentam fazer
dirigido ao bem comum desta capitania”.68 Através deste documento
percebe-se a manutenção da noção de “bem comum”, e sua validade como um
argumento de reivindicação, ainda que estivesse sendo utilizado para a defesa
de um grupo bastante restrito. Este grupo tinha pretensões de representar uma
parcela maior de criadores de animais, além do benefício que todos teriam em
decorrência do ganho destes poucos.
Pouco tempo depois era enviado ao Rei o “abaixo-assinado” de outubro
de 1804, que pedia a cassação da licença de Jesus e Andrade. Novamente o
documento apresenta-se como um clamor do “povo que vive da criação de
bestas muares”. Esta designação serviu para apresentar o grupo de doze
homens, que elaboraram o primeiro documento, assim como para referir-se ao
conjunto de mais de centro e cinqüenta súditos que estavam de acordo com o
documento final. De certo modo, aquele grupo inicial acreditava-se com
legitimidade suficiente para falar em nome de outros tantos criadores que mal
conheciam, na medida em que solicitaram ao governador a sua listagem. Por
outro lado, ao incorporarem ao seu pedido um número muito maior de súditos,
construíam de modo muito mais sólido a sua legitimidade.
No interior do documento era ressaltada a falsidade do argumento
apresentado por Jesus e Andrade. Segundo o “abaixo-assinado”, Jesus e
Andrade nunca tivera casa de comércio nem condições de emprestar ou vender
a crédito para ninguém, muito menos para espanhóis. O documento dizia que
Jesus e Andrade havia sido peão em seus “primeiros tempos”, ocupando-se
depois em fazer albardas, e que recentemente servia de escrivão e tabelião,
ofícios onde seria “moralmente impossível” juntar o dinheiro referido.
Ressaltando a condição social do sujeito, diziam ainda que ele “...nunca teve

67 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570.


68 idem. Grifo nosso.
78

negócio algum, nunca teve que fiar e sempre foi, e é, necessitado...”. Além
disso, diziam que como vassalo, “...nada tem servido ao Estado...”. O
documento, que manifestava notoriamente a revolta de seus autores, afirmava
ainda que era proibido, segundo uma “lei positiva”69 de Sua Majestade, a
introdução de bestas muares de Espanha. Por causa desta proibição, não havia
como tributar o ingresso destes animais.
A possibilidade do empobrecimento dos súditos da capitania e a sua
decadência foram argumentos utilizados inúmeras vezes. Era um argumento
muito convincente, que se baseava na hipótese de que, empobrecidos os
criadores do Rio Grande, não haveria quem defendesse aquela fronteira, já que
a presença das tropas lusas era insuficiente. Foi um argumento muito aceito e
inclusive o Vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza havia o tomado por correto.
Este argumento também havia sido utilizado em outro documento, que
solicitava a proibição da criação de mulas na Minas, muitos anos antes70, e que
era recorrente no discurso produzido pelos oficiais da Câmara de Viamão. Além
da possível perda dos territórios, haveria, segundo aqueles homens, uma perda
eterna dos tributos cobrados na região, especialmente os dízimos. Terminavam
afirmando a necessidade da revogação da licença, novamente evocando o “bem
comum do Estado e dos Povos desta Capitania”.71

Entre ambiciosos e belicosos: os vereadores de Viamão.

“Nunca é pobre quem tem bons amigos e sabe alguma arte”.72


Rafael Bluteau

No dia 23 de setembro de 1771 os vereadores de Viamão enviaram sete


correspondências ao Rei, seguidas de mais três até o final daquele ano. Um
grupo novo estava assumindo aquela instituição e pelo que parece, estavam
dispostos a dar voz a antigas demandas locais. Das sete cartas enviadas, três
particularmente nos chamaram a atenção e estão intimamente ligadas a nosso

69 São leis formuladas em termos gerais, com o objetivo de formar princípios jurídicos. Cf.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.
1.
70 SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil. São Paulo: CEN, 1940.
71 AHU-RS. Cx. 09. Doc. 570. Grifo nosso.
72
BLUTEAU. Raphael. Vocabulário Portuguez e latino. Rio de Janeiro: UERJ,S.D. pg. 556.
79

objeto. Cinco tinham como tema algo relacionado ao comércio ou produção de


animais, e até onde pudemos averiguar, os vereadores eram também
estancieiros73. Isso já nos informa muito sobre as preocupações daquela Câmara,
e sobre suas prioridades e interesses.
A primeira carta que observamos foi uma que trata sobre o ingresso de
muares vindos dos domínios espanhóis.74 O documento inicia com a referência
ao Real decreto de 24 de dezembro de 1764, que previa a proibição do ingresso
de animais de origem espanhola no Estado do Brasil. Segundo os vereadores,
era preciso reforçar esta lei que só vinha a beneficiar e valorizar as mulas
crioulas. A Câmara lamentava o não cumprimento do decreto por parte das
autoridades régias e declarava que os fazendeiros só poderiam dar aumento às
suas crias se aquele decreto fosse efetivo.
O restante do documento trata da ruína que tal comércio ilícito causa, e
da “dor e mágoa” que os criadores do Viamão encontravam-se diante de tal
situação. O apelo é visível. Na seqüência, pediam o cumprimento da lei, com a
perseguição tenaz aos contrabandistas e a apreensão efetiva dos animais. Tais
medidas, segundo os oficiais da Câmara, diminuiriam em muito os
contrabandos, mas também uma série de roubos e “mortes violentas” que
ocorriam naquelas campanhas. O último e especial argumento era a paz com os
espanhóis. Para tanto, não só os vereadores afirmavam que não queriam ser
“motores de uma guerra”, mas também relembravam com ênfase a perda dos
territórios de Sua Majestade em 1762. Já vimos como este argumento era
especialmente cruel para os administradores lusos, e absolutamente
convincente.
O segundo documento é ainda mais carregado. Trata sobre a existência
de criações de muares nas Minas, o que, segundo aqueles vereadores, era algo
inadmissível.75 As Minas já tinham riquezas em “puro ouro” e pedras preciosas,
e podiam dispensar-se da criação das bestas, única riqueza da fronteira. Os
vereadores pediam que os animais reprodutores das Minas fossem degolados,
movidos pelo “clamor” e “lamentos da quebra que experimentam” os

73
Relação de Moradores de 1784. F1198. AHRS.
74
AHU-RS. Cx. 02. Doc. 173.
75
AHU-RS. Cx. 02. Doc. 170. Grifos nossos.
80

moradores daquela fronteira do Rio Grande. Novamente reivindicavam o


cumprimento do decreto de 24 de dezembro de 1764, que também previa a
exclusividade que teriam os criadores do Rio Grande na produção de muares.
Segundo os vereadores, somente o cumprimento deste decreto é que garantiria
o “bem comum desta república”.
A “ambição” dos mineiros é reafirmada em todo o documento. Era este
desejo avultado de ganhos que ameaçava o bem comum. Caberia ao Rei, como
promotor da justiça, providenciar o equilíbrio das oportunidades, como já dizia
o Vice-rei Vasconcelos76. Os moradores das Minas Gerais seriam “ricos de meios
onde se podem empregar”, muito ao contrário dos moradores daquela “pobre
fronteira”, que não possuíam outras agências que lhes garantissem “...de donde
se alimentem, mas que da dita produção de suas crias...”. Não é preciso
provar que tanto nas Minas como no Rio Grande havia casos de pessoas que
realmente não tinham muitas oportunidades77. Mas este argumento,
considerando a dimensão do Império Luso e a preocupação com o bem estar da
república era bastante convincente e revestia seus autores de uma profunda
preocupação com as coisas do Império, como administradores zelosos. A
expressão “de donde se alimentem” aumenta ainda mais a cena, colocando em
xeque a condição de sobrevivência de um súdito de Sua Majestade.
Os vereadores concluíam exigindo atuação da Coroa. Ao fazer isso,
deixavam no ar o conhecimento que tinham de alguns dos pontos de fragilidade
do Rei naqueles confins, frente ao medo do ataque espanhol. Diziam que aquela
medida solicitada deixaria: “os moradores desta fronteira contentes e prontos
com seus filhos e fazendas em uma cega obediência às ordens de Sua
Majestade, como até o presente se tem comportado nas públicas ocasiões que o
tempo tem oferecido.” Demonstravam o quanto eram importantes na defesa
daquelas terras e o quanto o Rei necessitaria de seus recursos e pessoal, como já
acontecera e como poderia continuar a acontecer, se o Rei lhes atendesse.

76 Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op cit.


77 MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio
de Janeiro: Graal, 1986. e HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São
Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro:
PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).
81

Mantinha-se o jogo de forças entre os poderes locais e centrais, sempre decidido


através de uma sofisticada negociação.
Outra carta é um pedido de suspensão de um imposto sobre os couros do
gado bravio.78 Segundo os vereadores, aquele gado xucro já não existia, e ainda
que houvesse um imposto para este, incluía também o gado doméstico. Segundo
a carta, os gados domésticos já pagavam os dízimos, e neste sentido, não cabia a
manutenção do antigo imposto, que sobretaxava suas criações. Esta carta, ainda
que não tratasse diretamente de nosso problema, reitera alguns dos problemas
que percebemos em outros documentos. As suas primeiras linhas demonstram
com clareza a preocupação dos vereadores em convencer. A ação dos vereadores
em fazer aquele pedido era feita “Seguindo o exemplo de Cristo, e sua instrução
na matéria de bem pedir, condoídos das lástimas dos pobres desta
fronteira...”. A continuada argumentação da miséria manifesta-se aqui, mais
uma vez. Aqueles criadores de gado seriam pobres que precisavam da “Régia
Benevolência” para sobreviver, tal como a preocupação com a “ruína” e com a
“quebra”.
Os vereadores utilizaram-se ainda do argumento de autoridade para
ratificar sua petição. E que autoridade! Comparam sua posição com a de Jesus
Cristo, Deus filho, segundo a tradição católica. Ao pedir ao Rei coisa tão
importante, nada mais faziam do que serem bons cristãos. Contudo, os
incrementos narrativos usados para convencer ao Rei não paravam por ai. A
adulação foi também bastante explorada, quando utilizavam, por exemplo, a
possível atitude do Rei como “...beneplácito da Sua régia benevolência...”. Mas
o melhor ficava para o final. Os súditos contemplados pela atitude Real,
“...gostosos e obedientes se darão os parabéns de viverem debaixo da Real
proteção, benéfica, soberana e compassiva...”. Era também uma forma de
relembrar a fidelidade de gente tão necessária para a defesa daquelas terras,
como vimos em documentos anteriores.
Esta leitura das cartas da Câmara de Viamão nos revela a disseminação
da noção do “bem comum” entre os súditos até fins do século XVIII, e como
vimos no caso das vinte mil mulas, até início do XIX. Por outro lado, os

78
AHU-RS. Cx. 02. Doc. 168
82

habitantes daquela fronteira bem sabiam como jogar com o argumento da


perda territorial, que efetivamente preocupava as autoridades e a Coroa. Vimos
ainda que o argumento da miséria do povo, como um importante peso na
balança do bem estar público era amplamente utilizado e tinha como
sentimento antagônico a “ambição” de alguns vassalos.

O “monstro” da Lagoa Mirim: Rafael Pinto Bandeira.

Provavelmente jamais saberemos quem foram os autores da denúncia.


Mas em fins de 1783 o vice-Rei, Luís de Vasconcelos, recebia uma carta
anônima79 que fazia várias acusações ao coronel Rafael Pinto Bandeira,
especialmente sobre suas atividades contrabandistas. Era assinada por “Súditos
de Vossa Excelência”, que diziam que aquele fora “o meio mais seguro que
achamos para o nosso refúgio”. Não era à toa que em determinada parte do
texto referiram-se ao acusado, Rafael Pinto Bandeira, como “aquele monstro”.
Ainda que nos sejam desconhecidos seus autores, o documento é
contemporâneo destas atividades contrabandistas e trata diretamente delas.
Embora se pretenda uma denúncia, o texto está carregado de interpretações e
juízos que manifestam, de várias maneiras, algumas das idéias acerca do
contrabando correntes entre os súditos de Sua Alteza naquela fronteira.
Podemos, através do texto, fazer algumas afirmações sobre seus autores.
Eram possivelmente pessoas que haviam tido problemas com Pinto Bandeira,
tendo, inclusive, prejuízos devido aos negócios deste último. Pela minúcia da
descrição de alguns casos narrados, é possível que alguns destes tenham
participado ativamente do comércio ilícito, seja junto de Rafael ou com outros.
Também conheciam muito bem as proximidades da Lagoa Mirim, palco dos
principais acontecimentos narrados. O documento, além de ser uma denúncia, é
um pedido de proteção ao Vice-rei. Era a forma de que aqueles homens se
valiam para reivindicar a proteção da justiça régia, com a qual,
conscientemente, contavam.
Como outros documentos peticionários, era carregado de uma certa
dramaticidade. O argumento da miséria continua válido e convincente: “...os

79
Cód. 104. Vol. 06. p. 145v. Arquivo Nacional.
83

pobres da Fazenda Real são os que sentem os prejuízos avultados que aquele
monstro lhe causa...”. Novamente o antagonismo entre a miséria dos povos e os
interesses particulares de um homem ambicioso. A ambição é um adjetivo
especialmente atribuído a Rafael neste documento: “...o dito comandante
contrabandista é tão ambicioso que punha espião para saber quando passava
alguma canoa para a dita lagoa mirim...”. Já vimos em outros documentos o
quanto a ambição tem de valor contrário à noção de “bem comum”. Neste
sentido, também este documento reivindica esta posição, o bem público acima
de qualquer coisa. Isso não significa um antagonismo entre o público e o
particular. Nesta mesma noção de bem comum, prega-se que é da felicidade
particular que se tem a felicidade geral, desde que haja equilíbrio de
oportunidades. Ganhar é legítimo, mas ganhar de modo desproporcional,
abusivo, em detrimento de outros súditos, não. Mesmo uma concessão
particular como uma sesmaria ou mesmo outra mercê poderia contribuir para o
“bem comum” da república.80 Esta noção está disseminada entre a sociedade
colonial.

O entrosado: Antero José Ferreira de Brito.

Em 1784 o provedor da Fazenda do Rio Grande, Inácio Osório Vieira,


enviava um breve relato da situação dos contrabandos na fronteira com os
domínios espanhóis. Entre outras questões, Osório Vieira se dizia um tanto
confuso sobre os procedimentos em relação ao contrabando e que por isso,
havia consultado “...o único letrado que havia...”, o “Doutor” Antero José
Ferreira de Brito.81
O dito Antero era provavelmente formado em direito, pelo que nos indica
seu testamento, seu inventário e as referências feitas a ele. Tivemos a fortuna de
encontrar em seu inventário uma listagem superficial de sua biblioteca, onde
foram citadas cerca de quarenta e duas obras, muitas em vários tomos, somando

80
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite
senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi. v. 1, (2000). p. 123-152..
81
Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional.
84

setenta e quatro volumes.82 Em resposta ao pedido do provedor Osório Vieira,


Antero nos deixou um texto, o único de sua autoria a que tivemos acesso além
do testamento,83 e que tratava justamente sobre a legislação do contrabando e a
interpretação jurídica desta.
Antero era sobrinho e herdeiro de Antonio Pinto Carneiro, um grande
estancieiro do Rio Grande que também fora administrador dos índios da Aldeia
dos Anjos e que contava com um patrimônio bastante significativo.84 Foi
provavelmente para administrar os bens herdados que veio para o Rio Grande,
já que era nascido no Rio de Janeiro, tendo morado muitos anos em Lisboa. Era
também detentor do hábito de Cristo que lhe dava direito a uma tença, que
talvez nunca tenha recebido.85 Ao morrer deixava um patrimônio significativo,
que incluía quatro propriedades fundiárias, dezesseis escravos, plantações, um
rebanho com mais de dois mil e quatrocentos animais, sendo que deste total,
setenta e oito éguas eram destinadas para a criação de mulas, juntamente com
quatorze burros que Antero mantinha com exclusividade para a mesma
produção.86 Não era apenas a produção que relacionava Antero com o negócio
de gado naquelas terras, ele ainda possuía um campo de invernada (destinado à
engorda dos animais), que costumava arrendar para tropeiros e negociantes de
gado. Um destes, o padre tropeiro Manuel Gracia Mascarenhas, ficou lhe
devendo trinta mil réis pelo uso do dito campo. Antero era, sem dúvida, um
homem profundamente articulado com o negócio de gado no Rio Grande de São
Pedro, atuando na produção e circulação de animais, ainda que fosse de fora
daquele meio.
Seus comentários sobre o contrabando são marcados por um discurso
aparentemente técnico, preocupado em apresentar uma interpretação correta
da legislação existente que proibia o contrabando. Para tanto, se utilizava de
vários artifícios jurídicos, especialmente sobre o caráter das penas. Segundo
Antero, as introduções de animais espanhóis nos domínios portugueses não

82
Inventário e testamento de Antero de Brito. APERGS. 1º Cartório de órfãos e ausentes. Porto Alegre.
Nº.131. maço. 09. AGRADEÇO A JONAS MOREIRA VARGAS, QUE GENTILMENTE ME
PASSOU A SUA TRANSCRIÇÃO DE TAIS DOCUMENTOS.
83
Não temos conhecimento de outro texto seu.
84
Inventário de Antonio Pinto Carneiro. APERGS. Nº 600. Maço 06.
85
Inventário e testamento de Antero de Brito. Op cit.
86
Idem.
85

poderiam ser tidas como contrabando, principalmente pelo fato de que a


punição para estas introduções era pecuniária, e a punição para os
contrabandos poderia incluir castigos físicos:

“Estas introduções não são crimes em rigor, não são furtos, não
contém descaminhos de diReitos Reais não envolvem delitos [...] As penas
da introdução das bestas muares são cíveis, e não passam de pecuniárias;
as penas de que trata o dito Alvará são crimes e até corporais, e por isso
tanto pela natureza das culpas como pela das penas, que lhe correspondem
à lei que regula neste continente a introdução daqueles animais, não é nem
os Estatutos da Junta do Comércio, nem o Alvará que o confirma e amplia
e a lei que aqui regula é o Decreto privativo e particular de 24 de dezembro
de 1764, cujo objeto é de muito diversa natureza, e tão diversa quanto os
objetos do dito Alvará são de reprovada e criminosa natureza e os do nosso
Decreto são só de natureza proibida e não criminosa.”87

Através destes argumentos Antero minimizava o caráter de crime dos


homens que traziam mulas dos domínios espanhóis para os territórios
portugueses. Ao afirmar isso, estamos comparando seu argumento com os de
inúmeras outras avaliações de seus contemporâneos, que consideravam como
contrabando estas introduções, e deste modo, as viam como atitudes criminosas
e reprováveis. Além disso, tanto o governador Sebastião Cabral da Câmara,
como o príncipe regente, em 1803, nos informavam de uma legislação que
proibia a importação de gêneros estrangeiros para a colônia, e que já estava em
vigor em 1780.
Antero fazia, notadamente, talvez a única defesa daqueles ingressos
redigida neste período. Ainda que lhes considerasse como atos proibidos,
minimiza em muito a culpa daqueles homens, chegando a propor que tais
atitudes não eram crimes a rigor. No mesmo ano que Antero escrevia, vários
homens haviam sido presos por tais ingressos de muares nos domínios lusos. 88
O consultado defendia a importância do direito de defesa dos réus ser
resguardado, ainda que lhes coubesse provar sua inocência frente a uma
acusação do provedor, pelo título que este último detinha, como administrador
da fazenda pública.

87
Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
88
F1245. 12v, 13. AHRS. Grifo nosso.
86

Entre as obras de sua biblioteca encontramos tomos das Ordenações


Filipinas, que são devidamente citadas no documento sobre os contrabandos.
Contudo, a citação parece um tanto quanto alheia ao assunto, e pode ter sido
utilizada como um recurso narrativo, que buscava atribuir protocolos de
verdade à argumentação de Antero.
Ainda assim, os argumentos utilizados são muito bem elaborados, sendo
notória uma boa formação retórica. Entre seus livros encontramos dez volumes
das obras de Cícero, além da “Retórica” de Vossio e da “Gramática”, do mesmo
autor. Estava, neste sentido, bastante ambientado com a literatura
recomendada pela Coroa. Em 1759, foram baixadas “Instruções para os
Professores de Gramática Latina, Grega, Hebraica, e de Retórica, ordenadas e
mandadas publicar, por El Rey Nosso Senhor”. Entre aquelas instruções, havia
uma que dizia: “Usará também o Professor para sua particular instrução da
Retórica de Aristóteles, das Obras Retóricas de Cícero, de Longino; Dos
Modernos, Vossio Rolin, Fr. Luís de Granada, e de outros de merecimento;”. 89
Haja vista todo o empenho de contrariar opiniões correntes, argumentando com
refinamento, Antero devia concordar plenamente com a avaliação de Sua
Majestade, nestas mesmas “Instruções”, quando o Rei dizia ser a:

“...Retórica a Arte mais necessária no Comércio dos Homens, e não só


no Púlpito, ou na Advocacia como vulgarmente se imagina. Nos discursos
familiares; nos Negócios públicos; nas Disputas; em toda a ocasião em que
se trata com os Homens, é preciso conciliar lhes a vontade...” 90

Antero de Brito é sem dúvida um caso interessante. O fato é que ele


poderia ter pensado inúmeras outras interpretações para a legislação sobre os
contrabandos, mas optou por uma que minimizava o caráter criminoso destes
feitos. Talvez porque estivesse associado ou negociasse com algum daqueles
sujeitos. Talvez alguns destes contrabandistas arrendassem seus campos de
invernada. Mas, se isso ocorreu, Antero deve ter sido muito competente na
ocultação de seus atos ilícitos, pois não nos deixou pistas sobre eles. Tudo o que
fez foi narrar sua opinião ao provedor e de modo muito apropriado, o que não

89
APUD: ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. “Apêndice Documental”, IN: A reforma pombalina
dos estudos secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.
90
Ibidem. Grifo nosso.
87

era nenhum crime. Sobre a recepção de suas idéias pouco sabemos. O próprio
provedor da Fazenda Real, que solicitou seus comentários, não atentou muito
para eles. Em sua carta ao Vice-rei aponta o pedido a Antero como prova de seu
zelo e de como desejava “muito acertar”. A carta de Antero acabou servindo
para demonstrar fidelidade, ainda que tivesse outras utilidades.

O provedor Osório Vieira.

Em fins da década de 1760, Inácio Osório Vieira tornava-se Provedor da


Fazenda do Rio Grande de São Pedro.91 Ao longo de seus vinte e cinco anos
neste posto, Vieira testemunhou inúmeros casos de atividades ditas ilegais e
contravenções de toda ordem. Muitos destes casos foram narrados nas várias
cartas que o Provedor escreveu aos seus superiores, ao Vice-Rei, no Rio de
Janeiro, e ao governador do Rio Grande. Segundo seu próprio relato, o provedor
veio de Portugal para a América muito jovem, após a morte de seu pai, na
tentativa de obter algum meio de sobrevivência, já que em Portugal não tivera
muitas oportunidades. Veio com a família, pela qual se sentia responsável, na
qualidade de varão que incluía a “mãe viúva e três irmãs donzelas, e a outro
irmão”.92 Em 1752 recebeu um posto de escrivão da Fazenda Real de Gomes
Freire de Andrade, obtendo em 1765 o posto de Provedor da Fazenda da
Capitania do Rio Grande de São Pedro.93
Em 1769, em seus primeiros anos como Provedor, lançou um edital sobre
os contrabandos94, o que já demonstrava um pouco de sua visão sobre o tema.
Era de sua responsabilidade o combate aos contrabandos e o zelo pelos
rendimentos da Fazenda Real, e a construção do texto utilizada por Osório
Vieira nos indica a seriedade com que tratava o assunto. Identificava os
contrabandos como uma “ingratíssima rebelião”, promovida por vassalos que
gozavam da proteção Real e agiam de modo infiel com “diabólicos excessos”.
Para Osório, a forma de combater estes abusos era a punição exemplar, de

91
F1243. 139v. AHRS.
92
AHU. Rio de Janeiro. Cx. 67. doc. 15784.
93
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 11. Porto Alegre: AHRS, 1995. pg. 165.
94
Edital passado pelo Provedor da Fazenda Real Inácio Osório Vieira sobre as mulas de contrabando.
F1243, 213v. AHRS.
88

modo que “...o castigo de uns sirva de exemplo a boa tranqüilidade de todos.”95
Neste sentido, Osório não compactuava com a política de dissimulação, muito
adotada pelo Vice-rei Luís de Vasconcelos. Todavia, ainda que ameaçasse desta
forma agressiva, não encontramos nenhuma referência de punição rigorosa
efetuada por Osório Vieira. Sua melhor tentativa talvez tenha sido a Devassa
dos contrabandos de 1773, na qual várias pessoas foram interrogadas e várias
acusações foram feitas. Contudo, tal processo foi encerrado sem que ninguém
fosse sequer admoestado. Não sabemos quem deu ordem para o
“arquivamento”.
Lendo os documentos produzidos por Osório Vieira teremos uma
imagem muito boa deste homem, chegando mesmo a acreditar em seu zelo e
seriedade, algo de que apenas suspeitamos. Há que se dizer que, pelos relatos de
várias autoridades que lhe defenderam no final de sua vida, quando rogou ao
Rei uma aposentadoria, Osório Vieira levou uma vida modesta e sem muitos
recursos.96 Tampouco encontramos qualquer evidência de propriedades
vultuosas ou negócios que tivesse. Contudo, esta imagem pode ser muito
enganadora e procuraremos atentar, em seu texto, para outros elementos, que
possam nos indicar aspectos mais gerais. A boa imagem de Osório Vieira pode
ser um simples fruto de sua competência ao apresentar-se como bom vassalo e
não de sua verdadeira situação. Contudo, é da apresentação de Osório Vieira
como bom vassalo que percebemos um primeiro ponto: o zelo.
Tanto para o provedor, como para outras autoridades do período, o
“zelo” pelas coisas Régias ou interesses públicos era muito importante.
Poderíamos dizer que a falta de “zelo” em um administrador colonial
corresponderia a “ambição” dos particulares, em oposição ao “bem comum”. O
próprio Vice-rei, Luís de Vasconcelos, para desqualificar o governador do Rio
Grande, em 1784, acusou este de “falta de zelo”97. Em 1787, ao apresentar um
breve relato sobre os contrabandos ao vice-Rei Vasconcelos, Osório Vieira dizia
que muito se interessava

95
Idem.
96
AHU-RS. Cx. 03. doc. 243..
97
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Op. Cit.
89

“nas matérias que tendem ao zelo e arrecadação da Real Fazenda, como o


que desejo muito acertar, principalmente em tudo o que Vossa Excelência
for servido determinar-me rogando-lhe a este respeito, e atentas as
circunstâncias, se sirva determinar o que devo obrar.” 98

Ainda que não fosse uma situação concreta, era um argumento muito
convincente.
Em 1784, como vimos, Antero de Brito tentou convencer Osório Vieira
que os ingressos de animais dos domínios espanhóis não eram, a rigor, crimes.
Contudo, o bacharel não obteve sucesso em sua apreciação, se julgarmos pelas
palavras de Osório, passados quatro anos daquela ocasião:

“O principio fundamental de se evitarem os contrabandos é procurar


extinguir os contrabandistas e não sendo estes processados,
perseguidos e afetados com as penas do alvará de 5 de janeiro de 1785
ficarão continuando nos mesmos delitos, e se não conseguirá ao menos
diminuir em parte o número de indivíduos que escandalosamente se
empregam no manejo destes mesmos contrabandos.”99

Mais do que escandaloso, este mercado era dominado por homens infiéis.
Esse era um dos pontos mais significativos para Osório Vieira. Uma vez que o
Rei havia pensado nos vassalos ao lançar o decreto de 24 de dezembro de 1764,
era esperado que os súditos respeitassem esta atitude, como bons filhos. Em um
Decreto, que baixou em 6 de outubro de 1788, Vieira advertia que “...tem
chegado ao escandaloso progresso de serem estes mesmos fazendeiros, a cujo
benefício se encaminha o espírito daquele real decreto, os infiéis
transgressores dele, passando aos tropeiros escritos de venda de mulas
ainda não manifestadas...”100
Se tomarmos a dimensão que tinham estas expressões, constataremos
que eram fortes as acusações feitas por Vieira. Segundo Bluteau101, infiéis eram
aqueles que não professavam a “lei de Jesus Cristo”, ou seja, de algum modo,
Vieira comparava os estancieiros do Rio Grande de São Pedro aos não cristãos,
fossem pagãos, idólatras, judeus ou mouros, em sua falta de fidelidade. Por

98
Cód. 104. Vol. 09. pg. 259. Arquivo Nacional.
99
Cód. 104. Vol. 10. pg. 397. Arquivo Nacional. Grifo Nosso.
100
F1245. 170. AHRS.
101
BLUTEAU. op cit.
90

terem comerciado com os castelhanos, estes homens estavam em “pecado”


diante de Sua Majestade Fidelíssima.
Se os estancieiros, que deveriam estar gratos a Sua Majestade eram
infiéis, os soldados responsáveis pela perseguição aos contrabandistas, que
acabavam participando deste comércio, eram vítimas da situação: “...os mesmos
oficiais comandantes das guardias contíguas ao campo, obrigados da
indigência que vivem, esperançados na utilidade de que se comprometem
mandarem pelos seus soldados fazer o mesmo contrabando...”102
Os estancieiros, proprietários de terras e agraciados pelas leis régias,
mantinham uma postura ambiciosa ao desejarem obter mais ganhos sobre a
Fazenda Real. Por outro lado, os soldados da fronteira, vítimas de necessidades
e infortúnios, nada cometiam de errado ao integrarem-se ao comércio ilegal de
gados, mesmo sendo estes os responsáveis diretos pela perseguição aos
contraventores.
A visão de Osório Vieira se aproxima muito da do Vice-rei Luís de
Vasconcelos. Para ambos havia a figura dos “cabeças” que lideravam os
contrabandos, aliciando, em seus negócios, inúmeros homens que estavam sem
alternativas. Para ambos, igualmente, a solução passava pela ação sobre estes
cabeças. A diferença entre estava na maneira de agir. Para Vasconcelos, todo o
sigilo e astúcia eram necessários onde as forças não permitiam a ação mais
pronta. Para Osório Vieira, aqueles homens deveriam ser logo detidos. Ainda
que tenham planejado estes estratégias, ambos não tiveram sucesso, e os
contrabandos viraram o século.

“O bom e único mercado”: Fernandes Pinheiro e o contrabando.

Em 1808 foi produzido um interessante documento sobre o ingresso de


muares espanhóis nos domínios portugueses. Partindo da mesma
documentação que Antero de Brito analisou, o também bacharel em direito,
José Feliciano Fernandes Pinheiro, elaborou toda uma explicação para
demonstrar o quanto tal ingresso era criminoso, além de ser danoso ao
comércio lícito.103

102
Cód. 104. Vol 10. pg. 397. Arquivo Nacional.
103
Lata 111. Pasta 07. IHGB.
91

José Feliciano Fernandes Pinheiro era natural de Santos, e aos dezoito


anos foi estudar em Coimbra, onde formou-se, alguns anos depois, em direito.
Afora sua formação acadêmica, Pinheiro também trabalhou alguns anos como
tradutor da “Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego”. De sua
tradução saíram vários livros em português, versando sobre história, história
natural, agricultura entre outras áreas.104 Sua vida intelectual, contudo, foi ainda
mais refinada. Publicou em 1822 os “Anais da Capitania de São Pedro”, uma
obra de história do Rio Grande de São Pedro. Em 1839 ajudou a fundar o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), participando, ainda, em
mais quinze associações científicas até o fim de sua vida.105 Publicou também,
em 1841, uma biografia dos irmãos Alexandre e Bartolomeu de Gusmão. Em
1825 recebeu o título de “Visconde de São Leopoldo”.106
Em 1808, Pinheiro exercia o cargo de Juiz da Alfândega do Rio Grande de
São Pedro e andava, evidentemente, muito preocupado com a questão dos
ingressos de animais. O governador Paulo Gama lhe solicitara, em 19 de maio de
1808, um parecer sobre o assunto.107
Se Antero de Brito se valia de um discurso baseado em elementos
jurídicos, Pinheiro impregnava seu texto de noções de economia, procurando
demonstrar, através desta argumentação, as conseqüências negativas da
introdução do gado espanhol nos domínios portugueses. Da mesma forma que
Antero, seus argumentos são bem construídos e sua erudição é bastante
evidente, abusando de expressões pouco usuais nos demais documentos oficiais
deste período.
O texto inicia fazendo referência às “funestas conseqüências” do ingresso
do gado espanhol. Ao longo do texto, tal comércio também é denominado como
“ruinoso”, e principal causa da decadência daquela. Pinheiro acaba refletindo
uma velha noção corrente entre aqueles súditos, na qual o Rio Grande vivia uma
eterna decadência. Como argumento justificativo, deveria ser muito
convincente, já que temos registro de seu uso desde a década de 1770.

104
PORTO, Aurélio. Noticia sobre o Visconde de São Leopoldo. IN: PINHEIRO, José Feliciano
Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, v. 1978. pg. 44.
105
Idem. Pg. 46.
106
Idem. Pg. 41-42.
107
Lata 111. Pasta 07. IHGB
92

Na seqüência do documento, Pinheiro afirma que poucos argumentos


bastariam para provar que o ingresso dos animais era problemático. Todavia,
isso não seria preciso, haja vista que já havia toda uma legislação que proibia
aquele negócio, o que era muito superior e bastava por si. Aquela proibição era,
segundo ele, “sabiamente sancionada por um direito municipal e privativo.”
Este mesmo argumento fora utilizado por Antero de Brito para argumentar o
contrário. Para Antero, por ser baseada em um direito privativo a legislação que
proibia o ingresso era menos válida que outras. Para Feliciano Pinheiro, isso era
uma prova de sua legitimidade. Privativo está, neste sentido, associado ao
direito do Rei sobre seus domínios, diferente de outras formas legais, que teriam
outros trâmites de constituição.108
Uma grande influência deve ser atribuída a Alexandre de Gusmão. Não
apenas Feliciano o citou, como mantinha em sua biblioteca vários documentos
produzidos por aquele. Entre outros, o próprio Feliciano copiou para si um texto
denominado “Cálculo sobre a perda do dinheiro do Reino dado a El Rey no ano
de 1748”. Neste documento, Gusmão defendia a limitação das importações, pela
perda de dinheiro e metálico que estas proporcionavam.109 Além deste texto de
caráter econômico, Feliciano também conhecia textos diplomáticos de Gusmão,
especialmente sobre os tratados de limites.
Pinheiro construiu uma lógica que associava o aumento da produção e da
riqueza ao protecionismo. Se os criadores de muares do Rio Grande sofressem
concorrência dos animais produzidos fora dos domínios portugueses, teriam
prejuízos, ficariam sem interesse e empobreceriam, com o que a povoação
perderia força e tudo ficaria arruinado. Neste sentido, seria obrigação do
governo prezar por aqueles súditos que se dedicavam a criação de muares.
Argumento semelhante ao utilizado pelo Rei para incentivar as criações e
proibir o ingresso de animais espanhóis em 1764, documento de que Feliciano
Pinheiro tinha total conhecimento, pois o citou em uma nota de rodapé.110
Por outro lado, era preciso que o Brasil buscasse um saldo positivo na
“balança do comércio”. Diante da importação de manufaturas da Inglaterra e da

108
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
109
Lata 03. Doc. 19. IHGB.
110
Lata 111. Pasta 07. IHGB
93

situação das províncias espanholas, era necessário “considerar as recíprocas


precisões deste país e as da América Espanhola”.111 Pinheiro se utilizava, assim,
de argumentos bastante significativos para uma economia de antigo regime,
especialmente na questão da proteção dos súditos e seus negócios como base
para a “felicidade geral”. Mas, ao mesmo tempo procurava adequar estes
elementos a novas conjunturas, apresentando esta política de proteção aos
súditos como necessária no mercado mundial, especialmente na concorrência
do Brasil com outros países. A figura do monarca como pai, associada à noção
de “bem comum” ainda tinha um significado importante, e garantiam algumas
permanências. Era o que Feliciano propunha para que todos os súditos se
dedicassem ao “bom e único mercado”, e se afastassem do contrabando.
Pudemos verificar vários dos argumentos utilizados para coibir, ocultar
ou justificar o ingresso de animais dos domínios espanhóis para os territórios
lusos na América, em um contexto em que estava proibida esta passagem.
Vimos como estas avaliações estavam permeadas por alguns paradigmas do
pensamento político lusitano e escolástico, especialmente as questões da
dissimulação, do “bem comum” e da mediação popular. Pudemos verificar a
reiteração destas idéias em vários documentos, por autores diferentes e em
distintos contextos e problemas.
Procuramos, através destes estudos pontuais, verificar algumas
regularidades no entendimento e trato com o contrabando. Percebemos que
havia uma profunda desigualdade no tratamento dispensado, de acordo com
cada um dos avaliadores, o que dava uma ampla margem de ação para
autoridades e contrabandistas frente à subjetividade que havia, não apenas nas
formas de encarar o problema, mas igualmente na forma de combatê-lo.
Todo este discurso, aparentemente contraditório, acabava justificando o
problema do contrabando por razões de Estado. Diante da reiterada ameaça dos
inimigos espanhóis, e da possibilidade de perda territorial, e econômica, havia
um clima de liberalidade em relação àquela forma de comércio indesejada.
Tolerância poderia ser uma palavra síntese. Mas uma tolerância profundamente
negociada no cotidiano da relação entre os súditos e a Coroa.

111
Ibidem.
CAPÍTULO 3
OS CAMINHOS DO MERCADO

A venda do gado: mercados e dinâmicas antes do “contrabando”.

Seguindo as pistas do provedor da Fazenda Real, Osório Vieira, vamos


àquela que ele considerou a mais freqüente mercadoria que ingressava
ilicitamente nos domínios portugueses: as bestas muares. Atentamos para as
formas como os animais eram comercializados, seus diferentes circuitos e
dinâmicas.1
Ao longo do século XVIII, e especialmente após o surto das minas,
percebemos um constante interesse português em alcançar os centros
produtores e distribuidores de muares que estavam nos domínios espanhóis ao
sul da América, mais exatamente em Córdoba, Buenos Aires e Santa Fé. A
presença de interesses lusos junto ao Rio da Prata é muito mais antiga, sendo
bem estudada por inúmeros trabalhos.2
As primeiras iniciativas bem sucedidas com o objetivo de buscar acesso
as produções de muares do Rio da Prata talvez sejam as investidas de Domingos
de Brito Peixoto. Este havia saído de Santos em fins do século XVII e se dirigira
ao sul, onde fundou a povoação da Laguna. Seu filho, Francisco de Brito Peixoto
escrevera, no início da década de 1720, cartas para o governador de São Paulo,
Rodrigo César de Menezes, narrando o contato que tivera com alguns
1
Cód. 104. Vol. 10. pg. 397. Arquivo Nacional.
2
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto
Alegre: F. P. Prado, 2002. NEUMANN, Eduardo. O trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata
Colonial - 1640-1750. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996. HAMEISTER, Martha Daisson. O
Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias
semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado Inédita).
CANABRAVA, Alice. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1984. MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo
XVII - Buenos Aires, el Atlantico y el espacio peruano. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1987. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.
95

castelhanos. Entre os castelhanos, encontrava-se um tal Roque Zoria, que foi


enviado junto com a carta para dar informação ao governador.3 Em cartas
seguintes, Brito Peixoto afirmou que alguns destes castelhanos foram aos
domínios de Espanha e depois regressaram à Laguna, informando dos contatos
que fizeram e das possibilidades de negócios que havia com os comerciantes de
Santa Fé, nos domínios espanhóis4. Santa Fé destacava-se, neste período, como
grande produtora de muares para as regiões mineradores de Espanha. Era
igualmente um centro comercial de grande importância:

“...es escala del Paraguai a donde basan las barcas y balsas de yerba,
tabaco y azúcar y demás géneros de aquella prova. Y por esta razón es
frecuentada por mercaderes del Perú, Reino de Chile y Prova. del
Tucumán”. 5

A compra de gados nesta localidade fornecedora fica evidente na mesma


carta, quando Brito Peixoto noticiava dos animais que trouxeram os castelhanos
que passavam pela vila: “Também me noticiou o dito castelhano traziam
muitas mulas e machos para venderem...” 6
Brito Peixoto e seu núcleo povoador não travaram contatos apenas com
os castelhanos. Outro importante grupo a estabelecer relações com aqueles
portugueses foram os índios minuano. Este grupo atuava de forma muito efetiva
no comércio de gado, especialmente cavalos, burros e mulas. Tais indígenas não
apenas vinham oferecer seus animais junto às povoações lusas como igualmente
colaboravam na captura de gado selvagem. Muito do gado fornecido pelos
minuano era obtido através de saques às estâncias espanholas, acusação
freqüentemente feita por autoridades do Rio da Prata:“...os veis precisado a
representar la imposibilidad de evitar la comunicación que frecuentaban los

3
Inventários e testamentos de São Paulo. Vol. XXVII, 1921. APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande
de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg 13.
4
Carta de Francisco de Brito Peixoto. 22/1/1722 APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande de São
Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg. 17.
5
Instrucciones de Martinez de Salazar a Andrés de Robles, Buenos Aires, 2/4/1674, en AGI-Charcas 278.
APUD: GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial. México: Grijalbo, 1983.
Pg. 398.
6
Carta de Francisco de Brito Peixoto. 22/1/1722 APUD: FORTES, João Borges. Rio Grande de São
Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941. pg. 18.
96

indios Minuanes [sic] con los portugueses y de algunos españoles refugiados a


su abrigo, prácticos del país.” 7
Estes primeiros contatos foram certamente muito importantes para
garantir as características que o negócio de animais viria a ter mais tarde. O
contato privilegiado com minuano e espanhóis pelos herdeiros do clã de Brito
Peixoto foi indispensável para a reprodução e aumento destes negócios.
Contudo, por uma série de ausências documentais, é difícil verificar a
manutenção destes laços por este grupo familiar até a década de 1760, quando a
documentação torna a manifestar estes laços.
No início da década de 1720, Bartolomeu Pais de Abreu propunha a
construção de um caminho que ligasse o Rio Grande a São Paulo. A abertura
deste caminho, contudo, só teve inicio a partir da ordem que Antonio da Silva
Caldeira Pimentel passou para Francisco de Souza Faria, em 1727. Segundo o
regimento passado a Souza Faria, este não poderia conflitar com

“...Índios , ou castelhanos, que estejam nas nossas povoações, ou se


encontrem em caminho, ou nas campanhas, procurando paz e amizade
com eles, expedindo para isso do que leva o que entender ser necessário,
procurando mesmo que conheçam, e entendam que esta marcha se
encaminha somente a ter com eles comércio de negociação conveniente a
todos, e não a tirar-se alguma com violência”8

A abertura deste caminho só se encerrou na década de 1730. Os primeiros


anos que se seguiram à abertura do caminho das tropas foram de significativa
circulação de animais.9 O ingresso de bestas muares produzidas pelos súditos
espanhóis era absolutamente livre, salvo o devido pagamento dos impostos,
chegando a ganhar ares oficiais, o que fica evidente em inúmeros documentos
produzidos entre 1730 e 1760.10 Exemplo disso ocorre quando do
estabelecimento da “guarda do Porto”, posto de controle de circulação por terra
e mar, destinado à defesa do território. Seu regimento previa a contagem das

7
Real Cédula al governador de Buenos Aires. Aranujuez, 18 de mayo de 1772. Copia em Campaña del
Brasil, t. I, pg. 477. APUD: CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires:
Ediciones Solar, 1942. pg. 97.
8
Documentos Interessantes para a história e Costumes de São Paulo. vol. XVI, parte I. São Paulo..
9
Um bom estudo sobre a construção do caminho das tropas, com especial ênfase a atuação de Cristóvão
Pereira de Abreu é HAMEISTER. op cit.
10
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 1. Porto Alegre: AHRS/IEL, 1977. pg. 103,
224-225.
97

tropas de bestas que passavam para “a parte do Norte”11 e a cobrança dos


direitos reais por cada cabeça de gado, que haveriam de se contar “muito
exatamente”12. Este documento, de 1740, dá um significativo destaque para o
ingresso dos animais dos domínios espanhóis que nos indica a maneira como
estes gados circulavam com facilidade:

“Passando cavalos mansos ou vacas para a dita parte do Norte, observará


o comandante que nenhum passe que seja reiúno, que devem estar
registradas na Vedoria, conforme o bando de este têm marca, porque se
correram neste campo, ou tem as castelhanas por se haverem
comprado aos estancieiros ou tropeiros dos domínios de
Castela; e todos os sobreditos animais passarão com despacho do
Governo.”13

Importa, neste momento, ressaltar o fato de que não havia nenhuma


restrição a circulação de animais entre os domínios de ambos os Impérios. Com
os dados que apresentamos, até então, é bastante difícil pensar como se
estabelecia uma rota de ingresso, quanto mais um circuito comercial estável.
Para tentar buscar algumas destas respostas, vamos estudar com atenção um
caso razoavelmente documentado.

O grande mercador

Francisco Pinto de Vila Lobos era o que poderíamos chamar de


“excêntrico”. Em uma consulta feita pelo Conselho Ultramarino em 1749, o
governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, dizia que tal homem
tinha “terrível procedimento”. Segundo o governador, Vila Lobos havia feito
inúmeras desordens na sua guarnição militar, sendo que a pior fora quando
“...fingiu-se de louco [...] esteve no hospital mas reconhecido o fingimento foi
solto...”.14 O farsante acabou sendo rejeitado em algumas consultas para
promoções militares por suas atitudes.
Foi logo depois de perder uma destas promoções que Vila Lobos escreveu
ao Rei de Portugal pedindo o alongamento de uma concessão que tinha, para
“...ir à Colônia do Sacramento e às Minas...”. O pedido não se dava à toa. Tal
11
Ponto localizado à beira da barra do Rio Grande.
12
Anais do Arquivo Histórico... op cit. pg.133.
13
Idem. pg. 133. Grifo nosso.
14
AHU-RJ. Cx. 60. Doc. 14136.
98

sujeito mantinha negócios nos quais a circulação entre os dois pontos, o de


compra e o de venda, tinha em Sacramento e Minas alvos essenciais.
Ele não fora de todo esquecido pelo monarca, pois este lhe renovou a
concessão. Mais do que isso, Vila Lobos tinha outras regalias, como a permissão
do Rei espanhol para negociar mulas em seus territórios americanos.
Começamos a entender o que pretendia fazer entre Sacramento e as Minas. Em
1751, o governador de Sacramento Luís Garcia de Bivar noticiava ao Conselho
Ultramarino que o...

“...Vice-rei de Lima mandou ordem ao Governador de Buenos Aires, para


impedir a negociação de mulas concedida por El Rei Católico ao Alferes
Francisco Pinto de Vila Lobos e que se lhe remetesse as ordens de Sua
Majestade Católica, porque tomava sobre si este negócio, o que esse está
executando, não obstante, ter já pago as Caixas Reais 6000 pesos de
direitos e ter feito a despesa principal.”15

O interessante é que apenas em um momento de fracasso do plano de


Vila Lobos é que foi perceptível sua atuação no negócio de compra e venda de
muares. Neste contexto, contudo, não se tratava de um impedimento exclusivo
ao dito mercador, mas se dava em um momento de profunda tensão entre os
dois Impérios na região, em paralelo a uma das inúmeras demarcações de
terras. Os comerciantes portugueses com negócios em Buenos Aires estavam
“assustadíssimos”16, pelo temor de que algo de anormal acontecesse.
Em agosto de 1751 tivera um novo deslize. De Madrid vinham ordens
para que daquele momento em diante foi vetada a concessão, pelo volume que o
negócio tomava.17 A carta do Marques de la Ensenada dizia ainda sobre a rota
seguida, através do Rio Grande e daí para as Minas, e sobre a quantidade,
contando os seis mil animais que havia na tropa anterior.

15
Anais da Biblioteca Nacional – Inventário de Documentos Relativos ao Brasil existentes no Arquivo de
Marinha e Ultramar – Rio de Janeiro, 1756- 1757. Vol. 71. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional -
Divisão de Obras Raras e Publicações, 1951. pg. 179.
16
Idem.
17
Reales Ordenes - Legajo 3. 1747-1751 - Sala IX 24.10.11 – AGN. Agradeço a Fabricio Pereira Prado
pela concessão do material.
99

FIGURA 3
100

Outro documento espanhol18, de 1752, nos informa com muito mais


detalhes sobre os negócios de Vila Lobos. Não sabemos muito bem quem fizera
este documento, nem mesmo com que objetivo exato. Mas tal papel nos informa
da provável data da permissão espanhola para os negócios do alferes, em agosto
de 1749, em Madrid.
O dito mercador havia acordado com as autoridades espanholas a
concessão para levar 3823 mulas de Santa Fé para o “Rio Grande”, além de
oito que “prevenido Francisco Pinto”19 já havia remetido para Sacramento. Todo
este gado estava contabilizado visando especialmente a tributação. Todavia, o
mercador português não fora honesto em seu procedimento. Tentou juntar
doze mil mulas de inúmeros criadores de Santa Fé para “extraerlas
clandestinamente” e pôr-se em longa marcha para o Rio Grande.
Alguns anos depois, o nome de Vila Lobos fora novamente aludido em
documentos espanhóis. Em poucas palavras, falava sobre suas atividades de
extração de mulas para os domínios portugueses entre 1749 e 1753.20
Seu caso remete ao de um grande mercador, capaz de movimentar
volumosas quantidades de mercadorias em distâncias grandes, podendo obter
lucros extraordinários. Quando da arrematação do registro de Curitiba, o
provedor da Fazenda de Santos escreveu ao Rei afirmando que o valor da
concessão era baixo, diante dos ganhos que este registro proporcionava. Para
tanto, narra o caso de uma tropa que vinha se aproximando do registro: “...me
persuado que será o rendimento mais avultado por me constar que entre
outras mais tropas, vem uma de cinco mil bestas que se aqui chegar,
ela só renderá a Vossa Majestade seis contos de réis...”21 Esta poderia até ser
a tropa de Vila Lobos, mas o que queremos atentar aqui são os valores que são
movimentados por este tropeiro, que conduzia tropas de igual vulto. À isso,

18
II – 31, 30, 1 – nº 2. Biblioteca Nacional.
19
Tal como o documento se refere ao sujeito. Num tom de clara contrariedade, atribuindo-lhe uma astúcia
inconveniente.
20
Ralação de papéis existente num arquivo de Buenos Aires, por meados do século XVIII. I – 28, 34, 29.
Biblioteca Nacional.
21
Carta do Procurador para o Rei, alertando dos erros no contrato com M. Cordeiro e dando os tropeiros,
número de animais por tropeiro e quantias arrecadadas pelo registro de Curitiba no ano de 1751.
ARQUIVO NACIONAL. Documentos Históricos: Provedoria da Fazenda de Santos – I - leis,
provisões alvarás, cartas e ordens reaes. Coleção no 445, vols. XIII - XX. II – Livro da Junta da
Arrecadação da Fazenda Real. Vol. II. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia, 1928. O Grifo é nosso.
101

devemos considerar que o cálculo levou em conta que apenas metade dos
direitos pertenciam à Coroa. Só de tributos em Curitiba, uma tropa deste porte
pagava algo em torno de doze contos, uma quantia significativa se levarmos a
rigor o cálculo feito pelo provedor de Santos para o Rei. Estimar os ganhos que
esta tropa poderia proporcionar para seu proprietário é um tanto difícil, na
medida em que não temos informação sobre os valores negociados na compra, e
pouco sabemos dos valores praticados nos pontos de venda. De qualquer modo,
esta estimativa nos dá alguma idéia do volume deste negócio.
Não temos dados sobre os recursos materiais que Vila Lobos dispusera
para a empreitada. Mas temos alguma informação sobre as articulações que
dispunha para obter as concessões que usufruiu. O mesmo Gomes Freire de
Andrade, que narrou a história das desordens provocadas pelo sujeito, é quem
nos dá estas pistas. Segundo ele, Vila Lobos obteve a patente de Alferes “...posto
que foi promovido por filho do Sargento-mor engenheiro do mesmo nome, e
sobrinho do tenente e Marechal de Campo General José Fernandes Pinto
22
Alpoim...”. Gomes Freire afirma que, mesmo com tais credenciais, o dito
alferes não deveria ser novamente promovido. Todavia, nos demonstra o quanto
eram importantes os seus laços parentais, a ponto de serem citados como
motivos para ascensão na carreira militar. Tal importância é comentada pelo
governador da Colônia do Sacramento, alguns anos antes de Gomes Freire e das
ditas “desordens” provocadas pelo alferes. Segundo ele, Vila Lobos teria

“...a circunstância de se haver aplicado ao exercício da Artilharia e de


Engenheiro, querendo seguir seu avô Manuel Pinto de Vila Lobos,
coronel da Artilharia com exercício de engenheiro na Província do Minho
[...] e seu pai Francisco Pinto de Vila Lobos, sargento-mor engenheiro na
mesma Praça : e a seu Tio o sargento-mor atual da Artilharia do Rio de
Janeiro José Fernandes Pinto Alpoim, onde tem adquirido crédito notório,
com o seu grande préstimo”.23

De alguma forma Francisco Pinto de Vila Lobos adquiriu um cabedal


social muito mais em função do pai, do tio e do avô do que baseado em seus
talentos. Recebeu assim uma “herança imaterial”, conforme aponta Levi,24

22
AHU–RJ. cx. 60. doc. 14.136.
23
Informação do governador da Colônia. AHU–RJ. cx. 55 doc. 12755.
24
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. .
102

mesmo que não tivesse feito muito para aumentar ou manter este “patrimônio”.
Contudo mesmo as “desordens” que provocara, e que possivelmente lhe
privaram de promoções mais freqüentes, seu núcleo familiar ainda mantinha
importantes vínculos que possibilitaram e garantiram que ele pudesse circular
com animais entre os dois Impérios, e com despacho favorável de ambos.
Seu pai era Capitão do terço de artilharia na praça de Sacramento a partir
de 1738, quando enviou uma solicitação de ajuda de custo para transporte até a
Colônia.25 Da mesma forma, seu tio, José Fernandes Alpoim, era também oficial
militar, sargento-mor do terço de artilharia do Rio de Janeiro e designado para
acompanhar as tropas da expedição de Gomes Freire de Andrade ao sul, no
início da década de 1750. É possível que neste contexto, em um momento de
contatos fortes e regulares entre militares espanhóis e portugueses tenham se
formado relacionamentos que deram base de sustentação para a ação de Vila
Lobos como tropeiro nos domínios castelhanos, a partir de um domicílio
comercial em Sacramento. A maior parte das fontes que utilizamos remete-se a
ele como estando em Sacramento. Também uma solicitação que fez em 1749,
pedindo “...repassar provisão de licença por tempo de um ano para poder ir a
Nova Colônia e Minas...”26 nos indica isso.
Pelo fato de permanecer boa parte do tempo em Sacramento, e tendo pai
e tio atuando naquela redondeza, Vila Lobos teve acesso a redes que envolviam
especialmente comerciantes e produtores dos domínios espanhóis, além de
contatos que lhe possibilitaram obter a concessão para a circulação em
domínios espanhóis do próprio Rei Católico. Além disso, para obter licença e
circular pela colônia, a herança recebida ainda era o bastante, como nos indica a
aprovação do requerimento feito em 1749.27 Por sua vez, Francisco Pinto de Vila
Lobos, o filho, acabou investindo o que herdara na atividade comercial,
descuidando um tanto da reprodução dos relacionamentos e articulações sociais
que seus ancestrais haviam construído e reproduzido com bastante
competência. Ele se limitara a utilizar-se destas relações, sem reproduzi-las da
devida maneira.

25
AHU-RJ. cx.43 doc. 10016.
26
AHU–RJ. cx. 43. doc. 14287.
27
Idem.
103

Certamente Vila Lobos não era o único a realizar negócios com muares.
Um contemporâneo seu, chamado Francisco Vila Sana, saiu de Santa Fé em
1752 levando mais de novecentas éguas e vinte mulas.28 Sem pagar direitos e
sem autorização, foi perseguido pelas autoridades espanholas. Não sabemos se
foi pego em algum momento. Temos o registro de sua passagem pelo Rio
Grande de São Pedro em 1754:

"...Dom Francisco de Vila Sana e companhia que conduzia ele suplicante


dos domínios de Espanha para este continente uma numerosa tropa que
contou cinco mil ou mais animais fazendo-a transportar para o registro de
Viamão para que passem aos domínios de São Paulo e Minas...” 29

Também um tropeiro chamado Bartolomeu Chevar havia passado do Rio


Grande para as Minas Gerais em 1754.30 Ele levava consigo 3780 bestas muares,
gerando impostos no valor de mais de cinco contos de réis.
Seguindo o rastro deixado por estes grandes mercadores, verificamos
várias regularidades. Em primeiro lugar, a região de Santa Fé, nos domínios
espanhóis, aparece como um dos principais centros fornecedores. Esta região
certamente possuía destaque durante o século XVIII como grande produtora de
muares.31 Ao que tudo indica, a rota seguida passava pelo chamado Rio Grande
de São Pedro, já em territórios lusos, seguindo daí para Curitiba e Sorocaba,
está última um grande centro redistribuidor, especialmente através da “Feira de
Sorocaba”, que dava ênfase aos muares.
Importante reparar que, via de regra, era um único sujeito (com seus
auxiliares) que conduzia a tropa de um extremo a outro. Isso se tornará mais
aparente quando verificarmos que outra forma do gado passar às Minas era
através de inúmeros intermediários, que no fim das contas, a sua maneira,
também abasteciam de gado os centros consumidores. Afora Vila Lobos, pouco
sabemos dos outros condutores.
Se não dispunham de grandes recursos para a compra do gado nos
territórios espanhóis, certamente dispunham da confiança e do crédito dos

28
Mss. I – 28, 34, 20. BNRJ.
29
F1242. 21v-23. AHRS
30
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pg.
130. Tal referencia seria de um livro de registro geral da Vila de Santana da Parnaíba, o que fora
“comunicado” a Sérgio Buarque de Holanda por outro pesquisador.
31
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial. México: Grijalbo, 1983.
104

criadores para obter os animais e levá-los ao seu destino final. Vila Lobos teria
tentado ajuntar uma tropa de doze mil animais, baseado apenas no crédito que
dispunha, pois os animais não eram seus.32 Da mesma forma, o citado
Bartolomeu Chevar, segundo Sérgio Buarque de Holanda, teria sido cobrado nas
Minas pelos tributos que fiara, já que provavelmente não dispunha de dinheiro
corrente para pagá-los, e necessitou vender os animais para obtê-lo.33 A falta de
metal circulante deveria ser um complicador para estes negociantes. Todavia,
um homem como Vila Lobos não deveria ter muitos problemas com isso, como
pudemos observar. Seus relacionamentos deveriam garantir boa parte de sua
empresa, especialmente os que herdara de seu tio e de seu pai. Da mesma
forma, Bartolomeu Chevar obteve aceitação para o fiador que apresentou. É
provável que só obtivera isso devido a sua competência de estabelecer contatos e
relacionamentos. Caso contrário, dificilmente chegaria às Minas.
Importa apontar para a quantidade de animais que levavam. Nos casos
apresentados, as tropas freqüentemente passam de três mil animais. Essa
quantidade, arrecadada com dinheiro ou crédito, era muito importante se
considerarmos o risco da viagem. Não apenas a alimentação dos tropeiros, mas
também as perdas com mortes de animais e o pagamento de peões eram
despesas que deveriam fazer parte da contabilidade do proprietário da tropa.
Além disso, havia ainda as despesas com os tributos de licença e passagem de
animais que (por mais sonegados que fossem) poderiam representar uma
despesa formidável para quem percorria mais de dois mil quilômetros.
Acrescenta-se também a intenção do tropeiro em ganhar o suficiente para si e
para dar continuidade satisfatória ao seu negócio. Todavia, isso são conjecturas,
pois pouco sabemos das despesas que se faziam. Um documento, contudo, nos
da algumas pistas. Em maio de 174934 alguns moradores de Rio Grande foram
chamados a prestar informações ao governador em nome de Sua Majestade.

32
II – 31, 30, 1 – nº 2. Biblioteca Nacional.
33
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pg.
130.
34
Resposta que deram os moradores casais deste estabelecimento sobre o pagamento que lhe [ilegível] o
Cel. Governador Diogo Osório Cardoso, cuja mandou registrar vocalmente. 1749. ANAIS DO AHRS.
vol. 1. pg. 234. Nota: A transcrição cita o ano de 1739. Porém, os documentos adjacentes estão todos
com datas do ano de 1749, e na ordem correta. Importante notar que a transcrição não foi assegurada
por quem a fez.
105

Tratava-se de uma consulta para saber a quem deveriam pertencer os direitos


cobrados em Curitiba, das tropas que iam para as Minas. Os consultados, ao que
parece todos envolvidos de um modo ou outro com o negócio de gado35,
disseram que deveria pertencer ao Rio de Janeiro, pois em São Paulo:

“...há os grandes gastos que nele se fazem e também nos parece danoso o
dito direito pelas muitas perdas que recebem os comerciantes pela
aspereza do caminho e passagens de dez mil réis cada rês, fora
infinitos ribeiros que estando cheios dão muito detrimento às tropas e
pela muita despesa que se faz em [ilegível] dos condutores delas.” 36

Reivindicavam, ainda, a não cobrança das montarias dos condutores, que


sem elas “...se não pode conduzir tropa alguma...”, além de pedirem tempo
suficiente para o pagamento dos direitos, “...pela muita distância aonde eles
[negociantes] vão dar saída e a demandar seu pagamento...”. 37
Os casos que discutimos até aqui são de grandes comerciantes. Havia,
neste mesmo período, entre 1749 e 1755, muitos negociantes “pequenos”, que
levavam poucas quantidades de gado, e dos quais temos poucos registros, muito
menos de negociações nos domínios espanhóis. Uma hipótese pode ser
apontada: este período, do final da década de 1740, que podemos estender até o
final da década de 1750, é o momento culminante destas grandes tropas. Após
este período fica mais difícil detectar a existência e reprodução destas
negociações de vulto.
Pudemos localizar apenas um caso, no final da década de 1780, quando o
Sargento-mor da Legião da Capitania de São Paulo, Joaquim José de Macedo
Leite, levou gados do Rio Grande para São Paulo, diretamente. Em 16 de março
de 1789 o governador noticiava ao Vice-rei a presença do dito Sargento-mor no
Rio Grande para comprar gado para as tropas de São Paulo. 38 Tempos depois,
em 22 de setembro de 1790, passava o Sargento pelo registro de Curitiba, mas
na condição de fiador da tropa de um tal Manuel de Souza Teixeira, que levava

35
Segue a listagem dos consultados: Manuel de Lima Veiga, Domingos Martins, Domingos Gomes
Ribeiro, Lucas Fernandes da Costa, Antonio Simões e Manuel Francisco da Costa.
36
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977 pg. 234. Grifo
nosso.
37
idem. pg. 235.
38
Cód. 104. Vol. 11. pg. 75. Arquivo Nacional.
106

duzentos cavalos.39 Logo em seguida ele passava no registro de Sorocaba,


juntamente com Souza Teixeira e seus duzentos cavalos. Mas neste momento,
além dos duzentos cavalos passaram mais três tropas conduzidas por aqueles
condutores, com os valores respectivos de 227$500, 268$040 e 116$250 réis,
demonstrando que os animais que ambos conduziam eram muitos mais, mas
sem discriminar as espécies40. O problema fica na perda das fontes do registro
de Curitiba, pois todos os animais que passaram em Sorocaba também vinham
do registro curitibano, com despacho deste.
A divisão dos animais em quatro tropas pode ter sido uma forma de
negociação feita com os administradores do registro, já que apenas duas (uma
de cada) passaram sem dívidas, sendo que as demais passaram com promessa
de pagamento, a qual deve ter sido paga, pois em 1801, numa lista dos
devedores do registro, nenhum dos dois constava como devedor.41 Percebe-se
claramente que Macedo Leite e Souza Teixeira aproveitaram sua viagem ao
serviço Real para também comprarem gados para si ou para venda.
O caso de Macedo Leite, ainda que próximo dos anteriormente citados,
guarda profundas diferenças. Primeiramente o número de animais, bem abaixo
dos praticados na década de 1750. O dito Sargento comprara gado no Rio
Grande (e não nos domínios espanhóis) e o fizera a pedido das tropas lusas
estabelecidas em São Paulo, ainda que aproveitasse para comprar mais algum
gado. Há uma enormidade documental a ser examinada pelos historiadores e
que trata dos registros de Curitiba e Sorocaba42. Esta documentação é
basicamente contábil, tratando dos negócios feitos com cada um dos tropeiros
que passaram naqueles estabelecimentos de fisco.
Como dissemos, após a década de 1750 fica mais difícil detectar a
presença de negociantes de longa distância, que se deslocassem do rio da Prata
para as Minas. Não afirmamos isso apenas por uma constatação empírica. Há
uma explicação para isso que possui relação direta com atuação dos Coroas
ibéricas em seus domínios. A partir de 1761, o ingresso de animais dos domínios

39
II – 35, 25, 62. Bilhete nº 1166. Biblioteca Nacional.
40
Relação das guias do Registro de Sorocaba. II – 35, 25, 25-27. Biblioteca Nacional.
41
Relação dos devedores da Casa Doada e conta das importâncias que recebeu no Registro de Curitiba
(1800-1801). Biblioteca Nacional. II - 35,25,47.
42
II – 35, 25, 25-27, II – 35, 25, 5; II – 35, 25, 63 são exemplos destes documentos.
107

espanhóis para os domínios lusos passa a ser proibido. Ainda assim, tal
comércio tem continuidade. Importantes mudanças ocorreram, tornando mais
arriscadas as iniciativas de conduzir animais de um extremo a outro. Por outro
lado, uma nova possibilidade de circulação através de um mercado
fragmentado, com revezamento de negociantes, toma forma predominante,
dando espaço para a atuação saliente das elites das diversas localidades que
compõem o trajeto. Os gados seguem circulando dos domínios espanhóis para a
região das minas portuguesas, mas com articulações sociais distintas das
anteriores, ainda que igualmente refinadas.
Quando falamos de um mercado fragmentado nos referimos a
participação de diversos “intermediários” que estariam no caminho que separa o
núcleo produtor do centro consumidor. No caso dos grandes comerciantes,
como Vila Lobos, apenas um sujeito fazia esta ligação. Através da ação
fragmentada destes intermediários, os animais eram conduzidos do rio da Prata
para Sorocaba e região das Minas. Esta prática, contudo, não se iniciara a partir
de 1750, mas já era desenvolvida paralelamente, como um artifício de
comercialização de gado para aqueles que não dispunham de recursos para fazer
viagens longas.
108

O início do contrabando

1761: o Rei de Portugal decidira proibir a existência de mulas em seus


territórios na América. Havia muitos anos que criadores da Bahia, Pernambuco,
Piauí e Maranhão se queixavam da introdução das bestas vindas dos domínios
espanhóis do Prata. Sua Majestade julgou que era melhor acabar com elas de
vez. Indignados com a decisão régia, muitos vassalos, especialmente do Rio
Grande de São Pedro, solicitaram uma revisão das medidas, afirmando que
viviam e dependiam da criação daquelas bestas muares e que a tal decisão só
viria prejudicar os seus negócios, bem como os interesses da Fazenda Real. Em
dezembro de 1764 o Rei facultava a criação das bestas muares, mas mantinha a
proibição para o ingresso das mulas espanholas, que deveriam ser
exterminadas.43
Passava então a ser considerado “contrabando”, ou seja, ilícito, o
comércio de muares entre os domínios lusos e espanhóis na América, passível
de apreensão e punição pecuniária. “Passível” é com certeza a palavra mais
adequada, na medida que nem sempre estes ingressos de animais dos domínios
espanhóis eram interditados. Percebemos algumas formas de que se valeram
súditos espanhóis e portugueses para dar continuidade aos seus negócios e, a
despeito da nova legislação, continuar comerciando animais de distintas
espécies. Trata-se de demonstrar a permanência do mercado, e os subterfúgios
utilizados para tanto.
É importante ter em mente a diferença que existe entre as pretensões de
uma legislação e aquilo que é realmente apropriado e praticado pelos homens,
os quais a lei tenta disciplinar. Não propomos que a legislação tenha
transformado as relações sociais que se davam no rio da Prata colonial.
Tampouco queremos percebê-la sem nenhum impacto. Tal legislação investiu
de autoridade determinados oficiais, encarregados do controle destes
contrabandos. Essa relação de poder tornou-se, nas mãos de determinados
grupos, um instrumento de definição do que era ou não passível de apreensão e
em última instância, do que era ou não contrabando.

43
F1243, 5v-6. AHRS.
109

Os Fornecedores

Chamaremos de fornecedores àqueles que, dispondo de gado ou couro


obtidos nos domínios espanhóis, os passavam aos portugueses e outros
interessados estabelecidos no Rio Grande de São Pedro. Em momento algum
esta expressão é referida nos documentos que analisamos. É por nós utilizada
com o objetivo de esmiuçar mais a rota que seguiam as mercadorias. Estes
sujeitos possuíam relações muito próximas com os negociantes portugueses. O
que os diferencia, contudo, é sua especialização na tarefa de produzir ou,
principalmente, captar mercadorias de diferentes produtores. Tais agentes
encontravam-se espalhados nos territórios que os espanhóis chamavam de
Banda Oriental, ou seja, seus domínios a leste do Rio da Prata. Não parece haver
nenhuma identidade entre os homens que se dedicavam a este trabalho, salvo,
evidentemente, os pertencentes ao grupo indígena minuano, habituais
fornecedores de animais aos portugueses.

“aquellos semibárbaros colonos”: os espanhóis da banda oriental44

De todas as coisas que impressionaram Concolorcorvo45 quando de sua


passagem por Montevideo, a presença dos “gaudérios” foi das mais
comentadas. Segundo o autor, eram rapazes que viviam em um modo muito
selvagem, com freqüentes incursões ao campo para capturar bois e vacas,
ficando a maior parte do tempo em ocupações pouco recomendáveis. A banda
oriental, todavia, possuía uma diversidade econômica muito maior. Mantinha
uma vasta produção pecuária e tritícola,46 além de ser uma área de forte
presença de imigrantes, fossem os “Canários”, vindos das ilhas, famílias de
Buenos Aires e, em grande medida por sujeitos vindos de Corrientes, Paraguay,

44
CONCOLORCORVO. op cit. pg. 33
45
Viajante de Cuzco que percorreu o caminho entre Montevideo e Lima.
46
GELMAN, Jorge. Sobre esclavos, peones, gauchos y campesinos: el trabajo y los
trabajadores en una estancia colonial rioplatense. IN: Santamaria, D. Estructuras sociales y
mentalidades en América Latina. Siglo XVII y XVIII. Buenos Aires: Biblos, v. 1990.
GELMAN, Jorge. Campesinos y estancieros. Buenos Aires: Editorial Los Libros del Riel,
1998.
110

Santiago del Estero e Córdoba,47 áreas de onde havia constantes fugas


populacionais em busca de trabalho.48 Certamente uma das maiores produções
era de couros, o que foi percebido por Concolorcorvo em 1773:

“El principal renglón de que sacan dinero los hacendados es el de los


cueros de toros, novillos y vacas [...] Por el número de cueros que se
embarcan para España no se pueden inferir las grandes matanzas que se
hacen en Montevideo y sus contornos, y en las cercanías de Buenos Aires,
porque se debe entrar en cuenta las grandes porciones que
ocultamente salen para Portugal y la multitud que se gasta en el
país.”49

O viajante aponta um dos principais gêneros contrabandeados entre


espanhóis e lusos: o couro, que certamente não era o único. As bestas muares
também tinham um importante espaço neste contrabando. O contrabando de
couro era proibido pelas autoridades espanholas e por elas perseguido com
vigor. Com os muares era um pouco diferente.
Quase que paralelamente à proibição do ingresso de mulas dos domínios
espanhóis se dá o avanço do Império espanhol sobre terras ocupadas por
portugueses e pretendidas pelo Império luso. A primeira legislação sobre o
ingresso de muares é de 1761, sendo corrigida em 1764. A chamada “invasão”
das tropas espanholas ocorre em 1763. Por motivos cronológicos e por outros
que vamos apresentar, defendemos que não há nenhuma relação entre a invasão
espanhola e a proibição. Tal embargo se dá em um momento de relativa paz
entre os dois impérios e por motivos basicamente econômicos.
Com a ocupação espanhola em 1763, a chamada “Banda Oriental” estava
estendida até a vila de Rio Grande, que fora igualmente ocupada pelos
espanhóis. Para este período possuímos evidências do contrabando. Este se
mantém durante toda a ocupação e continua existindo depois da retomada lusa
destas terras, em 1777.
O processo de demarcação dos limites que se iniciou logo após o fim do
conflito contou com a participação de importantes sábios a serviço das duas
47
APOLANT, J. A. Padrones Olvidados de Montevideo del siglo XVIII. v. I y II. Separata del “Boletín
Histórico del Estado Mayor del Ejercito, no 104-105 y no 106-107. Montevideo: Imprenta Letras, 1966.
48
FARBERMAN, Judith. De las "provincias de arriba". Labradores y jornaleros del interior en la
campaña porteña (1726-1815). XVI Jornadas de História Economica. Quilmes. 1998..
49
CONCOLORCORVO. op cit. pg. 31.
111

Coroas. Podemos destacar neste momento dois destes demarcadores. Andrés de


Oyarvide, pelo lado espanhol e José de Saldanha, pelo lado português. Ambos
fizeram observações sobre o estado dos campos que estavam sendo divididos, e
sobre os sujeitos que ali habitavam. Como resultado disso, dispomos de algumas
notas relevantes sobres os indivíduos que forneciam gados e couros aos
portugueses do Rio Grande. Talvez estes sejam os documentos mais detalhados
sobre este comércio. Afora isso, contamos com algumas parcas referências à
perseguição dos delinqüentes pelas autoridades coloniais.
Ao chegar nas proximidades do Rio Cebollatí (nordeste do atual
Uruguay), o demarcador apontou que naquelas terras havia muitos
“changadores, nombre que dan a las gentes que se emplean en estas faenas de
matanza de reses [...] hacen sus cueros y tratan con los Portugueses del Rio
Grande, que se los compran a cambio de bebidas, tabaco negro y algunas
ropas”50 Adiante no texto, o autor explica que os ditos “changadores” levavam os
couros em cargueiros até o rio Cebollatí, seguindo em canoas até o rio Grande.
Talvez este fosse o caminho que fazia o “espanhol Pepe”51, citado por muitas
testemunhas em duas devassas instauradas no Rio Grande de São Pedro, uma
em 1784 e outra em 1787.
Pepe devia ser muito popular entre os portugueses. Fora citado como
notório contrabandista em 178452. Três anos depois, fora novamente apontado
por sete dos vinte e um depoentes de uma devassa. Em 1784, a testemunha João
Coutinho de Amorim53 disse que Pepe havia trazido uma carga de couros em
uma grande canoa, pela Lagoa Mirim, até a vila de Rio Grande. Seu depoimento
envolvia ainda dois negociantes da vila do Rio Grande, Domingos Rodrigues e
Manuel Rodrigues Lima, sobre os quais pouco sabemos. Pepe teria alugado a
canoa para fazer contrabando que fora apreendido pelo depoente. Ainda assim,
algum tempo depois Pepe agira novamente. Desta vez levava “a carga de
quatorze rolos de tabaco de fumo e alguma porção de biscoito” em uma canoa

50
OYARVIDE, Andrés de. Diario de demarcación. IN: CALVO, Carlos. Recueil Historique Complet
des traités. Paris, 1866 t. VIII, pg. 1.
51
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327v.
52
Depoimento de João Coutinho de Amorim. Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo
Nacional.
53
ibidem.
112

de quatro remos, que fora igualmente apreendida, desta vez no “Sangradouro”54


da Lagoa Mirim.
Na devassa de 1787, Pepe foi melhor apresentado. Sabemos algo sobre o
que Pepe levava, e como. Mas com quem negociava? Nicolau Cosme dos Reis,
negociante da vila do Rio Grande, nos dá algumas pistas:

“... sabe por lhe dizer o espanhol Pepe que o coronel Rafael Pinto Bandeira
lhe tinha vendido uma canoa mas que não sabe por que preço nem se o
ajuste foi feito para ser paga a dinheiro, ou em couros, e que sabe que o
dito espanhol Pepe conduzia publicamente para esta vila couros da
campanha embarcados em canoas.”55

Tal espanhol mantinha negócios com o coronel Rafael Pinto Bandeira,


que ao tempo da devassa já havia ocupado o cargo de governador interino e era
comandante da “Cavalaria Ligeira”. Interessante notar que fora o próprio Pepe
que contara o negócio que fizera ao negociante Nicolau Cosme dos Reis, ainda
que não falasse sobre o pagamento. Na denúncia que originou a devassa,
Manuel José de Alencastre dizia que Rafael teria vendido a canoa a Pepe em
troca de quinhentos couros.56 A testemunha José Vieira da Cunha confirmou a
forma de pagamento, ainda que não soubesse o número exato de couros.57
Retornemos com o demarcador Oyarvide. Durante toda a narrativa,
percebe-se um profundo desprezo do cronista pelos “changadores”. Para
Oyarvide, estes sujeitos eram criminosos não apenas pelas atrocidades que
cometiam freqüentemente, como assassinatos e desordens. Eles estariam
dizimando os depósitos de gado espanhóis e os passando aos portugueses de
modo muito prejudicial aos interesses de Sua Majestade Católica. Um outro
demarcador, Félix de Azara, concordaria com a imagem de indecência que
Oyarvide tinha daquelas gentes. Todavia, ao contrário deste último, Azara era
muito favorável à idéia de “legalização” destes escusos negócios, chegando a
propor a realização de feiras de produtos espanhóis (especialmente as mulas,
mas também de derivados do gado) junto às fronteiras portuguesas. Azara

54
Refere-se ao atual canal de São Gonçalo, que liga a Lagoa Mirim à Lagoa dos Patos.
55
Depoimento de Nicolau Cosme dos Reis. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 337v. Arquivo
Nacional.
56
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
57
Devassa de 1787. Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v.
Arquivo Nacional.
113

percebia o potencial deste negócio, e achava que poderia render bons tributos às
Coroas.58
Saindo das proximidades do rio Cebollatí, Oyarvide tomou o caminho de
Santa Tecla, na direção noroeste. Ali também encontro os “changadores”, assim
como índios minuano, que faziam “correrías”59 para obtenção de gados,
“...para conducirlos hacia la parte de Portugal...”.60 Neste sentido, Oyarvide
distingue toda uma área que seria de ação de lusos e castelhanos, e que envolvia
a especial ação de contrabandistas, de gente que fazia do trato ilícito seu
principal meio de vida. Certamente o demarcador não fora o único a reparar
nestes sujeitos. Em 1785 o vice-reino do Prata procedia contra “varios reos
changadores”, por crimes contra a propriedade. Este homens haviam roubado
couros, com o agravante de que “los introducían en Brasil”.61
Oyarvide não ficou apenas nos territórios espanhóis que ajudara a
demarcar. Andou também nas proximidades da Lagoa Mirim, onde, frente a
estância do coronel Rafael Pinto Bandeira, fez uma interessante observação. Os
cavalos do coronel possuíam “...la marca de los vecinos españoles de
Corrientes, Santa Fe y Montevideo.”62 Isso poderia muito bem ser uma calunia
de um militar espanhol contra um oficial português. Mas, considerando as
referências que temos dos negócios de Rafael Pinto Bandeira, podemos afirmar
que Oyarvide não estava inventando, nem mesmo exagerando. Afora os
relacionamentos com os minuano e os já mencionados negócios com o espanhol
Pepe, Rafael Pinto Bandeira mantinha uma rotina de tratos com os súditos
espanhóis.
Seguindo os rastros de uns contrabandistas, o furriel de Dragões Antonio
Pinto da Fontoura andou próximo a uma das propriedades de Rafael Pinto
Bandeira, quando se topou com um espanhol que dali saia. Ao vê-lo, o dito
furriel lhe interrogou sobre o que fazia por ali. Ao que o espanhol “...lhe
respondera que viera buscar alguns víveres para o acampamento espanhol

58
AZARA, Félix de. Memória Rural do Rio da Prata. IN: FREITAS, Décio. O Capitalismo Pastoril.
Porto Alegre: EST - SLB, 1980
59
Expedições de caça ao gado xucro.
60
OYARVIDE. op cit. t. VIII. pg. 191.
61
Legajo. 28. Expte. 21. AGN.
62
OYARVIDE. op cit. t. VII. pg. 186.
114

que então se achava no Arroio das Pedras...”.63 Este mesmo espanhol teria dito
ao furriel:

“...que naquela mesma ocasião saia outro espanhol por nome D. Pedro, o
qual levava alguns escravos pertencentes ao dito coronel Rafael Pinto
Bandeira, mas que não sabia se o dito espanhol D. Pedro os havia
comprado ao dito coronel Bandeira ou se os levava por conta do mesmo
coronel...” 64

Este relato nos evidencia as articulações que Rafael Pinto Bandeira


mantinha junto a grupos da banda oriental, possivelmente os “changadores”. É
provável inclusive que o referido “D. Pedro” se tratasse de Pedro Ansnategui,
também conhecido como “Don Pedrito”, citado como um dos maiores
“changadores” da Banda Oriental, em 1790.65
Da devassa de 1787 mais dois testemunhos confirmam estas relações de
Rafael. Antonio José de Feijó declarou que ele mesmo tinha visto, por várias
vezes, o ingresso de animais da campanha espanhola na Estância do Pavão, de
propriedade de Rafael Pinto Bandeira.66 A mesma testemunha dizia que um
soldado desertor, de nome Francisco Pinto, freqüentava a casa do coronel Rafael
Pinto Bandeira, indo e vindo dos domínios espanhóis. Na mesma devassa José
Antunes da Porciúncula confirma este fato, dizendo ainda que o dito desertor
levava cartas de espanhóis para os portugueses, ainda que não soubesse para
quem eram dirigidas.67
Rafael não obtinha o que queria apenas por meios pacíficos, ainda que
ilícitos. Enquanto duraram os conflitos, especialmente entre 1773 e 1776,
quando Rafael era comandante das tropas portuguesas na guerra aos espanhóis,
foram feitas sobre sua ordem muitas “arreadas” e saques às povoações
espanholas. Tais fatos foram narrados por vários participantes destas ações
violentas, que obtinham centenas, quando não milhares de cabeças de gado

63
Depoimento de Antonio Pinto da Fontoura. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 338v. Arquivo
Nacional.
64
Idem.
65
Informe de Don Manuel Cipriano Melo sobre la otra banda, límites, fuertes y guardias. Buenos Aires,
16 de julio de 1790. IN: CALVO, Carlos. APUD: CONI. op cit. pg. 175.
66
Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional.
67
Depoimento de José Antunes da Porciúncula. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 331v. Arquivo
Nacional
115

vacum, muar e cavalar.68 Destas ações, uma comandada por Bernardo Antunes
Maciel, cabo de cavalaria ligeira, teve especial destaque. Segundo Oyarvide,
Bernardo era conhecido pelos espanhóis com Bernardillo, e fora líder de um
grupo de peões, sendo depois contratado pelos portugueses como vaqueano,
chegando a cavalaria ligeira, onde fora até o posto de Tenente.69

Os “Infiéis” Minuano

Há relatos de negócios entre portugueses e minuano desde o início do


século XVIII. Este grupo indígena ocupava terras entre o Chui e o rio Uruguai.
Com o avançar dos ibéricos, acabaram se concentrando junto à desembocadura
do rio Ibicui, um afluente do Rio Uruguai.70 Os portugueses da Laguna, em
especial o grupo familiar de Brito Peixoto já mantinham fortes relacionamentos
com os minuano, durante os anos 1720.71 Estes relacionamentos provavelmente
se mantiveram dentro da família, principalmente na ramificação Pinto
Bandeira. Entre a década de 1760 e a de 1780, a família Pinto Bandeira teve
acesso privilegiado no contato com estes indígenas, que eram ativos agentes na
negociação de gados e artefatos derivados da animália. Mais do que qualquer
outro ramo derivado da família Brito Peixoto, os Pinto Bandeira souberam
muito bem como reproduzir e capitalizar os laços criados com este grupo
autóctone.
Estes relacionamentos foram substantivos para o acesso dos portugueses
a esfera de economia praticada pelos minuano. Esta esfera estava basicamente
ancorada na preia do gado. Desde que começaram a se formar grandes manadas
de gado selvagem em seus territórios, os minuano passaram a realizar
procedimentos de caça e coleta destes mamíferos, desenvolvendo técnicas

68
Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael Pinto Bandeira. IN:
Revista do Museu e Archivo Público do Rio Grande do Sul. Nº 23. MAPRGS/Livraria do Globo,
1930. pg. 77, 83.
69
OYARVIDE. op cit. t. VII. pg. 341.
70
Mapa do Terreno ocupado pelos Portugueses. IN: MINISTERIO DE EDUCACIÓN, CULTURA Y
DEPORTE – ESPAÑA. Las Relaciones Luso Españolas en Brasil durante los siglos XVI al XVIII.
2001.
71
FORTES, João Borges. Rio Grande de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941.
116

bastante refinadas. O uso do cavalo, animal exótico na América, foi rapidamente


adotado pelos minuano.72
Boa parte das presas dos minuano, não era, contudo, fruto de caça a
animais selvagens. Com o aumento das povoações espanholas no rio da Prata e
com o estabelecimento de grandes criações de animais, os minuano passaram a
valer-se destas reservas, segundo nos falam as continuas queixas dos
estancieiros espanhóis durante todo o século XVIII.73 Também o demarcador
Oyarvide reparou nestas atividades. Segundo ele, a dizimação dos gados na
Banda Oriental se dava “...por las correrías que hacen en ellos los dicho
Minuano y changadores incesantemente para conducirlos hacia la parte de
Portugal...”74 Neste sentido, o demarcador aponta não apenas a atividade, mas
igualmente o envolvimento de grupos de mestiços, espanhóis e indígenas,
articulados em uma atividade produtiva bastante organizada, já que tinha, no
mínimo, um comprador certo. Acreditamos que Emilio Coni seja quem melhor
percebeu a pluralidade de etnias e categorias sociais atuando na preia do gado e
no contrabando neste espaço.75 Mesmo fazendo um juízo de valor exacerbado
destes sujeitos, Coni aponta com pertinência os relacionamentos étnicos que
marcavam o seu cotidiano.
Ainda que houvesse esta grande disseminação de relacionamentos
étnicos, não há dúvida que o grupo indígena minuano garantiu uma certa
identidade, pelo menos até o final do século XVIII, quando o astrônomo de Sua
Majestade, José de Saldanha, topou com eles numa das expedições de
demarcação dos limites.
Foi numa quarta-feira, 14 de março de 1787. Neste dia os minuano
visitaram o acampamento dos demarcadores, que estava próximo a suas terras.
Saldanha dedicou várias páginas de seu diário para falar dos visitantes,
demonstrando grande erudição ao fazê-lo. Partia de pressupostos de Lineu76

72
SALDANHA. op cit.
73
Real Cédula al governador de Buenos Aires. Aranujuez, 18 de mayo de 1772. Copia em Campaña del
Brasil, t. I, pg. 477. APUD: CONI, Emilio. El Gaucho. Argentina, Brasil, Uruguai. Buenos Aires:
Ediciones Solar, 1942. pg. 97.
74
OYARVIDE. t. VIII. pg. 191. APUD: CONI. op cit. pg. 169.
75
CONI. Op cit.
76
Lineu publicou em 1758 a obra de que Saldanha se utiliza. Consultado no Site:
http://www.utad.pt/~origins/Menusgerais/Biografias/lineu.html. em 20-11-2002.
117

para tentar entender os indígenas e descrevê-los da melhor maneira possível. De


toda a narrativa, extraímos algumas informações que podem contribuir para
entender a participação minuano nos negócios de gado que estamos
observando.
Segundo Saldanha, havia entre os minuano grande consumo de tabaco
em rolo e aguardente. Tais produtos eram obtidos junto aos colonos
portugueses, que faziam numerosos negócios nas imediações. Em troca, os
Minuano ofereciam animais e produtos artesanais. Ainda que os minuano
preferissem ser regalados com o que precisavam...

“...em necessidade fazem as suas viagens, a algumas das Povoações


meridionais de Missões, ou à Guarda de São Martinho, ou finalmente às
Estâncias Portuguesas, e Fronteira do Rio Pardo conduzindo alguns
cavalos dos apanhados no campo pares de Bolas e Caiapis novos para
trocarem por erva mate, panos de algodão facas flamengas, tabaco de
fumo, aguardente ou alguns freios.”77

O astrônomo ressalta a vinculação dos minuano aos portugueses. De fato


podemos perceber que as relações travadas por estes indígenas privilegiavam os
conquistadores lusos. Isso significou, em vários momentos, um rompimento
declarado com os espanhóis, dando margem para inúmeros conflitos bélicos. O
próprio Saldanha observou:

“Vivem os minuano em um estado propriamente Livre, entre os Espanhóis


e Portugueses [...] Contudo ou pelas dádivas que com mais franqueza
encontram nos Portugueses, ou por outra qualquer causa pende mais a sua
inclinação para esta Nação.”

Saldanha percebia com perspicácia quais eram os motivos desta


“inclinação” dos minuano. A prática do dom e contra-dom78 era familiar ao
cotidiano tanto dos portugueses quanto dos minuano. Havia, além disso, um
profundo interesse entre os “maiorais” de ambas as sociedades de guardar
vínculos mais efetivos entre dois grupos. Exemplo disso foi o casamento de
Rafael Pinto Bandeira com a filha do cacique Miguel Carai, Bárbara Vitória, em

77
SALDANHA. op cit. pg. 235.
78
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádica. Forma e razão da troca nas sociedades arcáicas. São
Paulo: EPU/EdUSP, .
118

1761.79 Estes relacionamentos se mantiveram e ganharam força durante os


conflitos entre lusos e espanhóis na década de 1770.80
A guerra serviu não apenas para fortalecer aqueles laços existentes, mas
para fazer girar, com força, aquela economia baseada na preia do gado e na sua
saída pelo lado português. Esta atividade predatória, que muitas vezes tinha por
alvo estâncias espanholas, era estimulada pelas autoridades lusas. Em carta a
Rafael Pinto Bandeira (que sempre agia na mediação com os minuano) o
general luso João Henrique de Böhm afirmava a aceitação dos minuano sob a
obediência do rei, esperando que fizessem todo tipo de hostilidade e ruína aos
inimigos espanhóis. Böhm ainda avisava que “...se lhes comprará tudo o que
trouxerem pelo seu justo preço, afim de os ter contentes e satisfeitos por todo o
modo.”81 Tal política lusa teve sucesso. Em maio de 1785 um cacique espanhol
escrevia para Rafael Pinto Bandeira informando de sua intenção de passar suas
famílias e animais para os domínios portugueses.82
Dizia o cacique “Dom Bartolomeu” que os espanhóis os tinham
convidado para se chegar a Montevideo, e que lhes dariam tudo que desejassem.
Todavia, havia escrito aos lusos pois não queriam saber dos espanhóis, e
queriam ser súditos do Rei português. Ao saber disso, o Vice-rei interrogou a
Rafael Pinto Bandeira que checasse quantos e quais eram os gados que trariam
os minuano, e quantas pessoas viriam como súditos. Rafael consultou a seu
sogro, o também cacique Dom Miguel, que lhe informou sobre o ocorrido:

“...respondeu sumário o cacique Dom Miguel, dizendo que o cacique Dom


Bartolo, que solicitou a passagem, tinha sido destroçado presentemente
pelos espanhóis e vendo-se sem gente, fora incorporar-se a outros caciques
em Japejú: que ele Dom Miguel ia também ter com aqueles caciques...”83

Tanto os minuano como portugueses perceberam formas convenientes de


ação que decorreriam da manutenção destas relações.

79
SILVA. Op cit.
80
RMAPRGS. pg. 115, 124, 175.
81
RMAPRGS. pg. 177
82
RMAPRGS. pg. 497.
83
RMAPRGS. pg. 499. nota nº 54. Japejú era uma localidade que ficava próxima a desembocadura do
Rio Ibicui.
119

Outras notícias da Banda Oriental...


Um documento anônimo sobre o estado da Banda Oriental nos últimos
anos do século XVIII pode nos servir de último guia sobre os “fornecedores”.84
Trata-se de uma notícia dada ao Vice-rei de Buenos Aires. Pretende-se uma
descrição circunstanciada da produção da Banda Oriental e de seus homens.
Inicia dividindo estes últimos em quatro tipos: os estancieiros, que eram
divididos entre ricos e pobres; os peões (também conhecidos como “gauchos”
ou “changadores”); os índios missioneiros e os portugueses. Todos estes
viveriam do gado, ainda que cada qual tratasse com este fruto de modo
diferente. Ao analisar este documento, observamos apenas os modos “ilícitos”
de trato do gado.
Segundo o incógnito autor, os peões poderiam se dividir entre os
jornaleiros, que trabalhavam nos rodeios das estâncias, ou os “...changadores,
que viven del contrabando y de robar ganado y hacen faenas...”.85 Sua ação
estaria basicamente ancorada no negócio dos couros como principal produto da
terra. A venda clandestina deste couro aos portugueses seria na mesma
dimensão da que se fazia licitamente no porto de Montevideo, isso pela cobiça
dos “changadores” que queriam dar rápida saída a baixos custos. Neste sentido,
percebe-se ai uma primeira opção econômica, relativa ao corte de custos no
negócio. Realizando a operação clandestina, os negociantes de couro estariam se
livrando dos impostos coloniais espanhóis. Este encargo seria repassado aos
portugueses, ou melhor, poderia ser novamente burlado pelos portugueses
através de outras estratégias.
Na seqüência do texto é apresentada uma explicação sobre os próprios
“changadores”. O recrutamento de homens para este trabalho seria amplo,
reunindo, entre outros, desertores, marinheiros abandonados e naturais da
terra. Além disso, fica explicita uma distinção que o autor faz entre os donos do
negócio de couros e seus peões: “...unos emprenden las faenas, y los otros las
ejecutan en calidad de ayudantes. Los changadores faenan para hacer
comercio de los cueros con los Españoles o con los Portugueses y el peón

84
Dos noticias sobre el estado de los campos de la Banda Oriental al finalizar el siglo XVIII. IN: Revista
Histórica. Tomo XVIII – nº 52-54. Año XLVII. Montevideo.
85
Idem. pg. 346.
120

trabaja por su jornal.” 86 Desta forma obtemos outro quadro. Ainda que o autor
sugira ao longo do texto que esta atividade é bastante informal e ocasional,
percebe-se a sua complexidade. Há a presença de um negociante que agrega a
vários homens como força de trabalho e que se vale da possibilidade de
comerciar clandestinamente seu produto como forma de obter maiores ganhos.
De fato, não pudemos, através dos documentos que consultamos, verificar a
posição social destes “senhores” do negócio clandestino do couro. Mas é possível
que tais sujeitos estivessem associados à elite de Montevideo e mesmo de
Buenos Aires, dada sua capacidade de recrutar grande número de homens e de
arcar com as perdas relativas a um negócio clandestino. No mínimo,
necessitavam de cacife para evitar apreensões de suas mercadorias.
Ao falar destes “changadores” e dos indígenas da banda oriental, o autor
deste documento não faz nenhuma menção aos minuano. Trata (e nisso é um
dos poucos) da atuação dos indígenas missioneiros guarani no trato com o
couro, ainda que nunca os relacione com a atividade de contrabando. Segundo
ele, os guaranis coureavam para sua comunidade e vendiam o produto nas
aduanas oficiais do Império espanhol. Não sabemos até que ponto isso é
concreto, pois só temos este registro sobre o tema. Todavia, a ausência de
qualquer referência aos minuano é bastante suspeita, pela recorrência comum
da presença daqueles indígenas em outros testemunhos. A participação guarani
nestes negócios esta ainda para ser estudada, pois os documentos que obtemos
não nos dão nenhuma indicação mais concreta.
O documento ratifica a presença maciça de lusos atuando no
contrabando, ao lado dos “changadores”: “...llevando cueros y trayendo
generos, este contrabando es la peor cuchilla de nuestros ganados [...] los
hacendados, los perros y la falta de pastoreo no hacen tanto estrago como el
que nos causan los changadores en el comercio con los portugueses...”87 O
próprio documento procura explicar os motivos que faziam crescer estas
negociações. Por um lado, os produtores de couro não pagavam impostos por
sua produção, repassando para os portugueses que pagariam (hipoteticamente)
menos imposto que os negociantes espanhóis. As “alcabalas” correspondiam a

86
Idem. pg. 362.
87
Idem. pg. 365.
121

25% do valor das mercadorias, enquanto nos domínios portugueses valia o


“quinto” real, ou seja, 20% daquele valor. O autor de tal narrativa se queixava,
em última instância, das perdas de arrecadação de que a Coroa espanhola era
vítima, além da dizimação dos gados “depositados” naquelas vastas campanhas.
CAPÍTULO 4
A PRODUÇÃO SOCIAL DA MERCADORIA

Topar-se com uma tropa de animais ou com uma embarcação carregada


de couros pode ser algo absolutamente inócuo. Poderia fazer-se a pergunta: o
que leva este tropeiro ou este barqueiro? Alguém responderia que leva,
simplesmente, couros ou gados. Mas quando a passagem de couros e gado é
proibida, alguém poderia dizer que se trata de contrabando. É, certamente, uma
questão de olhar. Mas um olhar socialmente determinado e filtrado pelas
relações sociais de cada período. Levar gado de Viamão para Curitiba é
simplesmente tropear. Levar o mesmo gado, por exemplo, de Montevideo para
Rio Grande é algo que, em determinado tempo, poderia ser descrito como
contrabando. Certos homens dominavam uma técnica muito refinada de
transformar contrabando em gado e couro. Outros, menos afortunados, ainda
que levassem as mesmas mercadorias, não passavam de meros contrabandistas.

O bando: a “pedra filosofal” do comércio ilícito.

Em um relatório de 1784, o Vice-rei Luis de Vasconcelos e Souza dedicava


algumas páginas para falar sobre Rafael Pinto Bandeira e seus negócios na
fronteira do Rio Grande: “Contra este oficial tenho tido algumas queixas
principalmente de dar auxilio aos contrabandistas que são da sua
parcialidade e de quem tira maior interesse, fazendo frente aos mais...”1 Mas
frente ao problema, Vasconcelos admitia não saber como agir, pela necessidade
que atribuía a Rafael e os seus na defesa daquela fronteira.

1
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos, em outubro de 1784,
sobre o Rio Grande do Sul. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Ano IX. 1929. pg. 28.
123

A “parcialidade” de que falava o Vice-rei era algo maior do que certas


afinidades e alianças circunstanciais. Não se tratava apenas de fazer vista grossa
aos infratores que eram mais chegados. Havia uma “parcela” da população
daquela fronteira comprometida com negócios ilícitos, especialmente de gado e
couros, mas que passava por outras atividades ilegais, como assassinatos,
extorsões e roubos. O comprometimento de cada membro desta parcela variava
de acordo com seu lugar no grupo. Alguns eram apenas espiões ou mensageiros.
Outros eram condutores de gado. Outros, ainda, cuidavam de ocultar as provas
e, eventualmente, silenciar as testemunhas. Este grupo, essencialmente
vinculado ao comando de Rafael Pinto Bandeira, era formado por sujeitos de
todos os estratos sociais, num corte vertical daquela sociedade.
No momento em que o Vice-rei Vasconcelos dizia aquelas palavras, o
grupo de Rafael já estava bastante consolidado. A guerra de reconquista dos
territórios tomados pelos espanhóis fora fundamental para sua ascensão.
Rafael Pinto Bandeira poderia ser encarado como o líder de um poderoso
“bando”. Bando aqui significa uma organização de pessoas de diferentes estratos
sociais, associados através de diversos vínculos, especialmente parentais e de
reciprocidade. Neste sentido era, como dissemos, uma organização vertical
dentro da sociedade, englobando desde escravos até os chefes das melhores
famílias da terra. Tal formação foi observada em muitos trabalhos, como no
caso do Rio de Janeiro, por João Fragoso e ainda por Zacharias Moutoukias, no
caso de Buenos Aires.2
Ao contrário do que percebemos nos trabalhos referidos, não
encontramos a ocorrência de mais de um bando organizado e estabelecido
naquela fronteira. Não há dúvida de que percebemos várias tentativas de
oposição ao grupo de Rafael. Estas foram combatidas na devida ocasião, com
demonstração de vigor e força pelo grupo hegemônico. Do mesmo modo, o
referido grupo se formou ao longo do período da ocupação espanhola do Rio

2
MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires en
el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992). e FRAGOSO, João. A formação
da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos
Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
v. 2001.
124

Grande, em muito baseado na herança deixada pelo pai de Rafael, Francisco


Pinto Bandeira, que foi especialmente aperfeiçoada pelos filhos e seus aliados.
Partimos de todas as denúncias de contrabando e outros crimes
associados a este para, a partir daí, buscar as relações entre os envolvidos,
invadindo os bastidores da vida social que os compunha. Não possuíamos, a
priori, nenhum acusado. Estes foram aparecendo lentamente conforme a
pesquisa ia se desenvolvendo. O resultado revelou ligações parentais na cúpula
dos negócios de contrabando, relações de reciprocidade com os peões, soldados
e outros homens que agiam nas ações ilícitas e, finalmente, atitudes de violência
física e simbólica junto aos inimigos e eventuais concorrentes.
O processo de formação do bando incluiu o recrutamento de homens
importantes do governo e do Império Português, especialmente através de
casamentos. A cooptação de estratos sociais mais baixos, pequenos lavradores,
peões de condução de animais e marinheiros, entre outros, era feita a partir de
relações de reciprocidade estabelecidas especialmente em trabalhos sazonais,
como os combates militares contra os espanhóis.

A Formação do Bando
Vamos acompanhar o modo como o bando se fez ao longo de três
décadas, período em que alianças mantidas a partir do núcleo familiar Pinto
Bandeira se tornam mais sólidas e estáveis. Este período coincide com a
proibição do ingresso de muares dos domínios espanhóis nos territórios lusos
da América. Tal circunstância não deixaria de ter importância para o grupo, que
se forjava naquele momento.

O passado como herança.

Antes de verificar as estruturas mais gerais do bando, vamos observar a


figura daquele que assumiu, notoriamente, a posição de comando do grupo.
Tentaremos perceber de que maneira Rafael Pinto Bandeira pôde ascender a
este posto e se manter nela durante três décadas. Necessariamente teremos que
levar em conta sua posição dentro da família Pinto Bandeira e o lugar desta
família na fronteira.
125

Em meados de 1789, Rafael Pinto Bandeira escrevia à Rainha solicitando


uma mercê.3 Segundo ele, poderia ser a arrematação dos dízimos, a cobrança do
quinto dos couros ou os quintos da passagem de bestas e potros no Registro de
Santo Antônio da Serra. Justificava que sua família tinha dado do que tinha de
melhor para o serviço de Sua Majestade, com gastos e descuidos de sua fazenda
e risco de vida na conquista e luta contra os indígenas bravios e os castelhanos.
Neste documento, Rafael lembrava os feitos de seus antepassados, da família
Brita Peixoto e de seu pai, Francisco Pinto Bandeira, na conquista dos
territórios meridionais da América, desde a fundação da Laguna.4 Reivindicava,
assim, uma ancestralidade e uma identidade com os conquistadores, revelando
um conhecimento do passado surpreendente, ao relatar minuciosamente as
ações empreendidas por seus ancestrais, como uma flechada no braço de seu pai
quando em combate com os índios das missões. Esta prática se assemelha muito
ao que era feito pela elite do Rio de Janeiro do século XVII, que recordava
sempre sua origem conquistadora como razão para obtenção de mercês régias.
Este passado glorioso, sempre relembrado, dava suporte para a família
reivindicar-se como pertencente às “melhores famílias da terra”.5
Francisco Pinto Bandeira havia se destacado em vários combates ao
longo da conquista do Rio Grande de São Pedro. Teve especial atuação em
combates de submissão dos indígenas missioneiros rebelados durante a década
de 1750.6 Além disso, negociava com gado, como nos indicam alguns

3
AHU-RS. Cx. 3. Doc 326
4
Rafael Pinto Bandeira descendia de uma fração da elite de Santos que migrou com toda a estrutura
social para fundar a vila da Laguna, e depois Viamão. A migração de elites, nestas condições, era uma
regularidade na colônia, sendo percebida para várias regiões. No caso citado, ver HAMEISTER,
Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e
suas mercadorias semoventes. Rio de Janeiro: PPGHIS - UFRJ, 2002. (Dissertação de Mestrado
Inédita). Para o Rio de Janeiro, ver FRAGOSO, João Luís Ribeiro. A nobreza da República: notas
sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi. v. 1,
(2000). p. 123-152. Para Pernambuco, as observações de um coevo são também indicativas:
SALVADOR, Frei Vicente do. Historia do Brazil. IN: Anais da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Rio de
Janeiro: Leuzinger e Filhos, 1889. pg 1-261. passim.(escrito no século XVII).
5
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA,
Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2001..
6
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977. pg. 325.
também em AHU-RS. Cx. 3 Doc 326.
126

documentos da época.7 Em uma carta de 1774 do Marquês de Pombal para o


Vice-rei do Brasil, o Marquês do Lavradio, era dito que a atuação de Francisco
Pinto Bandeira era fabulosa8. Não apenas pela sua bravura frentes aos indígenas
rebelados, mas também “...contra os castelhanos, surpreendeu duas vezes os
ditos inimigos [...] lhes apanhou seis peças de artilharia [...] matou muita
gente...”. O documento ainda apontava que toda aquela valentia tinha um
herdeiro, “...seu filho e digno sucessor Rafael Pinto Bandeira, que em três de
janeiro próximo precedente destruiu o corpo castelhano comandado pelo
Capitão Dom Antônio Gomes...”.
Além das honras militares, Rafael e seus irmãos herdaram também um
patrimônio bastante significativo. O inventário de Francisco Pinto Bandeira
somava um monte-mor superior a onze contos. Destacava-se uma ativa
produção de muares e de asininos, criações que envolviam custos de produção
mais elevados que eqüinos e bovinos.9 Possuía ainda trinta e sete escravos,
espalhados pelas cinco propriedades fundiárias arroladas.10
Rafael recebeu como herança do pai e dos avós não apenas um cabedal
bastante grande, mas uma rede de relacionamentos muito organizada, onde a
família Pinto Bandeira desempenhava um papel chave. Quando do ingresso de
Rafael ao serviço Real, seu pai era o legítimo herdeiro de todos aqueles recursos:
alianças, amigos, laços de parentesco e tradição.
Se por um lado Rafael teve como legado uma complexa rede de
relacionamentos, por outro também recebeu do pai as práticas necessárias para
reproduzi-la. A prática de manutenção e construção de redes utilizada por
Rafael, baseada em prestações e contraprestações, era muito próxima da
utilizada por seu avô, Francisco de Brito Peixoto, quando enviava “mimos” para
os minuano em troca de seu apoio e amizade.11 As boas relações com os
indígenas continuaram firmes, a ponto de Rafael desposar a filha do cacique

7
Anais do Arquivo. op cit. pg. 127.
8
RMAPRGS. pg. 389.
9
HAMEISTER. op cit.
10
Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.
maço 4. APERGS.
11
FORTES, João Borges. Rio Grande de São Pedro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar - Bibliex, 1941.
Pg 14.
127

Miguel Caraí, um dos maiores líderes minuano.12 Verificamos estas relações e o


modo como os Pinto Bandeira conseguiram agregar ao seu núcleo familiar o
comando de toda uma gama de homens e expectativas.

As formas de Cooptação
Após dar voz de prisão para Rafael Pinto Bandeira13, em 1779, o
governador do Rio Grande, José Marcelino de Figueiredo, escrevia ao Vice-rei se
justificando. Dizia, entre outras coisas, que Rafael e seus parentes mantinham
um “séqüito” no Rio Grande. Isso se dava por vários motivos. Em primeiro
lugar, os aplausos que Rafael recebia por suas campanhas militares. Em
segundo, as constantes promoções e concessões de patentes que Pinto Bandeira
fazia. O último ponto dizia respeito à concessão de terras. Segundo Marcelino,
Rafael distribuíra muitas terras nas áreas conquistadas aos espanhóis na última
guerra, reservando muitas para si, sendo que uma “...tamanha com uma
província de oito léguas de largura e dez léguas de comprimento...”14.
Marcelino tinha razão. Contudo, não eram apenas estas as formas de que Rafael
se valia para montar seu séqüito.
Identificamos, grosso modo, três formas de cooptação de sujeitos para
dentro do bando: as alianças matrimoniais, a coerção extra-econômica
(violência física) e os laços de reciprocidade. Esta última forma foi dividida, para
efeito de análise, em três segmentos, a saber: as contrapartidas de guerra, as
concessões de terras e a “proteção” que os Pinto Bandeira garantiam a
determinados indivíduos. É importante ressaltar que nossa investigação partiu
das referências aos acontecimentos ilegais para, daí, identificar seus agentes.
Neste sentido, estas formas de cooptação estão estreitamente vinculadas ao
trato ilícito, ainda que não possam, em hipótese alguma, ser desvinculadas do
tecido social. Acreditamos que identificando estas formas utilizadas no jogo do
contrabando, estaremos nos aproximando das formas que eram utilizadas por
aqueles homens em todas as dimensões da vida.

12
PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1943. pg. 43.
13
Sobre a prisão de Pinto Bandeira, ler SILVA. Op cit.
14
RMAPRGS. pg. 408-409.
128

“...Os aplausos...”15

Os “aplausos” a que Marcelino se referia não eram, em si, uma forma de


cooptação. Mas certamente contribuíam para construir e aumentar o prestígio
do coronel da Cavalaria Ligeira. Antes de tomar com atento as estratégias de
cooptação, vejamos como se construiu a imagem de Rafael perante aquela
sociedade.
No inicio da contra-ofensiva lusa no rio da Prata, por volta de 1774,
Rafael começou suas atividades como comandante com êxito. Mais do que
derrotar espanhóis nas proximidades de Rio Pardo, Rafael estava ganhando o
respeito e a admiração das autoridades lusas. Estas já tinham ciência das
atividades ilegais e crimes cometidos pelos Pinto Bandeira. Alguns procuravam
encarar as acusações a Rafael como atitude de invejosos.16 De toda a maneira,
ainda que lhe fosse imputadas culpas, eram um mal menor do que seus feitos.
Uma carta endereçada ao Vice-rei, Marquês do Lavradio, de janeiro de 1774,
dizia

“...ser o dito oficial [Rafael] o primeiro que da parte meridional do Brasil se


atrevera acometer os castelhanos com forças tão desiguais e
proporcionadas: atacando, vencendo e destruindo com cento e tantos
paisanos quase seiscentos homens de tropas [...] um oficial que lhe fez [a
Sua Majestade] tão grande e tão público serviço por defeitos que sendo
sempre difíceis de provar são muitas vezes inferiores ao mesmo serviço...” 17

Um comentário interessante sobre Rafael foi feito pelo General português


João Henriques de Böhn. Só tivemos acesso a este documento por uma citação
da época. Em outro documento que comentava as ações de Rafael e o enaltecia,
foram recolhidas as impressões de Böhn:

“C´est un homme a la fleur de son age, eduqué un peu en noble tartare,


robuste, et plein de santé ; l´air ouvert, mais posé, il ne se jette a la tete de
personne ; il parle peu, mais il repond avec sprit, et franchise ; il n´aura
peut etre la fureur d´un granadier pure, ou d´un sanglier blessé; mais je
crois que c´est un homme dont la tete conduit la bras...”18

15
RMAPRGS. pg. 408.
16
AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 186, 187 e 189.
17
AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 186.
18
AHU– Brasil Limites. Cx. 3, Docs. 189. O original está em francês. Segue a versão abaixo: “É um
homem na flor da idade, educado um pouco como um nobre tártaro, robusto, e cheio de saúde;
129

Comparar Rafael a um “javali ferido”, ou pontuar seu caráter robusto, de


um homem que, sem falar muito, respondia com franqueza, eram formas de
construir uma imagem entre as autoridades ligadas à Coroa. Marcelino de
Figueiredo dizia ao Vice-rei que os aplausos a Rafael começaram em Porto
Alegre, e que o próprio Vice-rei “...lhos há de fazer continuar...” 19. Marcelino
percebia o quanto a figura de Rafael ganhava projeção no Império Português.
Toda essa imagem acabou sendo importante para dois grandes prêmios que
Rafael recebera em 1777. O primeiro fora a patente de Coronel da Cavalaria
Ligeira, e o segundo, mais importante, fora a concessão do Hábito da Ordem de
Cristo. Ao receber a carta de Lisboa, Rafael solicitou que tais benesses fossem
registradas oficialmente nos Livros da Provedoria da Fazenda.20 Se as vitórias na
fronteira repercutiam tão bem lá fora, nada melhor que fazer com que as
vitórias em Lisboa repercutissem também na fronteira. Era mais uma forma de
dar caldo à construção de sua imagem.
Da mesma forma, em 1784, o Vice-rei Luís de Vasconcelos pontuava
observações sobre Pinto Bandeira a Martinho de Melo e Castro, secretário de
Ultramar luso. Dizia que Rafael tinha envolvimento em vários negócios:
usurpava terras, aterrorizava as populações, contrabandeava mercadorias.
Ainda assim, Vasconcelos não se propunha a romper com Rafael, pois este
último “... no tempo da guerra é muito necessário naquele continente pelo
préstimo que tem de espantar os espanhóis e conhecer pela experiência
aquelas vastas campanhas que tem pisado...”.21 Vasconcelos sentiu o drama da
força que detinha Rafael e a sua imagem junto à Corte em Lisboa

“...aonde o rumor vago, e popular das suas façanhas talvez fariam maior
impressão do que as minhas informações [...] as quais sendo
participadas por quem tem obrigação de as pôr na Real Presença de S.
Majestade com a precisa imparcialidade e com a maior pureza, deviam

impetuoso, mas calmo, ele não se deixa levar pelas idéias de ninguém; ele fala pouco, mas responde
com espírito, e franqueza, ele talvez não tenha o furor de um granadeiro, ou de um javali ferido; mas
creio que é um homem ao qual a cabeça conduz o braço.”
19
RMAPRGS. pg. 408.
20
F1244. 144v. AHRS.
21
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. pg. 28.
130

ser mais bem acreditadas, de que as ficções daquele oficial, que só sabe
impor com o vasto simples conhecimento de um ...” 22

Ainda que Vasconcelos tivesse tentado investigar Rafael e seus desvios


inúmeras vezes, os aplausos de suas façanhas militares ainda ecoavam com
força em Lisboa.
O melhor ainda estava por vir. Em 1789 Rafael dirigia-se para a corte, em
fins de setembro recebia o posto de Brigadeiro de sua legião.23 Voltava depois ao
Rio Grande de São Pedro não apenas na condição de general, mas também
assumia, naquele instante, o posto interino de governador.24

Negociando medos e expectativas:


a acumulação “troglodita” (mas nem tanto).

Numa notória paráfrase da “acumulação primitiva”, definida por Marx,


falaremos da acumulação “troglodita”. Ressaltamos que se trata apenas de uma
paráfrase. A acumulação primitiva tinha este nome pelo fato de ser
historicamente prévia à acumulação capitalista.25 A acumulação “troglodita” não
antecede historicamente nenhuma outra forma de acumulação. Serve antes para
reproduzir e conservar a ordem social dentro de uma sociedade de antigo
regime, profundamente hierarquizada. Chamamos de “troglodita”, como um
trocadilho evolucionista, para ressaltar o caráter destas relações, e para
diferenciar com ênfase de qualquer semelhança com a “acumulação primitiva”,
definida por Marx. Ainda assim, uma frase de “O Capital” ilustraria com primor
o que vamos discutir: “É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira
história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em
suma, pela violência.”26
Pudemos observar, diante da documentação consultada, uma série de
referências a atos de violência praticados por membros da família Pinto

22
Relatório passado por Luis de Vasconcelos e Souza ao Conde de Rezende em agosto de 1789. APUD:
SILVA. Op cit.
23
AHU–RS. Cx. 3. Doc. 239.
24
AHU–RS. Cx. 3. Doc. 246.
25
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1978. cap. XXIV. A Chamada Acumulação
Primitiva. pg. 828.
26
Idem. pg. 829.
131

Bandeira ou por outros, a mando daqueles. Trata-se, sem dúvida, de uma


acumulação, pois agrega de modo cumulativo ao nome “Pinto Bandeira” temor e
respeito público, além de alguns bens, quando a violência envolvia furtos e
saques. Esta acumulação se manifesta através de vários atos de violência física e
simbólica. Comecemos com algumas crônicas mais gerais, para depois passar a
casos mais detalhados
Em maio de 1779, o governador do Rio Grande, Marcelino de Figueiredo,
escrevia ao Vice-rei contando o que se passava na capitania:

“O dito coronel preso [Rafael Pinto Bandeira] enredou e atemorizou de


tal sorte este povo, que se não resistiram a passar-lhe diferentes
atestações e papéis dos seus bons serviços, desinteresse e limpeza de
mãos...” 27

Talvez Marcelino tenha sido dos primeiros a reparar neste pavor público.
Os relatos de guerra, ainda que sempre lembrassem que o comando das
operações era de Rafael, não são claros sobre sua bravura pessoal. Muitas vezes
a documentação denota um certo receio de Rafael frente à possibilidade de um
ataque. O ataque de Santa Tecla, bastante documentado, pode ser exemplo
disso. Rafael desconsiderou a opinião da maioria dos oficiais, que propunham o
28
ataque “...para crédito das armas portuguesas...” por dispostos que estavam
a “...derramar até a última gota de sangue pela defesa do país e honra da
pátria...”29. Rafael optaria por desistir, inclusive do cerco que se montara, se os
espanhóis não houvessem se rendido antes.30 Não há dúvida de que havia o
reconhecimento geral de sua capacidade como comandante. Um documento de
1774, sem referência de autor, fala dos êxitos bélicos de Rafael, informando que
“...escolheu o dito capitão 300 homens daqueles de sua facção escolhidos a
ponta do laço capazes de montar o diabo se o apanhassem entre as
pernas...”.31
O próprio Vice-rei Vasconcelos e Sousa sabia do temor que Rafael
causava nas populações. Dizia ele, em 1784, ao Secretário de Estado e Ultramar

27
RMAPRGS. pg. 407-408. Grifo nosso.
28
Declaração do Capitão Carlos José da Costa. RMAPGRS. pg. 368.
29
Declaração do capitão João Batista de Carvalho. RMAPGRS. pg. 368.
30
RMAPRGS. pg. 374.
31
AHU–Brasil Limites. Cx. 3. Doc. 187. Grifo Nosso.
132

que havia grandes usurpações de terras no Rio Grande de São Pedro, sendo que
um dos envolvidos era “...o coronel Rafael Pinto Bandeira, que fazendo-se
absoluto e temido de todos em razão do autorizado posto que ocupa...”.32
No ano de 1787 houve denúncias de que Rafael estaria retirando, a base
de violência, madeiras dos matos de outros estancieiros para a construção de
umas canoas. Sobre este ponto, o governador do Rio Grande na ocasião,
Joaquim José Ribeiro da Costa, dizia ao Vice-rei que nada sabia sobre o uso de
violência para obtenção das madeiras. Apenas sabia que “...os procuradores do
dito coronel pedem aos donos dos matos que permitam retirar as madeiras, e
estes, por amizade, ou respeito, concedem a dita licença pedida.”33
De vinte e uma testemunhas de uma devassa tirada em 1787, cinco
ressaltaram o temor público que havia em relação a Rafael e sua família. Um
caso específico motivou muitas destas manifestações. Antonio de Souza de
Oliveira havia morrido e em seu testamento não declarara que tinha um filho,
por nome Jacinto Nunes de Oliveira, cuja mãe era uma mulher livre. Jacinto
tentou reverter o testamento e reivindicar parte da herança que havia sido toda
prometida a Mauricia Antonia, sobrinha do defunto. Mauricia era irmã de
Rafael Pinto Bandeira e esposa de Bernardo José Pereira. Jacinto, sem
encontrar quem o defendesse na petição, acabou sem nada, e se foi para o Rio
de Janeiro. Por este incidente mencionado nesta devassa pudemos ter alguma
aproximação dos problemas que Jacinto teve. Segundo o lavrador Antonio da
Silva Barros, Jacinto não obtivera sucesso porque teve que “...opor-se contra
um cunhado do coronel Rafael Pinto Bandeira, de quem tinham grandíssimo
temor...”34
Outra testemunha, o soldado auxiliar e lavrador Elisbão Machado de
Araújo, dissera que o problema de Jacinto fora que “...não achara quem lhe
quisesse defender a causa por todos se temerem de patrocinarem uma
causa contra o capitão Bernardo José Pereira cunhado do coronel Rafael Pinto

32
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. Op cit. pg. 28.
33
Cód. 104. Vol. 9. pg. 310. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
34
Depoimento de Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 342v. Arquivo
Nacional Grifo nosso.
133

Bandeira.”35 Já Inácio Xavier Mariano dissera que o próprio Jacinto “...se


temia por serem poderosas as pessoas com quem devia entender...”36
Também as testemunhas José de Vargas e José Garcia apontaram a causa do
fracasso de Jacinto no poder e força de coerção social que a família Pinto
Bandeira possuía.
Após receber uma denúncia de um esfaqueamento, feito ao alfaiate José
Antonio, Rafael, como comandante militar, se pusera a investigar. Logo surgiu
um culpado, que deixara, segundo se supunha, um objeto seu na cena do crime:
a bainha da espada. Tal pertence foi encontrado por um aprendiz do dito
alfaiate. O suspeito, Alexandre José da Guerra, fora preso e logo depois solto,
sendo o aprendiz acusado de mentiroso. Por esta causa, o comandante Rafael
Pinto Bandeira “...mesmo lhe deu dumas dúzias de palmatórias e o mandou
embora, dizendo que se tornasse a mentir o castigaria dobradamente...”.37 Este
caso, que nos foi narrado pelo Capitão de Ordenanças e Juiz dos Órfãos Manuel
José de Alencastre, nos indica dois aspectos dos meios de coerção empregados
por Rafael. O primeiro é a possibilidade de mandar prender e soltar os suspeitos
e acusados. Depois, Rafael, com suas próprias mãos, aplicara o corretivo no
rapaz, tido por mentiroso. Ainda que tudo isso fosse uma grande calúnia feita
pelo Capitão Alencastre, com o intuito de prejudicar a Rafael, não deveriam ser
acusações descabidas.
Outras denúncias feitas por Alencastre foram ratificadas por muitas
testemunhas da devassa feita em 1787, e dizem respeito a outros membros da
família, um irmão de Rafael, Evaristo Pinto Bandeira, e um cunhado, Custódio
Ferreira de Oliveira Guimarães.
Uma testemunha da devassa de 1787 dissera que uma partida militar,
comandada pelo alferes de Dragões Bernardo José Alves, fora fazer apreensão
de animais contrabandeados na estância de Evaristo Pinto Bandeira, mas não
conseguira completar a operação

35
Depoimento de Elisbão da Silva Araújo. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 341v. Arquivo
Nacional. Grifo nosso.
36
Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 339. Arquivo
Nacional. Grifo nosso.
37
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
134

“...por lho impedir o dito capitão Evaristo Pinto Bandeira, e que fora voz
constante ter vindo com armas ofensivas, desatendendo ao dito alferes de
Dragões com palavras pouco decentes, o que mesmo alferes sofreu em
atenção a ser aquele capitão irmão do coronel Rafael Pinto Bandeira,
comandante que era deste continente naquele tempo...” 38

Outra testemunha, Inácio Xavier Mariano, também reparara no mesmo


ato, comentando que ouvira de um tal Antonio Joaquim, conhecido seu “...que
vindo o dito capitão Evaristo em seguimento da partida a alcançara no curral
do dito Antonio Joaquim, de onde violentamente tirara os cavalos e os levara
para a sua estância...” 39
Estes não foram os únicos incidentes provocados por Evaristo. Havia
uma embarcação, pertencente a um tal Ventura Pimentel, que ficava junto ao
Passo do Rio dos Sinos, e que servia para a passagem deste rio. Evaristo tentou
utilizar-se da embarcação para chegar até Porto Alegre, em uma data que as
testemunhas não informaram. O condutor da barca tentou impedir Evaristo,
que desgostoso, “...tirando a espada deu com ela muitas pranchadas no dito
passageiro obrigando-o a vir remando na canoa até Porto Alegre...”40.
Também a testemunha Manuel José Garcia confirmou estes fatos, que foram
relatados pela mãe do espancado a Manuel José de Alencastre. Pelo que se
apresenta, a mãe teve muito mais coragem para enfrentar os Pinto Bandeira que
o pai. Ela teria dito a Alencastre que “...se ali estivesse seu marido Ventura
Pimentel também o faria ir remando...” 41 Na devassa, o pai, Ventura Pimentel,
negara até o fim que todas aquelas coisas tivessem acontecido. É provável que
ele remasse mesmo. A esposa de Ventura conhecia o marido e também a força
dos Pinto Bandeira.
Além destas atitudes, também era imputado a Evaristo o cativeiro que
impusera a um escravo alheio, que havia sido emprestado para ensinar um
escravo seu a tocar caixa de guerra. Depois de um tempo na casa de Evaristo o
escravo fugiu para a propriedade de seu senhor, Tomé Cardoso, que teve a casa
38
Depoimento de Manuel Carvalho de Souza. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo
Nacional
39
Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 350. Arquivo
Nacional
40
Depoimento de Manuel Antonio de Vargas. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 347. Arquivo
Nacional
41
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional. Grifo nosso.
135

invadida por Evaristo, com o objetivo de tomar o escravo novamente de


empréstimo, ainda que contra a vontade de Tomé e do cativo.42 Todos estes
desmandos eram obrados, segundo se dizia, por ser Evaristo irmão de Rafael,
especialmente nos momentos em que este último era governador interino. Tudo
era feito, em suma, com respaldo do bando.
Custódio Ferreira, cunhado de Rafael, também fez inúmeras
barbaridades. Vários testemunhos da devassa de 1787 apontavam suas atitudes
agressivas com relação a várias pessoas, o que provocou a fuga de muitos do
chamado distrito do Caí, comandado por Custódio. Mas isso não era o pior.
Segundo várias testemunhas, Custódio obrigava os tropeiros que passavam a
comprar seus animais. Além disso, obrigou mais de um homem a casar a força
com filhas bastardas. Custódio ofendia ou até mesmo mandava prender peões
da estância que lhe pediam pagamento. Isso diziam as testemunhas. Mas o fato
de serem queixas comuns à maioria dos relatos nos deixa mais convencidos de
suas possibilidades.
Através destes meios a família Pinto Bandeira obtinha um crédito público
baseado no medo coletivo. Como vimos, até mesmo um cunhado de Rafael,
como Bernardo José, do qual não temos nenhuma denúncia de atitude violenta,
era temido apenas por ser membro da família. A reprodução deste medo era
importante para a manutenção dos negócios ilícitos da família. Veremos que,
evidentemente, o medo não era a única força que atuava neste jogo. Mais
importante que a violência eram as relações de reciprocidade que os Pinto
Bandeira estabeleciam. Estas relações significavam um alivio da tensão
produzida pela família e serviam para atrair para junto do bando novos aliados e
agregados que garantiam a base social deste mando.

“...sua numerosa parentela...”43

A estratégia matrimonial iniciada e praticada por Francisco Pinto


Bandeira foi terra fértil para a formação do bando. Após sua morte, contudo, a
estratégia de casamentos mantida pela família Pinto Bandeira não apenas

42
Depoimento de José Cardoso da Silva. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 348v. Arquivo
Nacional.
43
Relatório apresentado ao governo de Lisboa pelo vice-rei Luis de Vasconcelos. Op cit. pg. 28.
136

garantiu a inclusão de novos membros ao grupo familiar, como foi planejada de


modo a preservar o comando da família ao núcleo original. Tais alianças, ainda
que estabelecidas tendo em vista conjunturas maiores, acabaram se revelando
cruciais para as atividades contrabandistas desenvolvidas pela família. Para este
estudo atentamos para a geração de Rafael, observando os enlaces de seus
irmãos e irmãs, assim como os seus próprios.
Francisco Pinto Bandeira testemunhou os quatro primeiros casamentos
de seus filhos, no caso, Rafael, Mauricia, Desidéria e Matilde. As duas primeira
filhas se casaram em 1763. A primeira a casar foi Mauricia, que foi desposada
por Bernardo José Pereira, cinco dias após as tropas castelhanas tomarem a vila
de Rio Grande, numa terça-feira, 17 de maio44. Passados os rigores do inverno,
Desidéria Pinto Bandeira casava-se com Custódio Ferreira de Oliveira
Guimarães, em 11 de agosto45. O fato destes casamentos ocorrerem logo após a
tomada de Rio Grande pelos espanhóis pode não ser simples coincidência. É
provável que os acertos para os enlaces estivessem definidos a mais tempo, mas
a consumação das uniões deve ter sido feita com alguma pressa, frente a
insegurança que andavam aquelas terras. Francisco Pinto Bandeira foi um dos
primeiros a oferecer resistência à invasão, e talvez estivesse, através desta
política de casamentos a curto prazo, garantindo novas e substanciais adesões
ao núcleo familiar.
Não havia mais de dez anos que Bernardo José estava no Rio Grande.
Antes, andava de caixeiro de João Francisco Guimarães, com negócio de
fazenda, tendo vindo da cidade do Porto para a América bastante jovem, com
cerca de 13 anos de idade. As testemunhas de seu Auto de Justificação de
Matrimônio indicam muito bem as suas atividades de negociante de fazendas, e
passam, especialmente, a imagem de um forasteiro que se integrava àquelas
famílias estabelecidas.46

44
Autos de Justificação do Matrimônio de Bernardo José Pereira e Maurícia Antônia. 1763 (cod. 151)
ACMPA.
45
Autos de Justificação do Matrimônio de Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães e Desidéria Maria
Bandeira. 1763 (cod. 156) ACMPA.
46
Autos de Justificação do Matrimônio de Bernardo José Pereira e Maurícia Antônia. 1763 (cod. 151)
ACMPA.
137

Custódio Ferreira fizera percurso semelhante. Viera da vila de Guimarães


com cerca de 13 anos de idade. Os depoentes do Auto de Justificação de
Matrimônio afirmam a sua atuação no negócio de fazendas, sendo que alguns
destes informantes viviam da mesma atividade. Além disso, Custódio lutara nas
Missões, provavelmente nas guerras Guaraníticas47. Talvez nestes conflitos
tenha conhecido seu sogro, Francisco Pinto Bandeira, que liderava tropas
naquela ocasião. Do retorno do exército, Custódio ficara no Rio Grande, nos
campos de Viamão, onde se estabelecera.
Tanto Custódio como Bernardo mantiveram-se muito próximos do
núcleo familiar mesmo após a morte do sogro. Neste sentido, as relações sogro-
genro foram transpostas imediatamente para uma relação entre cunhados,
através da presença marcante de Rafael Pinto Bandeira dentro da família, não
apenas como o primogênito, mas também como um dos inventariantes
escolhidos pelo pai. O inventário de Francisco foi feito pela esposa, Clara Maria,
pelo filho Rafael, que ao que parece tinha já pleno conhecimento dos negócios
da família, e pelo genro Bernardo José. Este último gozava de grande confiança
de Francisco, como este bem expressou em seu testamento: “...pela grande
fidelidade e conceito que sempre dele fiz...”.48
A presença de Custódio e Bernardo dentro da família foi essencial para a
solidificação do bando liderado por Rafael. Por um lado, eram dois sujeitos de
fora que poderiam acrescentar à família com seus cabedais de negociantes, sem
retirar o controle familiar dos varões descendentes. Da mesma forma, sua
junção à família lhes investiu de um poder que não obteriam de outra forma.
Custódio Ferreira, por exemplo, tornou-se Comandante do Distrito do Caí, uma
espécie de região administrativa do Rio Grande de São Pedro, além de ter-se
tornado oficial do exército luso.49
O outro casamento realizado enquanto Francisco Pinto Bandeira ainda

47
Guerras de expulsão dos Jesuítas das Missões. NEUMANN, Eduardo. A fronteira tripartida: índios,
espanhóis e lusitanos na formação do Continente do Rio Grande. XXI Simpósio Nacional da
ANPUH. Niterói. 2001.
48
Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.
maço 4. APERGS.
49
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
138

era vivo foi o de Matilde Clara.50 Pouco sabemos de seu cônjuge, José Luís
Ribeiro Viana. Segundo Aurélio Porto, seria um grande proprietário de terras
em Rio Pardo e Cachoeira.51 Todavia, isso não basta para apontarmos a origem
do sujeito, já que também Bernardo José e Custódio acabaram se tornando
grande proprietários fundiários.
Contava Rafael Pinto Bandeira vinte anos quando se casou em 1761. A
esposa, Bárbara Vitória, era filha do cacique minuano Miguel Caraí. O enlace era
o ponto culminante de uma série de contatos que se iniciaram com Domingos de
Brito Peixoto, ancestral de Rafael, e que continuaram de modo efetivo até
Francisco Pinto Bandeira, seu pai.52
O pai de Bárbara Vitória, Miguel Caraí, era filho de uma índia minuana
com um descendente de espanhol, conhecido como Dom Miguel Ayala. Ao que
consta, fora peão de estância de Francisco Pinto Bandeira, pai de Rafael, ainda
que mantivesse, durante este tempo contato com os seus.53 Segundo José de
Saldanha, astrônomo do rei Português, que conheceu Dom Miguel, tratava-se de
um tipo “...baixo, gordo, e moço e de semblante alegre, e mais racionável...”54.
Trazia consigo uma pequena espada, que Saldanha identificara com aquelas
portadas por membros do exército português, do corpo de auxiliares.
A relação sogro-genro estabelecida entre Rafael e Dom Miguel perdurou
por longos anos. De certo modo, já havia uma forte relação entre o dito Miguel e
Francisco Pinto Bandeira, pelo fato do minuano ter servido de peão muitos anos
nas estâncias do pai de Rafael. Mesmo com a morte de Bárbara Vitória a relação
sogro-genro permaneceu intensa. Em 1784 Dom Miguel e Rafael se
comunicaram como mediadores de uma negociação sobre a passagem de uma
55
tribo de minuanos para os domínios lusos. Esta relação garantiu a Rafael a
manutenção do acesso aos animais negociados pelos índios minuano.
50
Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.
maço 4. APERGS.
51
PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. IN: RMAPRGS. p. 528.
52
SILVA. Op cit.
53
SILVA. Op cit.. pg. 43
54
SALDANHA, José de. Diário Resumido, e Histórico ou Relação Geográfica das Marchas e
Observações Astronômicas, com Algumas Notas sobre a História Natural, do País. IN: Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. LI. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde –
Serviço Gráfico, 1938. Pg 235-236.
55
RMAPRGS pg. 499. (Notas).
139

Da união de Rafael com Bárbara Vitoria, nasceu Bibiana Bandeira. Esta


se casou na década de 1780 com o Alferes de auxiliares Antonio José Rodrigues
Nicola. Segundo algumas denúncias, Bibiana teria recebido como dote umas
centenas de cabeças de gado, que haviam sido desencaminhadas da Fazenda
Real pelo seu pai.56 Tais denúncias não passaram da devassa. Ainda assim, a
investigação nos indica que Bibiana recebera tal dote, mesmo que a origem nos
seja ignorada.
O segundo casamento de Rafael fora novamente com uma indígena, desta
vez guarani, em outubro de 1773. Maria Madalena era nascida e batizada na
missão de São Lourenço, filha de Candido Pereira e Benedita Madalena.57 Pouco
sabemos do peso que tal relacionamento pode ter tido, salvo uma aproximação
com os indígenas guarani egressos das missões. Todavia, Maria logo faleceu sem
deixar descendência.
Da terceira esposa de Rafael, Josefa Eulália de Azevedo, só sabemos que
era natural da Colônia do Sacramento.58
Percebe-se, através da prática de Rafael, uma preocupação em
estabelecer vínculos locais, ao desposar mulheres de tribos indígenas ou de
famílias já estabelecidas na região. Essa parece ser uma prática comum dos
varões.
O quinto filho de Francisco Pinto Bandeira, Evaristo, casou-se com
Cristina Menezes, filha de Luís Vicente Pacheco de Miranda e Gertrudes
Barbosa de Menezes. Gertrudes era filha de um dos primeiros povoadores dos
campos de Viamão, Jerônimo de Ornelas, o que significava a inserção de Luís
Vicente, português de origem, na comunidade local.59 Mas não se tratava apenas
de uma moça de família. Seu pai mantinha forte negociação de gado,
especialmente muar e é bastante provável que fosse responsável pelo despacho
de muitos dos animais contrabandeados para a rota das Minas60. A atuação do

56
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
57
PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. RMAPRGS. pg. 524.
58
ibidem.
59
KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento. Estudos Ibero-americanos. v. XXV, (1999).
60
Autos Matrimoniais de Luís Vicente Pacheco e Gertrudes Barbosa de Menezes. – 1755. cod. 20
AHCMPA Sobre a atuação da família Pacheco no comércio de gados ver WESTPHALEN, Cecília
Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de Tropas. Curitiba: CD Editora, 1995.
140

genro Evaristo Pinto Bandeira no contrabando privilegiava a negociação de


animais, com ênfase nos muares.
Dos enlaces do sexto filho de Francisco Pinto Bandeira, Felisberto, pouco
sabemos. Foram dois. O primeiro com Ana Clara do Espírito Santo, filha de José
Rodrigues Carvalho, vindos da Colônia do Sacramento61. Do segundo, só
sabemos que foi com Ana Maria da Silva.
Vasco, sétimo filho, morreu solteiro.62
A última filha retoma o padrão de matrimônio das irmãs. Casou-se em
1784 com Carlos José da Costa e Silva, capitão de Dragões63. Este sujeito já
mantinha negócios de contrabando juntamente com Rafael desde a década de
1770, quando era comandante da Fronteira do Rio Pardo.64 Ainda que fosse de
fora da comunidade, Carlos José já andava pelo Rio Grande desde a expedição
de Bobadela, na década de 1750.65

As contrapartidas de guerra.

Eram muitas as vezes em que o Império Luso não conseguia bancar a


manutenção de suas colônias e sua defesa contra os inimigos. Um dos
problemas mais cotidianos, pelo menos na fronteira, eram os atrasos no
pagamento dos soldos. Isso fica patente em muitos documentos, desde a
fundação do presídio Jesus-Maria-José até o início do século XIX.66 Os contra-
ataques portugueses à invasão espanhola que tiveram maior ênfase a partir de
1773, acabaram sendo boas válvulas de escape para esta situação, já que
garantiam a soldados e oficiais o acesso a bens tomados dos inimigos, o butim.
Observamos isso, por ser este mais um espaço ocupado por Rafael na criação e
fortalecimento de suas relações, enfim, na construção de seu bando. Não apenas
era ele quem geria a distribuição do espólio durante a guerra, como fora ele

61
Livro de casamentos de Triunfo. nº 1 AHCMPA.
62
PORTO, Aurélio. Os Pinto Bandeira. RMAPRGS. pg. 524.
63
SILVA. Op cit..
64
Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316.
65
Demarcação do Sul do Brasil. IN: Revista do Arquivo Público Mineiro. vol. XXIV. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1933. p. 112-113
66
Devassa sobre a entrega da Villa do Rio Grande às tropas castelhanas. – 1764. Rio Grande: Biblioteca
Riograndense,1937 e AHU-RS. cx. 3 doc. 253
141

quem muitas vezes cobrou o pagamento dos soldos atrasados, junto ao Vice-rei
e à Rainha.
Em janeiro de 1779 o governador do Rio Grande, José Marcelino, tornava
a queixar-se dos dizeres do Coronel Rafael. Segundo o governador, Pinto
Bandeira dissera publicamente que havia “...de fazer arreadas ainda que o leve
o diabo...”.67 Era um momento de disputa entre ambos. O governador não
conseguia força política para governar, frente aos desmandos de Rafael.
Todavia, ainda que Marcelino estivesse inventando aquilo, esta seria uma frase
absolutamente racional do ponto de vista de Rafael Pinto Bandeira. Ele
precisava fazer arreadas.
Arrear gado significava ultrapassar os limites definidos e invadir os
territórios inimigos em busca de gado que poderia ser apresado, quando solto
no campo, ou roubado, quando já arrebanhado em alguma estância de um
súdito espanhol. Nestas arreadas iam muitos homens de vários segmentos
sociais, de membros da elite a escravos. E todos estes homens recebiam como
pagamento parcelas dos animais apresados. Estas operações eram sempre
bastante “lucrativas”, pois significavam um investimento muito pequeno frente
ao ganho significativo. Rafael não fazia arreadas apenas porque ganharia gado
com isso. Era uma atividade muito interessante para o corpo de homens que ele
liderava e que viam nestas ações uma possibilidade de ganho inesperado, que
não obteriam com meios mais convencionais. Arrear gado era uma das maneiras
que Rafael possuía, enquanto líder, de dar a contrapartida a todos aqueles que
lhe seguiam nas batalhas e nos negócios ilícitos.
Felix dos Santos, por exemplo, enviou dois peões por sua conta para duas
destas arreadas, em 1777. Na primeira obteve cinqüenta terneiros, e na segunda,
oito cavalos. Outros peões, como Perico Serra, Antonio Tramandi, Francisco
Santiaguinho também participarão desta corrida de gado e receberam uma
parte.68
Muitos destes partícipes de arreadas estavam incorporados ao bando de
Rafael. É o caso, certamente, de Manuel Pinto. Em 1773, Manuel serviu de peão,
segundo testemunha de uma devassa, de uma tropa conduzida pelo castelhano

67
RMAPRGS. pg. 198.
68
RMAPRGS. pg. 381.
142

João Mariano que foi levada para a estância de Rafael Pinto Bandeira.69 Já em
1779 ele fora citado como desertor e preso por “...ir com outros ladrões a fazer
arreadas e distúrbios em Montevideo...”70 Dois anos antes, os tenentes Vasco
Pinto Bandeira e Jerônimo Xavier de Azambuja tiveram a sua promoção militar
questionada por terem falado com Manuel Pinto sem o prender. Tanto Vasco
como Jerônimo faziam parte do bando de Rafael. É até provável que este
Manuel Pinto fosse irmão de um Francisco Pinto, citado algumas vezes como
mensageiro de Rafael Pinto Bandeira. Uma testemunha apontou a presença de
um irmão de Francisco na mesma atividade e que este irmão seria desertor.71
Uma personagem comum nas arreadas era Romão Vareiro. Romão
liderou dois grupos, um notoriamente de indígenas, que promoveram corridas
de gado em 1777. Na devassa de 1773 ele já aparecia como condutor de tropas de
contrabando para Rafael Pinto Bandeira.72 Muitos anos depois, em 1787, ele é
novamente citado em uma devassa por provável condutor de outras tropas de
contrabando, também a mando de Rafael.73
Um dos principais líderes de corridas de gado, Bernardo Antunes Maciel,
também pertencia ao bando de Rafael. Segundo a maior parte das testemunhas
do Conselho de Guerra de 1780, Bernardo comandou rendosas investidas aos
campos espanhóis, especialmente à cidade de Maldonado.74 Este mesmo
Bernardo foi comentado por um demarcador espanhol, Andrés de Oyarvide,
quando este andou pelo Rio Grande. Segundo Oyarvide, antes de ser oficial da
Cavalaria Ligeira, Bernardo fora “...capataz de una tropa de changadores...”75
Já em 1787 fora acusado de algo mais refinado: alugar uma embarcação para
contrabandear couros na Lagoa Mirim, isso, juntamente com outros membros
do bando de Rafael, como Bernardo José Pereira.76

69
Depoimento de João Batista de Carvalho. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 326.
70
RMAPRGS. pg. 417.
71
Depoimento de Fortunato Barbosa da Costa. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 329v. Arquivo
Nacional.
72
Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316.
73
Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional.
74
RMAPRGS. pg. 38 em diante.
75
OYARVIDE. Op cit. pg. 341.
76
Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo
Nacional.
143

Mas as arreadas não eram a única forma de obter vantagens. Durante a


guerra vários foram os momentos em que o conflito significou ganhos
inesperados para aqueles guerreiros. Muitos destes acabaram servindo no
contrabando ao lado de Rafael Pinto Bandeira.
Tanto em tempo de guerra como nas arreadas, a busca de ganhos fáceis
estava presente. O fato de que Rafael comandava e organizava esta busca faz-
nos perceber estas atividades como parte de uma cadeia de prestações e
contraprestações. Cada um daqueles peões sabia que possivelmente ganharia
algo acompanhando Rafael em suas investidas militares ou predatórias. Rafael
devia a estes homens o fato de o acompanharem sempre que fosse preciso. Da
mesma forma, aqueles homens lhe deviam as oportunidades de acesso a ganhos
inesperados. Talvez tenha sido essa dívida que tenha motivado Rafael, numa
noite no acampamento militar, a convocar todo o corpo militar para dizer que
nos ataques “...cuidassem todos em se empregar com valor, porque permitia o
governador do continente José Marcelino que se não pagasse o quinto, e que
tudo se havia repartir pelas partes interessadas...”.77 Quem nos conta este
instantâneo do front é o mesmo Bernardo Antunes, que participara de várias
arreadas. Devia estar mesmo muito interessado, para lembrar com detalhes
como tudo se passou naquela noite.
O general dos exércitos portugueses no sul, João Henriques de Böhn,
dizia ao governador do Rio Grande em 1776 que “...as tropas ligeiras não
podem esperar que todas as suas expedições sejam só lucrativas e que não haja
perigo nenhum na sua profissão...”.78 Referia-se às tropas de cavalaria ligeira,
que eram comandadas por Rafael. Percebia bem os interesses daqueles homens.
Da mesma forma que os despojos de guerra e arreadas, as promoções
militares estabeleciam contrapartidas aos seus comandados. O próprio Rafael
redigia listas de indicados para promoção, e as repassava ao governador para
avaliação.
Em novembro de 1774 o governador Marcelino escrevia a Rafael dando
várias notícias, entre elas uma, de especial interesse do destinatário: "Ao
soldado Joaquim Rodrigues de Aguiar mandei assentar praça de cabo como V.

77
RMAPRGS. pg. 63.
78
RMAPRGS. pg. 373.
144

M. pede."79 Joaquim Rodrigues aparece na documentação, em vários momentos,


nas mais inusitadas situações. No depoimento do almoxarife da Fazenda Real,
Antonio da Silveira e Ávila, em uma devassa de 1779, havia acusado Joaquim de
ameaçá-lo de morte, para defender uma carga de animais desencaminhados que
pertenciam ao coronel Rafael Pinto Bandeira. Em 1783 ele foi acusado de ter
confiscado uma embarcação a mando do mesmo coronel. Em 1787 é acusado
por muitos, em uma devassa, de ter assassinado sua mulher, sendo o crime
encoberto por Rafael, que ajudara o delinqüente a fugir. A relação entre o
“comandado” e o “comandante”, neste caso, estava recheada de relações de
reciprocidade. A promoção de Joaquim, em 1774, fora parte desta cadeia de
prestações e contra-prestações.
Em 1777 Rafael enviava mais uma listagem para Marcelino. Este porém,
teve dúvidas e preferiu consultar o vice-rei antes de negá-las ou confirmá-las.
Nesta listagem está o mesmo Joaquim Rodrigues, que se passava ao posto de
Sargento. Dos dezenove indicados, Marcelino encontrou problemas em nove, a
maior parte por ter desertado em algum momento de sua carreira. Na mesma
listagem de pedidos de promoções identificamos oito sujeitos que agiram no
contrabando, em arreadas, ou em atividades próprias do bando de Rafael. Entre
estes destacam-se o irmão de Rafael, Vasco Pinto Bandeira, o já citado Joaquim
Rodrigues, os arreadores Antonio Lopes Duro e Bernardo Soares,80 Jerônimo
Xavier de Azambuja, comandante muito próximo de Rafael, com quem este
fizera vários negócios, além de arreadas. Há, neste sentido, uma proximidade
grande entre os sujeitos indicados para a promoção por Rafael e aqueles
membros do bando. É importante ressaltar que, quanto ao restante dos
indicados para promoção, não encontramos nada de efetivo, não podendo
inferir se também mantinham negócios com Rafael ou pertenciam ao bando.
O problema do pagamento dos soldos sempre foi uma das maiores
preocupações dos quartéis. Mesmo sendo um problema que se arrastasse desde
a década de 1730, as maiores reivindicações para o pagamento dos soldos foram
provavelmente feitas por Rafael Pinto Bandeira. Isso só fica evidente quando

79
RMAPRGS. Pg. 179.
80
RMAPRGS. pg. 38 em diante.
145

assume o governo interino, onde manifesta com freqüência ao vice-rei e até


mesmo à Rainha as péssimas condições de vida destes soldados.81
A função de pagamento dos soldos seria, por tradição e pela lei,
incumbência da Provedoria da Fazenda, do Provedor e do Almoxarife,
especialmente.82 Contudo, na fronteira, há pouquíssima referencia na
documentação consultada que remeta a preocupação destes oficiais da Fazenda
com os soldados. Considerando o alto grau de militarização da região,
especialmente num contexto de guerra e disputa territorial com a Coroa
Espanhola, as relações entre soldados e oficiais davam-se de forma mais direta,
sem a mediação de oficiais não militares da administração. Neste sentido,
haveria espaço para outras formas de ganho, como a apreensão de bens das
tropas inimigas. Este último elemento, frente aos constantes atrasos no
pagamento do soldo, quando não à inadimplência do Estado, eram um
instrumento de manutenção da ordem dentro das tropas, na medida em que o
próprio oficial é que controlava a distribuição das benesses advindas do serviço
Real, da qual o soldo era apenas uma de suas formas.

“Pois assim se mata?”: notas sobre a “proteção” negociada.

Nunca ficará bem explicado o motivo pelo qual, numa certa noite, em sua
casa, o sargento Joaquim Rodrigues de Aguiar matou a mulher e outro homem,
companheiro de armas da cavalaria ligeira. Sabemos, contudo, que após fazê-lo
Joaquim correu para a casa do Coronel Rafael Pinto Bandeira a contar-lhe o
ocorrido. Na casa do coronel estavam hospedados os demarcadores de Sua
Majestade, o Doutor José de Saldanha e o Engenheiro Eloi Portela, que se
limitaram a ouvir o que o criminoso narrava ao seu superior. Após relatar o
ocorrido, Aguiar entregou as chaves de sua casa ao coronel, e recebeu deste uma
mula para a fuga. 83
Havia muitos anos que Joaquim e Rafael Pinto Bandeira eram
conhecidos. Na década de 1770 este já servia de peão para Rafael, tendo, em

81
AHU-Brasil Limites. cx. 3 doc. 256.
82
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -
século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. pg. 208 e 214.
83
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
146

certa ocasião ido buscar alguns animais que Rafael desencaminhara da Fazenda
Real, em um certo esconderijo que ambos conheciam. Ao chegar ao local,
Joaquim se topara com o Almoxarife da Fazenda Real, que sabedor do
descaminho, havia ido buscar os animais. Joaquim todavia dera ordens aos seus
subordinados que arrebanhassem o gado de qualquer maneira, enquanto se
acertaria com o Almoxarife. Este último nos deixou algum testemunho do
ocorrido:

“...indo ambos conversando, e ao mesmo tempo divisando pelos faxinais os


cavalos que neles andavam; parando-se o dito soldado tirou de uma pistola, e
depois de lhe endireitar a escorva, indo a meter no coldre, disse a ele
testemunha:
- Ora se você tivesse vontade de morrer, eu não tinha dúvida de o matar.
Ao que ele testemunha respondeu:
- Pois assim se mata? [...] temendo ele testemunha alguma coisa se apartou...” 84

Já tratamos de Joaquim Rodrigues de Aguiar antes, quando falamos das


promoções militares propostas por Rafael. Joaquim fora recomendado com
algum destaque para o posto de Cabo em 1774. Em 1783 ele fora novamente
acusado de ter apreendido, a mando de Rafael, uma embarcação de outro
contrabandista.85 O assassinato da mulher era mais um episódio da longa
relação existente entre Joaquim e Rafael. Pelo que sugerem os documentos, é
provável que Joaquim fosse um tipo de “matador” a mando de Rafael. Ele não
receou em ameaçar o almoxarife da Fazenda Real e não titubeou em matar a
mulher. A esposa deveria ser um problema pessoal seu, mas não devia ser seu
primeiro crime. Diante de um servidor tão antigo, com o qual mantinha dívidas
de serviço, Rafael não quis saber de mais nada e o ajudou a fugir. Diante da cena
da fuga estavam dois demarcadores a serviço de Sua Majestade, que se
hospedavam aquela noite na propriedade de Rafael. Mesmo diante destes
olhares Rafael não esmoreceu. Rafael retribuíra a defesa que Joaquim lhe dera
muitos anos antes, em 1780, quando convocado pelo Conselho de Guerra para
testemunhar sobre possíveis descaminhos efetuados por Rafael, dissera que

84
RMAPRGS. 313-314;
85
Cód. 104. Vol. 09 pg. 310. Arquivo Nacional.
147

"...não sabe nem pelo ouvir dizer que dito comandante Rafael Pinto
Bandeira fosse culpado ou consentidor em descaminho algum, porque
antes o dito coronel Rafael Pinto Bandeira pôs uma guarda para que os
não houvessem."86

Joaquim não fora o único a receber ajuda de Rafael para a fuga. O mesmo
ocorreu a Alexandre José da Guerra.
É possível que Alexandre tivesse mesmo ido comer em uma taverna na
noite do crime, como dissera às autoridades. A acusação, todavia, de ter
esfaqueado o alfaiate José Antonio na porta da casa deste não ficou esquecida. A
denúncia se pautava no fato do aprendiz do dito alfaiate ter encontrado a bainha
da espada de Alexandre junto à cena do crime. Após alguns dias na cadeia, o
dito “delinqüente” fora solto, com a justificativa de ter o aprendiz mentido para
incriminá-lo. Após uma sessão de ameaças e algumas surras, o aprendiz
também fora liberado. O fato é que Alexandre fora solto pelo Coronel Rafael
Pinto Bandeira. Este caso já nos é conhecido. O aprendiz que denunciara a
prova da bainha da espada recebera uma surra das mãos do próprio Rafael, para
que nunca mais mentisse. O coronel armou todo o circo, do qual fazia parte o
castigo do detrator de Alexandre. O acusado negou o crime e com amparo em
Rafael, ninguém mais falou no assunto. O aprendiz, por exemplo, tinha bons
motivos para esquecer a história.
Outro beneficiado pela proteção de Rafael foi o soldado de alcunha “o
Cadete”. Ninguém sabia dizer seu verdadeiro nome. O primeiro a denunciar,
Manuel José de Alencastre, dissera que era voz corrente ser o “Cadete” filho de
Rafael Pinto Bandeira com uma índia. Em certa noite, estando destacado na
“Guarda do Beca”, juntamente com o soldado Raimundo Pereira, o “Cadete”
dera umas cutiladas no dito soldado. O motivo da agressão é ignorado. Nos
interessa ressaltar aqui a maneira como lhe ficou isenta a acusação. Segundo a
maior parte das testemunhas que sabiam do caso (6 de 21 depoimentos) o
“Cadete” se ocultara algum tempo e depois aparecera de retorno a Vila do Rio
Grande, onde continuou a servir no mesmo posto de soldado, como se nada
tivesse ocorrido. Uma das testemunhas deu uma informação extra: o acusado

86
RMAPRGS. pg. 111.
148

estaria residindo na casa do coronel Pinto Bandeira.87 Por todos os motivos que
expusemos até aqui, considerando que tal fato fosse verdadeiro, dificilmente
alguém retiraria o acusado da casa do coronel para levá-lo preso. Fora mais um
de seus homens a ser protegido. Esta certeza de segurança no trabalho para
Rafael Pinto Bandeira era mais um fator que contribuía para construir alianças,
e fortalecer o nome Pinto Bandeira. Ao garantir a impunidade de seus
comandados, Pinto Bandeira lhes dava mais uma contrapartida. Pagava mais
uma vez a dívida eterna (e recíproca) que mantinha com aqueles homens.88
O caso de João José de Souza também é interessante. Este, pelo que
disseram as testemunhas da devassa de 1787, esfaqueara um colega de armas da
cavalaria. Ao que tudo indica, a contenda fora por causa de uma índia. O crime
ocorrera na rua do Rosário, na vila do Rio Grande, e a vítima acabou morrendo
no hospital.89 Segundo o autor da primeira denúncia, Manuel José de
Alencastre, o criminoso tivera auxilio de Rafael Pinto Bandeira para a fuga.
Rafael teria lhe dado uma canoa para atravessar a barra do Rio Grande até a
Parte do Norte90 As testemunhas complementaram dizendo que o assassino
desertara e estava oculto no distrito de Santo Antônio da Serra ou
proximidades. Sobre isso podemos propor algumas hipóteses, que sendo de
difícil comprovação, podem ainda assim contribuir. O distrito de Santo Antônio
era caminho dos transportes de gado.91 O caminho da serra era o que ligava
Viamão a Curitiba. É possível mesmo que Rafael afastasse o criminoso da vila
enviando-o para outro ponto da rota de seus negócios. Do ponto de vista do
sujeito seria uma forma viável de manter-se livre. Continuaria a trabalhar para
Rafael, que de um modo ou de outro lhe garantia algumas contrapartidas. Ao
ganhar uma dívida com o sujeito, Rafael podia aguardar dele a contrapartida,
que seria dada através do trabalho nos negócios ilícitos. Um dos pontos mais

87
Depoimento de Tomé Pedro da Costa Real. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 332v. Arquivo
Nacional.
88
MAUSS. Op cit.
89
Depoimento de Tomé Pedro da Costa Real. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 332v. Arquivo
Nacional e outras testemunhas.
90
A localidade de São José do Norte fica no outro extremo da barra do Rio Grande, defronte a vila de Rio
Grande. Seria uma forma de acesso a Viamão.
91
NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre: EST/Sulina, 1975.
149

delicados para a passagem do gado contrabandeado era justamente na


proximidade do Registro de Santo Antônio.
Além de João José, outros sujeitos também poderiam estar inseridos
nesta política de Rafael. Francisco Pinto, que desertara do exército e se ocultara
nos domínios espanhóis de onde vinha constantemente visitar a estância de
Rafael. Provavelmente fazia o contato entre os fornecedores e seu patrão. É
possível mesmo que Rafael negociasse saídas para estes sujeitos, que tinham
suas opções limitadas por crimes que lhes eram imputados. Além de ocultá-los,
os enviava para locais convenientes, dentro da rota de negócios ilícitos,
especialmente de gado, pelo que parece. Era uma solução razoável.

“...é o próprio que se apossa do terreno...”

Não há dúvidas de que o Vice-rei Luis de Vasconcelos era um bom


observador. Foi ele quem nos forneceu preciosas pistas para a compreensão de
outra área de forte atuação da família Pinto Bandeira, e que era, ao mesmo
tempo, uma das bases de reprodução do séqüito: a distribuição de terras. Em
uma sociedade na qual o acesso à propriedade da terra é parte da lógica de
prestações e contra-prestações do Rei com alguns vassalos92, facilitar o acesso à
propriedade fundiária era igualmente uma forma de criar dívidas, ou pagá-las. E
Rafael, mesmo quando desautorizado, não se furtou a fazê-lo. Podemos mesmo
periodizar estas concessões, em dois momentos distintos: o pós-guerra (1777-
1780); e o segundo governo interino de Rafael (1790-1795). Certamente o nosso
não é primeiro trabalho a observar isso, já que contamos com excelentes
contribuições.93

92
HESPANHA, Antonio Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. A representação da Sociedade e do
Poder. IN: HESPANHA, Antonio Manuel. O Antigo Regime. IN: MATTOSO, José. História de
Portugal. Lisboa: Estampa, v. IV. 1998. e FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no
Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João;
BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
93
SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De bandoleiro a governador. Relações entre os
poderes privado e público no Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre: PPGH - UFRGS, 1999.
(Dissertação de Mestrado Inédita). PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação de
povoadores. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929).
PAUWELS, Geraldo José. Contribuição para o estudo dos conceitos de "limite" e "fronteira". Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. (s.d.)..
150

Antes de continuar, uma ressalva deve ser feita. A ação de Rafael, ao


conceder as terras, era absolutamente desigual, privilegiando alguns sujeitos em
detrimento de muitos outros. Ainda que alguns destes homens tivessem origens
mais humildes, eram aliados e faziam parte do bando, deste recorte vertical na
sociedade que Rafael liderava.
A distribuição de terras feita logo após o término do conflito com os
espanhóis, entre 1777 e 1780, teve muito da participação de Rafael. Segundo
Aurélio Porto, Rafael teria passado terras, mesmo sem autorização, para vários
aliados ou pares, entre os quais Manuel José de Alencastre, Luis Vicente
Pacheco de Miranda (sogro de seu irmão Evaristo e negociante de mulas), para
seu cunhado Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães e para Jerônimo Xavier
de Azambuja. Rafael teria feito isso como conquistador de territórios antes
ocupados por espanhóis. Dividida a terra entre estes sujeitos, a propriedade
efetiva só foi dada pelo governador Marcelino. Note-se que neste momento há
um total privilégio de indivíduos da elite, associados de algum modo ao bando e
à família. Ainda assim, existe a possibilidade de um peão de contrabando
chamado Inácio Morato ter recebido um campo em 1782.94 Também por este
tempo deve ter sido agraciado Miguel Aires, também peão de contrabando, com
um campo próximo ao rio Pequiri.95
No segundo governo interino de Rafael, a partir de 1790, há a
distribuição de uma série de pequenas propriedades nos arredores de Porto
Alegre, sendo que dos suplicantes, boa parte era constituída de militares de
baixa patente e lavradores.96 Pudemos identificar , para este período, mais uma
concessão de terras para Inácio Morato, uns campos “do outro lado do

94
RMAPRGS. Nota 07 pg. 484.
95
RMAPRGS Nota 83 pg. 514 e também PORTO, Aurélio. Fronteira do Rio Pardo: penetração e fixação
de povoadores. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. v. IX, (1929).
96
SILVA. Op cit.
151

Guaíba”.97 Identificamos cerca de vinte concessões de pequeno porte feitas por


Rafael neste período.98 Tudo leva a crer que se tratasse de uma política de
reciprocidade, enfim, da divisão do espólio político, uma vez estando Rafael no
governo. Depois de trabalhar anos para Pinto Bandeira, Morato estaria
recebendo a parte que lhe tocava. Também parece ser este o caso de Inácio de
Magalhães que, ao que tudo indica, teria recebido uns campos na freguesia de
Santo Amaro em 1791.99 Magalhães fora acusado, em 1773, de acompanhar
Rafael em atividades ilícitas.100

FIGURA 4

97
F1247. 21, 21v, 22. AHRS.
98
F1245, F1246, F1247 e F1248. AHRS.
99
F1246. 147v.
100
Depoimento de João Batista de Carvalho. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 326.
152

As características do Bando

O bando significava para muitos uma alternativa para a ascensão social.


Vincular-se ao bando poderia significar acesso às várias formas de
contrapartidas oferecidas. Isso não significa, de forma alguma, que tal estrutura
contribuísse para a igualdade. Pelo contrário. O bando reproduzia, a sua própria
maneira, a desigualdade congênita daquela sociedade, possibilitando o acesso
de uns ao que a maioria não possuía. Todavia, tal organização não se pautava
apenas na existência de um chefe e seus subordinados. Havia uma organização
mais complexa.
O quadro (figura 4) aponta Rafael como proeminência máxima dentro do
grupo. Não há como negá-lo. Todavia, o bando seguia também a partir de outros
líderes “menores”, como Custódio Ferreira (que era comandante militar do
distrito do Caí) ou Felisberto Pinto Bandeira, comandante militar em Triunfo.
De certa forma a posição destes homens dentro do bando era também refletida
em suas colocações em postos-chave do governo. Rafael chegou mesmo ao posto
de governador, ainda que interino, por duas vezes. Afora isso, mantinha a
patente de coronel, a maior dentro do bando. Seus cunhados mais próximos,
Custódio, Bernardo José e Carlos José da Costa eram todos capitães, uns de
ordenança, auxiliares e de dragões, a exemplo de Pinto Carneiro e Cipriano
Cardoso, sócios em arreadas e contrabandos e “amigos” de Rafael, segundo
dizia o governador Marcelino.101 Segundo nos consta, Rafael teria sido o único
destes a tornar-se Brigadeiro, que equivale ao posto de general.
Outro traço salientado no gráfico é a variedade de relações mantidas por
Rafael. Não nos referimos apenas à qualidade das pessoas. Falamos das muitas
formas de que Rafael se valia para manter seus relacionamentos. A sua
estratégia de ação pressupunha a necessidade tanto de relações diádicas,
homem a homem, e relações escalonadas, com a existência de vários níveis de
intermediação. Rafael poderia tratar diretamente tanto com um capitão como
com um soldado ou peão, dependendo tanto da situação como da posição dos
sujeitos dentro do bando e dos negócios ilícitos.

101
RMAPRGS, pg. 335.
153

Que tal membro da elite se relacione com seus pares não parece nada
surpreendente. Mas poder-se-ia argumentar que o fato de Rafael lidar
diretamente com sujeitos subalternos sugere uma igualdade que
verdadeiramente não havia. Tal relação, mais do que concreta, era básica para
manter a posição de líder frente ao distanciamento que uma relação
intermediada e escalonada provocaria.
Um caso exemplar pode ser um instantâneo do front, pouco antes do
ataque a Santa Tecla em 1776. Rafael reuniu todo o corpo militar presente ao
acampamento, e leu as ordens que haviam chegado de Porto Alegre. Eram
ordens que interessavam a todos os combatentes, pois diziam respeito à isenção
do quinto sobre os despojos de guerra. Isso poderia significar maiores ganhos
para todos na repartição do butim. Rafael leu as ordens para todos e pediu a
todos que se empenhassem na luta, já que assim poderiam ganhar mais. Não
seria nada espantoso se Rafael utilizasse seus capitães para divulgar a notícia e
pedir empenho. Estaria se valendo da hierarquia militar, que, ao que parece,
funcionava bem. Diante desta alternativa, e de outras tantas possíveis, ele optou
por reunir todos os soldados e falar-lhes pessoalmente.102 Esta relação, além de
ser usada junto aos aparentados e sócios, era a desenvolvida junto a alguns dos
mais destacados peões de contrabando de Rafael. Com estes homens Rafael
mantinha, como já vimos, dívidas de reciprocidade cultivadas ao longo de anos.
Era este tipo de relação que permitia a Rafael contar com uma ampla base
social, que não apenas lhe dava sustentação política, como também o
acompanhava em vários negócios, seja na guerra, nas arreadas ou no
contrabando.
Não era apenas com este tipo de relação que Rafael construía sua base.
Também se amparava de intermediadores, de relações escalonadas. Junto aos
indígenas minuano, que como já vimos eram pródigos fornecedores de gado,
Rafael se valia da ação de seu sogro, Dom Miguel Carai, que era um dos caciques
daquele grupo. Em negociações com este grupo durante a década de 1780, sobre
seu ingresso ao conjunto de súditos portugueses, Dom Miguel fora o principal

102
RMAPRGS. pg. 63.
154

negociador.103
No front durante os conflitos com os espanhóis, Rafael lançara mão de
ambas as formas. Já vimos como comunicou sobre a isenção de impostos,
noticia que certamente agradaria a todos. Todavia, ao planejar a forma do
ataque que faria (e se faria) ao Forte de Santa Tecla, chamou para conferência
apenas os capitães, que ali representavam o comando de todos os regimentos
presentes no acampamento.104 Cada um dos capitães sabia com que homens
podia contar. Através destes intermediários, Rafael administrou o comando de
todo o corpo militar.
Havia uma grande teia permeando a vida de todos aqueles homens e
mulheres. Ao privilegiar apenas alguns tipos de relacionamento, estamos
deixando de lado um outro tanto de seus relacionamentos. Mas ainda assim
podemos obter algumas respostas para os problemas relacionados com o
comércio ilegal na fronteira.
Esta grande cadeia de relacionamentos se reproduzia de maneira a
conservar uma dada hierarquia, de forma a manter a ordem social. Deste modo,
homens como Bernardo José Pereira, Custódio Ferreira, Cipriano Cardoso e
Pinto Carneiro mantinham, à sua maneira, seu pequeno séqüito. O gráfico que
apresentamos não contempla esta multiplicidade de relacionamentos. Alguns
casos, contudo, são muito importantes.
Segundo um informante do Marquês do Lavradio, que escrevera em
1772,105 as maiores desordens no Rio Grande eram fruto da ação de Rafael Pinto
Bandeira, Antonio Pinto Carneiro, Antonio José de Moura e José Custódio de Sá
e Faria. Os principais problemas seriam os contrabandos e as arreadas de gado
levadas a cabo especialmente por Rafael Pinto Bandeira e Pinto Carneiro, que
eram sócios. O mesmo informante conta que foi procurado várias vezes por
Rafael que insistia em fazer arreadas e que ele e Pinto Carneiro eram os únicos
ricos o bastante para bancar homens e cavalos suficientes para tais negócios.106

103
Cód. 104. Vol. 7. pg. 743. Arquivo Nacional.
104
RMAPRGS. pg. 368-369.
105
Cartas de Francisco José da Rocha. Microfilme 024-97 – Flash 2 – Série 2 – RD 16.1 a RD 16.89.
Arquivo Nacional.
106
Cartas de Francisco José da Rocha. Microfilme 024-97 – Flash 2 – Série 2 – RD 16.77 e RD 16. 78.
Arquivo Nacional.
155

É neste ponto que se apresenta um aspecto interessante. Pinto Carneiro era


administrador dos índios guarani aldeados, e se vale do trabalho destes índios
como peões e capatazes, não apenas em suas terras, mas também em arreadas
ao lado de Rafael. Até onde sabemos, Pinto Carneiro era quem estava mais
próximo dos guarani aldeados enquanto seu “administrador”.
Deste modo, Rafael necessitava da intermediação de Pinto Carneiro para
contar com a força daqueles índios, muito necessários e habilidosos no negócio
de arreadas. Pelo que percebemos, através de suas práticas conjugais, Rafael até
tentou criar vínculos com os guarani, casando com uma índia em 1773. Todavia,
não sabemos se esta aproximação prosperou, pois os documentos silenciam
sobre uma possível estabilidade de tais relacionamentos.
Pinto Carneiro não fora o único sócio. A própria sociedade acabou com a
morte deste, em 1777.107 Pudemos identificar outros sujeitos que andavam
vinculados a Rafael, ainda que não houvesse aproximações parentais ou de
subordinação. Através destes sócios vamos perceber a existência de laços mais
distantes, especialmente com negociantes de outras praças.
Presente em várias arreadas (sendo líder em algumas) e contrabandos,
Jerônimo Xavier de Azambuja era também das melhores famílias da terra.
Filho de um dos primeiros conquistadores, Francisco Xavier de Azambuja,
Jerônimo descendia do primeiro povoador de Porto Alegre, Jerônimo Dorneles
de Menezes. É provável que Rafael e Jerônimo Xavier tenham se conhecido
desde a infância, pois as propriedades de Francisco Xavier de Azambuja e
Francisco Pinto Bandeira eram próximas em Porto Alegre, e juntas à estância de
Jerônimo Dorneles de Menezes.108 Fora capitão e tenente da legião comandada
por Rafael, sendo quase sempre seu braço direito, lugar às vezes ocupado pelo
capitão Cipriano Cardoso. Quando Rafael fora preso em 1779, ambos foram com
ele para o Rio de Janeiro e depuseram em total concordância. Pouco antes de
irem, o governador Marcelino de Figueiredo falava sobre ambos, e sobre um
terceiro:

107
Inventário de Antonio Pinto Carneiro. 1º Cartório de Órfãos e Ausente de Porto Alegre. nº 660.
APERGS.
108
BORGES FORTES. Op cit. pg. 41.
156

“...Consta-me que o Capitão Cipriano Cardoso, e o Capitão Jerônimo


Xavier de Azambuja e Antonio Luis e Queirós, sócios e amigos do Coronel
preso, espalharam no Rio Pardo várias notícias, que intimidaram os
pequenos; dizendo, tinham certeza por cartas do dito Coronel, que os que
juraram, ou jurassem contra ele, haviam [de] ir para Angola...” 109

De Cipriano Cardoso pouco sabemos além de vários relatos de


descaminhos de gado e arreadas realizadas ao lado de Rafael.110 Mas Jerônimo e
o outro, Antonio Luís Correia de Queirós, contribuíram para expandir a
dimensão destes negócios. Em agosto de 1784 o Vice-rei, Luís de Vasconcelos,
escrevia a Rafael Pinto Bandeira para encaminhar uma queixa que um
comerciante espanhol lhe fizera oficialmente. Dizia o espanhol, de nome Joam
Pedro de Aguirre, que Jerônimo Xavier de Azambuja lhe havia dado um calote.
Jerônimo recebera de Martim de Aguirre (provável parente de Joam Pedro) a
quantia de “...dois mil novecentos e oitenta pesos, e seis reales e meio de prata
111
forte...” com o objetivo de enviar este dinheiro para o Rio de Janeiro com
brevidade. Jerônimo só enviou uma parte, sem remeter o restante, que deveria
ser entregue a José Rodrigues Ferreira, um comerciante aliado ao já referido
Antonio Luis Correa de Queirós e a Teodoro Pereira Jacome, negociantes do Rio
Grande que mantinham tratos com o Rio de Janeiro.112 Deste modo,
percebemos que estes sócios, membros do bando, estavam relacionados com
negociantes de outras praças, Montevideo no caso de Aguirre, e o Rio de
Janeiro, no caso de Jacome e Correia de Queirós.
Estas são algumas das formas de relacionamento mantidas no interior do
bando, e que eram reproduzidas em todas as formas de ação do grupo, inclusive
no contrabando.
Boa parte destes homens não estava diretamente associada a uma única
atividade. Eram, simultaneamente, militares, criadores, administradores e
negociantes. A diversidade de funções se explica por uma certa insegurança
frente aos negócios de cunho econômico, o que faz com que fossem preferidos
vários investimentos, garantindo possibilidades maiores de manutenção de

109
RMAPRGS pg. 335.
110
RMAPRGS pg. 38 em diante.
111
Cód. 104. Vol. 06. pg. 570v. Arquivo Nacional.
112
RMAPRGS. pg. 171.
157

ganhos. Todavia, também é reflexo da variedade de interesses que tais homens


possuiam, de criar vínculos nos mais diversos setores sociais. Eram formas de
negociar bens imateriais como favores, apoios e alianças, dentro da lógica de
endividamento que já nos referimos. Era mais uma forma de garantir a
sobrevivência além da produção material.
Esta situação não se manifestava apenas entre a elite. Um sujeito como
Romão Vareiro, provavelmente indígena e, até onde sabemos, com parcos
recursos, participou de arreadas, conduziu gados contrabandeados e, pelo que
parece, possuía uma pequena propriedade às margens do rio Camaquã, onde
criava cavalos.113 As atividades de contrabando e corridas de gado eram sazonais
e provavelmente não garantiam a sua reprodução física durante todo o tempo.
Da mesma forma, só a criação de cavalos não devia ser suficiente. Era preciso
aumentar as opções de sobrevivência. Outro caso é o de Miguel Martins Serra,
que acumulava as funções de mensageiro, soldado, lavrador e condutor de gado
contrabandeado.114
Semelhante organização também se reproduzia em outros espaços
coloniais. Moutoukias percebe para Buenos Aires a existência de um grupo,
vinculado ao mando do governador, e depois Vice-rei, Pedro de Ceballos. Este
grupo não apenas teria o controle político local, mas também teria preeminência
no contrabando (barrando com a lei os rivais) e em outras esferas da produção.
Também estaria ancorado em redes de reciprocidade, que se reproduziam de
Buenos Aires à Madrid e por outros cantos do Império espanhol.115 Estas redes
se construíam não apenas através de alianças nos negócios, mas também por
ligações parentais forjadas.
Também Fabrício Prado identifica este tipo de organização na Colônia do
Sacramento, na primeira metade do século XVIII. Prado analisa o grupo
vinculado ao governador Antonio Pedro de Vasconcelos e igualmente associa o

113
Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 327. Arquivo
Nacional. Listas de Tomadias de 1777 RMAPRGS. pg. 381 e RMAPRGS. nota 82. pg. 514 .
114
Devassa de 1773, Conselho de Guerra, Devassa do Marcelino e Pe. Pauwels...
115
MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes personales y autoridad colonial. Los comerciantes de Buenos Aires
en el Siglo XVIII. ANNALES. Histoire, Sciences Sociales. v. (1992).
158

poder político com as atividades ilegais desenvolvidas pelo bando.116


Organizações como esta também foram identificadas por Evaldo Cabral
de Mello para Pernambuco colonial. O autor procura entender a chamada
“Guerra dos Mascates” considerando a existências destes grupos, estudando
seus aliados, seus parentescos e sua base social.117
Para o Rio de Janeiro do século XVII, João Fragoso realizou um
interessante trabalho, esmiuçando o conflito de “bandos” nas lutas pelo mando
local e pelo controle da economia, especialmente pela disputa das mercês régias,
como forma de melhoria social e manutenção da “qualidade” dos membros dos
bandos. Fragoso aponta a existência de uma base social sólida, que não apenas
dava apoio político para os líderes dos bandos, mas também força militar nos
contínuos embates bélicos que se travavam pelo poder local.118

116
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto
Alegre: F. P. Prado, 2002. pg. 168-184.
117
MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue: uma parábola familiar no Pernambuco
Colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
118
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Um Mercado dominado por “Bandos”: ensaio sobre a lógica
econômica da nobreza da terra do Rio de Janeiro seiscentista. IN: Escritos sobre História e Educação.
Homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. pg. 247.
159

Estratégias e artimanhas: os contrabandistas em ação.

Negócios certos e negócios malfadados

Um ponto da proibição régia aos muares sempre ficara um tanto omisso.


O decreto de Sua Majestade proibia “mulas e machos”, e isso possibilitava
considerar como ilícitos as mulas “macho” ou mesmo os burros (Equus asinus),
já que eram os reprodutores.119 Em meados de 1767 o Capitão de Ordenanças
José da Silveira de Bitancurt enviou uma carta ao governador solicitando trazer
para sua propriedade na freguesia do Triunfo120 uma tropa de seiscentos
animais, que trouxera dos domínios espanhóis por “os não achar de venda no
dito País [Campos de Viamão]”121. Bitancurt trazia, especialmente, burros e
éguas para estabelecer cria de muares em suas fazendas. Disse que perdera
propriedades com a invasão espanhola, e que com tal produção de bestas
poderia se recuperar e tornar a contribuir com impostos para Sua Majestade.
Houve uma discussão entre os oficiais da Coroa sobre a interpretação do caso,
se os burros estariam contidos na lei ou não. O Provedor da Fazenda, Inácio
Osório Vieira, avaliou que os burros não estariam incluídos. Já o Vice-rei, Conde
da Cunha, disse que não se poderia decidir se os burros estavam ou não
incluídos até interpretação de Sua Majestade.

“...de nenhum modo consentirá ao suplicante que introduza de Castela


bestas muares, nem burros, que se devem considerar incluídos na mesma
lei enquanto Sua Majestade não determina outra coisa pois só o dito
122
Senhor compete a interpretá-las...”

O fato de Bitancurt ser Capitão de Ordenanças123, e uma das “pessoas


mais abonadas e estabelecidas”124 no Rio Grande contribuiu para uma

119
Uma nota importante: a mula é resultado do cruzamento induzido de uma égua (a fêmea do Equus
caballus) com um burro (um macho do Equus asinus). Em condições normais um burro não copula
com uma égua, e por isso é necessária a ação do homem para provocar o acasalamento. Sobre tal tipo
de reprodução existem estudos não apenas zootécnicos como também de história: HAMEISTER. Op
cit. , CANEDO, Mariana. La ganadería de mulas el la campaña bonaerense. Una aproximación a
las estrategias de producción y comercialización en la segunda mitad del siglo XVIII. IN:
MANDRINI, Raúl e REGUERA, Andrea. Huellas en la tierra. Indios, agricultores y hacendados en la
pampa bonaerense. Tandil: IEHS, 1993.
120
No Rio Grande de São Pedro, à margem do Rio Jacuí.
121
F1243. 73, 73v. AHRS.
122
F1243. 182v. AHRS.
123
Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS, 1977. pg. 287.
160

interpretação favorável. Além disso, fora fiador do primeiro contrato do registro


de Viamão, em 1752, demonstrando não apenas seus recursos, mas seus
relacionamentos e articulações com indivíduos vinculados ao trato de gado.
A mesma sorte não teve Manuel Munhoz, tropeiro castelhano, que ao
passar em julho de 1768 pela fronteira do Rio Pardo, no Rio Grande de São
Pedro, teve detida sua tropa de “mil e tantos animais”125, em função do Real
decreto que proibia a entrada de mulas e “machos”. Para tentar escapar da
perda, ou minimiza-la, Munhoz argumentou de vários modos afirmando, de
primeira, desconhecer o dito decreto Real, argumento que não foi aceito.
Afirmou, por fim, que os burros que trazia não poderiam ser apreendidos, por
razão de não constarem no Real decreto, que previa a apreensão de “somente
mulas e machos e não burros”126, revelando um conhecimento das falhas da lei
bastante razoável para quem, até então, ignorava o decreto em questão. Pedia,
enfim, que se lhe devolvessem os trinta burros, por ser seu direito,
encaminhando um requerimento ao governador José Custódio de Sá e Faria.
Não sabemos se teve sucesso na sua petição, em relação aos burros. O restante
da tropa fora todo apreendido. Não conseguimos perceber nenhuma articulação
mais específica, alguém que pudesse interceder em favor de Munhoz. Talvez por
isso ele não tenha tido o sucesso que teve Bitancurt ou Eugenio Barragam, que
logo veremos. Munhoz pretendia vender seus animais, especialmente as
matrizes, para os fazendeiros do Rio Grande, e não contava com a detenção.
Eugenio Barragam, “de nação espanhol”, chegou aos domínios
portugueses aproximadamente cinco meses depois que Munhoz por lá andara.
Obtivera sucesso no transporte de seus animais, em número superior a
quinhentos, sendo destes, onze burros e quatrocentas éguas, animais
suficientes para incrementar uma significativa produção de mulas. Não apenas
teve a passagem autorizada, como também recebeu uma carta de sesmaria.127
Neste caso, Barragam estava associado a uma importante família da terra: os

124
Idem. pg. 318.
125
F1243. 153, 153v. AHRS.
126
F1243. 153, 153v. AHRS.
127
F1243. 163. AHRS.
161

Pinto Bandeira.128 Ele aparece em 1770 como devedor de 176$000 ao casal de


Francisco Pinto Bandeira, quando do inventário deste, relativo a “22 mulas das
que se hão de marcar para a marcação do ano de 72 que sendo justas a
8$000”.129 Neste sentido, percebemos que Barragam mantinha relações muito
próximas com tal família da elite local, a ponto de ter tido crédito para manter
uma dívida deste montante, valor superior à média do preço dos escravos no
mesmo inventário.
Munhoz não foi o único caso malfadado. Também em 1768 o governador
do Rio Grande, José Custódio de Sá e Faria, dava ordens para a criação de um
potreiro de Sua Majestade com o objetivo de criar mulas. Para tanto, mandava
recolher todos os burros confiscados naquele tempo.130
Fica claro que havendo a dúvida na interpretação, a permissão ou
confisco era promovida de acordo com a qualidade da pessoa ou de suas
relações na sociedade. As interpretações variavam muito em relação ao autor e
ao tempo. Essa inconsistência de pensamento e interpretação, certamente
desejada por muitos, propiciou mais espaço para a reprodução da desigualdade,
permitindo que uns conduzissem seus animais, em detrimento de outros, que
eram detidos. Mas estes eram apenas os primeiros anos de vigor daquelas leis
de contrabando. Estas leis variaram no tempo estudado, mas sempre
procuravam, de algum modo, controlar o comércio na fronteira.
Os três casos que apontamos são, de certo modo, paradigmáticos.
Ocorrem num período muito próximo e têm destinos bem diferentes. Mas estes
três casos são apenas uma porta de entrada para o problema. O contrabando se
intensificará após estes anos (1767 e 1768) e se valerá de novas estratégias e de
outras articulações sociais para poder reproduzir-se a despeito da legislação.

128
Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35.
maço 4. APERGS.
129
Inventário de Francisco Pinto Bandeira. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre. nº 35. maço
4. APERGS.
130
REGO MONTEIRO. Op cit. pg. 172.
162

A produção social da mercadoria

Em 1772 o Vice-rei tinha nos campos de Viamão um enviado que lhe fazia
freqüentes relatos dos ocorridos naquela fronteira. Francisco José da Rocha,
como se chamava, noticiou várias “desordens” que presenciara naquele
momento. A maioria delas era específica ao bando de Rafael Pinto Bandeira.
Rocha não acusou Rafael explicitamente de contrabandista, mas apontou o
poderio de Pinto Bandeira na região, apontando sua capacidade de
arregimentar homens e patrocinar arreadas e outros negócios. O próprio Rafael
lhe teria dito que podia ajuntar duzentos e cinqüenta homens e cavalos para
bancar uma “coleta” de éguas nos domínios espanhóis.131 Rocha dizia ainda que
Rafael se valia de seus postos militares, como comandante da fronteira, para
privilegiar seus partidários e embaraçar outros arreadores, dos quais “...não
gostava...”.132
Rocha procurou entender o embargo como algo pessoal. Todavia, esta era
uma prática de Rafael para eliminar seus concorrentes. É mesmo provável que o
próprio Rocha tenha percebido isso, ainda que preferisse manchar a imagem de
Rafael com outros artifícios narrativos. Em outro relato, ele apontou uma
negociação que teve com Pinto Bandeira que durou dias. Rafael tentava de todas
as maneiras evitar que a Coroa bancasse uma destas arreadas, cujos frutos
seriam distribuídos entre muito vassalos que, posteriormente, pagariam em
potros o ganho que tiveram. Rafael propôs, inicialmente, que os animais
arreados fossem vendidos, pois haviam interessados (provavelmente ele). Com a
negativa de Rocha, Rafael voltou no dia seguinte, propondo que fossem
concedidas licenças para quem se interessasse por fazer arreadas. Rocha negou
novamente, pedindo tempo para tomar informações. Rafael ainda fez mais
algumas tentativas, propondo que era o único capaz de arrear, e mesmo, que
poderia fazer a corrida de gado ao lado de Pinto Carneiro, pois serem os únicos
ricos o bastante para isso. Toda a negociação deixa perceber a preocupação de
Rafael em ter a proeminência nas arreadas, a despeito dos demais súditos, que

131
Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73. Arquivo Nacional.
132
Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.76. Arquivo Nacional.
163

Rocha até tentou defender.133 Aparte todos os problemas com Rafael, Rocha
aponta, sem mencionar nomes, a existência de um forte contrabando de gado na
região, dando especial ênfase à maneira como eram despachados para Curitiba.
Já em 1773 devia ser muito intenso o tráfico ilícito de mulas entre os
domínios espanhóis e os territórios portugueses. Isso porque o provedor da
Fazenda, Inácio Osório Vieira, resolveu tirar uma devassa sobre estes abusos.134
Dizia o Provedor:

“...passa a uma ingratíssima rebelião, não sendo bastantes as mais exatas


providências e devassas que a este respeito tenho procedido, chegando a
tanto excesso a contumácia deste delito [...] sendo bem ponderado, que
para estes diabólicos excessos haviam, necessariamente, os transgressores
de ter auxílio...”135

A assentada foi feita, estranhamente, em 1769. A inquirição, contudo, se


realizou no início do ano de 1773. Das quinze testemunhas, uma silenciou
completamente, o capataz de estância Mariano Ferreira, original do Paraguai.
Cinco afirmam, sem detalhar, que havia contrabando: Antonio Gomes de
Campos, José Ortiz da Silva, Matias José de Almeida e João de Souza Coelho,
além do capataz João Alves da Costa. Nove apontam Rafael Pinto Bandeira e
seus aliados como promotores de contrabandos. Destas nove não identificamos
nenhuma relação. Apesar dos relatos indicarem um mesmo culpado, de modo
geral, cada versão é singular, envolvendo outras figuras, além de referências
específicas a determinados lugares. Deste modo, não temos motivos para pensar
que se tratou de uma tentativa de incriminar Rafael Pinto Bandeira. Alguns
relatos são bastante detalhados como o do tenente João Batista de Carvalho.
Uma determinada tropa de gados de contrabando foi citada por quatro
testemunhas: a de Inácio Morato. Desta tropa, a primeira testemunha da
devassa, Felipe Borges da Silva, disse que levava cento e cinqüenta mulas e
alguns burros, entre outubro e novembro de 1772. Disse ainda que tal tropa
havia passado pelo passo de São Lourenço.

133
Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.72 – RD 16.76. Arquivo Nacional.
134
O original está provavelmente perdido. Uma cópia de 1779, utilizada para o Conselho de Guerra
contra Rafael Pinto Bandeira está publicada na RMAPRGS. pg. 316.
135
F1243. 213v.
164

FIGURA 5
165

Outra testemunha, Francisco José Martins, disse, na ocasião, que Morato


havia passado com duzentas mulas de contrabando pelo Passo do Camaquã. O
tenente João Batista de Carvalho ouvira dizer que a mesma tropa continha
quatrocentas mulas e sessenta burros. Quem contou isso a João Batista foram
dois soldados que teriam testemunhado o fato: João de Souza e Antonio de
Araújo. O próprio Antonio de Araújo, também testemunha, confirmou parte do
depoimento de João Batista, dizendo que eram duzentas mulas e sessenta
burros. Todavia, Antonio foi mais longe, detalhando mais o ocorrido. Ele
estaria, na ocasião, junto com outros soldados numa diligência de rastrear uns
cavalos roubados da Guarda de Fronteira onde servia. Quando chegaram às
cabeceiras do Rio Negro:

“...toparam com uma tropa de bestas muares que daqueles domínios de


Espanha vinha para estes da qual era condutor Inácio Morato [...] estando
nesta diligencia o chamara de parte o dito Inácio Morato e lhe dissera que
não confiscasse a tropa [...] dizendo-lhe juntamente que ele os comporia
afim de se lhe não fazer confisco e com efeito se ajustou a dar três doblas a
cada soldado dizendo-lhe mais que este dinheiro no caso de se não fiarem
dele lho mandaria dar pelo seu mesmo capitão Rafael Pinto Bandeira...” 136

A ligação de Morato com Rafael Pinto Bandeira é ressaltada por parte das
testemunhas. Não apenas o fato da tropa pertencer a Rafael, mas pelas garantias
que o tropeiro possuía ao conduzir gado para Rafael. Frente a uma possível
detenção, Inácio Morato não titubeou em invocar àquele que o contratava e que
cuidaria dos soldados. Esse ponto já havia sido apontado pelo emissário do
Vice-rei, Francisco José da Rocha, que dissera que Rafael se valia das Guardas
de Fronteira para tratar de seus negócios ilícitos.137
Outro aspecto que apreendemos do ocorrido é alguma noção da rota
terrestre utilizada pelos contrabandistas. Ao que tudo indica, eles utilizavam
caminhos comuns, sem grande necessidade de ocultar seus negócios. Quase
todas as testemunhas afirmaram que os contrabandos eram públicos e notórios.
Todavia, a questão dos caminhos utilizados tem outra evidência.
Em um mapa feito por espanhóis, de 1804 (figura 5), são representados
caminhos existentes entre a Banda Oriental e o Rio Grande de São Pedro.

136
RMAPRGS. pg. 332-333.
137
Cartas de Francisco José da Rocha. RD 16.73. Arquivo Nacional.
166

Cruzando as informações deste mapa com os testemunhos referidos acima,


obtivemos alguns resultados interessantes. Considerando o conjunto das
testemunhas que se remeteram a pontos geográficos identificáveis, a primeira
referência é às cabeceiras do Rio Negro que, naquele momento, estariam sob
domínio espanhol.
Contrastando com o mapa, percebemos que bem junto às ditas cabeceiras
passa um caminho que liga Cerro Largo à Santa Tecla. A referência posterior é
ao Passo do Camaquã. Este passo é apontado como rota de contrabando não
apenas da tropa de Inácio Morato, mas de pelo menos mais duas tropas
denunciadas na mesma devassa. O caminho apontado no mapa se aproxima do
Rio Camaquã, já em domínios lusos, em uma série de pontos, chegando quase a
seguir o seu curso. Por fim, as duas testemunhas apontam ainda algum Passo do
Rio Jacuí como parte da rota. Uma delas, Antonio de Araújo não sabe dizer qual
passo, mas Felipe Borges da Silva, também testemunha, disse que fora no
“...Passo de São Lourenço...”138, junto ao rio Jacuí. Se observarmos o mapa,
veremos que o mesmo caminho cruza o rio Jacuí.
Outro condutor de tropas referido foi Miguel Martins Serra. Pelo que
tudo indica, era outro tropeiro a serviço de Rafael Pinto Bandeira. Uma das
testemunhas, Felipe Borges da Silva, disse que havia ido junto com Miguel
Martins aos domínios espanhóis, com o objetivo de verificar o estado da Colônia
do Sacramento. Rafael Pinto Bandeira teria convencido Felipe de levar fazenda
seca para, nos domínios espanhóis, trocar por gado, “...o que com efeito
fizera...” a testemunha. Também Miguel Martins trouxera alguns burros e
burras e passou sem nenhum embaraço. Segundo Felipe, esta facilidade de
Miguel Martins se explicava devido ao fato de ser “...muito amigo...” do capitão
da Guarda de Fronteira do Tabatingahy, Carlos José da Costa e Silva. A
presença de Carlos José no contrabando também é apontada por outras
testemunhas, como veremos em breve.
Também o tenente João Batista de Carvalho apontou Miguel Martins
como contrabandista, afirmando, inclusive, que este se encontrara com Rafael
Pinto Bandeira no Passo do Camaquã, sugerindo a ligação entre ambos. Romão

138
RMAPRGS. pg. 320.
167

Vareiro foi outro condutor indicado. A testemunha Francisco José Martins


aponta Romão como um dos tropeiros que passou com contrabandos tendo a
cooperação do Capitão da Guarda Carlos José da Costa. Também a testemunha
João Batista de Carvalho aponta Romão como cúmplice de Rafael. Segundo
João, o dito tropeiro teria conduzido dos domínios espanhóis para os
portugueses cerca de duas mil reses em outubro de 1772, a mando de Rafael.
Romão ainda participou de arreadas, liderando alguns índios no ano de 1777.139
É provável que seja o mesmo “Romão vaqueano” citado, em 1787, por Manuel
José de Alencastre, que acusou sua participação no contrabando ao lado de
outros condutores. Todos agiam a mando de Rafael.140
Ao lado de Romão e Miguel Martins estavam outros peões como Miguel
Aires, Casemiro de Castilhos e Roque Rolão. Estes também aparecem em
documentos, muitas vezes relacionados a Rafael. Tudo leva a crer que eram
mesmo peões de contrabando. Eram homens que percebiam o comércio ilícito
como uma fonte de renda sazonal, possível para eles, na medida em que
estavam diretamente vinculados a um negociante maior que lhes garantia a
circulação e a segurança da passagem. Sazonal, pois não eram incursões
regulares e dependiam de contatos prévios entre os produtores e os
compradores. Como já argumentamos antes, estes peões também possuíam
atividades produtivas regulares, como a lavoura e a criação. Alguns destes
homens, como Miguel Martins e Inácio Morato possuíam terras, criavam
animais e participaram ativamente na guerra. Inácio Morato fora espião das
tropas lusas, como dissera em um requerimento de 1781.141 Casemiro de
Castilhos, quando fora ao combate contra os castelhanos em outra ocasião,
levara consigo um peão que era seu agregado. Não se tratava do estrato mais
baixo da sociedade. Ainda que estivessem a mando de Rafael Pinto Bandeira,
eram os chefes daquelas tropas, possivelmente comandando outros homens,
entre escravos e agregados de sua relação. É possível que o trato ilícito,
aparentemente arriscado, tenha contribuído para a melhoria do padrão de vida

139
RMAPRGS. Tomadias de 1777. Pg. 381-382.
140
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional
141
F1247. 21. AHRS.
168

destes homens. Inácio Morato, por exemplo, adquiriu terras na década de 1780,
e obteve mais algumas na década de 1790.142
Um outro personagem foi citado com regularidade na devassa de 1773: o
Capitão de Dragões Carlos José da Costa e Silva. Pelo menos quatro
testemunhas o apontaram como participante dos contrabandos. Sua ação se
limitaria ao controle da fronteira, como comandante oficial dela, que garantiria
a passagem de determinados indivíduos, confiscando outros ou cobrando
pesadas “multas”, que no vocabulário de hoje chamaríamos de propinas. Na
ocasião as mesmas testemunhas apontaram a ligação de Carlos José com Rafael.
Na década de 1780, ele se casou com a irmã mais nova de Pinto Bandeira,
juntando-se definitivamente ao bando.
Houve uma grande investigação sobre os negócios de Rafael, entre 1779 e
1780, na qual o contrabando foi apenas um dos pontos. A própria devassa de
1773 fora anexada a este processo. Denúncias mais explícitas de contrabando só
voltaram à ordem do dia em 1783, com uma carta enviada ao Vice-rei, Luís de
Vasconcelos, por súditos que optaram por não se identificar. Eram “Capítulos”
contra Rafael Pinto Bandeira, dando conta de vários negócios prejudiciais aos
interesses do Rei e seus súditos, obrados por Rafael.143
Se a devassa de 1773 tivera como tema específico o contrabando de
muares, estes “Capítulos” vão tomar apenas o contrabando fluvial como objeto.
E como o próprio documento dizia, e outros o confirmam, estes contrabando
estava ancorado no ingresso de couros dos domínios portugueses e na saída de
escravos e fumo dos mesmos territórios.
O documento não cita muitos nomes, mas dentre os poucos mencionados
está presente o de Joaquim Rodrigues, que costumava cometer violências a
mando de Rafael. Nos “Capítulos” ele é acusado de ter confiscado para Rafael
uma canoa de contrabando Esta canoa teria sido utilizada por Rafael para levar
o seu contrabando.
Segundo os anônimos autores dos “Capítulos”, Rafael teria mandado
construir grandes canoas para fazer seu contrabando. Não há maiores detalhes.
Mas esta informação é confirmada por outros documentos, especialmente pela

142
RMAPRGS. pg. 484. Nota 7. e também F1247, 21. AHRS.
143
Cód. 104. Vol. 06. Pg. 143. Arquivo Nacional.
169

devassa de 1787. Nesta última, rica em detalhes, é citada a propriedade de


Rafael sobre várias canoas, sendo algumas construídas defronte de uma de suas
propriedades. A acusação, neste momento, refere-se à possibilidade de Rafael
ter se utilizado de pregos e madeiras da Fazenda Real para a construção de tais
embarcações.144 Também o confirma Joaquim José Ribeiro da Costa,
governador interino do Rio Grande de São Pedro. Em carta ao Vice-rei,
confirmava a construção de mais duas embarcações de Rafael. Dizia que a
madeira vinha de matos de particulares, mas que não eram tiradas
violentamente, e sim com autorização dos proprietários, que o faziam “...por
amizade, ou respeito...”.145
Para obter canoas, Rafael não apenas as fabricava. Segundo o mesmo
documento, Pinto Bandeira utilizara seu posto para confiscar outras canoas de
contrabando e utilizá-las para si. Além disso, se servia de uma canoa do Juízo
dos Ausentes, com o mesmo fim. Importa aqui ressaltar novamente o papel da
“acumulação troglodita” no enriquecimento dos Pinto Bandeira. Além de
provocarem o temor público, se valiam de seu nome e prestígio para obter bens
em geral, sem necessidade de despender dinheiro. Deste modo, o contrabando
era movido a um custo baixo, em termos financeiros. O investimento maior
estava em certos atributos da família, como seu poder e controle social.
Certamente este também não era um fundo inesgotável, e necessitava de uma
administração cotidiana, que os Pinto Bandeira realizavam com primor, diga-se.
Afora tudo isso, Rafael mantinha em sua casa um ponto de comércio.
Para os autores dos “Capítulos”, isso era uma afronta ao comércio dos súditos,
já que Rafael usava da força para vender seus efeitos. Tal informação foi
também referendada pela devassa de 1787.146 Rafael parecia não tolerar
concorrência. Os “Capítulos” estão recheados de referência a confiscos de
contrabandos feitos por Rafael, especialmente por via fluvial. Também falam da
cobrança de propinas dos condutores das canoas com mercadorias ilegais.
Segundo o documento, Pinto Bandeira se valia de um espião que ficava
junto à Lagoa Mirim. Nada sabemos com certeza deste fato. Todavia, referências

144
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
145
Códice 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
146
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
170

ao controle das fronteiras por Rafael, inibindo outras tentativas de contrabando


são freqüentes. É bastante provável que os “Capítulos” tenham sido escritos
com a colaboração de algum negociante que tenha sofrido perdas pela ação de
Rafael. Algumas informações são detalhadas e o documento reflete uma certa
ira por parte dos autores, estando cheio de juízos de valor. A devassa de 1787
cita casos de violências cometidas por Rafael contra comerciantes da vila de Rio
Grande, especialmente do “Povo Novo” que, ao que parece, foram expulsos
desta localidade por obra de Pinto Bandeira.
Este controle contribuiu a manutenção do poderio do bando frente a
possíveis tentativas, até mesmo por parte destes negociantes do Rio Grande, de
apresentar-se como alternativa àquele mando. Por um lado, eram
demonstrações cotidianas do poder da família Pinto Bandeira. Por outro, o
ganho econômico advindo da preferência nos negócios e capacidade de negociar
da mesma família.
Como resposta ao que foi apontado nos “Capítulos”, o governador do Rio
Grande, Sebastião Xavier Veiga Cabral da Câmara, por ordem do Vice-rei, procedeu
a uma Investigação. As questões formuladas foram basicamente retiradas dos
“Capítulos” e reelaboradas em forma de pergunta, mas sem mencionar os
147
acusados. Esta devassa, que seria uma espécie de teste às denúncias feitas a
Rafael Pinto Bandeira, acabou revelando muitos outros culpados. De fato, seu nome
não é mencionado em momento algum. Teríamos motivos para desconfiar da
maneira como foi feita a inquirição, pois o próprio governador teve receios de fazê-
la, conforme disse ao Vice-rei naquele ano de 1784. 148
Foram nove testemunhas ao todo. Destas, apenas cinco deram depoimentos
detalhados. Uma, inclusive, fora citada como contrabandista: Francisco de Oliveira
Dias, que dera um depoimento curto e evasivo, limitando-se a confirmar que havia
contrabando na fronteira. De um modo geral, esta devassa confirma os fluxos
indicados nos “Capítulos”. Para os domínios portugueses viriam couros. No contra-
fluxo, para os domínios espanhóis iriam escravos e fumos. Da mesma forma,
confirmou a rota fluvial que partia do Rio Cebollatí até o “Sangradouro” da Lagoa
Mirim.

147
Cód. 104. Vol. 06 pg. 132-142. Arquivo Nacional.
148
Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional.
171

FIGURA 6
172

A grande novidade desta inquirição era a referência significativa a


atuação de negociantes de Rio Grande no comércio ilícito. Se os “Capítulos” nos
indicaram que a família Pinto Bandeira possuía uma proeminência nas
atividades contrabandistas naquela fronteira, esta devassa nos aponta falhas
cada vez maiores deste controle. De todos os comerciantes acusados, não
encontramos relação direta de nenhum com Rafael e seu bando. Tudo leva a
crer que fosse mesmo um período de crescimento de outros agentes no comércio
ilícito da fronteira do Rio Grande.
Algumas testemunhas confirmam pontos contidos nos “Capítulos”.
Francisco de Souza de Azevedo Pimentel disse que ouvira de várias pessoas que
alguns oficiais faziam cobranças de quantias para não confiscar contrabandos.
Estes oficiais o fariam na “...Guarda do Passo do Beca...”149 muito próxima da
Estância do Pavão, uma das propriedades de Rafael Pinto Bandeira.150
Mas o que Azevedo Pimentel mais destacou fora a participação dos
negociantes José da Rosa Fraga e José da Rosa Gomes no trato ilícito. Segundo
a testemunha, sabia disso através dos próprios comerciantes, que lhe haviam
contado. Destes dois acusados, pouco sabemos. José da Rosa Gomes era
proprietário de umas terras próximas ao arroio Piratini.151 Em 1796 era referido
como Capitão, provavelmente de Auxiliares. De resto, nada se pode inferir com
certeza sobre sua participação no negócio ilícito.
Outros negociantes possuíam uma carreira mais extensa no contrabando.
José Vieira da Cunha confessou, na devassa de 1787, que não apenas fizera
contrabando, como teria mesmo oferecido suborno a um oficial da Guarda.152
Vieira da Cunha também seguia os fluxos comerciais referidos, seguindo com
vários efeitos para os domínios espanhóis e retornando com couros. Cabe
ressaltar seu destaque nesta devassa, que pode ser um indicativo do crescimento
da atuação de outros elementos nas atividades ilícitas, afrontando, de certo

149
Depoimento de Francisco de Souza de Azevedo Pimentel. Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg.
140v. Arquivo Nacional.
150
07. 02. 1425 e 07. 02.1441. Mapas do Arquivo do Exército.
151
Auto de medição de terras. José da Rosa Gomes – 1796. 2º Cartório do Cível de Rio Grande.
APERGS.
152
Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo
Nacional.
173

modo, o poderio do bando de Rafael. Isso está longe de significar que o bando
estivesse enfraquecendo...
A partir 1780, Rafael começou a não apenas perseguir, como também
prender e, especialmente, “noticiar” de forma bastante enfática, as apreensões
de contrabando que fazia. Entre 1780 e 1784, Pinto Bandeira prendeu vários
contrabandistas. No final deste período enviou uma relação ao Vice-rei com os
nomes dos criminosos, sendo eles: Santiago Rodriguez, João Antonio, Antonio
Iglecia, Bernardo Balecho, Francisco Matos, Diogo Vaca, Gregório Francisco,
João Nunes, José de Sechas, Rafael Escudeiro, João Benites, Eugenio Salininas,
Manuel Gonçalves e João Francisco.153 Infelizmente não conseguimos rastrear
estes homens em outros documentos. O registro de suas vidas se limita à notícia
de suas atividades criminosas ou, o que é pior, a sua incapacidade de criar meios
de evitar a detenção. Pinto Bandeira sabia bem disso, talvez melhor do que
ninguém.
Em 1786 os espanhóis apreenderam um carregamento de couros em uma
embarcação portuguesa que navegava na Lagoa Mirim. Os sujeitos que estavam
com os couros argumentaram que haviam encontrado aquilo em outro barco,
que estava encalhado em algum ponto, e que só andavam na Lagoa Mirim a
procura de conchas pois pretendiam fazer cal com elas. Os espanhóis não
acreditaram.154
Uma parte do couro foi jogada na mesma lagoa, outra foi destruída e o
restante foi dividido entre os soldados que apreenderam o contrabando. Os
sujeitos que perderam o couro não eram os donos da embarcação. Ela pertencia
a Rafael Pinto Bandeira. O Comissário espanhol, Varela e Ulhoa, escreveu ao
Vice-rei do Brasil, Luis de Vasconcelos e Souza, acusando Rafael de manter um
contínuo contrabando. Para Vasconcelos isso não era nenhuma novidade. Mas é
neste contexto que Vasconcelos nos fornece algum indício para percebermos
quão forte estava o bando. Muito observador, o Vice-rei comentava que Rafael
se tinha...

“...empregado neste indigno modo de vida debaixo dos nomes supostos de


pessoas, a quem confia o manejo de semelhantes negócios, em que também

153
F1245. 12v, 13. AHRS.
154
Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. Op cit. pg. 41-47.
174

os interessa a fim de guardarem melhor o segredo muito recomendado a


sobra da conveniência certa e infalível e de um tão grande protetor que os
tolera, permite e desfruta sem a menor contradição.” 155

Vasconcelos identificava não apenas o poder de Rafael, seu potencial de


agregar pessoas para o trabalho e seu envolvimento no trato ilícito. Percebia que
este negócio também interessava àquelas pessoas que estavam ligadas a Rafael
como peões, marinheiros e agregados em geral. Rafael lhes garantia trabalho e
proteção. Uma avaliação como esta, partindo do Vice-rei do Estado do Brasil,
nos indica o quanto o bando estava organizado e firme, podendo atrever-se a
realizar negócios arriscados em uma área discutida pelas duas Coroas.156 Prova
disso é que, aparte o extravio dos couros, nada foi feito contra Rafael.
O problema é que o abuso estava chegando a um limite difícil de tolerar.
Por esta época também um cunhado de Rafael, Custório Ferreira, arrumou
problemas com alguém importante: o capitão de ordenanças Manuel José de
Alencastre. Após uma contenda muito séria entre ambos, Alencastre escreveu
uma longa carta ao Vice-rei, detalhando abusos que Rafael e seus aliados
cometiam naquela fronteira.157 Uma das primeiras acusações que faz é a um
irmão de Rafael, Evaristo Pinto Bandeira:

“...conduz, com o respeito que tem, por ser irmão do Coronel acima dito
[Rafael] muitas tropas de contrabando, passando com elas por várias
guardas as quais lhe não põem embargo por estarem a maior parte delas
comandadas por oficiais seus parentes e outros do regimento [ilegível] do
dito Coronel e em outras partes passando em passos esquecidos como
158
veterano daquele país...”

Na devassa de 1787, originada da denúncia de Alencastre, muitas


testemunhas referiram estes negócios de Evaristo. Das vinte e uma testemunhas
do processo, seis confirmaram que Evaristo fazia negócios com animais
contrabandeados. Antonio da Silva Barros confirmou que Evaristo passava com
os animais nos Registros ou por caminhos paralelos. Inácio Xavier Mariano
disse que sabia que em uma certa ocasião Evaristo conduzira animais de
contrabando passando pelo Registro de Santo Antônio da Patrulha. Já vimos,

155
Ofício do vice-rei sobre o Rio Grande de São Pedro. Op cit. pg. 45.
156
A Lagoa Mirim neste momento era declarada área neutra.
157
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
158
Cód. 104. Vol. 09. pg. 314. Arquivo Nacional.
175

inclusive, que em Santo Antônio estava, sob proteção de Rafael, um criminoso


foragido: Joaquim Rodrigues de Aguiar. O local devia ser conveniente.
Ao que parece, Evaristo é um sujeito que, através do respaldo do bando,
dominava a refinada técnica de transformar contrabando em mercadoria.
Conhecer picadas e caminhos ocultos era parte da trama. Mas sem as relações
que estavam dadas pelo bando, Evaristo não poderia manter seu negócio por
muito tempo.
Estas denúncias nos indicam mais um elemento interessante: a
continuidade da rota de passagem de contrabando. Vimos, através de
depoimentos e mapas do período, os caminhos aproximados por onde corriam
as tropas de gado contrabandeado, mas somente até o rio Jacuí. Se tomarmos
em conta estes depoimentos, veremos que os animais seguiam de Viamão, pelo
Registro de Santo Antônio, até os campos de Cima da Serra. Os Pinto Bandeira
possuíam terras naqueles campos, onde provavelmente invernavam os animais,
à espera de tropeiros que os levassem para Curitiba.159
Alencastre retoma um velho problema que rondava o nome de Rafael: o
uso de canoas. A questão, de fato, é como ele conseguia suas canoas. Segundo
nosso informante, Pinto Bandeira teria confiscado uma embarcação de um
mercador da localidade de São José do Norte, José Rodrigues, sob acusação de
contrabando. Depois de utilizá-la durante mais de dois anos no mesmo
contrabando, Rafael teria devolvido a canoa ao seu proprietário original, em
julho de 1784. Alencastre fornece com minúcia uma lista de todos os “patrões”
que comandaram a tal canoa durante aqueles dois anos. Além desta canoa,
Rafael teria feito construir outra, usando pregos e madeiras de Fazenda Real.
Não fosse o bastante, Alencastre ainda acusou Rafael de usar índios e escravos
como marinheiros sem nunca os pagar. Depois de usar a canoa, Rafael a teria
vendido a José Vieira da Cunha.
Estas acusações foram referidas por oito das vinte e uma testemunhas
ouvidas na devassa de 1787. A maior parte dos informantes confirmou que
Rafael construíra uma canoa em frente a sua casa. Tomé Pedro da Costa Ramos
disse que navegavam na canoa alguns índios e um patrão de nome Manuel

159
Inventário de Rafael Pinto Bandeira. 1º Cartório de Órfãos e ausentes de Porto Alegre. nº 211. maço
13. APERGS.
176

Cristóvão, um dos listados por Alencastre em sua denúncia. As mesmas


testemunhas confirmaram que Rafael vendera a canoa por 40 doblas ao
comerciante José Vieira da Cunha. O próprio comprador confirmou o ocorrido.
Nesta devassa ninguém acusou Rafael de fazer contrabando com esta
canoa. Apenas Antônio José Feijó dissera que tinha ouvido de “...pessoas da
plebe...” que a tal canoa navegava pela Lagoa Mirim, mas que tal informação
não tinha merecido crédito, por sua origem.160 José Vieira da Cunha também se
eximira de uma possível acusação, dizendo que havia alugado a canoa ao alferes
da Cavalaria Ligeira Bernardo Antunes e um sócio, e que ouvira dizer que estes
haviam feito contrabando com sua canoa.161 Esse Bernardo Antunes, pelo nome
e pelo posto que ocupava na cavalaria Ligeira, era provavelmente Bernardo
Antunes Maciel, que comandara a mando de Rafael algumas arreadas de gado
em Montevideo, em 1777,162 além de ser do mesmo corpo militar, ou seja, um
perfeito membro do bando. O demarcado espanhol Andrés de Oyarvide dissera,
em seu Diário, que Bernardo era um antigo aliado de Rafael.163 Isso indica que,
ainda que Rafael tenha vendido, a capacidade de negociar do bando requeria,
em determinados períodos, a utilização da canoa.
As testemunhas disseram mais. Quatro delas confirmaram que a canoa
de José Rodrigues (cujo nome completo era José Rodrigues da Fonseca) havia
sido confiscada por andar no contrabando. Duas testemunhas não deram
detalhes. Mas Manuel José Diógenes de Morais disse que a canoa, depois de
apreendida, fora dada a José Antunes da Porciúncula, que vendeu ao
proprietário original. Nicolau Cosme dos Reis disse que o proprietário original,
José Rodrigues, havia arrematado de volta a sua canoa.
Outras testemunhas comentaram que Rafael teria vendido uma canoa de
nome “Figueira” ao castelhano “Pepe”, que era notório contrabandista. Possuir
ou utilizar-se de uma canoa com possibilidades de navegar na Lagoa Mirim era
um passo importante para chegar aos fornecedores de couro. Se observarmos

160
Depoimento de Antônio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 333v. Arquivo Nacional.
161
Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo
Nacional.
162
RMAPRGS. pg. 38 em diante.
163
OYARVIDE. Op cit. Vol VII. pg 341.
177

todas as referências à posse de canoas na mão de Rafael, veremos que ele lidou
com muitas destas embarcações, especialmente a partir dos anos 1780.
Isso demonstra o potencial de transporte de couros que Rafael possuía,
além de sugerir o quanto seu bando vinha investindo, cada vez mais, no negócio
de couros. Provavelmente porque era um produto que vinha sendo cada vez
mais requisitado no mercado exterior.164
Um dos principais personagens da devassa de 1787 é Custódio Ferreira,
cunhado de Rafael. Aparte todo tipo de acusações, o contrabando de gado foi
um dos pontos mais salientados. Segundo algumas testemunhas, era ele próprio
encarregado de coibir o contrabando em seu distrito, chamado “do Caí ”.165 Das
vinte e uma testemunhas, seis acusaram diretamente Custódio Ferreira de fazer
contrabandos.
Inácio Xavier Mariano e José Garcia contaram o pouco que sabiam.
Disseram que o furriel de Dragões Antonio do Couto e Silva fizera uma
apreensão de mulas contrabandeadas na estância de Custódio. Da mesma
forma, o meirinho da Fazenda Real, Joaquim José da Conceição, em seu
depoimento, dissera que havia participado de um confisco na propriedade de
Custódio. E dera detalhes. Segundo ele, o estancieiro estivera ocultando vinte e
cinco mulas de contrabando que pertenciam a um tropeiro de nome Antonio
Ribeiro de Andrade. As mulas foram apreendidas e levadas para extinção em
Porto Alegre.
O mesmo meirinho relatou outro ocorrido, desta vez com o sucesso de
Custódio. O oficial da Fazenda Real estava no Passo do Montenegro aguardando
uma tropa de mulas de contrabando, que por informações que tinha, deveria
passar por ali. Tendo sido avisado que o comandante do distrito, Custodio
Ferreira lhe chamava para uma conversa sobre assunto relativos ao serviço de
Sua Majestade, ao que o meirinho se encaminhou diretamente. Custódio lhe
ordenara que fosse imediatamente para Porto Alegre, onde o Provedor da
Fazenda, Inácio Osório Vieira, lhe aguardava com urgência. Ao chegar a Porto
Alegre, e ver o desagrado de Osório Vieira, o meirinho achou “...ser falsa...” a

164
OSÓRIO. Op cit.
165
Depoimentos de Inácio Xavier Mariano e Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol.
09. pg. 327 em diante. Arquivo Nacional.
178

ordem que recebera de Custódio. Logo depois soube que assim que se retirou do
Passo do Montenegro, a tropa esperada, de um tropeiro chamado Domingos
Gonçalves passou sem nenhum embaraço.
Estes dois casos narrados pelo meirinho e por outros contemporâneos
nos demonstram algumas das artimanhas de que Custódio se valia para fazer
passar sua mercadoria. Ainda que fracassasse em algumas de suas investidas,
deveria ter bons motivos para continuar investindo no negócio. Já vimos que
neste mesmo período a Fazenda Real tentou confiscar também gado de Evaristo
Pinto Bandeira, com total insucesso. Ainda que deixasse pistas, o bando tinha
cacife para bancar seus negócios. Talvez o provedor Osório Vieira estivesse
tentando uma reação ao contrabando que se mostrou pouco eficiente. Para este
período encontramos vários documentos produzidos pelo provedor. Neles,
Osório Vieira denuncia a falta de condições de perseguir os contrabandistas, a
ambição dos estancieiros que ajudavam os delinqüentes e algumas das
artimanhas dos negociantes. Aponta, inclusive, o fluxo de mulas para os
domínios lusos, e o contra-fluxo de fumo para os territórios espanhóis.166
Outras testemunhas acusaram Custódio de se valer de seu posto para
confiscar para si alguns animais e cobrar de outros tropeiros para não efetuar o
confisco. Alguns destes tropeiros que andavam com contrabandos acabaram
sendo pegos em outros lugares. Custódio não deveria estar interessado em
proteger estes tropeiros, até porque poderiam tornar-se concorrentes. Mas o
embolso de alguma quantia lhe interessava, pelo que se apresenta. Estes casos
são também indicativos do controle que este membro do bando de Rafael
possuía em seu distrito. Alguns contam, inclusive, que obrigava a alguns
tropeiros a comprar seus animais, ou, em algum caso mais específico, casar com
alguma de suas filhas bastardas. Isso aconteceu com o tropeiro Antonio de
Almeida, que acabou levando para São Paulo, junto das mulas, uma índia filha
de Custódio.167 Mas isso são coisas que contavam...
Outro membro do bando, Vasco Pinto Bandeira, irmão de Rafael,
também fora citado na devassa. Ele teria vendido um lote de couros “...da
campanha...” (em geral se referia a couros contrabandeados) a um negociante

166
Códice 104, Vol. 10. pg. 397 e Vol. 09. pg. 260. Arquivo Nacional. e também F1245. 170. AHRS.
167
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
179

de Rio Grande chamado Nicolau Cosme dos Reis, por doze tostões cada um.
Quem informou isso fora o próprio Nicolau, que testemunhara na devassa, além
de outro depoente, Antônio José Feijó.168 A narrativa de Nicolau é mais
detalhada e interessante. Acordara com Vasco que este, após receber o
pagamento, procederia a “quintação”, ou seja, pagaria o quinto Régio. Nicolau
ficou surpreso, pois temia que os couros fossem confiscados, já que o próprio
Rafael Pinto Bandeira ordenara que os couros da campanha fossem confiscados
quando da sua quintação. Contudo, os couros de Nicolau não foram confiscados,
assim como ocorreu com outros, segundo dissera a testemunha.
Vasco chamou para si a responsabilidade de “legalizar” os couros, ou seja,
transformar contrabando em mercadoria. O fato de Vasco, e não Nicolau, ter ido
“quintar” os couros, nos indica o quanto esta “legalização” dos couros estava
determinada pelas redes de relacionamentos. O bando detinha um especial
conhecimento desta alquimia.
Rafael também praticava cotidianamente esta mágica. Um tropeiro de
nome João José comprou de Rafael uma grande tropa de animais de
contrabando e a passou, sem problemas, até as Minas, segundo dissera Antonio
da Silva Barros em seu depoimento da devassa. Mas nem sempre havia total
êxito do negócio. Inácio Xavier Mariano contou que um tal José Bernardes fora
ao continente do Rio Grande fazer uma tropa de animais. Rafael lhe teria
vendido algum gado de contrabando com promessas de que passaria sem
problemas pelo registro. A tropa, contudo, acabou apreendida pela Fazenda
Real.169
A devassa de 1787 foi a última grande investigação no século XVIII de
que tivemos notícia naquela fronteira. Até onde sabemos, ela não teve efeito.
Enquanto a devassa ocorria, Rafael estava no Rio de Janeiro, de onde partiria
depois para Lisboa, onde receberia, por seus préstimos de vassalo, o posto de
Brigadeiro das mãos da Rainha. Em seu retorno ao Rio Grande de São Pedro,
Rafael assumiu o posto interino de governador, que ocupou com freqüência até
sua morte, em 1795.170

168
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
169
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
170
SILVA. Op cit.
180

O fato de quase inexistirem problemas envolvendo os Pinto Bandeira


entre 1790 e 1795 pode ser indicativo de um fortalecimento ainda maior do
bando naquela fronteira. Como governador Rafael distribuiu muitas terras a
seus agregados que foram confirmadas nesta época. Isso sem falar em outras
franquias que dispunha enquanto governador. Além disso, é bastante provável
que tivesse no novo Vice-rei, o Conde de Resende, um forte aliado. Tanto o
Marquês do Lavradio como Luís de Vasconcelos e Souza foram críticos da
postura de Rafael. Ambos apontaram, em suas cartas à Corte, as falsidades e
faltas de serviço de Rafael. Não encontramos nenhuma desavença com Rafael
com o Conde de Resende. Pelo contrário, numa carta que Manuel Marques de
Souza (uma espécie de herdeiro político de Rafael) escreve ao Conde de
Resende, comunicando a morte do brigadeiro, lembrava o quanto ele era
“...conhecido, e protegido...” daquele Vice-rei.171
Referências ao contrabando voltam a aparecer em 1802, quando Antonio
Manuel de Jesus e Andrade solicitou permissão ao Príncipe Regente para
ingressar a “modesta” quantidade de vinte mil mulas. Argumentou a Dom João
que era uma forma que havia encontrado para recuperar um dinheiro que
alguns castelhanos lhe deviam. O Príncipe concordou.
Jesus e Andrade se valeu de um expediente inusitado, a solicitação de
uma mercê, em condições especiais. Contava, assim, que a benevolência régia
lhe agraciasse. O que de fato aconteceu. Mas isso não ficou assim. Tal ocorrido
despertou a indignação de mais de uma centena de súditos daquela fronteira,
que fizeram um abaixo-assinado pedindo o cancelamento da permissão. Quem
encabeçava o documento, dando fé das assinaturas, era ninguém menos que
Manuel Marques de Souza, já referido como um dos herdeiros políticos de
Rafael. Assinavam o documento cento e sessenta e três pessoas, que se
intitulavam como o povo “...que vive da criação de bestas muares...”.172 Entre
as pessoas que assinaram, encontramos vários sujeitos que identificamos como
membros do bando: Jerônimo Xavier de Azambuja, Vasco Pinto Bandeira,
Bernardo Antunes Maciel, entre outros, e alguns negociantes que mantiveram
negócios com a família, como José Vieira da Cunha.

171
AHU-RS. Cx. 03. doc. 291.
172
AHU–RS. Cx. 09. doc. 570.
181

Mais do que o fato de barrar o ingresso (Jesus e Andrade, ao que parece,


estaria ingressando no negócio) de um eventual concorrente, como mais uma
demonstração do poderio daqueles homens, tal documento aponta uma
profunda mudança no panorama produtivo daquela fronteira. Se durante as
últimas três décadas aqueles mesmos indivíduos se valeram do contrabando
para desenvolver seus negócios e criações, já na primeira década do novo século
tinham um superávit de animais. Afirmaram isso em uma carta anexa, como
justificativa para barrar o intento de Jesus e Andrade. Segundo o documento, a
produção de mulas naqueles anos fora tamanha que além de prover as
capitanias de São Paulo e Minas, ainda mantinha milhares de muares nos
pastos, aguardando a compra.173
É difícil para nós afirmar se o bando manteve uma continuidade sólida
depois da morte de Rafael. Mas tudo leva a crer que sim e que Manuel Marques
de Souza assumiu o lugar de líder, tornando-se, inclusive, brigadeiro. Os
conflitos com os espanhóis em 1801 devem ter provocado uma mudança
significativa naquela ordenação, mas fica difícil de apreender nos documentos
disponíveis. Ainda assim, aquela elite, que incluía membros do bando, soube
muito bem como defender seus privilégios e seus recursos diante de uma
eventual ameaça, que não era pequena, pois o número de animais que Jesus e
Andrade pretendia trazer equivalia a pouco menos da produção total declarada
por aqueles criadores. Significaria um baque em seus investimentos, além de
uma afronta à sua posição.
Estes casos frustrados, como o de Jesus e Andrade, e mesmo alguns de
Rafael e Custódio Ferreira, são indicativos de que nem tudo era permitido ou
possível, mesmo para o bando. Todavia, vimos que era realmente necessária,
mais do que a astúcia, uma articulação social poderosa, capaz de garantir a
sobrevivência do negócio durante muito tempo.
Ao longo de todo o período estudado percebemos modificações muito
significativas no comércio de contrabando e uma contínua tensão entre o bando
e o conjunto da sociedade, fossem algumas vítimas suas ou mesmo
comerciantes tentando expandir seus negócios. De fato, o mercado de

173
AHU–RS. Cx. 09. Doc. 570.
182

contrabando que estudamos passou, necessariamente, pela chancela de um


grupo bastante organizado e coeso. Esta organização, que envolve articulações
familiares e relações de reciprocidade, reproduziu o contrabando e se fez
reproduzir a partir dele, como mais uma forma de garantir recursos e meios de
sobrevivência.
CAPÍTULO 5
DIREITURAS DIVERSAS: O ESCOAMENTO DA “PRODUÇÃO” E O IMPÉRIO

A fim de melhor compreender a dinâmica do contrabando e suas


implicações sociais torna-se necessário atentarmos para articulações maiores e
mais distantes. Estas também eram indispensáveis para a reprodução daquele
comércio ilícito. Isso significa entender como aquela localidade estava inserida
no mundo e de que maneira. Privilegiamos dois aspectos: as ligações mercantis
estabelecidas para o despacho do contrabando e as articulações sociais
existentes entre os poderes locais e centrais, dentro da perspectiva do Império
Luso.

O escoamento da “produção”.

Centramos nossa atenção nos dois principais produtos de contrabando a


fim de verificar seu destino: as mulas e os couros. Ambos possuíam uma
dinâmica própria na comercialização. As mulas eram vendidas a negociantes
que se especializavam em gado, chamados de “tropeiros”, que conduziam os
animais para Curitiba, e dali para Sorocaba, onde havia uma grande feira. Os
couros eram vendidos na vila do Rio Grande para certos negociantes que
embarcavam as mercadorias, provavelmente para o Rio de Janeiro, maior
parceiro de Rio Grande na época.1

O trote das bestas

As fontes que dispomos para relacionar os sujeitos envolvidos no


contrabando com o comércio de gado para Curitiba e Sorocaba não são muitas.

1
OSÓRIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na Constituição da Estremadura
Portuguesa na América. Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói: - PPGHIS/UFF, 1999. (tese
de doutoramento Inédita).
184

Basicamente, são alguns depoimentos da devassa de 1787 que apontam esta


relação. Como o de Inácio Xavier Mariano:

“...vindo a este continente José Bernardes a fazer uma tropa de bestas, lhas
vendera o coronel Rafael Pinto Bandeira, e porque eram de contrabando
lhe foram confiscadas pela Fazenda Real, o que só lhe consta por ter
2
ouvido a diversas pessoas.”

Além de Inácio, mais duas testemunhas apontaram este caso, alertando


que Rafael vendia gado para diversas pessoas. Uma destas pessoas seria o
tropeiro João José, que depois de comprar uma grande quantidade de mulas,
“...as passou para as Minas Gerais...”.3 De João José nada sabemos. José
Bernardes pode ser um dos moradores da freguesia da Lapa identificados numa
lista nominativa de 1798 como interessado na condução de animais.4
A freguesia de Santo Antônio da Lapa, nos campos de Curitiba, possuía
mil trezentas e setenta e quatro pessoas em 1798, sendo que cerca de 10% destas
atuavam de algum modo no trato de animais, seja na condução de tropas,
invernada de animais ou sua negociação. Mas a importância deste negócio na
localidade aumenta se observarmos que dos duzentos e setenta “fogos”, 45%
possuíam pelo menos um morador envolvido com o negócio de animais, quase
sempre o chefe da família. Esta atividade sazonal de condução de tropas era
uma alternativa a outras atividades desenvolvidas pelas famílias, geralmente
associadas à lavoura. Assim como o possível José Bernardes havia muitos
outros, como João Ribeiro que vivia “...de conduzir tropas de Viamão.”, ou
Antonio Gonçalves da Silva, que vivia “...de ir ao continente de Viamão
comprar gado e vender nesta capitania...”. 5
Os conflitos do “bando” com alguns destes tropeiros também acabaram
revelando aspectos muito interessantes. Não sabemos por quais motivos,
Custódio Ferreira resolveu prender um sujeito, que segundo a testemunha era
filho do “Capitão fulano Carneiro”, de Curitiba. O sujeito fugiu, mas seus
cavalos foram apreendidos. Todavia, ao invés de apreender os cavalos para a

2
Depoimento de Inácio Xavier Mariano. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 339. Arquivo Nacional.
3
Depoimento de Antonio da Silva Barros. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 342v. Arquivo
Nacional.
4
Lista Geral dos Habitantes que existem na Freguesia de Santo Antonio da Lapa. 1798. AESP.
5
Idem.
185

Fazenda Real, Custódio tomou-os para si, e os mandou conduzir para uma de
suas propriedades...

“...o que não se efetuou porquanto encontrando-os em caminho o fugitivo


dono deles e vendo-os marcados com a marca do dito capitão Custódio
Ferreira, quando os supunha confiscados para a Real Fazenda, se resolveu
a tirá-los do poder do condutor e assim o pôs em execução...”6

É possível que este tal filho do capitão fulano Carneiro fosse Luciano
Carneiro Lobo, filho de Francisco Carneiro Lobo, Capitão de Auxiliares do terço
de Paranaguá, que atuou na conquista de Guarapuava e fundação da freguesia
de Castro em 1779.7 Luciano teria idade para andar pelo Rio Grande em 1787,
quando da devassa e, mais importante, atuava com freqüência na condução de
tropas de gado, especialmente entre Curitiba e Sorocaba. Ele aparece em uma
lista de controle do “Registro de Sorocaba” como tendo passado três vezes: a
primeira em 1793, sob o nº 1223, pagando 56$590 réis em direitos ao registro. A
segunda e a terceira devem ter sido posteriores a janeiro de 1794, e deixaram
respectivamente 179$290 e 170$460 réis8 em direitos. Nada sabemos sobre os
animais que levava,9 mas é possível que tivesse ido a Viamão e proximidades
para buscá-los, quando teve seus desentendimentos com Custódio.
A única forma que tivemos de verificar as relações entre os “produtores” e
os tropeiros foi através da análise destes conflitos que vimos. Isso, de certo
modo, nos confirma a idéia de que os “produtores” não levavam suas
mercadorias para Curitiba. Esta movimentação era feita por outros sujeitos, que
vinham aos pastos da fronteira atrás de gado. Tomamos o cuidado de só
apresentar casos em que houvesse relações entre comerciantes de gado e
sujeitos que realmente estavam associados ao contrabando, ou seja, que além da
produção animal, obtinham seu gado de outras maneiras que eram proibidas e
exigiam uma elaboração mais refinada, baseada em relações sociais. Isso nos

6
Depoimento de Manuel Carvalho de Souza. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 350. Arquivo
Nacional.
7
NEGRÃO, Francisco. Genealogia Paranaense. Curitiba: Impressora Paranaense, 1926. Agradeço a
Cuca Machado pelo auxilio prestado, sobre famílias do Paraná no século XVIII.
8
Seguindo os preços cobrados no Registro, 56590 réis corresponderiam a mais de 45 mulas; 179290
corresponderiam a mais de 140 mulas; 170460 corresponderiam a mais de 135 mulas. Os preços
cobrados por volta de 1790 eram: 1250 por mula, 1000 por cavalo, 480 por égua e 240 por rês (preços
em réis). II – 35, 25, 62. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional.
9
II – 35, 25, 25-27. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional.
186

demonstra que no final do século XVIII é significativa a movimentação de


animais, que produzidos nos domínios espanhóis, eram enviados para São
Paulo.
Também se aponta a predominância dos moradores de Curitiba, Lapa e
outras regiões adjacentes na condução de animais de Viamão para Curitiba e
Sorocaba. Temos a referência de um documento de 1763 que aponta a
conveniência, para a condução de mulas, de “...peões curitibanos...”.10
Analisando a documentação produzida pela contabilidade dos Registros de
Curitiba e Sorocaba, existentes na Biblioteca Nacional, percebemos que muitos
destes tropeiros são destas localidades próximas a Curitiba, e se dedicavam a
movimentar os animais de Viamão (ou adjacências) até Curitiba ou mesmo
Sorocaba. Uma relação de dívidas de 1796 aponta algumas referencias sobre os
tropeiros devedores, por informações que os oficiais dos Registros dispunham.
Tal documento confirma a procedência destes negociantes ou condutores,
apontando Castro, Curitiba e Lapa como as principais localidades de origem.11
Tais dados nos apontam um alto grau de especialização no trato destes
animais entre as elites locais do sertão do Brasil. A elite da fronteira se reservava
o negócio da “produção” da mercadoria. Por sua vez, passava os animais para a
elite “curitibana” (na falta de expressão melhor, refere-se às localidades
supracitadas) que despachava os animais para a Sorocaba, onde havia uma
grande feira de bestas.12 Também Sorocaba tinha no negócio de animais base
importante de sua economia, sendo que boa parte da população se dedicava a
este negócio.13
Havia, no entanto, fortes ligações entre estas elites. Um exemplo bastante
significativo é o casamento de Evaristo, irmão de Rafael Pinto Bandeira, com
Cristina, filha de Luis Vicente Pacheco de Miranda, que até onde sabemos tinha
interesses no negócio de gados. Ao analisar os Autos Matrimoniais de Luis

10
Carta do Coronel José Félix para o Capitão Antônio Pinto Carneiro. APUD: REGO MONTEIRO,
Jônathas da Costa. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777). Rio de Janeiro:
IHGB/IGHMB, 1979. pg. 134.
11
II – 35, 25, 25-27 e também II – 35, 25, 92. Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional.
12
ELLIS JUNIOR, Alfredo. O Ciclo do Muar. Revista de História. v. 1, 1 (1950). p. 73-80.
13
BACELLAR, Carlos de Almeida P. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Sorocaba, século
XVIII e XIX. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2001.
187

Vicente, Hameister apontou a forte possibilidade dele ser tropeiro, juntamente


com seu irmão, José dos Santos Pacheco, que era casado em Curitiba.14
As suspeitas aumentam quando encontramos o filho mais velho de Luis
Vicente, Manuel Pacheco de Miranda, passando o Registro de Sorocaba em data
próxima a 1794.15 Outro filho de Luis Vicente, Francisco Pacheco de Miranda,
era provavelmente o pai de José dos Santos Pacheco e avô de Manuel dos Santos
Pacheco, que também andava pelo registro de Sorocaba no mesmo período que
seu tio-avô Manuel Pacheco de Miranda. E passaram provavelmente juntos.
Manuel Pacheco de Miranda passou com o bilhete nº 1290, e seu sobrinho-neto,
também Manuel, passou com duas tropas, sob os nºs 1291 e 1292,
respectivamente. Ao todo pagaram ao Registro 521$370 réis de direitos, o que
corresponderia a mais de quatrocentas e quinze mulas, pelos preços de cobrança
daquele Registro, possivelmente, levando mulas.
Manuel dos Santos Pacheco, também era neto de Francisco Teixeira
Coelho, fundador da Vila da Lapa e administrador do Registro de Curitiba
durante a última década do século XVIII. O filho de Manuel, David dos Santos
Pacheco, acabou tornando-se Barão dos Campos Gerais, um dos maiores
empresários do comércio de muares do século XIX.16
Deste modo percebemos que Evaristo acabou pautando seu casamento
pela possibilidade de ampliar negócios de venda de gado. Luis Vicente e seu
irmão já atuavam, provavelmente, desde a década de 1750 neste negócio. Além
disso, os cunhados de Evaristo também se dedicaram ao trato de animais. Deste
modo, a “produção” feita por Evaristo e outros membros da família tinha boas
possibilidades de saída, através de relações parentais atingiam os centros
redistribuidores.

O negócio dos couros.

Outra mercadoria apreciada para contrabando eram os couros. Seguindo


os passos de alguns dos compradores dos couros “produzidos”, percebemos a

14
HAMEISTER. Op cit. pg. 218.
15
A listagem de tropeiros não informa a data que Manuel passou, mas os registros anteriores são de finais
de 1793.
16
WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de Tropas. Curitiba: CD
Editora, 1995.
188

movimentação da mercadoria, as articulações existentes entre os negociantes e


os conflitos resultantes destes negócios.
As referências que dispomos para seguir estas questões estão contidas
nos testemunhos da devassa de 1787. Elas surgem a partir de conflitos entre os
negociantes, que acabaram tendo maior repercussão. Em função disso, dois
negociantes testemunharam na devassa: Nicolau Cosme dos Reis e José Vieira
da Cunha.
O porto da Vila de Rio Grande tinha no couro, durante as últimas décadas
do século XVIII e primeiras do XIX, um dos três mais importantes produtos de
exportação, ao lado do charque e do trigo.17 Em 1787, foram remetidos daquele
porto cerca de sessenta e nove mil quinhentos e setenta couros.18 Entre 1790 e
1794 o couro representou 32% do total das exportações do porto de Rio Grande,
totalizando 692.605$000 réis.19
A área produtiva, de que o porto de Rio Grande dava conta, ultrapassava
os domínios portugueses. A produção de couros feita em territórios espanhóis,
nas cabeceiras do rio Cebollatí, era em boa parte movimentada para aquele
porto. Sobre este ponto, são vários os relatos, como os dos demarcadores
Andrés de Oyarvide e Félix de Azara, o do cronista Concolorcorvo, entre as
muitas fontes que apontamos. Todavia, os couros extraídos nos domínios
espanhóis e remetidos para Rio Grande, eram “socialmente produzidos”, através
da intervenção do bando neste mercado. A questão é que muitos negociantes
tinham problemas com esta forma de “produzir” os couros, ou tentaram fazê-lo
pessoalmente, sem os elaborados relacionamentos que davam base ao bando.
Em 1784, Rafael escrevia ao Vice-rei contando algumas de suas obras.
Entre elas, destacava o combate ao contrabando que estava fazendo, com a
prisão de alguns contrabandistas e o embaraço a certos negociantes que
estavam dando cobertura ao trato ilícito:

“...mandei recolher a esta vila uns tantos comerciantes que


surraticiamente [sic] se foram unindo em um lugar que eles mesmos
inventaram o título de Povo novo, que como distante das guardas se

17
OSÓRIO. Op cit. pg. 180. A autora faz uma análise quantitativa demonstrando a importância dos
couros na economia colonial e suas flutuações.
18
DL 47, 05. IHGB.
19
AHU-RS. Cx. 3. doc. 291.
189

aproveitavam tanto eles como os contrabandistas espanhóis de fazer o


negócio clandestino.” 20

Já Manuel José de Alencastre tinha outra opinião. Disse, também ao


Vice-rei, que Rafael só desalojara (literalmente) os negociantes do Povo Novo
porque queria ser o único a negociar “...com os ditos espanhóis, para cujo fim
tinha uma loja de fazendas bem sortida em uma das suas estâncias do
Piratini.”21 Este fato foi tratado por várias testemunhas na devassa de 1787.
Cinco testemunhas confirmaram a expulsão, sendo que duas apontaram que
Rafael possuía uma loja de fazendas na Estância do Pavão. Uma das
testemunhas foi mais detalhada: “...o coronel Bandeira tinha na sua estância
do Pavão em um dos quartos da sua casa algumas fazendas que as vendia
indiferentemente a quem queria comprar...”.22
Ao que parece, o empenho de Rafael em deslocar aqueles negociantes era
mais uma forma de constranger seus concorrentes. Mas isso não apenas por um
cálculo de curto prazo, de forma a garantir o mercado de fazendas secas, mas
possivelmente porque Rafael sabia o quanto aqueles negociantes poderiam
crescer com a movimentação de mercadorias clandestinas.
E é possível que esta mesma motivação de Rafael tenha sido
demasiadamente prejudicial aos negócios de José Viera da Cunha. Em certa
ocasião, Rafael dera ordem para arrombar a porta de Viera da Cunha e fazer
uma apreensão de couros contrabandeados. Este ponto foi perguntado na
devassa de 1787 e nenhuma testemunha sabia ao certo o motivo ou como Viera
da Cunha conseguira passar com aqueles couros pelas guardas. O próprio
sujeito acabou esclarecendo a dúvida:

“...o coronel Rafael Pinto Bandeira fora a casa dele informante e lhe
confiscara quatrocentos couros que ali tinha, e que para os passar na
guarda do Beca tinha ele informante dado ao furriel de cavalaria ligeira
fulano Figueiredo que naquele tempo comandava a dita guarda a quantia
de vinte três mil réis em fazendas que o dito furriel tomou, e em alugueres
de uma casa dele informante em que morava o dito furriel, de que ele
informante se deu por pago.”23

20
Cód. 104. Vol. 06. pg. 122. Arquivo Nacional.
21
Cód. 104. Vol. 09. pg. 310. Arquivo Nacional.
22
Depoimento de Antonio José Feijó. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 334v. Arquivo Nacional.
23
Depoimento de José Vieira da Cunha. Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. Pg. 336v. Arquivo
Nacional.
190

Segundo Manuel José de Alencastre, Rafael apreendera os couros por


uma desavença com Vieira da Cunha. Rafael teria ficado sem mercadorias para
um comprador espanhol, e recorrera a loja de Viera da Cunha para suprir a
necessidade de seu “cliente”. Passado um ano sem Rafael pagar as mercadorias
de que tinha se servido, Vieira da Cunha simulou uma dívida, e pediu o
pagamento. Depois de várias negociações, envolvendo diversas mercadorias de
troca (inclusive um barco) os dois chegaram a um acordo. Por fim, Rafael devia
dar uma parte em dinheiro e Vieira da Cunha o fora cobrar. Seria este, segundo
Alencastre, o motivo do confisco dos couros. Vieira da Cunha confirmou as
informações de Alencastre em seu depoimento, sem associar, contudo, as
dívidas com a apreensão de couros.
Apesar dos conflitos com Rafael, Vieira da Cunha teve uma trajetória
muito interessante. Em 1784 era acusado de fazer contrabando de couros.24 Em
1787, fora chamado para esclarecer outras acusações que lhe eram imputadas,
chegando mesmo a confirmar algumas delas.25 Em 1789, por motivos que
ignoramos, Viera da Cunha fizera seu testamento, ainda que tenha morrido em
1810, mais de vinte anos passados. Quando de sua morte, seus herdeiros pedem
uma revisão do testamento, pois tal papel havia sido feito quando o defunto
“...se achava pobre, e atrasado em seus negócios...”26. Diziam isso pois, ao
morrer Viera da Cunha deixava mais 80:000$000 réis em bens e dívidas, sendo
uma das maiores fortunas do Rio Grande de São Pedro.27 Mas no momento em
que fazia seu testamento a situação era outra. Às voltas com o contrabando,
metido em conflitos com um dos homens mais poderosos daquelas terras, Viera
da Cunha não fazia idéia do futuro promissor que teria. Provavelmente buscava
aliar-se a outros comerciantes de seu porte para garantir a continuidade dos
negócios. Esta aliança poderia ser feita com José da Rosa Gomes, também
homem de negócio, e igualmente envolvido em contrabandos em canoas pela
Lagoa Mirim. Ao fazer seu testamento, Vieira da Cunha apontara a Rosa Gomes
como um de seus testamenteiros, logo após sua esposa e seu irmão.

24
Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo Nacional.
25
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
26
Inventário de José Vieira da Cunha. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Jaguarão. APERGS.
27
OSÓRIO. Op cit. pg. 242.
191

De José da Rosa Gomes pouco sabemos. Mas ele andava em sociedade


com um tal José da Rosa Fraga em pelo menos uma viagem de contrabando, por
volta de 1784.28
Não conseguimos verificar como ocorria o despacho dos couros
negociados por estes sujeitos para o Rio de Janeiro. Não sabemos se eles
mesmos vendiam ou se eram intermediários na transação. O único indício que
obtivemos é uma referência do inventário de Viera da Cunha a uma dívida sua
no valor de 12:035$418 réis a Tomás Gonçalves, da cidade do Rio de Janeiro.
Porém, não sabemos exatamente a que se referia esta dívida.29
Outro negociante interessado em couros, que teve dificuldades em função
da presença de Rafael Pinto Bandeira, fora José Rodrigues da Fonseca. Importa
assinalar que tivera uma embarcação sua, destinada ao contrabando,
apreendida por Rafael. Manuel José de Alencastre denunciou o uso que Rafael
fizera do barco após a apreensão. Segundo ele, o comandante o teria usado em
seu negócio pessoal de contrabando. Contudo, este é um ponto controverso, já
que nenhuma das testemunhas que trataram disso na devassa de 1787 sabia
destes ocorridos.30
Testemunha na devassa de 1787, Nicolau Cosme dos Reis também é um
caso oportuno. A primeira referência que temos dele é de uma negociação que
fizera com Vasco Pinto Bandeira, de quem comprara alguns couros da
“campanha”, os quais, como já vimos, foram “produzidos” por Vasco para
conveniência de Nicolau. Ao que parece, pelo tipo de negociação que fizera com
Vasco, Nicolau deveria agir como um grande “receptador” de couros, os quais
deveria despachar para o Rio de Janeiro. Não temos nenhuma evidência da
participação direta dele no comércio ilícito. Mas o fato de manter negócios com
um Pinto Bandeira já pode ser bastante indicativo de suas relações. Durante o
conflito com os castelhanos no início do século XIX, Nicolau “assiste” a um
navio luso de guerra chamado “Ércules [sic]”. A documentação dá a entender a
intimidade do sujeito com o trato marítimo, do que podemos concluir que se
tratasse mesmo de um negociante com um alcance maior, com vistas ao porto

28
Devassa de 1784. Cód. 104. Vol. 06. pg. 140. Arquivo Nacional
29
Inventário de José Vieira da Cunha. 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Jaguarão. APERGS.
30
Devassa de 1787. Cód. 104. Vol. 09. pg. 336v. Arquivo Nacional.
192

do Rio de Janeiro. Desta “assistência”, Nicolau procurou tirar o maior proveito,


fazendo vários pedidos de promoções militares e honrarias diversas, como o
“hábito de Cristo”.31 Não sabemos se conseguiu estas honras, mas certamente
ele fora capitão de ordenanças, o que já não era desprezível.
Da origem de Nicolau nada sabemos. Mas é patente sua preocupação em
se inserir junto à elite local. O casamento de seu filho José, por exemplo, foi
muito bem planejado. A esposa, Maria Teodora Alencastre, era neta, por parte
de pai, de Manuel José de Alencastre, do qual já falamos inúmeras vezes. Por
parte de mãe, Maria era neta de Antonio Rodrigues Barbosa,32 um sujeito
próximo a Rafael Pinto Bandeira, que acobertou contrabando na década de
1770, quando ainda era soldado.33 Deste modo, Nicolau construía raízes mais
sólidas para seus negócios.
Até aqui estamos pontuando práticas comerciais já conhecidas, entre os
portos de Rio Grande e Rio de Janeiro,34 e que, como vimos, têm relação direta
com o comércio ilícito. Existia ainda outra rota. Sobre ela temos poucas fontes,
mas pode nos revelar a dimensão das relações criadas e mantidas pelo “bando”
em uma esfera comercial maior. Trata-se de ligação com o porto de Montevideo,
nos domínios espanhóis e aos comerciantes ali sediados.
Quem nos entrega o jogo é o próprio Vice-rei do Brasil, Luís de
Vasconcelos, em 1784, quando faz uma reclamação a Rafael Pinto Bandeira, a
pedido de um negociante de Montevideo chamado Juan Pedro de Aguirre. O tal
Aguirre reclamava um importe vultuoso em “prata forte”, que fora entregue a
Jerônimo Xavier de Azambuja para que fosse remetido ao Rio de Janeiro.
Jerônimo enviara apenas uma parte do dinheiro combinado. Não sabemos a
quem era dirigido o importe. Mas pode ser um bom indicativo das relações
existentes entre negociantes de grosso trato espanhóis35 e sujeitos ligados ao
bando liderado por Rafael Pinto Bandeira.

31
AHU-RS. Cx. 7. Docs. 493 e 498.
32
Revista Genealógica Latina, Numero 6.
33
Depoimento de Antonio de Araújo. Devassa de 1773. RMAPRGS. pg. 316.
34
OSÓRIO. Op cit.
35
Juan Pedro de Aguirre é citado em TEJERINA, Marcela. La apertura comercial del Río de la Plata a
fines del Antiguo Régimen y su impacto en la plaza mercantil porteña: la presencia portuguesa.
Seminario Mercantilismo y comercio en el mundo ibérico. Universidad Argentina de la Empresa,
Buenos Aires. 2001. pg. 3. nota. 8.
193

Finalmente, há a referência do ingresso de escravos e fumos no contra-


fluxo dos couros. Essa acusação é feita nos “Capítulos contra Rafael Pinto
Bandeira”36 e em outros documentos, como um relatório feito por um oficial da
administração lusa, Manuel Antonio de Magalhães.
Este comércio existente entre a fronteira e outras partes da Colônia é um
indicativo da importância, não apenas da região, mas do contrabando numa
esfera maior. Neste sentido, a fronteira não tinha apenas importância
geopolítica dentro do Império português, mas também uma importância
econômica, como fornecedora de várias mercadorias, entre as quais animais e
seus derivados, fossem eles de contrabando ou não. Não apenas os moradores
da fronteira que percebiam nesta atividade ilícita uma fonte de renda. Pessoas
como os moradores da Lapa também dependiam deste comércio de animais,
ainda que ignorassem que eram “produzidos” de forma peculiar.

36
Cód. 104. Vol. 06. pg. 143.Arquivo Nacional.
194

GRÁFICO 8
195

Poder Local e Império.


O jogo da reciprocidade era moeda corrente nas mãos da família Pinto
Bandeira. Essa grande rede de relacionamentos que Rafael liderava tinha uma
grande extensão e um especial impacto social na fronteira. Seu comando, a
possibilidade de levantar recursos e seu reconhecimento e liderança locais não
poderiam ser desinteressantes para a Coroa. Na manutenção das possessões ao
sul da América Portuguesa, tinha na figura de Pinto Bandeira um importante
aliado, alguém capaz de mobilizar seus recursos para defesa dos interesses da
Coroa como já havia feito antes, durante a ocupação espanhola em Rio Grande.
Todavia, esta não foi uma posição homogênea. As atitudes mantidas por
autoridades lusas, tanto na fronteira, no Rio de Janeiro ou na Corte, foram
diversas, e mais de uma vez Rafael esteve em conflito com representantes da
Coroa.
Durante a década de 1770, Rafael andou muito ocupado em guerras,
contrabandos e arreadas, o que provocou reações diversas por parte das
autoridades lusas. Por seu lado, o governador Marcelino de Figueiredo, ao que
parece, nunca entrou em conflito com Rafael até os anos finais da década. Já o
Marquês do Lavradio, desde 1774 já tinha seus problemas com Rafael, no qual
não via as qualidades que fizeram a honra do pai, Francisco Pinto Bandeira. 37
Enquanto isso, na Corte, os pedidos de Rafael para receber o “Hábito de Cristo”
e uma patente de Coronel, foram rapidamente concedidos.38 Surgiram, contudo,
conflitos com o governador Marcelino de Figueiredo39 no final da década. Por
uma série de razões, entre as quais descaminho da Fazenda Real e contrabando,
Marcelino acabou colocando Rafael na cadeia.
Esta prisão sofreu críticas de várias autoridades da administração. Em
carta do Vice-rei Luis de Vasconcelos ao Secretário da Marinha e Ultramar,
percebe-se a forma cotidiana que a negociação entre súditos e o governo
tomava: “...no meu conceito aquele Governador tinha procedido com paixão, e
excesso de jurisdição, prendendo um Coronel por culpas, que por

37
AHU-RS. Cx. 3. Doc. 189.
38
F1244. 144v. AHRS.
39
Marcelino era português, e veio para o Brasil, com o auxílio de Pombal, para escapar da pena de morte
por ter assassinado um oficial inglês. Maiores informações em SILVA. Op cit.
196

verdadeiras que fossem, não pediam uma tão pronta


40
providencia...” Esta desautorização da atitude do governador nos indica um
pouco a maneira como a coroa fazia vistas grossas para certos tipos de
contravenção. Enquanto não houvessem excessos, estava salvaguardada a ação
do sujeito. Numa sociedade onde a desigualdade define o lugar dos homens, isso
variava muito conforme o culpado. Bernardo Balecho, um dos contrabandistas
detidos por Rafael, não teve direito a recurso algum, sendo diretamente preso.
Rafael foi remetido para o Rio de Janeiro, a ser julgado por um
“Conselho de Guerra”.41 Enquanto o processo se desenrolava, Marcelino de
Figueiredo ia dando sinais de desgaste cada vez mais evidentes. Em carta ao
Marquês do Lavradio, manifestava sua situação embaraçosa, de ter que admitir
aquilo que considerava abusos de poder por parte de pessoas não autorizadas:

“não é possível que sem um milagre continuo se conserve um Continente


que alias podia ser talvez a melhor Capitania do Brasil em que o
Governador não tem a autoridade que Sua Majestade lhe
42
confere”.

Em função destes problemas, Marcelino não andava bem: “...tenho


sofrido tanto até o ponto de estar velho antes do tempo, e cansado, e
amofinado; e verem-se agora autorizados os maiores ladrões...”. Chegou a
ponto de implorar ao Vice-rei: “...rogo a Vossa Excelência concorra para me
tirarem daqui...”.43 Em outra carta, queixava-se da:

“...falta de respiração e achaque no peito, além de estar cheio de impigens,


e o maior embaraço é ter uma rótula na virilha esquerda que me não deixa
andar sem trabalho e sem funda, e que por isto posso dizer que quebrei
no negócio que cá vim fazer.”44

Este tipo de conflito, entre o governador e o “bando” não foi exclusivo da


fronteira. Também é visível no Rio de Janeiro o século XVII, quando o
governador Francisco Soutomaior entrou em sério conflito com grupos
poderosos da terra, como a família Sá. Mais para o final do século, o governador

40
RMAPRGS. pg. 11-12. Grifo nosso.
41
Tribunal Militar. Cf. HESPANHA. História de Portugal. Op cit. pg. 162.
42
RMAPRGS. pg. 199. Grifo nosso.
43
RMAPRGS. pg. 200.
44
Idem. Grifo nosso.
197

Castro e Caldas se queixava do mesmo problema.45 Neste sentido, não há como


afirmar que são problemas resultantes do contraste entre o projeto racional
Pombalino e os velhos costumes locais. Estes desentendimentos são fruto da
contínua negociação entre o poder central e as elites locais, que muitas vezes
assumia formas mais conflituosas.46
Uma figura interessante para contrastar com Marcelino seria Inácio
Osório Vieira, o provedor da Fazenda. Osório Vieira veio com sua família de
Portugal em meados do século, conseguindo logo um posto de escrivão em 1752.
Foi através de pequenos postos galgando posições, até tornar-se Provedor em
176547 sendo confirmado apenas em 1768.48
Ao longo de seus mais de vinte anos como Provedor da Fazenda Real,49
Osório Vieira não titubeou em promover investigações, fazer devassas e enviar
informações para o Vice-rei. Mais de uma vez ameaçou aos transgressores,
ainda que sempre de forma genérica, sem acusações específicas. De certo modo,
ele sempre estivera preocupado com o contrabando e não com os
contrabandistas, especificamente. Ao contrário de Marcelino de Figueiredo,
Osório Vieira não comprou briga com ninguém em particular. Fazia as vezes de
Provedor zeloso, perseguindo, em tese, aos contraventores, mas nunca a ponto
de colocar em risco sua situação de Provedor. Mas não estamos, com isso,
afirmando que fosse cúmplice, ou como se dizia, consentidor dos contrabandos.
Fazia isso para preservar sua posição e seu posto. Até onde sabemos, ele foi
muitas vezes refúgio de vítimas do “bando”, como Manuel José de Alencastre,
que uma vez perseguido por Custódio Ferreira, foi bater a porta do provedor,
sendo preso, contudo, antes disso, por ordem de Rafael Pinto Bandeira.

45
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA,
Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pg. 59 e 60.
46
GREENE, Jack. Negotiated authorities. Essays in colonial political and constitutional history.
Charlottesville & London: The University Press of Virginia, 1994. e PUJOL, Xavier Gil. Centralismo
e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias
Européias dos Séculos XVI e XVII. Penélope - Fazer e desfazer a história. v. 6 (1991). p. 119-144.
47
F1243. 23. AHRS.
48
F1243. 139v. AHRS.
49
Osório Vieira pediu afastamento em 1790, ainda que tenha sido consultado e mesmo referido como
Provedor nos anos seguintes.
198

Osório Vieira agia de maneira contida como uma garantia de


sobrevivência. Até onde sabemos, ele não possuía articulações sociais que lhe
garantissem outros meios, e tampouco temos registro de que tenha usado de sua
posição privilegiada em benefício próprio. Não temos registro de posses suas,
além de alguns escravos que lhe serviam.50 Defrontar-se com o “bando” era uma
opção, seguida, com efeito, por Marcelino, mas profundamente suavizada por
Osório Vieira. Este último obteve sucesso em sua estratégia, garantindo seu
posto em meio a duas décadas conturbadas, nas quais se revezaram quatro
governadores, entre os quais Marcelino de Figueiredo. Quando este último saia
de seu posto, Rafael Pinto Bandeira estava voltando, solto por ordem da
Rainha.51
Enquanto Rafael era julgado, um novo Vice-rei estava assumindo: Luís de
Vasconcelos e Souza. As relações entre a nova autoridade e Rafael iniciaram-se
boas, com um certo posicionamento favorável de Vasconcelos a Rafael durante o
Conselho de Guerra.52 Contudo, estas foram tomando um outro desdobramento
e, já em 1784, estava claro que não havia um entendimento muito bom entre os
dois.53 Além disso, Vasconcelos ordenou várias investigações sobre as atitudes
de Pinto Bandeira, ainda que sempre de forma dissimulada. Era uma forma de
que o Vice-rei se valia para reger sem aumentar os problemas com os poderes
locais.
Neste tempo, Rafael contava com um governo favorável na fronteira.
Sebastião Cabral da Câmara, que assumira em 1780, nunca se opôs de modo
algum ao “bando”, chegando inclusive a tentar embargar investigações em 1784,
54
quando o próprio Vice-rei lhe tomou satisfações. Em carta ao Secretário de
Estado e Ultramar, Vasconcelos se queixava da complacência daquele
governador. Sebastião Cabral da Câmara ficou vinte anos neste posto,
revezando-se no poder com dois governadores interinos: Joaquim José Ribeiro
da Costa e o próprio Rafael Pinto Bandeira. Durante este tempo houve nova
troca de Vice-rei, e o novo regente, o Conde de Resende, assumia seu posto logo

50
Dito por Fábio Kühn, em comunicação pessoal.
51
F1244. 188v. AHRS.
52
RMAPRGS. pg. 11-12.
53
Carta de Rafael Pinto Bandeira a Luís de Vasconcelos. APUD: SILVA. Op cit. pg. 122.
54
Cód. 104. Vol. 6. Pg. 560. Arquivo Nacional.
199

após a volta de Rafael Pinto Bandeira da Corte, onde havia sido feito Brigadeiro
pela Rainha.
De fato, não temos evidências concretas de que Rafael tivesse boas
relações com Resende. Mas tampouco temos a mínima referência de que
houvesse algum atrito. Apenas uma carta, escrita por Manuel Marques de Souza
em 1795, sugere que Rafael fosse “...protegido...” daquele Vice-rei. 55 A mesma
coisa acontecia com o Secretário de Estado e Ultramar, Martinho de Melo e
Castro. É certo que Luís de Vasconcelos informava com vigor ao dito Secretário
dos “abusos” feitos por Rafael, sem que tenhamos a mínima ordem de controle
por parte deste oficial de Lisboa. Pelo contrário. Silva nos apresenta um
documento em que o Secretário de Estado e Ultramar dá ordem ao Vice-rei
(ainda Luis de Vasconcelos) para que abone o valor de dois cavalos ao agora
Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, e somente a ele, pois “...só o suplicante se faz
merecedor pelos seus relevantes serviços.”56
Um outro aspecto das relações entre as autoridades régias e o “bando”
foram as remessas e o cuidado que Rafael Pinto Bandeira manteve com os
“objetos da história natural”. Em algumas das cartas que ao Secretário de
Estado e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, e mesmo ao Vice-rei, Luis de
Vasconcelos, Rafael comenta que tem se dedicado a buscar coisas daquilo que
chama de história natural, como se fosse inquirido sobre isso, e estivesse
respondendo com satisfação: “A remessa das folhas para essa cidade
continuarei como tenho feito enquanto houverem os insetos e da mesma forma
o que puder adquirir para a estória natural do que é falto este continente.”57.
Em 1792, ele anunciou que estava velho e pedia para se aposentar de seu
cargo, além de informar que uma galera feita no Rio Grande de São Pedro
estaria em breve chegando à Lisboa, com “algumas coisas curiosas para a
história natural”.58
A partir da década de 1770 despertou em Portugal um grande interesse
pelo estudo das potencialidades existentes no Império Português, com o

55
AHU-RS Cx. 3. doc. 291.
56
Carta de Martinho de Melo e Castro a Luis de Vasconcelos. APUD: SILVA. Op cit. pg. 136.
57
Cód. 104. Vol. 06. pg. 122-127.
58
AHU-Brasil Limites. cx. 3 doc. 253.
200

incentivo a estudos sobre elementos científicos e mesmo coleta de objetos em


todos os recantos dos domínios portugueses. Neste sentido, foi criada a Real
Academia das Ciências de Lisboa, que “...funcionou como um grande centro de
troca de informações coletadas pelos vários oficiais régios encarregados
dessas expedições pelos sertões do Império.”59
Um dos agraciados, Luis de Vasconcelos, poderia mesmo se impressionar
com tal atitude. Ele não somente se interessava por tais assuntos, como
encarregou ao naturalista José Mariano da Conceição Veloso de fazer um
levantamento denso da flora existente no Rio de Janeiro, entre 1783 e 1790, que
acabou resultando na obra Flora fluminensis. Quando Vasconcelos voltou para
Portugal, trouxe consigo Conceição Veloso e todas as amostras que puderam
recolher.60 Não sabemos se Martinho de Melo e Castro tinha também estes
interesses, mas, de qualquer maneira, estes “objetos” iriam acabar na Academia
de Ciências, sendo igualmente convenientes.
Rafael enviava objetos cuja curiosidade aumentava na metrópole,
demonstrando não apenas ser um súdito atento aos novos interesses, mas
também generoso. Ao despedir-se do cargo, enviava um refinado presente,
digno dos seus agraciados.

59
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração na formação do complexo
atlântico português. IN: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de
Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2001. pg. 311.
60
Ciência em Portugal. Instituto Camões. Site www.instituto-camoes.pt/cvc/cultura.html. Consultado em
24-12-2002.
CONCLUSÃO

A investigação vem se aproximando do final. É chegada a hora de emitir


um parecer conclusivo.
Observamos que avaliar o contrabando foi uma tarefa difícil, tanto para
as autoridades lusas como para os súditos. Diante de um impasse entre manter
os territórios da fronteira e coibir o contrabando, as autoridades lusas muitas
vezes acabaram abrindo mão do segundo, até porque a Coroa portuguesa não
dispunha de recursos per si para garantir a defesa de seus territórios no
ultramar, muito menos para reprimir as atividades ilegais com o zelo devido.
Neste sentido, havia uma necessidade contínua de garantir as alianças com as
elites locais, mesmo que isso significasse uma certa permissividade.
O contrabando que estudamos perpassava toda uma sociedade, e
significava, ao mesmo tempo, alternativa de sobrevivência e meio de
diferenciação social. Seu caráter ilegal o tornava interessante apenas para uma
determinada elite que através de relações de poder, parentesco e reciprocidade,
articulava boa parte daquela população na forma de um “bando”, excluindo os
demais desta atividade. Era desta forma que o contrabando se reproduzia e
contribuía para reproduzir as estruturas sociais.
Promovido em um espaço onde a guerra acontecia paralelamente à
criação de laços socioeconômicos entre os mesmos agentes, o contrabando era
determinado por esta situação, que aparentemente contraditória, tinha sentido
para quem a vivia. Esta área, por nós chamada de fronteira, era caracterizada
pela existência de um controle relacional, que permitia o ingresso de
determinadas mercadorias a poucos homens “escolhidos”.
Observando de perto a alguns destes sujeitos, percebemos que havia
relações bastante sofisticadas por trás de seus negócios. Estas articulações
202

envolviam oficiais da Coroa, peões, escravos, militares, lavradores, estancieiros,


entre outros, que estavam unidos sob uma organização hierarquizada, que tinha
como líder Rafael Pinto Bandeira, membro da elite local, descendente dos
conquistadores e um dos mais poderosos e aparentados da terra.
Este “bando” estava ancorado numa base social muito forte. Havia entre
esta base (composta de peões, escravos e soldados) e a elite um continuum de
relações de reciprocidade, onde o acesso ao trabalho sazonal (que significava
ganhos inesperados), à terra, a promoções militares e à proteção eram moeda
corrente, tendo como contrapartida o apoio e a fidelidade destes sujeitos. Esta
reciprocidade era, então, excludente, privilegiando o acesso de poucos a
determinados bens, o que contribuía para reproduzir a desigualdade.
O couro e as bestas muares eram as principais mercadorias
contrabandeadas. Uma vez produzidas nos domínios espanhóis, elas eram
despachadas em direção aos territórios lusos. Neste percurso ocorria a
“produção social” destas mercadorias, que de contrabando passavam a ser
produtos legais e comercializáveis. Esta transformação ocorrida na mercadoria
era determinada pelos relacionamentos dos contrabandistas. O “bando”, através
de sua organização, possuía uma forma sofisticada e privilegiada de promovê-la.
Esta mesma organização garantia o escoamento da “produção” para
outros pontos do Império, e se dava também através do estabelecimento de
relações entre membros do bando e negociantes de outras localidades, o que
incluía casamentos e trocas de presentes. Percebemos, assim, que tal mercado
era dominado por relações muito mais complexas do que a compra e a venda.
Ao encerrar este trabalho, gostaríamos de apontar alguns objetos que
surgiram durante a pesquisa. O mercado de gado entre a fronteira e Curitiba (e
Sorocaba) é algo que pode render bons frutos e para o que há grande
documentação. Da mesma forma, não apenas o negócio de couros para o Rio de
Janeiro, mas seu contrafluxo, na forma de escravos e fumo, poderia ser mais
estudado, já que pode revelar aspectos novos daquela economia. Mas isso fica
para o futuro.
Lista de Ilustrações

Figura Descrição pg.

1 Mapa: “fronteiras” do Rio Grande e do Rio Pardo 25


2 Mapa: “Fronteira” dos Contrabandistas 28
3 Mapa: Trajeto entre Santa Fé e Minas 99
4 Organograma representando o Bando de Rafael Pinto Bandeira 151
5 Mapa: Caminhos Terrestres 164
6 Mapa: Rota fluvial de contrabando de couros 171
7 Mapa: Negócios da “Fronteira” com outras áreas coloniais 194
Lista de Siglas

Sigla Descrição

AHU Arquivo Histórico Ultramarino.


AHU-RS Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate - Rio de Janeiro
AHU-RJ Arquivo Histórico Ultramarino - Projeto Resgate – Rio Grande do Sul.
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
AN Arquivo Nacional.
BN Biblioteca Nacional.
ACMPA Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre.
RMAPRGS Revistas do Museu e Arquivo Público do Rio Grande do Sul.
AESP Arquivo do Estado de São Paulo
AGN Archivo General de la Nación
APERGS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
AHRS Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul
AHEX Arquivo Histórico do Exército Brasileiro
203

FONTES PRIMÁRIAS

FONTES IMPRESSAS

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 01. Porto Alegre: AHRS,
1977.

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 11. Porto Alegre: AHRS,
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Anais da Biblioteca Nacional – Inventário de Documentos Relativos ao Brasil


existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar – Rio de Janeiro, 1756- 1757.
Vol. 71. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional - Divisão de Obras Raras e
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APOLANT, J. A. Padrones Olvidados de Montevideo del siglo XVIII. v. I y II.


Separata del “Boletín Histórico del Estado Mayor del Ejercito, no 104-105 y
no 106-107. Montevideo: Imprenta Letras, 1966.

Autos principaes do conselho de guerra a que foi submettido o coronel Rafael


Pinto Bandeira. IN: Revista do Museu e Archivo Público do Rio
Grande do Sul. Nº 23. MAPRGS/Livraria do Globo, 1930.

AZARA, Félix de. Memória Rural do Rio da Prata. IN: FREITAS, Décio. O
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BIBLIOTECA NACIONAL. Documentos Históricos: Provedoria da Fazenda de


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BLUTEAU. Raphael. Vocabulário Portuguez e latino. Rio de Janeiro: UERJ, S.D.

CONCOLORCORVO. (Don Calixto Bustamante Carlos) El Lazarillo de


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204

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parte I. São Paulo.

Dos noticias sobre el estado de los campos de la Banda Oriental al finalizar el


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