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Universidade Federal de Juiz de Fora

Sociologia Jurídica

Resenha: A força do direito, por Pierre Bourdieu

Daniel Dore Lage - 200804114

Juiz de Fora
2010
BOURDIEU, Pierre. (1986), “A força do direito. Elementos para uma sociologia do
campo jurídico”. Em O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

Pierre Félix Bourdieu graduou-se em Filosofia (1954). Desenvolve ao longo


das décadas de 1960 a 1980 farta obra, contribuindo significativamente para a
formação do pensamento sociológico do século XX. Bourdieu, permitindo ter seu
pensamento rotulado, adota como nomenclatura o construtivismo estruturalista ou
estruturalismo construtivista.Esta postura consiste em admitir que existe no mundo
social estruturas objetivas que podem dirigir, ou melhor, coagir a ação e a
representação dos indivíduos, dos chamados agentes. No entanto, tais estruturas
são construídas socialmente assim como os esquemas de ação e pensamento,
chamados por Bourdieu de habitus. Bourdieu tenta fugir da dicotomia
subjetivismo/objetivismo dentro das ciências humanas. Rejeita tanto trabalhar no
âmbito do fisicalismo, considerando o social enquanto fatos objetivos, como no do
psicologismo, o que seria a "explicação das explicações". O momento objetivo e
subjetivo das relações sociais está numa relação dialética. Uma das mais
importantes questões na obra de Bourdieu se centraliza na análise de como os
agentes incorporam a estrutura social, ao mesmo tempo em que a produzem,
legitimam e reproduzem.

O autor começa assinalando um conjunto de visões que demarcaram modos


de esclarecimento, legitimidade e fundamentação do direito. Sob esse prisma,
observa que tanto as leituras de cunho interno, voltadas à reivindicação da
autonomia absoluta da ação jurídica, a partir de uma “teoria pura do direito” (Kelsen),
quanto àquelas de caráter externo (marxista, que assume o direito como
“instrumento” da burguesia ou “aparelho” de Estado), foram incapazes de enunciar a
complexidade que perpassa a questão. Segundo o autor,
para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial,
sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as
duas visões antagonistas, internalistas e externalista, ignoram uma e outra,
quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente
em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce
a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima
cujo monopólio pertence ao Estado, e que se pode combinar com o
exercício da força física. As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito,
produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está
duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas
que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência
ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e,
por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em
cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das
soluções propriamente jurídicas.”

O campo jurídico é o local do direito de ‘dizer o direito’, no qual se defrontam


agentes investidos da capacidade reconhecida de interpretar textos que consagram
a visão justa do mundo social. Para tanto, diz respeito a um corpo fortemente
integrado de instâncias hierarquizadas que declina sobre as instituições as normas e
suas fontes, assim como os modos de resolução de conflitos correlatos aos seus
intérpretes. A elaboração de um conjunto de regras e procedimentos com pretensão
universal é produto da chamada ‘divisão do trabalho’. Nesse cenário, a própria
configuração do ‘corpus’, sobretudo, a normalização, depende muito da força dos
estudiosos teóricos, dos profissionais práticos e da capacidade de demonstrarem
sua visão do direito e sua interpretação. A linguagem jurídica segue a lógica de
“apriorização”, o que significa combinar elementos diretamente retirados da
linguagem comum e elementos externos ao sistema, produzindo uma retórica da
impessoal e neutra. Chega-se a dois efeitos: O efeito de neutralização, que é obtido
por um conjunto de características sintáticas; e o efeito de universalização, que é
obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático, o emprego
de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado; o uso
de indefinidos, etc. Com efeito, segundo o autor,
(...) o conteúdo prático da lei que se revela no veredicto é o resultado de
uma luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e
sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar, embora de modo
desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das
“regras possíveis”, e de os utilizar eficazmente, quer dizer, como armas
simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o efeito jurídico da regra,
quer dizer, a sua significação real, determina-se na relação de força
específica entre os profissionais, podendo-se pensar que essa relação
tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor na
equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os que
estão sujeitos à jurisdição respectiva.

A instituição de um espaço judicial implica a imposição de uma fronteira entre os que


estão preparados para obedecer as regras e os que são dele excluídos, por não
poderem compreender a magnitude de seu alcance.Consoante Bourdieu,
A situação judicial funciona como lugar neutro, que opera uma verdadeira
neutralização das coisas em jogo por meio da “des-realização” e da
distanciação implicadas na transformação da defrontação directa dos
interessados em diálogo entre mediadores. Os agentes especializados,
enquanto terceiros – indiferentes ao que está directamente em jogo (o que
não quer dizer desinteressados) e preparados para apreenderem as
realidades escaldantes do presente atendo-se a textos antigos e a
precedentes confirmados – introduzem, mesmo sem querer nem saber, uma
distância neutralizante a qual, no caso dos magistrados pelo menos, é uma
espécie de imperativo da função que está inscrita no âmago dos habitus: as
atitudes ao mesmo tempo ascéticas e aristocráticas (...) constantemente
lembradas e reforçadas pelo grupo dos pares (...).

A criação do campo jurídico é inseparável à instauração de um monopólio dos


serviços jurídicos. As instituições jurídicas e seus atores possuem o poder de impor
o princípio universalmente reconhecido de ciência do mundo social, o nomos (isto é,
princípio universal de distribuição legítima). Nesta perspectiva, o poder judicial
encerra o monopólio da violência simbólica legítima, cujos enunciados representam
a forma por excelência da palavra autorizada, pública, oficial, enunciada em nome
de todos e perante todos. Conforme o autor, para se explicar o que é o direito, na
sua estrutura e no seu efeito social, faz-se necessário ter presente a lógica própria
do trabalho jurídico no que ele tem de mais específico, quer dizer, a formalização.
Nas palavras do autor:

O trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos: pela própria força da


codificação, que subtrai as normas à contingência de uma ocasião
particular, ao fixar uma decisão exemplar (um decreto, por exemplo) numa
forma destinada, ela própria, a servir de modelo a decisões ulteriores, e que
autoriza e favorece ao mesmo tempo a lógica do precedente, fundamento
do modo de pensamento e de acção propriamente jurídico, ele liga
continuamente o presente ao passado e dá a garantia de que, salvo
revolução capaz de pôr em causa os próprios fundamentos da ordem
jurídica, o porvir será à imagem do passado e de que as transformações e
as adaptações inevitáveis serão pensadas e ditas na linguagem da
conformidade com o passado. O trabalho jurídico, assim inscrito na lógica
da conservação, constitui um dos fundamentos maiores da manutenção da
ordem simbólica também por outra característica do seu funcionamento:
pela sistematização e pela racionalização a que ele submete as decisões
jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou as justificar, ele
confere o selo da universalidade, factor por excelência da eficácia simbólica,
a um ponto de vista sobre o mundo social que (...) em nada de decisivo se
opõe ao ponto de vista dos dominantes. E, deste modo, ele pode conduzir à
universalização prática, quer dizer, à generalização nas práticas, de um
modo de acção e de expressão até então próprio de uma região do espaço
geográfico ou do espaço social.

Concluindo, compreende-se que em uma sociedade diferenciada, o efeito da


universalização é um dos mecanismos pelos quais se exerce a dominação
simbólica. A norma jurídica, sob esse prisma, quando consagra em conjunto
formalmente coerente de regras universais os princípios práticos do estilo de vida
simbolicamente dominante, tende a informar as práticas do conjunto dos agentes,
para além das diferenças de condição e de estilo de vida (efeito de
universalização/efeito de normalização), revelando-se o direito como um instrumento
de normalização da vida social por excelência. O direito é, sem dúvida, a forma por
excelência do poder simbólico de nomeação que cria as coisas nomeadas e, em
particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas das suas operações de
classificação toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é
capaz de conferir a instituições históricas. Ainda, o direito é a forma por excelência
do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais
dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é
feito por este. Cabe ressaltar que tais operações se desenvolvem no âmbito de
estruturas estruturadas, historicamente construídas, que possuem o objetivo de
“construir o mundo”, mas dentro dos limites da sua correspondência com estruturas
preexistentes.

Esta é uma obra de leitura truncada, que me exigiu certa abstração. Porém, é
bem dividida, o que justifica a formatação em tópicos. Sua mensagem é relevante
para todos os estudantes da ciência do direito em sentido lato pois que é realidade
que o direito é um símbolo social cogente que deve ser estudado em forma dialética
– nunca parcialmente aos extremos. Parece-me leitura obrigatória aos graduandos e
profissionais que estudam a sociedade em geral e querem entender, sob a
perspectiva de Bourdieu, o que representa o direito para a sociedade como um todo.

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