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Sistema legislativo brasileiro

Olavo Nery Corsatto

Sumário
1. Legislação: conceito e composição. 2. Atos
normativos e outros atos legais. 3. Sistema le-
gislativo brasileiro: elementos e estrutura. 4.
Ordem nacional. 4.1. Constituição e Emendas
Constitucionais: natureza e funções. 4.2. Leis
Complementares: natureza e funções. 5. Ordens
parciais. 5.1. Leis ordinárias e outras leis: espécies
e funções. 5.1.1. Leis ordinárias. 5.1.2. Leis Dele-
gadas. 5.1.3. Medidas Provisórias. 5.1.4. Decre-
tos Legislativos. 5.1.5. Resoluções. 5.2. Decre-
tos: espécies e funções. 5.3. Normas complemen-
tares: espécies e funções.

1. Legislação: conceito e composição


“Legislação” (de legislatio), segundo os
dicionários, é o “conjunto ou corpo de leis
que regula um país ou uma matéria qual-
quer”. Ou seja, o termo pode designar tanto
o universo das leis de um país, como parte
desse universo, desde que se limitem a de-
terminada matéria.
O conceito, todavia, peca por insuficiên-
cia, quando atinente apenas às leis de parte
de um país (Estado ou Município, por exem-
plo), ou de órgão público, ou de determina-
do período; e pode compreender não só as
leis, como também outros atos legislativos –
os decretos, as portarias, as instruções mi-
nisteriais etc.
Por sua vez, a expressão “atos legislati-
Olavo Nery Corsatto é Mestre em Direito e vos” é às vezes entendida como significan-
Consultor Legislativo do Senado Federal. do os atos editados pelo Poder Legislativo,
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enquanto seriam “atos executivos ou admi- tos de quatro funções cada um. Há,
nistrativos” os emanados do Poder Execu- então, funções estatais e funções dos
tivo; e “atos judiciais” os do Poder Judiciá- Poderes. As funções estatais são as que
rio. Ora, isso não é totalmente verdadeiro, chamei de funções maiores por referi-
pois, como se sabe, essas três espécies de rem-se aos Poderes como tais ou como
atos são emitidas pelos três Poderes, ao exer- um todo. As funções que compõem
cerem suas competências constitucionais. É cada um dos Poderes chamo de fun-
claro que uma delas prevalece e preponde- ções menores. São elas: a função me-
ra sobre as outras, por constituir a sua fun- nor administrativa, a função menor
ção principal, a própria razão de existência normativa, a função menor judicativa
do Poder. Prevalece e prepondera, mas não é e a função menor controlativa.
a única, nem constitui seu monopólio. A pro- “Qual o sentido disso a que cha-
pósito, escreve Kildare Gonçalves Carvalho: mei predominância? Quando digo
“Essas considerações revelam que que uma função menor predomina
a especialização de funções estatais, numa função maior (a executada pelo
relacionada com o princípio da sepa- Poder como tal) quero dizer que a mes-
ração de Poderes, é relativa, pois, na ma é a atividade-fim desse poder, sen-
realidade, consiste numa predominân- do as outras atividades-meio. Pode-
cia e não exclusividade desta ou da- mos então dizer simplesmente: na
quela função desempenhada por um função executiva predomina a função
órgão ou complexo de órgãos do Esta- administrativa; na função legislativa
do. Assim, os Poderes Legislativo, predomina a função normativa; na
Executivo e Judiciário exercitam as função jurisdicional predomina a fun-
funções legislativa, executiva ou ad- ção judicativa; e, finalmente, na fun-
ministrativa, e jurisdicional, em cará- ção maior Controle predomina a fun-
ter predominante e não exclusivo, já ção controlativa.
que, como se deduziu, cada um des- “Proponho uma terminologia es-
ses Poderes poderá desempenhar, pecial para distinguir essas funções
excepcionalmente, uma função mate- menores predominantes e o faço por
rial de outro Poder” (1993. p. 24). paralelismo com o já existente termo
Uma visão científica das funções do Es- função jurisdicional: administracional,
tado nos é oferecida por Marques Oliveira controlacional e legislacional.
(1987, p. 48): “Isso nos leva a entender clara-
“Na concepção tetraédrica do Es- mente que a função predominante,
tado temos quatro funções maiores: quando exercida interno corpore, é fun-
Executiva, Legislativa, Judiciária e ção menor, mas, se realizada externo
Controladora. Cada uma dessas fun- corpore, passa a valer função maior.
ções exerce, como Poder, uma função Ou seja, a função predominante pode
específica: o Poder Executivo realiza ser tanto atividade-fim do respectivo
a maior função executiva; o Poder Le- Poder, como não passar ela própria
gislativo exercita a função maior le- de atividade-meio. Assim, o Executi-
gislativa; o Poder Judiciário executa a vo administra para todo o Estado (fun-
função maior jurisdicional; e a função ção maior, atividade-fim) – como tam-
maior Controle, atualmente repartida bém pode administrar-se (função me-
pelos três Poderes, não tem um Poder nor, atividade-meio). O Legislativo le-
onde se encarne. gisla para o Estado (função maior, ati-
“Os Poderes do Estado, por sua vidade-fim) e também legisla para si
vez, são também tetraedros compos- mesmo (função menor, atividade-

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meio). O Judiciário julga para todo o II); e a do Presidente da República de editar
Estado (função maior, atividade-fim), medidas provisórias e leis delegadas (arts.
e julga para si (função menor, ativida- 62 e 68). Claro, trata-se de exercício excepcio-
de-meio). E, atualmente, o Tribunal de nal, no confinamento traçado na Lei Maior.
Contas da União exerce o controle de Além da lição de Marques Oliveira, a
todo o Estado (função maior, ativida- pesquisa do termo “legislação” é facilitada
de-fim) e controla-se a si mesmo (fun- pelo direito positivo, porquanto, como se
ção menor, atividade-meio). sabe, é o próprio direito que regula a sua
“É de notar-se que cada Poder está criação.
sujeito duplamente à sua função me- A Constituição, no art. 59, estabelece que
nor predominante. Assim, o Executi- o processo legislativo compreende a elabora-
vo não só se administra pelo exercício ção de emendas à Constituição, leis com-
da sua função menor administrativa plementares, leis ordinárias, leis delegadas,
mas ainda se administra quando ele medidas provisórias, decretos legislativos e
administra para todo o Estado (fun- resoluções. Por sua vez, o Código Tributá-
ção administracional), uma vez que rio Nacional, no art. 96, alberga sob a ex-
ele próprio faz parte do Estado. O Le- pressão legislação tributária, além das leis
gislativo, quando elabora uma Lei, fica (já previstas no texto magno), os tratados e
ele próprio submetido à lei que elabo- as convenções internacionais, os decretos e
rou e suas normas internas não po- as normas complementares (das leis, dos
dem contrariar dita lei. O Judiciário, tratados e das convenções internacionais e
quando julga, quando exerce sua fun- dos decretos), definidas, tais normas com-
ção jurisdicional, não pode deixar de plementares, como sendo os atos normati-
acatar sua própria decisão, e aqui tal- vos expedidos pelas autoridades adminis-
vez se encontre a gênese tanto da “au- trativas, as decisões dos órgãos singulares
toridade da coisa julgada” como do ou coletivos de jurisdição administrativa a
prestígio das súmulas de jurisprudên- que a lei atribua eficácia normativa, as prá-
cia. E o Tribunal de Contas, por exem- ticas reiteradamente observadas pelas au-
plo, não pode deixar de vincular-se toridades administrativas e os convênios
às próprias decisões ou veredictos”. que entre si celebrem a União, os Estados, o
Essa arguta lição do ilustre e pranteado Distrito Federal e os Municípios.
jurista brasileiro ainda não foi devidamen- Uma simples visualização do elenco de
te considerada pela doutrina, mas, por cer- atos relacionados no art. 59 da Constitui-
to, quando o for, provocará repercussões ção e no art. 96 do CTN será suficiente para
importantes, principalmente em matéria de verificar-se que a legislação se compõe não
direito constitucional e direito administra- só de atos “legislativos”, mas também de
tivo, no País e no exterior. atos “normativos”.
Isso não nos impede de observar, contu- Uns e outros serão examinados no tópi-
do, que a função por ele designada de fun- co seguinte, juntamente com os atos não
ção maior (referente à atividade-fim) de um normativos (que não integram a legislação).
Poder seja exercida também por outro Po- Tais noções embasarão um conceito mais
der. Como exemplos, tomem-se a competên- completo de legislação. Por ora, basta con-
cia do Supremo Tribunal Federal de proces- siderar legislação o universo dos atos nor-
sar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente mativos em vigor, editados pelo Estado ou
da República, os Ministros do Supremo Tri- pelos órgãos políticos ou administrativos
bunal Federal, o Procurador-Geral da Re- dotados de competência legislativa. Esse
pública e o Advogado-Geral da União, nos universo é chamado ainda de ordenamento
crimes de responsabilidade (CF, art. 52, I e jurídico.

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2. Atos normativos e outros atos legais “Para desenvolvimento do tema
que ora nos ocupa é suficiente consi-
Dissemos acima que apenas os atos nor- derar as espécies normativas como
mativos integram o ordenamento jurídico sendo os atos com eficácia jurídica, de
(ou legislação). Observe-se, entretanto, que observância obrigatória, emanados do
sob o nomen juris de determinadas categori- Poder Legislativo ou, com a aprova-
as normativas são editados pelos órgãos de ção deste, do Presidente da República
governo atos simplesmente administrativos, de ou, ainda, de entidade ou autoridade
natureza não normativa. Também são atos no exercício de poderes recebidos por
legais, como o são os atos normativos, não delegação autorizada pelo texto cons-
se podendo dizer, precisamente, que se con- titucional”.
tenham no ordenamento jurídico. Como se vê, para conceituar espécies nor-
São, verbi gratia, os casos de decretos de mativas, invoca o autor aspectos ainda não
nomeação, promoção, exoneração de servi- abordados por nós. O mesmo faz José de
dores; decretos de autorização de cursos, de Queiroz Campos ([19- -]) para conceituar ato
doação ou demarcação de terras, de decla- legislativo, embora trazendo também o pre-
ração de utilidade pública; de portarias de ceito “que interesse a um só indivíduo”. E
reconhecimento de cursos ou do estado de prossegue:
calamidade pública; de atos declaratórios de “Interessa-nos a norma escrita, o
autorização ou cancelamento etc. ato legislativo, ou, mais objetivamen-
Os atos simplesmente administrativos te, a legislação, no sentido amplo, des-
contemplam situações individuais, particu- de a Constituição até as portarias.
lares, específicas, concretas, enquanto os Basta que se trate de:
atos normativos são, na maioria dos casos, “a) norma escrita obrigatória, por
regras de direito, genéricas, abstratas. mais restrito que seja o campo de sua
É o que, em outras palavras, diz Orme- atuação;
zindo Ribeiro de Paiva (1979, p. 11), embo- “b) emanada de quem – poder ou
ra, como outros autores, impropriamente pessoa investida de autoridade – pos-
chamando de “normas gerais” os atos nor- sa garantir ou assegurar essa obriga-
mativos e de “normas individuais” os atos toriedade;
administrativos não normativos: “c) preceito vigente por determina-
“A expressão espécies normativas, do espaço de tempo numa certa cole-
tomada em seu sentido amplo, pode tividade ou grupo social, mesmo que
abranger tanto as normas gerais interesse a um só indivíduo”.
como as individuais. Aquelas têm o Antes de prosseguirmos, vale aduzir o
seu comando dirigido de forma in- que lembra Eugen Ehrlich sobre o conteúdo
discriminada a pessoas que eventu- dos preceitos jurídicos:
almente se encontram em idênticas “Os conteúdos mais diversos po-
situações, sendo, portanto, além de dem ser apresentados na forma de
abstratas, também impessoais. Es- preceitos jurídicos, sobretudo na de
tas outras (as individuais) determi- leis. Há, assim, preceitos jurídicos
nam comportamento a pessoas dis- sem conteúdo normativo, com conteú-
criminadas. Não obstante o que aca- do normativo, com conteúdo legal que
ba de ser afirmado, a locução espéci- não seja obrigatório, leis no sentido
es normativas ou simplesmente atos formal. Há também preceitos jurídicos
normativos induz, com acerto, a con- que não fornecem normas de decisão,
clusão de que se está cogitando de mas sim normas sociais de outro tipo.
normas gerais. Não se falará aqui nem dos primeiros

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nem dos segundos, mas somente de giuridico. Le norme concrete pressupongono ne-
preceitos jurídicos que contêm normas cessariamente l’esistenza di norme astratte”.
jurídicas. Estas têm como objetivo ser- Alerte-se, porém: não se confundam pres-
vir de base ou para as decisões dos crições concretas (comandos jurídicos) com
tribunais ou para intervenções dire- meros atos administrativos, pois aquelas se
tas por parte de autoridades (1967, p. inscrevem no bojo de leis stricto sensu, cujo
135).” processo de criação (seu aspecto formal) é
Paulo de Barros Carvalho (1981, p. 22) uma de suas características essenciais, apli-
invoca o celebrado Norberto Bobbio para cando-se-lhes plenamente o brocardo lati-
criticar os autores que empregam o termo no forma dat esse rei.
norma “anche per quelle proposizioni impera- Em outro tópico, Paulo (p. 34), dando se-
tive che si riferiscono ad una azione concreta come qüência ao problema da composição dos
sono la sentenza del magistrato e il provvedi- atos legislativos, ensina que o sistema jurí-
mento aministrativo”, fazendo uso impróprio dico é formado por juízos de estrutura hipoté-
“o per lo meno discutibili del termine ‘norma’ tica (normas jurídicas), que se conjugam a
che significa abitualmente regola di condotta, e juízos outros de natureza categórica (proposi-
quindi si referisce non ad una singola azione ma ções que descrevem estados, pessoas, coi-
ad una classe di azione, ‘regola’ implicando sas), estes com funções ancilares na ordem
un’azione ricorrente elevata a modello”. Esse jurídica global (exemplos: “Tais pessoas são
autor conclui por apresentar quadro suges- comerciantes”, “A maioridade se completa
tivo e abrangente de todas as espécies do aos vinte e um anos”, “Este País é uma Re-
gênero “proposições prescritivas”, em que pública”). E reconhece que referidos juízos
assinala as prescrições abstratas a que atri- categóricos, embora não consubstanciando,
bui, com exclusividade, a designação de verdadeiramente, regras jurídicas, são cha-
normas jurídicas. Na traça do notável jusfiló- mados de “normas atributivas” ou “normas
sofo italiano, cremos também que o conceito qualificativas”, curvando-se ele, assim, à
de norma não deva prestar-se para indivi- generalização do termo norma para expres-
dualizar prescrições outras que não as abs- sar todas as proposições do ordenamento
tratas, reservando-se a designação de ordens jurídico. Podemos, portanto, nós, também,
ou comandos exclusivamente para as pres- generalizar e afirmar: para ser designado
crições concretas, se bem que ambos os ti- ato normativo, basta que um ato jurídico al-
pos de proposições coexistam harmonica- bergue, em sua composição, uma ou mais
mente no sistema jurídico: “in un ordinamen- normas jurídicas (ao lado de outras dispo-
to si mescolano prescrizioni dei diversi tipi, ma sições de natureza não exatamente norma-
solo le prescrizioni astratte, ovvero le vere e pro- tiva). Até porque as demais disposições,
prie regole di condotta o norme ne costituiscono embora sem rigor terminológico, também são
il fondamento”. chamadas de normas, em decorrência.
Portanto, como ressalta o ilustre mestre Isso não nos autoriza, todavia, a confun-
paulista, “se prescrições concretas (coman- dir as expressões “ato normativo” e “ato le-
dos jurídicos) e prescrições abstratas (nor- gislativo”, porque, como adiante veremos,
mas jurídicas) têm existências coalescentes esta última é reservada aos atos normativos
no mesmo sistema, essas últimas, inequivo- resultantes do devido processo constitucio-
camente, desempenham papel preponde- nal legislativo, ao passo que a locução ato
rante, sendo possível dizer-se que constitu- normativo pode ser empregada tanto para
em o fundamento da ordem jurídica”(p. 23). designar estes, quanto para designar os atos
E continua, voltando a citar Bobbio: “Com administrativos normativos. Também não
prescrizioni soltanto concrete, ovvero solo medi- se deve confundir ato legislativo ou ato nor-
ante ordini, nos si costituisce um ordinamento mativo – continentes – com norma – conteúdo.

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Por isso, julgamos infeliz a denominação Ranelletti). A novidade serviria para
“normas complementares” aos atos admi- distinguir a lei do regulamento, pois
nistrativos normativos de que trata o já refe- enquanto aquela, além de impessoal,
rido art. 100 do CTN. geral e abstrata, inovaria a ordem ju-
Linhas atrás utilizamos a expressão leis rídica, ao regulamento faltaria apenas
stricto sensu, reconhecendo, em sua gênese a novidade, já que seria, como a lei,
formal, elemento de essencialidade. E o fize- regra impessoal, geral e abstrata. Há,
mos pensando no processo de sua criação – no entanto, quem sustente ser impre-
vale dizer, nos procedimentos formais de ciso o critério de novidade em relação
elaboração e nos órgãos que dela partici- aos seus verdadeiros alcances. É que,
pam, em conformidade com as determina- se inovar significa produzir origina-
ções constitucionais. riamente, apenas os atos legislativos
Assim, e perfilhando lição de José de Quei- de hierarquia constitucional inovari-
roz Campos ([19--], p. 157), podemos consi- am a ordem jurídica, pois antes deles
derar leis stricto sensu as espécies arroladas é que nada existia.
no art. 59 da Carta Magna; e leis lato sensu os “Seabra Fagundes, a propósito, es-
decretos e as normas complementares. As clarece:
primeiras estão sujeitas, na sua formação, ao “A novidade do preceito, impor-
processo legislativo em sentido estrito. As tando modificação de situação jurídi-
demais são leis materialmente legislativas. E ca, não pode, por si só, caracterizar a
apenas materialmente. Vale insistir, ainda, lei, pois que todo ato jurídico (e, con-
que, materialmente, apenas uma parte das leis seqüentemente, também o ato admi-
stricto sensu são normas (prescrições normati- nistrativo) implica em modificar situ-
vas), constituindo-se de prescrições concre- ação jurídica anterior”.
tas a outra parte, embora sejam estas também “Advirta-se, no entanto, que a no-
chamadas de normas, como vimos. vidade da lei significa que a mesma
Merece reparos, pois, a afirmação gene- estabelece direitos e obrigações, cir-
ralizadora de Kildare Gonçalves Carvalho cunstância inexistente no regulamen-
(1993, p. 29), verbis: to, que, sendo de execução, não cria,
“O que, portanto, importa considerar é altera ou extingue direitos e obriga-
que o ato legislativo (rectius: normativo) re- ções. Caracteriza-se ainda como novo
sulta na criação de normas jurídicas abstra- o direito (lei) criado em plano imedia-
tas e gerais, não obstante a sua origem: se tamente inferior à Constituição, en-
proveniente do Poder Legislativo ou de Po- quanto que o regulamento emerge de
der Executivo. A abstração e a generalidade um segundo plano, que é mediato re-
revelam, então, a essência e a natureza do lativamente à Constituição”.
ato legislativo” (rectius...). O fator novidade, que é aspecto material,
Nenhum reparo haveria se o autor se re- substancial, de conteúdo, geralmente não se
ferisse a ato normativo, pois o ato legislati- encontra nos atos legislativos ou leis em
vo pode conter também outras normas, não sentido lato. A Constituição ou a lei pode,
abstratas e gerais. contudo, em caráter excepcional, atribuir a
Outro fator de discrimen entre lei em sen- função inovadora a atos normativos infra-
tido estrito e lei em sentido lato é a inovação legais.
trazida, pela primeira, à ordem jurídica. Em resumo, pelo critério material, reconhe-
Vejamos o que diz, a respeito, o Dr. Kildare ce-se a natureza normativa do ato legislativo
(p. 30): ou do ato administrativo se o ato contiver
“Fala-se ainda em novidade como (1) normas genéricas e abstratas, (2) que ino-
essência do ato legislativo (Laband e vem na ordem jurídica.

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Na terminologia de Marques Oliveira pela União, pelos Estados, pelos Municípios
(1987, p. 151), os atos públicos ou são políti- e pelo Distrito Federal (entes políticos autô-
cos ou são administrativos. Os atos políticos nomos parciais). Todos esses entes políti-
são editados por agentes políticos, no exer- cos são dotados de competência legislati-
cício da função maior de cada Poder, cor- va; e contam com inúmeros órgãos de admi-
respondendo à sua atividade-fim, externo nistração direta e indireta, por sua vez do-
corpore. Têm a forma de decretos, regulamen- tados de competência legislativa lato sensu.
tos, regimentos internos. Os atos administra- Também são dotados de competência le-
tivos lato sensu são editados por agentes ad- gislativa os três Poderes da República (art.
ministrativos no exercício de função menor 2º).
de cada Poder, correspondente à sua ativi- Da complexidade estatal e política de-
dade-meio. Têm a forma de resoluções, por- corre a do sistema legislativo. Manuel Te-
tarias e outras normas complementares. ran define sistema como “o conjunto orde-
Desse modo, os atos legislativos (arrola- nado de elementos segundo uma perspecti-
dos no art. 59 da Constituição) serão atos va unitária”. Celso Ribeiro Bastos (1991, p.
políticos; e os atos administrativos norma- 103), como “todo conjunto de elementos or-
tivos serão atos administrativos lato sensu. ganizados de tal sorte que a alteração de
Poderemos aceitar que os atos legislativos um deles cause alteração no todo” e em que
sejam atos políticos, porém será mais pru- “o significado de cada parte é dado pelo todo
dente conservar a locução atos administra- a que pertence, da mesma maneira que uma
tivos normativos para os segundos. modificação qualquer de suas partes reper-
cute sobre o todo”. Para o já citado Paulo de
3. Sistema legislativo brasileiro: Barros Carvalho (1985, p. 65-66), “há siste-
elementos e estrutura ma ali onde encontramos elementos que se
relacionem entre si e uma forma na qual os
Aparentemente, o direito positivo apre- elementos e relações se verifiquem. Um gru-
senta-se para o leigo como um emaranhado po de unidades caoticamente reunidas não
caótico de milhares de leis quase sempre atinge o nível de sistema simplesmente pela
ininteligíveis. Isso se deve à contínua, in- somatória de seus componentes. É indispen-
cessante e inexorável multiplicação de atos sável um vínculo que enlace os integrantes,
normativos, cujo acompanhamento já se tor- unificando-os numa organização coerente”.
nou tarefa das mais difíceis até para os ju- O autor exemplifica: sistema nervoso, siste-
ristas, como Alfredo Augusto Becker (1985, ma solar, sistema jurídico. “O ser sistema
p. 65-66), que se tornou o mais implacável requer um princípio unificador que presida
crítico da “fúria legiferante”, da “demência o relacionamento das entidades que o com-
legislativa”, do “manicômio jurídico”. O põem. Tércio Sampaio Ferraz Jr. chama de
problema, todavia, não é só nosso: autores repertório ao conjunto de elementos, e de
de nomeada, como Giannini, Berliri, Alório, estrutura ao complexo das relações que en-
Sainz de Bujanda e muitos outros se têm tre eles se estabelecem”.
preocupado com ele. E prossegue afirmando que “as normas
Se isso ocorre também nos países mais jurídicas formam um sistema, na medida em
desenvolvidos, entre nós a situação é mais que se relacionam de várias maneiras, se-
grave em decorrência da complexidade do gundo um princípio unificador” e que “o
Estado brasileiro – e, por extensão, dos nos- sistema de direito oferece uma particulari-
sos sistemas político, jurídico e legislativo. dade digna de registro: suas normas estão
Na letra do art. 1º da Constituição, o Es- dispostas numa estrutura hierarquizada,
tado brasileiro é uma República Federativa regida pela fundamentação ou derivação,
(ente político soberano nacional), constituída que se opera tanto no aspecto material quan-

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to no formal ou processual, o que lhe impri- Para embasar essa magnífica lição, es-
me possibilidade dinâmica, regulando, ele creve Paulo: “Se pudermos reunir todos os
próprio, sua criação e suas transformações. textos do direito positivo em vigor no Brasil,
Examinando o sistema de baixo para cima, desde a Constituição Federal até os mais sin-
cada unidade normativa se encontra fun- gelos atos infralegais, teremos diante de nós
dada, material e formalmente, em normas su- um conjunto integrado por elementos que
periores. Invertendo-se o prisma de obser- se inter-relacionam, formando um sistema.
vação, verifica-se que das regras superiores As unidades desse sistema são as normas
derivam, material e formalmente, regras de jurídicas que se despregam dos textos e se
menor hierarquia. Todas as normas do sis- entreligam mediante vínculos horizontais
tema convergem para um único ponto, que (relações de coordenação) e liames verticais
é a Constituição positiva. Sua existência dá, (relação de subordinação-hierarquia)”(p. 7).
decisivamente, caráter unitário ao conjun- E acentua:
to, e a multiplicidade de normas, como enti- “Os conceitos até aqui introduzi-
dades da mesma índole, lhe confere o tim- dos permitem ver a ordem jurídica
bre de homogeneidade”. brasileira como um sistema de nor-
Vale ainda transcrever: mas, algumas de comportamento, ou-
“A Ciência do Direito estuda o sis- tras de estrutura, concebido pelo ho-
tema empírico do direito positivo, ven- mem para motivar e alterar a conduta
do-o como uma imensa pirâmide que no seio da sociedade. É composto por
tem no ápice a Lei Constitucional e, subsistemas que se entrecruzam em
para legitimá-la, uma norma imaginá- múltiplas direções, mas que se afuni-
ria que Kelsen chama de norma hipoté- lam na busca de seu fundamento últi-
tica fundamental. A contar da Consti- mo de validade que é a Constituição
tuição, as restantes normas do siste- do Brasil. E esta, por sua vez, consti-
ma distribuem-se em vários escalões tui também um subsistema, o mais
hierárquicos, ficando nas bases da importante, que paira, sobranceiro,
pirâmide as regras individuais de sobre todos demais, em virtude de sua
máxima concretude. Concepção des- privilegiada posição hierárquica, ocu-
sa ordem propicia uma análise estáti- pando o tópico superior do ordena-
ca do ordenamento jurídico – nomoes- mento e hospedando as diretrizes
tática – e uma análise dinâmica do fun- substanciais que regem a totalidade
cionamento do sistema positivo – no- do sistema jurídico nacional”(p. 70).
modinâmica. Na primeira, as unidades O sistema legislativo brasileiro se amolda
normativas são surpreendidas num à composição do Estado e é dela decorrente.
determinado instante, como se fossem Assim, ele se divide em tantos subsistemas
fotografadas; na segunda é possível quantos são os entes políticos constitucio-
indagar do ordenamento nas suas nais, os quais, como são fontes do ordena-
constantes mutações, quer no que diz mento jurídico, passamos a designar ordens,
com a criação de regras novas, quer havendo, pois, a ordem nacional (a Repúbli-
no que atina às transformações inter- ca) e as ordens parciais (a União, os Estados,
nas que o complexo de normas tem os Municípios e o Distrito Federal).
idoneidade para produzir. No plano A ordem nacional, que editou a Consti-
da nomodinâmica nos deparamos com tuição e com a qual constituiu o Estado bra-
o ser humano, com suas ideologias, sileiro, editará também as emendas que
suas crenças, seus valores, atuando modificarão a Constituição e as leis com-
para dinamizar o sistema, realizando plementares, que a complementarão; as or-
efetivamente o direito” (p. 67). dens parciais editarão as leis ordinárias (e

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diplomas do mesmo nível), os decretos e as teúdos variam segundo os ramos do direito,
normas complementares. para ilustrar o exame de cada qual, houve-
“Foi obra de Adolf Merkel, depois mos por bem eleger, quanto ao aspecto
continuada por Kelsen e completada material, o Direito Financeiro (e, alterna-
por Cossio, a teoria da estrutura pira- tivamente, o Direito Tributário), consentane-
midal do ordenamento jurídico. (...) A amente, portanto, com as atribuições consti-
primeira condição lógica, o pressu- tucionais do Tribunal de Contas da União.
posto, mesmo, de todos os princípios É necessário gizar, ainda, que a análise
teóricos configuradores da teoria do proposta no presente estudo se limitará às
ordenamento jurídico é que as normas espécies normativas elencadas no art. 59 da
– constituição, leis, regulamentos, Constituição da República, que trata do
decretos, contratos, sentenças, atos “processo legislativo”, aduzindo-se-lhes
administrativos – não se encontram apenas os decretos e as normas complemen-
soltas, mas, mutuamente entrelaça- tares. A expressão “processo legislativo” é
das. Sem isso, não se poderia falar criticada por Manoel Gonçalves Ferreira Fi-
de sistema, de ordem, de ordenamen- lho, por pecar tanto por excesso quanto por
to jurídico” (MACHADO NETO, necessidade. Eis o que diz:
1977, p. 147). “Essa matéria seria o estabeleci-
Tomando a pirâmide de Kelsen como mento de normas gerais abstratas, de
inspiração – adaptando-a, porém, à comple- leis como se usa dizer. Assim, mais
xa organização do Estado nacional –, pode- corretamente se empregaria processo
mos conceber o ordenamento jurídico brasi- normativo onde a Constituição fala em
leiro habitando um edifício de cinco anda- processo legislativo.
res, sendo cada um dos três inferiores sub- “Se essa foi a intenção do consti-
divididos (por linhas verticais) em três par- tuinte, a execução do intento foi defei-
tes. Os espaços assim delimitados dão idéia tuosa, lacunosa. De fato, nem toda a
de como são dispostas, pelo edifício, as ca- elaboração de normas previstas pela
tegorias legislativas ou normativas, ou seja, Constituição se enquadra nos seus
de forma cartesiana, vertical e horizontal- sete incisos. Como observa Pontes de
mente, procurando sugerir suas inter-rela- Miranda – a respeito do texto anteri-
ções de hierarquia e coordenação. or, mas aplicável ao atual –, ficam de
O desenho resultante permitiria vislum- fora “as regras jurídicas do Regimen-
brar, de pronto, a localização de uma nor- to Comum (art. 31, § 2º, II) e dos Regi-
ma no plexo do processo legislativo, ou seja, mentos Internos de cada câmara (art.
em razão de sua gênese, portanto, no seu 32), as regras jurídicas dos Regimen-
aspecto formal (nomoestática); e, ao mesmo tos Internos do Superior Tribunal Fe-
tempo, imaginar as necessárias correções deral e dos outros tribunais e as dos
impostas pelo seu aspecto material, seu con- decretos e regulamentos do Poder Exe-
teúdo, ou seja, em razão da função a ela atri- cutivo. Afora os “momentos de instau-
buída (nomodinâmica). Surpreendentemen- ração normativa” que o Prof Reale mui
te, notaríamos que a posição de uma catego- justamente identifica na órbita do Po-
ria ou norma no edifício legislativo variaria der Judiciário brasileiro (...).
segundo seja ela considerada ratione materiae “ Por outro lado, o art. 59 da Cons-
ou ratione processus. tituição inclui no ‘processo legislati-
Vejamos a posição de cada espécie nor- vo’ a elaboração de decretos e de reso-
mativa no ordenamento (nomoestática), luções, atos a que falta o caráter de
comparativamente à função (nomodinâmi- instauração de normas gerais e abs-
ca) por ela desempenhada. Como os con- tratas”(1995, p. 192-193).

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 31


4.Ordem nacional nomas (União, Estados-membros, Municí-
pios e Distrito Federal), como lhes atribui as
Antes de passarmos ao exame das cate- respectivas competências, ratione materiae e
gorias na hierarquia de nossos sistemas, é ratione processus. Por isso, por tratar da orga-
útil lembrar a classificação das normas pro- nização nacional, é lei nacional. No mesmo
postas por Norberto Bobbio (1984, p. 47) no nível da Constituição e por nela se integra-
plexo do ordenamento: rem, estão as emendas constitucionais.
“Basta-nos ter chamado a atenção Vale retornar a Paulo de Barros Carva-
sobre esta categoria de norma para a lho (1985, p. 70-71):
produção de outras normas: é a presença “O texto da Constituição é o espa-
e freqüência dessas normas que cons- ço, por excelência, das linhas gerais
tituem a complexidade do ordenamen- que informam a organização do Esta-
to jurídico; e somente estudo do orde- do, limitando-se, como adverte Celso
namento jurídico nos faz entender a Ribeiro Bastos (Curso de Direito Cons-
natureza e a importância dessas nor- titucional, Saraiva, 1980, p. 86), a tra-
mas. Do ponto de vista formal, a teo- cejar as características dominantes
ria de norma jurídica havia parado na das várias instituições que a legisla-
consideração das normas como impe- ção comum posteriormente desenvol-
rativos, entendo por imperativo a or- ve, conferindo-lhe postura final. No
dem de fazer ou de não fazer. seu repertório, como decorrência, há
“Se levarmos em consideração predomínio quantitativo das regras de
também as normas para a produção estrutura, que são mais numerosas
de outras normas, devemos colocar, que as regras de comportamento.
ao lado das imperativas, entendidas “Se é correto mencionarmos a
como comandos de fazer ou de não Constituição brasileira como sistema
fazer, e que poderemos chamar impe- de proposições normativas, integran-
rativas de segunda instância, as impera- te de outro sistema de amplitude glo-
tivas de segunda instância, entendidas bal que é o ordenamento jurídico vi-
como comandos de comandar, etc. gente, podemos, é claro, analisar os
“Somente a consideração do orde- subconjuntos que nele existem”.
namento no seu conjunto nos permite E, falando do subsistema tributário, o
aceitar a presença dessas normas de que pode ser por analogia estendido a ou-
segunda instância. tro, como, por exemplo, o financeiro:
“A classificação desse tipo de nor- “O que nos interessa agora é a sub-
mas é muito mais complexa que a clas- classe, o subconjunto ou o sistema
sificação das normas de primeira ins- constitucional tributário, formado
tância, para as quais havíamos fala- pelo quadro orgânico das normas que
do de “tripartição” clássica em nor- versem matéria tributária, em nível
mas imperativas, proibitivas e permissi- constitucional. A homogeneidade des-
vas.” se grupamento de regras jurídicas está
determinada, assim, mais pela natu-
4.1. Constituição e Emendas reza lógica das entidades normativas
Constitucionais: natureza e funções que pelo assunto sobre que dispõem.
A Constituição é a suprema lei do País, a Atribuem-lhe unicidade duas circuns-
base do nosso sistema jurídico positivo. Não tâncias: estarem todas elas legitima-
só dispõe sobre a organização nacional – a das pela mesma fonte – a norma hipo-
estrutura do Estado brasileiro – criando-lhe tética fundamental – e consubstancia-
as quatro ordens de pessoas políticas autô- rem o ponto de confluência do direito

32 Revista de Informação Legislativa


positivo em vigor, no que concerne à rarquia superior, gozando portanto, de
matéria que lhes dá conteúdo. Man- uma eficácia supravalente. Isto quer di-
têm, entre si, relações de coordenação zer que não se admitem, como váli-
horizontal, situadas que estão no mes- das, normas que contrariem, direta ou
mo plano da escala hierárquica, tecen- indiretamente, a Constituição”(1987,
do, com idêntico status de juridicida- p. 173).
de, a rede normativa do subsistema. A propósito, assim preleciona o douto
Ainda que nela seja maior a incidên- Prof. Michel Temer (1989, p. 26):
cia das regras de estrutura, não fal- “Todas as normas constitucionais
tam aquelas que se dirigem, frontal- são dotadas de eficácia. Algumas, efi-
mente, à disciplina da conduta, expri- cácia jurídica e eficácia social; outras,
mindo-se, prescritivamente, nos mo- apenas eficácia jurídica.
dais deônticos permitido, obrigado e “Eficácia jurídica se verifica na hi-
proibido. Pertencendo ao estrato mes- pótese de a norma vigente, isto é, com
mo da Constituição, da qual se desta- potencialidade para regular determi-
ca por mero expediente lógico de cu- nadas relações, ser efetivamente apli-
nho didático, o subsistema constitu- cada a casos concretos. Eficácia jurídi-
cional tributário realiza as funções do ca, por sua vez, significa que a norma
todo, dispondo sobre os poderes ca- está apta a produzir efeitos na ocor-
pitais do Estado, no campo de tribu- rência de relações concretas; mas já
tação, ao lado de medidas que asse- produz efeitos jurídicos na medida em
gurem as garantias imprescindíveis à que sua simples edição resulta na re-
liberdade das pessoas, diante daque- vogação de todas as normas anterio-
les poderes. Empreende, na trama nor- res que com ela conflitam. Embora não
mativa, uma construção harmoniosa e aplicada a casos concretos, é aplicá-
conciliadora, que visa a atingir o va- vel juridicamente no sentido negativo
lor supremo da certeza, pela seguran- antes apontado. Isto é: retira a eficá-
ça das relações jurídicas que se esta- cia da normatividade anterior. É efi-
belecem entre Administração e admi- cácia, juridicamente, embora, não tenha
nistrados. E, ao fazê-lo, enuncia nor- sido aplicada concretamente”.
mas que são verdadeiros princípios, Em matéria de Direito Financeiro, a Cons-
tal o poder aglutinante de que são tituição institui o sistema de finanças públicas
portadoras, permeando, penetrando e (arts. 163 a 169, 70 a 75), para o que distri-
influenciando um número inominá- bui as competências financeiras, estabele-
vel de outras regras que lhe são su- cendo as suas limitações e vedações, deter-
bordinadas”. mina a repartição das receitas tributárias e
“Supremo objeto do direito político”, nor- prescreve o processo legislativo financeiro.
ma normarum, assim se manifesta Fran Fi- De acordo com o art. 60, a Constituição
gueiredo sobre a superioridade constitucio- pode ser emendada mediante proposta (I) de
nal: um terço, no mínimo dos membros da Câ-
“A eficácia de uma norma jurídica mara dos Deputados ou do Senado Federal;
se exprime pela sua capacidade em (II) do Presidente da República; (III) de mais
produzir efeitos concretos, seja de for- da metade das Assembléias Legislativas das
ma espontânea, seja pela atuação dos unidades da Federação, manifestando-se,
órgãos jurisdicionais do Estado. No cada uma delas, pela maioria relativa de seus
ordenamento juridico-positivo, como membros.
se sabe, as normas constitucionais As emendas sempre se referem especifi-
encontram-se em uma posição de hie- camente aos seus dispositivos, ou modifi-

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 33


cando sua redação, ou suprimindo-os (re- Essa posição hierárquica foi procla-
vogando-os), ou incluindo outros, de mada pelo art. 173, III, da atual Cons-
modo que se integrem imediatamente ao tex- tituição [refere-se o autor à Constitui-
to constitucional. Para facilitar a exegese, ção de 1967], onde se aprovam e se
assim deveria ser, aliás, a alteração de to- excluem de apreciação judicial os atos
das as leis. Até o final de setembro de de natureza legislativa expedidos com
2001, foram editadas 32 emendas constitu- base nos Atos Institucionais e Com-
cionais. plementares. Na Emenda Constituci-
O art. 3º do Ato das Disposições Consti- onal nº 17, de 1965, art. 6º, § 8º, estam-
tucionais Transitórias determinou que, após pa-se, por fim, a expressão completa
cinco anos, se realizasse a revisão constitu- leis complementares, mas sem confe-
cional, pelo voto da maioria absoluta dos rir a estas nenhuma diferenciação for-
membros do Congresso Nacional, em ses- mal. Pelo contrário, o citado parágra-
são unicameral. Em 1994 foram editadas fo prescrevia, paradoxalmente, uma
seis emendas constitucionais de revisão. tramitação mais rápida para os seus
projetos, dispondo que eles só poderi-
4.2. Leis complementares: natureza e funções
am receber emendas perante as comis-
Valioso escorço histórico nos oferece sões. A Emenda Constitucional nº 18,
Nelson de Sousa Sampaio: de 1965, mencionou as leis comple-
“Em nossa história constitucional, mentares como um dos instrumentos
a noção de lei complementar” é mais para regular o sistema tributário na-
velha do que o adjetivo. O qualificati- cional” (1968, p. 36-37).
vo usado outrora era orgânica – lei Examinemos a natureza da lei comple-
orgânica –, que já aparece na Consti- mentar, na lição de Paulo de Barros Carva-
tuição de 1891 (art. 34, nº 34) e na de lho (1985, p. 107):
1934 (art. 39, nº1). Depois de 1948, a “Têm entendido os constituciona-
preferência passou a ser pelo termo listas que tais leis são aquelas neces-
complementar, embora não inscrito no sárias ao complemento de dispositi-
texto constitucional. O Congresso vos constitucionais que não sejam
apressou-se mesmo em criar uma Co- auto-aplicáveis, qualificando-as onto-
missão Mista de Leis Complementa- logicamente pela matéria inserida no
res. Com a Emenda Parlamentarista seu conteúdo. E, se dermos revista em
de 1961, surge a consagração consti- nosso Texto Básico, encontramos uma
tucional da idéia, no seu art. 22, onde série de leis irremediavelmente liga-
se consigna o verbo complementar e das ao desdobramento normativo de
não o adjetivo: Poder-se-á comple- princípios constitucionais, que delas
mentar a organização do sistema par- dependem em termos de realização
lamentar de governo ora instituído, substantiva.
mediante leis votadas, nas duas Ca- “Nada obstante, o direito que en-
sas do Congresso Nacional, pela mai- tre nós vigora erigiu um conceito de
oria absoluta dos seus membros. Com lei complementar que nos interessa
o Ato Institucional nº 2, o adjetivo in- conhecer por tratar-se de noção jurí-
gressa em nosso direito positivo, pela dico-positiva: lei complementar é
competência dada ao Presidente da aquela que, dispondo sobre matéria
República para baixar atos comple- expressamente prevista na redação
mentares daquele Ato (art. 30), que se constitucional, está submetida ao quo-
colocariam acima dos simples decre- rum qualificado (do art. 69 – maioria
tos-leis, oriundos da mesma fonte. absoluta) (...) e é assim que devemos

34 Revista de Informação Legislativa


recebê-la, numa exegese genuinamen- descoberto as erronias (sic) dessa tese,
te intra-sistemática. baseada, rudimentarmente (sic), na
“Desse conceito jurídico-positivo topologia e no procedimento legisla-
sobressaem dois traços identificado- tivo preconizado para a edição des-
res: a) matéria expressamente indica- sas normas. Com argumentos sólidos
da na Constituição; e b) o quorum es- (sic), demonstrou que as leis comple-
pecial (...). Ao primeiro denominamos mentares não ostentam fisionomia
pressuposto material ou ontológico. unitária que propicie, em breve juízo,
Ao segundo, requisito formal. Daí o uma definição de sua superioridade
afirmar-se que a lei complementar se nos escalões do sistema. De seguida,
reveste de natureza ontológico-formal. propõe um critério recolhido na Teo-
“Os assuntos que o constituinte re- ria Geral do Direito, para discernir as
servou para o campo da lei comple- leis complementares em duas espécies:
mentar estão sempre expressos, inobs- a) aquelas que fundamentam a vali-
tante possamos encontrar, em alguns dade de outros atos normativos; e b)
passos, a simples alusão a, desacom- as que realizam sua missão constitu-
panhada do qualificativo complemen- cional independentemente da edição
tar (...). Em hipóteses desse tipo, a bem de outras normas.
empreendida análise do comando “Trazendo essa diretriz para o
constitucional apontará que a magni- campo que nos interessa, ganha ou-
tude do tema somente pode ser objeto tro aspecto a questão da hierarquia,
de lei complementar, visto que estão tornando legítimo asseverar que, em
em pauta regulações diretas de pre- alguns casos, a lei complementar su-
ceitos da Lei Maior, que por outros bordina a lei ordinária, mas, em ou-
estatutos não poderiam ser versadas. tros, descabem considerações de su-
“A lei de que falamos é figura do premacia nos níveis do ordenamento,
repertório legislativo da ordem jurídi- uma vez que tanto as leis complemen-
ca federal, sendo posta no ordenamen- tares como as ordinárias extratam seu
to pelos órgãos legiferantes da União. conteúdo diretamente do texto consti-
Não implica dizer, entretanto, que o tucional”.
âmbito de validade de suas normas Gilmar Ferreira Mendes et alii realçam
cinja-se ao plano federal. É excelente um dos objetivos da lei complementar: “res-
instrumento de legislação nacional, guardar certas matérias de caráter para-
alcançando, conjunta ou isoladamen- constitucional contra mudanças céleres ou
te, a esfera jurídica das três pessoas apressadas, sem lhes imprimir uma rigidez
políticas de direito constitucional in- exagerada, que dificultaria sua modificação
terno. Talvez por isso seja freqüente o (...). Ao estabelecer um terceiro tipo, preten-
magistério de que as leis complemen- deu o constituinte assegurar certa estabili-
tares desfrutam de supremacia hie- dade e um mínimo de rigidez às normas que
rárquica relativamente às leis ordiná- regulam certas matérias. Dessa forma, eli-
rias, quer pela posição que ocupam na minou-se eventual discricionariedade do
lista (do art. 59 da CF), vindo logo abai- legislador, consagrando-se que leis comple-
xo das Emendas à Constituição, quer mentares propriamente ditas são aquelas
pelo regime de aprovação mais seve- exigidas pelo texto constitucional”(1991, p.
ro (...). 235-236).
“Foi José Souto Maior Borges (Lei É freqüente na doutrina a discussão so-
complementar tributária, Revista dos bre a posição hierárquica da lei complemen-
Tribunais, 1975, p. 54 e s.) quem pôs a tar. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 35


(1994, p. 183-184), ela se situa entre a emen- mentar é aquela expressamente pre-
da constitucional e a lei ordinária, ou seja, vista pelo texto constituicional e para
acima desta e abaixo daquela, opinião que cuja elaboração se previu processo
perfilhamos. Não podemos concordar é com especial e qualificado. Especial, porque
a opinião de autores como Michel Temer exclusivo e próprio da espécie; qualifi-
(1993, p. 36-137), constitucionalista de no- cado, porque revestido de exigências
meada, e outros, como Luiz Alberto David que o tornam qualitativamente superi-
Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (1998, or ao próprio das leis ordinárias”.
p. 261), que negam a superioridade hierár- O que temos a dizer é que, formalmente,
quica daquela espécie normativa simples- lei complementar tem a natureza de lei na-
mente porque tanto a lei complementar quan- cional e de lex legum, porque condiciona a
to a ordinária retiram seu fundamento de legislação das pessoas políticas autônomas.
validade diretamente da Constituição. Para Obedece a processo legislativo especial, de-
se aquilatar da fragilidade desse argumen- pendendo, a sua aprovação, da maioria ab-
to, basta lembrar que todas as espécies nor- soluta dos membros das duas Casas do Con-
mativas (a partir das emendas constitucio- gresso Nacional, posicionando-se logo abai-
nais) retiram seu fundamento de validade xo da Constituição. Embora queiram alguns
do texto magno. autores negar-lhe o caráter de espécie nor-
Sara Ramos Figueiredo ([19--], p. 79) é mativa intercalar, o certo é que, na grande
incisiva: maioria dos casos, funciona, como já se dis-
“Com caráter de leis superiores às se, como lei de leis, a que os legisladores de-
ordinárias aparecem no processo le- verão subordinar-se. As exceções confir-
gislativo brasileiro, a partir da Cons- mam a regra: instituição, pela União, de
tituição de 1967, as leis complemen- empréstimos compulsórios (art. 148) de im-
tares. Objetivam regular os preceitos postos e contribuições sociais de sua com-
constitucionais que não são auto-apli- petência residual (arts. 154, I, e 195, §4º),
cáveis, que não valem concretamente bem como do imposto sobre grandes fortu-
de per si, se não forem complementa- nas (art. 153, VII). Nesses casos, ratione ma-
dos por esse tipo de lei. Por isso, a teriae, sua função é de lei ordinária.
Constituição estabelece a exigência do Contrario sensu, há leis ordinárias com
quorum qualificado para a aprovação função de lei complementar. É o caso, v. g.,
do projeto de lei complementar; maio- da Lei nº 5.172, de 25-10-66 (CTN), que, não
ria absoluta dos votos dos membros obstante o seu nomen juris, por vincular to-
de cada uma das Casas legislativas. das as pessoas políticas autônomas, para
“O requisito formal exigido em sua as quais irradia suas normas, pertence, ma-
elaboração corresponde à sua função terialmente, à categoria de lei complemen-
de relevo como instrumento de execu- tar. Diga-se o mesmo dos Decretos-leis nºs
ção da Constituição. 406, de 31-12-68, e 834, de 08-09-69, entre
“Não é, todavia, facultado ao legis- outros, quando vigentes, ou de qualquer
lador ordinário a escolha dos textos que modificação do Código Tributário Nacional.
devam ser objeto de lei complementar. E determinadas resoluções do Senado, pe-
A própria Constituição dá a indicação los mesmos motivos, em nosso entender,
explícita de sua incidência quando re- devem ser consideradas leis nacionais. São
comenda taxativamente, em várias pas- aquelas que fixarão as alíquotas máximas
sagens, que sobre o preceito que esta- do imposto estadual sobre causa mortis e
belece haja lei complementar. doação de quaisquer bens ou direitos (art.
“Daí a afirmação de Geraldo Ata- 155, §1º, IVI); e estabelecerão as alíquotas
liba no sentido de que a lei comple- aplicáveis às operações e prestações, inte-

36 Revista de Informação Legislativa


restaduais e de exportação (art. 155, §2º, IV), Enfocaremos agora as leis ordinárias, as
relativamente ao ICMS. leis delegadas, as medidas provisórias, os
Em matéria de Direito Financeiro, como decretos legislativos e as resoluções – atos
determinam os artigos 24 e parágrafos, 163 do mesmo nível hierárquico, todos situados
e 165, §9º, cabe à lei complementar dispor no terceiro degrau, não obstante a diversi-
sobre normas gerais; competindo aos Esta- dade de amplitude de cada qual, ratione
dos a legislação suplementar ou plenária, materiae.
na ausência de lei complementar; e aos
Municípios também a legislação suplemen- 5.1.1. Leis ordinárias
tar, agora em segundo grau, porque super- Tout court, lei é a fonte por excelência do
veniente às leis complementares (federais) e direito. Pode ser conceituada como o ato
suplementares estaduais. normativo inovador na ordem jurídica, re-
Lei sobre normas gerais de Direito Fi- sultante do devido processo legislativo cons-
nanceiro já existe: é a Lei nº 4.320, de 17-03- titucional. Esse conceito, embora aplicável
64, que, como rezam sua ementa e §1º, “es- às espécies normativas do mesmo nível, ajus-
tatui normas gerais de Direito Financeiro ta-se mais à lei ordinária. Para as demais,
para elaboração e controle dos orçamentos peca por insuficiência, dado o âmbito mate-
e balanços da União, dos Estados, dos Mu- rial de cada uma, como veremos.
nicípios e do Distrito Federal”. Embora lei Vale observar que, embora a Constitui-
federal, editada sob a égide da Constituição ção a liste como “lei ordinária”, o adjetivo é
de 1946, continua em vigor, naquilo que não desnecessário, além de não constar nos tex-
contraria a atual Constituição, mesmo por- tos positivos, onde aparece simplesmente
que, in substantia, foi ela recepcionada, as- como lei.
sim suprindo lei complementar ainda ine- É mediante leis ordinárias que as ordens
xistente. É o que supõe a melhor doutrina, parciais (União, Estados, Municípios e Dis-
numa interpretação sistemática da Consti- trito Federal) exercem as suas competências
tuição, especialmente do Ato das Disposi- legislativas.
ções Constitucionais Transitórias, embora Ainda em matéria financeira, v.g., no
não explicitada tal recepção, como, v. g., no âmbito federal, além de disporem sobre qual-
art. 34, §5º, em relação ao sistema tributário. quer dos seus aspectos, estabelecerão o pla-
no plurianual, as diretrizes orçamentárias
5. Ordens parciais e os orçamentos anuais (art. 165). No âmbi-
to dos Estados e do Distrito Federal, disci-
5.1. Leis ordinárias e outras plinarão, em caráter suplementar, a sua ati-
leis: espécies e funções vidade financeira, o mesmo acontecendo
quanto aos Municípios.
Em tópico anterior, aludimos a leis stric- Salvo as matérias reservadas à compe-
to sensu, como expressão compreensiva tência do Congresso Nacional (art. 49), da
das espécies normativas arroladas no art. Câmara dos Deputados (art. 51) e do Sena-
59 da Carta Magna. Já falamos da Consti- do (art. 52), não há restrições ao uso da lei,
tuição e suas emendas e das leis comple- que, de resto, como os demais diplomas do
mentares. Vimos serem elas leis de leis, leis mesmo nível, deve submeter-se à Constitui-
nacionais. E, como dissemos que o nosso edi- ção e às leis complementares.
fício legislativo – o nosso ordenamento jurí-
dico – tem cinco andares, podemos então afir- 5.1.2. Leis Delegadas
mar que já cuidamos, contados de cima para Nos termos do art. 68 da Constituição,
baixo, dos primeiro e segundo degraus le- as leis delegadas serão elaboradas pelo Pre-
gislativos. sidente da República, que deverá solicitar a

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 37


delegação ao Congresso Nacional. As leis II – nacionalidade, cidadania, direitos
delegadas estão no mesmo nível das leis individuais, políticos e eleitorais;
ordinárias, delas diferindo pelo âmbito mate- III – planos plurianuais, diretrizes orça-
rial, mais restrito, e pelo processo legislativo. mentárias e orçamentos.
De acordo como o §2º, a delegação ao Pre- É perfeitamente lógica a indelegabilida-
sidente da República terá a forma de resolu- de tanto das matérias da competência ex-
ção do Congresso Nacional, que especifica- clusiva do Congresso e de suas duas Casas,
rá seu conteúdo e os termos de seu exercício. quanto das reservadas à lei complementar e
Assim é também a delegação legislativa ita- à legislação (estas, listadas nos incisos), até
liana, que exige oggetti definiti, para, “com porque, no primeiro caso, envolvem pode-
tal fórmula, excluir as delegações genéricas res de fiscalização em relação ao Poder Exe-
feitas para matérias inteiras”, como explica cutivo, o que eqüivaleria a transferir àquele
Mortati, citado por Manoel Gonçalves Fer- Poder, potencialmente fiscalizado, atribui-
reira Filho (1968, p. 153). A necessidade de ções do Legislativo. E, embora não especifi-
menção precisa da substância do ato de de- cada nos incisos do § 1º, deve-se haver como
legação é também salientada por esse autor: indelegável também a matéria de reserva à
“É necessário sublinhar que esta lei (stricto sensu), consignada no art. 150, I –
menção deverá ser precisa, sob pena exigir ou aumentar tributo. Ainda pelo prin-
de estar descumprindo o preceito cípio da legalidade, estranha à delegação
constitucional. Todavia, na prática – seja também a matéria penal.
pode-se facilmente prever – será difí- Alternativa à regra do §2º (especificação
cil marcar a fronteira entre o preciso e do conteúdo e os termos da delegação) é o
o impreciso. É razoável tomar nessa §3º, pelo qual, em vez de atribuir a delega-
questão por empréstimo a lição norte- ção, poderá a resolução determinar a apre-
americana (...). Nos Estados Unidos, ciação do projeto pelo Congresso, que se fará
a delegação é considerada válida, pela em votação única, vedada qualquer emen-
doutrina e pela jurisprudência atuais, da. “Vê-se desse dispositivo que o pedido
quando o ato de delegação fixar pa- de delegação inclui o projeto de lei que se
drões, standards, nítidos, que guiem a quer elaborar”, explica José Afonso da Silva
ação do recipiente da delegação. Em (1989, p. 458), que verbera: “A delegação le-
vista disso, será inválida a delegação gislativa já existe no constitucionalismo
se os padrões forem vagos e impreci- pátrio há mais de vinte anos e jamais foi
sos, já que isso importa não numa ver- usada, porque havia decreto-lei; e vai conti-
dadeira delegação mas realmente nuar a não ser usada, porque existem as
numa abdicação (1995, p. 228). medidas provisórias que acabam sendo
Por esse mesmo motivo, o autor frisa a mais convenientes para o Executivo” (rec-
temporariedade da delegação, que não será tius: entre nós, as leis delegadas contam-se
válida “por toda a duração de uma legisla- nos dedos – mas existem, tendo surgido em
tura”. nosso fugaz parlamentarismo de 1961, re-
O §1º estabelece que não serão objeto de gime, aliás, em que teve origem, sendo, no
delegação os atos de competência exclusiva entanto, adotada até mesmo no presidenci-
do Congresso Nacional, os de competência alismo norte-americano).
privativa da Câmara dos Deputados ou do Lição de Ferreira Filho (1995, p. 230-231)
Senado Federal, a matéria reservada à lei sobre a regra do § 3º:
complementar, nem a legislação sobre: “A segunda modalidade de lei de-
I – organização do Poder Judiciário e do legada presidencial foge completa-
Ministério Público, a carreira e a garantia mente dos padrões usuais de delega-
de seus membros; ção de poder legislativo ao Executivo.

38 Revista de Informação Legislativa


Na verdade, é, antes, uma inversão do Portanto, como ensina Manoel Gonçal-
processo de elaboração de leis ordi- ves Ferreira Filho (1968, p. 196), caracteriza
nárias. delegação interna corporis a transferência do
“De fato, no processo ordinário, o poder de editar regras jurídicas novas do
Congresso estabelece as regras e o Pre- Legislativo para uma das frações deste. Não
sidente as sanciona. No processo pre- há, nesse caso, propriamente delegação. O
visto para essa segunda modalidade poder de editar regras jurídicas não sai do
de lei delegada presidencial, o Con- âmbito do Legislativo, apenas a decisão se
gresso delega, especificando conteú- desloca do todo para uma parte”.
do e termo, ao Presidente o estabeleci- Como se vê, entre nós tal tipo de delega-
mento de regras jurídicas novas, con- ção deve estar previsto no regimento das
quanto se reserva o direito de apreci- Casas do Congresso, ao contrário da lei ita-
ar o projeto presidencial, como con- liana, que o opera por resolução. Aliás o
clusão da elaboração do novo texto. nosso foi claramente inspirado na lei italia-
Destarte, o Congresso é que ‘sancio- na, onde surgiu para “acelerar a elaboração
na’ o projeto elaborado pelo Chefe do legislativa, sem desapossar dessa função o
Executivo. Parlamento”, conforme preleciona Ferreira
“É isso o que decorre do art. 68, § Filho (1968, p. 114).
3º, onde está disposto que a resolução
5.1.3. Medidas Provisórias
que outorga a delegação poderá de-
terminar a apreciação do projeto pelo Em caso de relevância e urgência, o Pre-
Congresso, caso em que esta aprecia- sidente da República poderá adotar medi-
ção se fará ‘em votação única, vedada das provisórias, com força de lei, devendo
qualquer emenda’. submetê-las de imediato ao Congresso Na-
“Esse procedimento, em realidade, cional. É o que estatui o art. 62, na redação
é uma previsão inútil, ou quase, da que lhe deu a recente EC nº 32, de 11-09-
Constituição. Para estabelecer o texto 2001. Essa emenda constitucional foi edita-
de um projeto, o Presidente não precisa da em face do clamor nacional contra o abu-
de delegação; tem iniciativa ampla. Por so de medidas provisórias pelo Poder Exe-
força do art. 64, § 1º, (...) pode ele sub- cutivo. Cingir-nos-emos a reproduzir os
meter seus projetos à apreciação do novos dispositivos sobre o assunto, dispen-
Congresso até em regime de urgência. sando-nos de registrar as severas críticas
Assim, nessa segunda forma de legis- que havíamos alinhavado em desabono do
lação delegada presidencial, a princi- sistema anterior.
pal inovação é a proibição de emenda, Nos termos do § 1º, é vedada a edição de
‘vantagem’ largamente compensada medidas provisórias sobre matéria:
pela ausência de prazo para a mani- I – relativa a:
festação do Congresso e, sobretudo, pela a) nacionalidade, cidadania, direitos
necessidade de habilitação prévia...” políticos, partidos políticos e direito eleito-
Saliente-se que lei delegada é forma de ral;
delegação externa (externa corporis). Não se a b) direito penal, processual penal e pro-
confunda com a delegação interna (interna cor- cessual civil;
poris), objeto do art. 58, §2º, I, que estabelece c) organização do Poder Judiciário e do
caber às comissões, em razão da matéria de Ministério Público, a carreira e a garantia
sua competência, discutir e votar projeto de de seus membros;
lei que dispensar, na forma do regimento, a d) planos plurianuais, diretrizes orça-
competência do Plenário, salvo se houver mentárias, orçamento e créditos adicionais
recurso de um décimo dos membros da Casa. e suplementares, ressalvado o previsto no

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 39


art 167, § 3º (que cuida da abertura de crédi- Casas do Congresso Nacional, ficando so-
to extraordinário); brestadas, até que se ultime a votação, todas
II – que vise a detenção ou seqüestro de as demais deliberações legislativas da Casa
bens, de poupança popular ou qualquer em que estiver tramitando (§ 6º).
outro ativo financeiro; Não editado o decreto legislativo até ses-
III – reservada a lei complementar; senta dias após a rejeição ou perda de eficá-
IV – já disciplinada em projeto de lei apro- cia de medida provisória, as relações jurídi-
vado pelo Congresso Nacional e pendente cas constituídas e decorrentes de atos prati-
de sanção ou veto do Presidente da Repú- cados durante sua vigência conservar-se-ão
blica. por ela regidas (§ 11). Aprovado o projeto
É ainda vedada a adoção de medida pro- de lei de conversão alterando o texto origi-
visória na regulamentação de artigo da nal da medida provisória, esta manter-se-á
Constituição cuja redação tenha sido alte- integralmente em vigor até que seja sancio-
rada por meio de emenda promulgada en- nado ou vetado o projeto (§ 12).
tre 1º de janeiro de 1995 e a data da promul- É vedada a reedição, na mesma sessão
gação da EC 32/2001, inclusive (art. 246). legislativa, de medida provisória que tenha
As medidas provisórias terão sua vota- sido rejeitada ou que tenha perdido sua efi-
ção iniciada na Câmara dos Deputados (§ cácia no decurso de prazo (§ 10).
8º). Caberá a comissão mista de Deputados Havendo medidas provisórias em vigor
e Senadores examinar as medidas provisó- na data de convocação extraordinária do
rias e sobre elas emitir parecer, antes de se- Congresso Nacional, serão elas automati-
rem apreciadas, em sessão separada, pelo camente incluídas na pauta de convocação
plenário de cada uma das Casas do Con- (art. 57, § 8º).
gresso Nacional (§ 9º). A deliberação de cada As medidas provisórias editadas em data
uma das Casas do Congresso Nacional so- anterior à da publicação da EC 32/2001
bre o mérito das medidas provisórias depen- continuam em vigor até que medida provi-
derá de juízo prévio sobre o atendimento de sória ulterior as revogue explicitamente ou
seus pressupostos constitucionais (§ 5º). até deliberação definitiva do Congresso
As medidas provisórias perderão eficá- Nacional. É o que prescreve o art. 2º da
cia, desde a edição, se não forem converti- emenda constitucional.
das em lei no prazo de sessenta dias, pror- Como vimos, ao receber uma medida pro-
rogável nos termos do § 7º, uma vez por visória, o Congresso não a aprovará ou re-
igual período, devendo o Congresso Nacio- jeitará simplesmente, mas lhe dispensará
nal disciplinar, por decreto legislativo, as tratamento semelhante a um projeto de lei a
relações jurídicas delas decorrentes (§ 3º). ser apreciado, em sua vigência, converten-
O prazo de sessenta dias contar-se-á da do-o ou não em lei. Não convertida, perderá
publicação da medida provisória, suspen- eficácia desde a sua edição. Assim se vê que
dendo-se durante os períodos de recesso do medida provisória eqüivale a projeto de lei
Congresso Nacional (§ 4º). Prorrogar-se-á com eficácia antecipada, embora provisori-
uma vez por igual período a vigência de amente. A propósito, diz Ferreira Filho
medida provisória que, no prazo de sessen- (1995, p. 235 -236):
ta dias, contado de sua publicação, não ti- “Uma das conseqüências da força
ver a sua votação encerrada nas duas Ca- de lei é revogar, ou derrogar, as leis
sas do Congresso (§ 7º). anteriores. Daí decorre que a edição
Se a medida provisória não for aprecia- de medida provisória válida importa
da em até quarenta e cinco dias contados de na revogação das leis, ou das normas
sua publicação, entrará em regime de urgên- de leis, que com o seu texto colidirem.
cia, subseqüentemente, em cada uma das Todavia, a medida provisória é um ‘ato

40 Revista de Informação Legislativa


sob condição resolutiva’ de sua con- servação do Estado’. Temendo, toda-
versão em lei, motivo por que a falta via, que esse instituto servisse à pre-
desta implica a extinção de seus efei- potência governamental, cuidou de
tos, donde a restauração do direito pôr limites bem claros a seu exercício.
anterior. “Assim, essas ordinanze, se entram
“Destarte, parece imperativa a con- em vigor na data de sua publicação,
clusão de que a medida provisória re- perdem a eficácia se, dentro de ses-
voga, desde o momento de sua edição, senta dias da publicação, não são
normas com ela colidentes. Mas a re- aprovadas pelas câmaras, ou se, evi-
vogação é como que condicional. Se a dentemente, antes disso são por elas
conversão ocorrer [no prazo de vigên- rejeitadas. E, sublinhe-se, a não
cia], torna-se definitiva essa revoga- aprovação tem efeito de esvaziar ex
ção. Do contrário, restaura-se o direi- tunc a ordinanze, cujos efeitos são
to anterior. anulados desde o momento da pu-
“A não-conversão da medida pro- blicação, salvo se o Parlamento, por
visória tem, portanto, efeito repristina- lei, não dispuser diferentemen-
tório sobre o direito com ela colidente”. te”(1968, p. 153).
Não perfilhamos a opinião do douto O então Deputado Nelson Jobim, como
mestre paulista. A uma apreciação, ainda Relator da frustrada Comissão de Revisão
que rápida, do texto, ressalta imediatamen- Constitucional, já havia decidido propor a
te que: (1) medida provisória não revoga lei elevação, de trinta para sessenta dias, do
anterior – apenas suspende sua eficácia en- prazo de validade das medidas provisórias,
quanto vigente; (2) poderá ou não ser con- com o que a nossa cópia refletiria, como ago-
vertida em lei – e não o sendo, desaparece- ra reflete, com maior fidelidade, os decreti-
rá; (3) enquanto perdure, não é lei – apenas leggi italianos...
tem força de lei, dependendo, os efeitos por Anteriormente, na França, como lembra
ela produzidos, de disciplina do Congresso Ferreira Filho (1995, p.232), o Gabinete “não
Nacional. hesitou em lançar mão de decretos com for-
Eis aí outro instituto transplantado da ça de lei, chamados por Duguit de règlements
Constituição italiana, parlamentarista. Ins- de necessité, isto é, atos normativos, promul-
culpido e encarnado, e além disso abusado, gados com fundamento no poder regula-
como se verificou. mentar, submetidos à retificação (cujos efei-
“Outra forma de ‘legislação gover- tos seriam retroativos, seriam ex tunc, ou seja,
namental’ prevista na Constituição da retroagiriam até a data de sua edição) pos-
República italiana é a expressa pelos terior do Parlamento. Inconstitucionais e
decreti-leggi, também chamados de or- não raro ilegais, esses atos tinham sua vali-
dinanze di necessità. Consistem esses dade justificada pelo princípio salus reipu-
decretos com força de lei editados em blicae suprema lex esto, pela necessidade, pois,
razão de necessidade e urgência, sem conforme argumenta o mestre de Bordéus”.
prévia autorização parlamentar. Conclusão inafastável: as medidas provi-
“Reconhecendo implicitamente sórias são atos normativos precaríssimos, inade-
que salus populi suprema lex esto, o cons- quados para as matérias sujeitas ao regime da
tituinte italiano habilitou o Governo estrita legalidade, como sói acontecer, por
a, sem delegação e sob sua responsa- exemplo, com a instituição ou o aumento de
bilidade, enfrentar, por atos com for- tributo. Nesse mesmo sentido é a opinião de
ça de lei, ‘exigências imprevistas e Roque Antônio Carraza (1991, p. 173, 180-
imprevisíveis, cuja satisfação é impos- 181), escorado, entre outras razões, na pre-
ta como condição para a própria con- missa de relevância e urgência:

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 41


“Amarrada esta insofismável pre- pública (art. 167, §3º). E agora ficou explíci-
missa, podemos dizer, sempre com ta a vedação relativa às matérias que não
apoio na Constituição, que só há ur- podem ser objeto de delegação e também de
gência, a autorizar a edição de medi- direito penal, processual penal e processu-
das provisórias, quando, comprova- al civil.
damente, inexistir tempo hábil para As medidas provisórias sucederam os
que uma dada matéria, sem grandes e decretos-leis, atos normativos também de ini-
iniludíveis prejuízos à Nação, venha ciativa do Poder Executivo, muitos deles ain-
a ser disciplinada por meio de lei or- da em vigor, fazendo parte, portanto, do or-
dinária. Ora, é perfeitamente possível, denamento. Podiam ser editados em caso
nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 64 da de urgência ou de interesse público relevan-
CF, aprovar-se uma lei ordinária no te, desde que não acarretassem aumento de
prazo de 45 dias contados da apre- despesa; nem regulassem matéria de segu-
sentação do projeto. Logo, em nosso rança nacional, finanças públicas, inclusi-
direito positivo, só há urgência se, re- ve normas tributárias e criação de cargos e
almente, não se puder aguardar 45 fixação de vencimentos. Vigentes a partir da
dias para que uma lei ordinária ve- publicação, eram submetidos ao Congresso
nha a ser aprovada, regulando o as- Nacional, que deveria apreciá-los no prazo
sunto. O Judiciário, em última análi- de sessenta dias contados de seu recebimen-
se, decidirá, a respeito (...) De feito, se to, aprovando-os ou rejeitando-os sem emen-
até os tributos que o constituinte con- das. Decorrido esse prazo, sem deliberação,
siderou mais relevantes e sujeitos à estariam tacitamente aprovados (segundo
urgência – a tal ponto que os colocou a redação primitiva do art. 55, § 1º, da EC 1/
fora do alcance do art. 150, III, b, da 69). A EC 22/82 estipulou que, à falta de
CF (princípio da anterioridade) – não deliberação, seriam inscritos na ordem do
podem ser criados ou aumentados dia, em regime de urgência, por dez sessões
mediante medidas provisórias, por subseqüentes, em dias sucessivos, findos os
muito maior razão aqueloutros, que a quais, não tendo havido deliberação, estari-
Lei das Leis não considerou nem tão am aprovados. No caso de rejeição, teriam
urgentes, nem tão relevantes (tanto tido força de lei (pois lei teriam sido) até a
que os submeteu às injunções do prin- data da rejeição.
cípio da anterioridade) (...) Com estas Profligando o abuso da utilização do
derradeiras considerações, temos por decreto-lei como forma “normal” de legife-
demonstrada a tese retro-enunciada: ração, enquanto em vigor na Constituição
em hipótese alguma a medida provi- de 1967, porque isso “importava em con-
sória pode criar ou aumentar tributos. centrar nas mãos do Presidente da Repúbli-
Só a lei ordinária pode fazê-lo”. ca o Executivo e, de facto, o Legislativo, no
A respeito, vide o § 2º do art. 62... Em que este é poder de legislar”, Ferreira Filho
matéria financeira, ex vi do art. 62, § 1º, I, d, observa que “no meio político e jurídico, essa
vê-se que tudo quanto depende de lei não concentração de Poderes era justamente cri-
pode ser regulado por medida provisória. É ticada. Nos meios da oposição era ela de-
o caso, por exemplo, da abertura de crédito nunciada como um dos abusos inomináveis
suplementar ou especial (art. 167, V). Ob- do regime militar”(1995, p. 233).
serve-se, todavia, que medida provisória O eminente constitucionalista Josaphat
será utilizada para a abertura de crédito Marinho assim disse a respeito:
extraordinário para atender a despesas im- “De instrumento limitado e excep-
previsíveis e urgentes, como as decorrentes cional, por sua natureza, as medidas
de guerra, comoção interna ou calamidade provisórias multiplicaram-se e se tor-

42 Revista de Informação Legislativa


naram forma ágil de legislar sobre VII – fixar idêntico subsídio para os De-
quase todas as matérias. Com a exten- putados Federais e os Senadores(...);
são abusiva, o governo ocupa espaço VIII – fixar os subsídios do Presidente e
reservado, pela essência do regime, ao do Vice-Presidente da República e dos Mi-
Congresso Nacional, e assim também nistros de Estado (...);
fere direitos dos cidadãos. As cente- IX – julgar anualmente as contas presta-
nas de medidas provisórias editadas das pelo Presidente da República e apreciar
e reeditadas, muitas com alterações, os relatórios sobre a execução dos planos
mostram o grau de arbítrio com que de governo;
têm sido usadas. São cerca de 1.500, X – fiscalizar e controlar, diretamente ou
entre emitidas e renovadas. Embora a por qualquer de suas Casas, os atos do Po-
Constituição, no art. 62, reclame ur- der Executivo, incluídos os da administra-
gência e relevância para editá-las, sim- ção indireta;
ples leitura de várias delas indica que XIII – escolher dois terços dos membros
não refletem nenhum desses dois pres- do Tribunal de Contas da União.
supostos” (1991, p. 7). O item I enfoca matéria pertinente a fi-
Arrematemos esse assunto com Montes- nanças e tributação, principalmente a esta
quieu: última: os decretos legislativos têm sido uti-
“A liberdade política em um cida- lizados para a aprovação, pelo Congresso
dão é aquela tranqüilidade de espíri- Nacional, dos tratados e convenções inter-
to que provém da convicção que cada nacionais firmados pelo Poder Executivo.
um tem da sua segurança. Para ter Estes, na letra do art. 98 do Código Tributá-
essa liberdade, precisa que o governo rio Nacional, “revogam ou modificam a le-
seja tal que cada cidadão não possa gislação tributária interna e serão observa-
temer outro. dos pela que lhes sobrevenha”. Todavia,
“Quando na mesma pessoa ou no inobstante a superioridade que a letra do
mesmo corpo de Magistratura, o Po- Código aparentemente lhes emprestaria,
der Legislativo é reunido ao Executi- sobre a legislação interna, é mister ressaltar
vo, não há liberdade. Porque pode te- não terem eles existência autônoma; é medi-
mer-se que o mesmo Monarca ou o mes- ante um decreto legislativo, primeiro (apro-
mo Senado* faça leis tirânicas para exe- vação), e de um decreto do Presidente da
cutá-las tiranicamente”(1998, p. 167). República (ratificação), que um tratado ou
convenção internacional passa a integrar a
5.1.4. Decretos Legislativos
legislação interna – e, portanto, a existir e
Decretos Legislativos são atos do Poder vigorar efetivamente. Quando o Estado na-
Legislativo, que têm efeitos externos a ele, cional celebra tal espécie de tratado ou con-
destinados a regular matérias de competên- vênio, sua soberania não é atingida nem li-
cia exclusiva do Congresso Nacional (art. mitada: o Estado reconhece determinada
49 da Lei Maior), sem sujeição a sanção ou situação como conveniente aos interesses do
veto do Presidente da República. País, e, soberanamente, firma o documento,
Entre as matérias listadas no art. 49, as tendo em vista os objetivos que persegue.
que mais de perto entendem com a adminis- Em geral, no campo do direito tributário, os
tração financeira, v.g., estão as dos seguin- tratados e convenções internacionais ver-
tes itens: sam sobre o problema da bitributação. As-
I – resolver definitivamente sobre trata- sim, quando uma cláusula de um tratado
dos, acordos ou atos internacionais que acar- ou convenção venha a dispor diferentemen-
retem encargos ou compromissos gravosos te da regra geral, em determinada hipótese,
ao patrimônio nacional; como atrás salientamos, passa a constituir

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 43


exceção a essa regra no momento em que é 5.2. Decretos: espécies e funções
acolhida na legislação interna.
Isso não traduz, entretanto (a nosso ver As fontes legislativas acima enumeradas
e em contraposição a expressiva corrente são as principais do direito, por isso que
doutrinária), supremacia dos tratados e con- podem ser chamadas de fontes primárias. As
venções internacionais sobre a legislação que se seguem serão então designadas de
interna. Poderia, quando muito, significar secundárias, derivadas ou subsidiárias, por con-
superioridade de uma espécie normativa terem normas inferiores e subordinadas à
interna sobre outra, também interna. No lei. Sua existência depende da lei que preve-
caso, do decreto ratificador, hipótese que – ja ou faculte regulamentação.
poderíamos dizer –, por sua cogência e re- Decretos são atos cuja expedição incum-
sistência à revogação em relação à lei ordi- be ao Presidente da República, investido,
nária, estaríamos diante de outra espécie de como chefe do Poder Executivo, do ordinan-
lei nacional – ao nível da lei complementar ce power – poder regulamentar.
e da resolução do Senado fixadora de alí- Nas palavras do saudoso constituciona-
quotas de impostos estaduais. Rafael More- lista e tributarista Geraldo Ataliba, “consis-
no Rodrigues, por exemplo, coloca os trata- te o chamado poder regulamentar na faculda-
dos internacionais em “posição acima da lei de que ao Presidente da República – ou Che-
ordinária, na hierarquia das normas jurídi- fe do Executivo, em geral, governador e pre-
cas, como condição eqüivalente à lei comple- feito – a Constituição confere para dispor
mentar” (CORSATTO, 1991, p. 93-95). sobre medidas necessárias ao fiel cumpri-
mento da vontade legal, dando providências
5.1.5. Resoluções
que estabelecem condições para tanto. Sua
função é facilitar a execução da lei, especifi-
As resoluções legislativas são atos desti-
cá-la de modo praticável e, sobretudo, aco-
nados a regular matéria de competência do
modar o aparelho administrativo, para bem
Congresso e de suas Casas, tanto de efeito
observá-la”. Dizendo que não é dado à lei
interno quanto externo. As arroladas nas vedar a regulamentação e que seria nula a
competências da Câmara dos Deputados cláusula legal que impedisse o Presidente
(art. 51) e do Senado (art. 52) são de efeito de exercitar esse poder, acrescenta:
externo. Seriam de efeito interno apenas “Não quer, entretanto, isto dizer que
aquelas relativas a atividades-meio do Po- tal poder seja ilimitado, ou que possa
der Legislativo. ser exercido de qualquer forma e a qual-
Em finanças públicas, citem-se principal- quer propósito. O uso deste poder sole-
mente as do art. 52, V a IX, de competência ne e eminente é, pelo contrário, vincu-
do Senado, sobre operações de crédito e dí- lado. Depende quantitativa e qualitati-
vida pública. Em tributação, saliente-se que vamente das condições impostas pelo
resolução do Senado fixará alíquotas máxi- sistema e da própria natureza e con-
mas do imposto sobre transmissão causa teúdo da lei a ser regulamentada, É,
mortis e doação de quaisquer bens e direitos pois, o poder de fazer regulamentos,
(art. 155, §1º, IV) e estabelecerá alíquotas do por exigência constitucional, deflagra-
ICMS (art. 155, §2º, IV a VIII). do pela existência da lei. Sem esta, não
Como já dissemos, as resoluções do Se- existe aquele. Não há, pois, regulamento
nado que estabelecem limitações tributárias autônomo, no regime constitucional bra-
ou financeiras às pessoas políticas autôno- sileiro. Sem lei, não há decreto regula-
mas (União, Estados, Municípios e Distrito mentar”(1969, p. 119-120).
Federal) devem ser consideradas leis nacio- É o que faz a Lei Maior, no art. 84, IV,
nais e não simplesmente federais. fine: confere competência ao Presidente da

44 Revista de Informação Legislativa


República para expedir decretos e regula- Conforme a finalidade ou a posição hie-
mentos para a fiel execução das leis. E o rárquica das autoridades de onde proma-
Código Tributário Nacional, de sua parte, nam, os atos administrativos normativos
no art. 99, dispõe que “o conteúdo e o alcan- recebem denominações diversas: instruções,
ce dos decretos restringem-se aos das leis portarias, circulares, normas de execução,
em função das quais sejam expedidos, de- ordens de serviço. De acordo com o art. 87,
terminados com observância das regras de II, da Constituição, compete aos Ministros
interpretação estabelecidas nesta lei”. Isso de Estado expedir instruções para a execu-
confirma a dicção do pranteado Professor ção das leis, decretos e regulamentos. Con-
Ataliba: os decretos devem jungir-se estrita- tudo, em vez de instruções ministeriais, têm
mente às leis, sendo-lhes vedado ultrapas- preferido os senhores Ministros expedir
sá-las, mesmo quando inovem na ordem ju- portarias. Portarias são usualmente atos
rídica, por determinação legislativa. administrativos internos, editados por che-
Os decretos a que nos referimos por últi- fes de repartições.
mo – que inovam na ordem jurídica – de- A Secretaria da Receita Federal dispõe
sempenham função legislativa stricto sensu. de nomenclatura própria de atos adminis-
É o caso, por exemplo, dos decretos que alte- trativos normativos, cuja utilização é disci-
ram alíquotas dos impostos de importação, plinada pela Instrução Normativa nº 1, de
exportação, produtos industrializados e 12-09-69. Ao rol dos mencionados na referi-
operações financeiras, nos termos do §1º do da instrução normativa, acrescentem-se os
art. 153 do Texto Magno. Ratione materiae são, atos declaratórios normativos, editados no
portanto, atos normativos qualificados, di- Sistema de Tributação.
ferentes dos demais decretos, estando em Decisões Administrativas são as proferidas
nível superior a eles. em processos administrativos fiscais, inclu-
sive de consulta, pelas autoridades investi-
5.3. Normas complementares:
das de competência decisória, nas diversas
espécies e funções
instâncias administrativas. Tais decisões
Normas complementares das leis, dos tra- consideram-se fontes particulares de Direi-
tados e convenções internacionais e dos to Tributário. Criadores do direito in concre-
decretos, de acordo com o art. 100 do Códi- to, vinculam apenas as partes envolvidas
go Tributário Nacional, são: no litígio. O preceito criado para cada caso
I - os atos normativos expedidos pelas não se reveste de força de norma geral, exce-
autoridades administrativas; to se a lei lhe atribuir eficácia normativa,
II - as decisões dos órgãos singulares ou como está no inciso II do art. 100.
coletivos de jurisdição administrativa, a que Entre nós, foi atribuída eficácia normati-
a lei atribua eficácia normativa; va apenas à orientação veiculada por meio
III - as práticas reiteradamente observa- de parecer normativo do Sistema de Tributa-
das pelas autoridades administrativas; ção da Secretaria da Receita Federal, sobre
IV - os convênios que entre si celebram a consultas “formuladas sobre a interpreta-
União, os Estados, o Distrito Federal e os ção da legislação dos tributos a seu cargo”,
Municípios. nos termos da Instrução Normativa nº 26,
Atos Administrativos Normativos são os de 25-05-70. De acordo com o item III daque-
expedidos pelas autoridades administrati- la Instrução Normativa, “o parecer se limi-
vas a partir do segundo grau, para a boa tará ao exame da tese sobre que versa o caso
execução das leis e regulamentos, com vis- concreto, com a abstração do autor da con-
tas ao eficiente funcionamento da adminis- sulta, indicando a solução consentânea com
tração, à harmonia e à unidade dos serviços a hipótese”. Que os pareceres normativos
públicos. sejam normas complementares, não há dú-

Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 45


vida, até por dizê-lo o Parecer Normativo nº uma exceção ao princípio da legalidade es-
390/71. trita. Em face disso, não há como considerar
Práticas Administrativas ou praxis da tal modalidade de convênio como simples
Administração são as regras reiteradamen- norma complementar – espécie normativa
te observadas pelas autoridades adminis- de natureza infralegal.
trativas na solução de casos semelhantes. É
a orientação fiscal adotada pela Adminis-
tração na aplicação de leis e regulamentos. Notas
Embora o Código não tivesse reproduzido o
* “Senado” aqui é expressão de “Assembléia
texto do seu anteprojeto – que além das prá- de Leis”.
ticas mencionava os usos e costumes –, é
difícil deixar de fazer conexão com aqueles.
Que são usos e costumes senão práticas rei- Bibliografia
teradas?
Ressalte-se que, em virtude do princípio ARAÚJO, Luiz Alberto David et al. Curso de direito
da legalidade, tais práticas (ou usos e cos- constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998.
tumes) somente têm força vinculante en- ATALIBA, Geraldo. Apontamento de ciência das fi-
quanto interpretativas de leis, regulamen- nanças, direito financeiro e tributário. São Paulo: Re-
tos e outros atos normativos. vista dos Tribunais, 1969.
Convênios internos – assim se podem cha- BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e
mar os que entre si celebram a União, os de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1991.
Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
BECKER, Augusto Alfredo. Teoria geral do direito
Da finalidade de tais convênios – execução tributário. São Paulo: Saraiva, 1972.
de leis, serviços ou decisões, por intermédio
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.
de funcionários federais, estaduais ou mu-
5 ed. de Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília:
nicipais –, conforme reza o texto constituci- UnB, 1984.
onal, decorre sua natureza administrativa.
CAMPOS, José de Queiroz. Como elaborar a lei: téc-
Também exclusivamente sob a óptica admi- nica de redação e linguagem. Rio de Janeiro: Verbe-
nistrativa acolheu o Código a possibilidade te, 1972.
dos convênios internos, como se depreende
CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito consti-
do art. 7º combinado com o art. 199. tucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais,
De outra categoria, outrossim, são os con- 1991.
vênios celebrados e ratificados pelos Esta-
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica legislati-
dos, nos termos de lei complementar, como va. Rio de Janeiro: Del Rey, 1993.
previsto no art, 155, §2º, XII, g, da Constitui-
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tri-
ção, com vistas à concessão ou revogação
butário. São Paulo: Saraiva, 1985.
de isenções, incentivos e benefícios fiscais
do ICMS. Estes inovam na ordem jurídica, ______. Teoria da norma tributária. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1981.
eqüivalentemente às leis. De acordo com a
Lei Complementar nº 24, de 07-01-75, de- CORSATTO, Olavo Nery. Direito tributário. Brasí-
vem ser ratificados pelo Poder Executivo de lia: Curso Monte Horebe, 1991.
cada Unidade da Federação. Tomando-se EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do di-
“ratificados” no sentido de “aprovados” reito. Tradução de René Ernani Gertz. Brasília: UnB,
(como tem acontecido, embora não seja o seu 1986.
exato sentido técnico), segue-se que os con- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de di-
vênios passam a integrar a legislação esta- reito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.
dual mediante decreto do Poder Executivo, ______. Do processo legislativo. São Paulo: Fa-
consubstanciando-se, desse modo, mais culdade de Direito da USP, 1968.

46 Revista de Informação Legislativa


______.Do processo legislativo. 1968. Dissertação. MENDES, Gilmar Ferreira et al. Manual de redação da
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Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 47

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