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CINEMA DE JANELA
(Crônicas e Narrativas)
Crato - Ceará
2001
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Blaise Pascal
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
ACERTO DE CONTAS
AMIGOS CAÇADORES
O ANDOR
OS IRMÃOS ANICETO
APETITE
APOSTADORES
O jogo é uma das paixões menos nobres que há. Falo assim
como se houvesse paixão mais nobre do que outra. Na verdade,
sendo paixão nunca deixará de ser instinto bruto. Contudo
existem pessoas que se deixam levar nesses impulsos. Por
qualquer (ou nenhum) motivo, arriscam o coração, na febre das
emoções incontidas do ganho fácil. Ilustro essas cogitações
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CAMÕES
CARMA E DESTINO
CAVALHADAS
A CIÊNCIA DA ABELHA
AS CINZAS DA ÁFRICA
OS COMBOEIROS
CONVERSA DE ENGENHO
CORPO INTACTO
COSTUMES
CURAS MUSICAIS
DOIS ANOS
No mês de abril de 1944, viu minha mãe, num sonho, que grande
multidão descia pela rua José Carvalho, onde ela morava com a
avó paterna, em Crato, qual acompanhasse o enterro de pessoa
da sua família. A reação que experimentara, ao divisar o cortejo,
fez com que, apreensiva, lembrasse de seu pai, buscando de
imediato a residência em frente da casa, para saber de quem se
tratava.
Da janela, uma senhora amiga, dona Violeta Brito, indagada, foi
quem lhe atendeu:
- Não, Lourdinha, fique despreocupada, que não foi seu pai.
Toinho só morrerá daqui a dois anos.
Quando retornou ao estado de vigília, ainda sob os efeitos da
forte emoção que experimentara, gravou bem aquele sonho,
tendo, inclusive, contado a alguns familiares e ao seu noivo, Luiz
de Lacerda Leite, meu pai. No ano seguinte, casariam e
deixariam o Crato para se fixar no município de Lavras da
Mangabeira, na fazenda do sogro. Não esqueceu, entretanto, do
que sonhara; de tempos em tempos, lembrava da cena marcante
que vivenciara, um tanto aflita com a aproximação da época
prevista.
Em outubro de 1945, nascia Luís Everardo, meu irmão mais
velho, a quem logo meu avô materno muito se afeiçoou. Tratava-
se do seu primeiro neto. E no ano seguinte, numa manhã do mês
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OS ELEMENTAIS E A ECOLOGIA
A ESCAVAÇÃO DA BOTIJA
EXPLOSÃO POPULACIONAL
FLAGRANTES DE MEMÓRIA
A FORÇA DO PRESTÍGIO
O GOL
HERANÇA
INTERCESSÃO VALIOSA
INUSITADO
IRMÃ SANTINHA
dela ter ficado, após a morte, em lugar inferior, posto que vivera
vida cheia de muitos gestos de pura bondade.
A freira escutou sensibilizada as observações do cavalheiro, e,
demonstrando profunda infelicidade, acrescentou:
- Lembra o senhor de uma consulta que me fez a propósito da
virgindade de uma pessoa com quem, certa feita, esteve noivo?
Eu não guardava a certeza da resposta e respondi com
indecisão. Resultado, como a sua interpretação errônea
precipitou acontecimentos e terminou prejudicando a moça
envolvida na história, que, de desgosto, caiu na prostituição e
morreu anos depois, vítima de doença do mundo. Quando soube
disso tudo, era tarde demais e agora tenho, para reparar o dano
causado àquela criatura, de suportar as caldeiras do mais cruel
remorso.
Em seguida, silêncio maduro comprimiu a noite. Cedo da manhã,
o homem localizou, no ponto determinado, integral, a quantia que
deixara nas mãos da freira. Num gesto de gratidão, buscou a
igreja e depôs boa parte do dinheiro no cofre das almas, ocasião
em que agradeceu e se despediu do padre. Gesto contínuo, sem
delongas, resolveu ir embora.
LANÇAMENTOS
LEVANTE POPULAR
A LOURA DA PETROBRÁS
Eis aqui uma história dos inícios da década de 80, quando nossa
sociedade interiorana ainda vivia à margem dos perigos cruciais
da Aids, flagelo que reclama cuidados redobrados de quem se
aventura nas intimidades sexuais com parceiros desconhecidos.
Nessa época dos primeiros anos daquela década, viera residir
em Crato, nas proximidades do terminal da Petrobrás, no bairro
do Buriti, louraça de fechar comércio, nos dizeres antigos. Dada
a concentração de motéis na vizinhança, tornara-se presa fácil
para os maridos infiéis que quisessem exercitar a ginástica de
pular cerca, nos encontros fortuitos como essa jovem paulistana,
de cuja existência não tardou de circular nas rodas boêmias a
notícia.
No apelo desses clandestinos encontros, vários desavisados
arriscavam as penas, envoltos no manto esgaçado da impune
promiscuidade. Em horas galantes, eles buscavam as fugidas
libertinas.
Não demorou muito da realidade se apresentar com toda sua
pujança. Quem acompanhou de perto esse caso poderá, sem
largo esforço de memória, confirmar o que dizemos. Belo dia, a
casa veio abaixo. O que antes fora atração fatal virava pesadelo.
Quando o risco parecia inexistir no nosso meio, qual rastilho de
pólvora em noite escura, rompeu nas bocas o boato tenebroso de
ser aidética a loura da Petrobrás.
Fica difícil de se estimar o tanto de marido aflito, esmorecido,
pálido, enfastiado. Virou corre-corre, uma mistura de pânico.
Seguiam a Fortaleza, a Juazeiro, na busca dos testes para esse
tipo de análise, porquanto os laboratórios do interior ainda se
viam deles desequipados. Naquele momento, entretanto pouca
coisa seria mais importante para quem se envolveu na perigosa
ocorrência. Ansiosos, trataram de agir rápido, questão de
sobrevivência, garantia de vida, provar que se achavam livres do
monstro devorador.
Houvesse confirmação da suspeita, Crato registraria um surto da
perversa calamidade, o que, graças a Deus, não se verificou,
restando, em conseqüência, o aviso aos que escaparam e aos
que, por vezes, expõem a saúde nesses constrangimentos.
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MAJOR BENTO
MENDIGOS DE BANQUETE
MESTRE ZUMBA
NOTÍCIAS DA SELVA
OSSOS DO OFÍCIO
OUVI DE LYSÂNEAS
(Título este que nos soa parecido com o que é que vou dizer em
casa, dos antigos folguedos carnavalescos, e que cabe qual luva
certa nos dedos atuais da vida brasileira, seja nas capitais ou no
interior, após as definições administrativas de um governo que
se completa entrando de armas e bagagens num outro que
principia de corda toda, dentro de pompa só comparável às
festas hollywoodianas e aos casamentos das princesas nas
mil e uma noites... isto em época exaustiva para milhões, onde
sobra pouco a comemorar fora das hostes das oligarquias
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O PEDIDO
O PEIXINHO DOURADO
AS PORTAS DO ABISMO
AS PROEZAS DO BICHO-HOMEM
REPÚBLICA VELHA
O QUEIJO
REGINA
REVOLUÇÃO
RIO PRETO
SABENÇA DE CABOCLO
SEGREDOS VULGARES
SONHO
TEMERIDADE
É TEMPO DE TRANSCENDER
TESOURO DA JUVENTUDE
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TIRANOS DE SIRACUSA
TIPOS POPULARES
Outra figura peculiar das ruas cratenses - Tendô, que não mais
soubemos dele; representava outra época dessa história natural
da cidade, nos fins da década de 40, começo dos anos 50.
Troncudo, baixo na estatura, cinto largo de muitos adereços,
fivelas variadas e cravejado de tudo quanto era ilhoses, e um
chapéu de couro e babicacho que não destoavam do exagero
geral; também muito querido da população, prestativo e eficiente,
vivia de recordar as proezas de seu antigo patrão, Dr. José
Gesteira, a quem servira em sua casa de saúde.
Noventa, o chapeado, outro tipo indelével desse passado,
empurrando uma carroça para transporte de cargas, sabia
conversar com desenvoltura a propósito dos mais diversos
temas, em tiradas filosóficas de humor que desafiavam o rotineiro
dos dias. Morava no bairro do Seminário, onde, certa feita, fomos
vê-lo. Atravessava uma fase de muita bebida, tendo, há pouco,
voltado à faina do carreto após sofrer sério acidente
(atropelamento e fratura numa das pernas). Exímio artista da
palavra falada, distribuía satisfação ao povo.
Outra lembrança, Ramiro, que marcou momentos agradáveis,
primeiro entre padres e internos do Seminário São José, com
verve engraçada; enfatizava seu aspecto feio em histórias as
mais divertidas e apreciadas, ainda agora merecedoras de
registro. (Certa ocasião, voltando tarde da noite de festa em
Juazeiro, fretou um carro de praça. No escuro completo daquele
tempo, mandou parar na frente do cemitério, onde morava e
trabalhava de coveiro, para ir buscar o dinheiro da corrida.
Depois de longa demora, e acordando com longas buzinadas os
moradores próximos, o motorista viu-se surpreendido com a
informação de onde se achava, ao que exclamou: - Bem logo vi;
com uma cara daquelas não podia ser deste mundo!).
Desapareceu nos fins da década de 70.
Lembramos, ainda, de outros personagens: Célio Silva, boêmio
integral, à maneira carioca dos inícios do rádio, no Brasil. Voz
afinada, timbre da de Francisco Alves, cantava deste o repertório,
se acompanhando ao violão, pelas quebradas da cidade, centro
e periferia. Chegou a gravar um disco e nunca se afastou dos
programas radiofônicos, nas emissoras locais, por volta dos anos
60. Expedito Magro, seu outro nome, alegre, comunicativo,
cabelo liso e penteado a Chico Alves, vitimou-se cedo no uso
exacerbado de bebidas alcoólicas.
Dizíamos, a princípio, que as comunidades dispõem do seu
panteão de figuras marcantes, nas várias épocas. Músicos,
poetas, loucos. Artesãos, vadios, mendigos, contadores de
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VINTA
Meu pai conta algumas histórias de Vinta, uma prima que viveu
na casa de sua família, no Tatu. Os traços que lhe marcavam a
personalidade: nunca casara, tornando-se moça velha, como se
usava dizer, e muitas vezes ocorria de exagerar nas atitudes,
levando os demais a rirem do seu jeito característico de
responder às provocações como criatura diferente, de estilo
afetado no vestir, nos modos de falar, nas tiradas e nos repentes.
Em uma das noites da fazenda, quando todos se reuniam no
alpendre fronteiro da casa grande, e meu avô, de mãos atrás do
pescoço, sentado numa cadeira de couro cru apoiada nos pés
traseiros e derreada na parede, como gostava muito de usar em
seu merecido repouso noturno, Vinta resolveu exercer o seu
prestígio fidalgal solicitando que Joaquim Leite, meninote de
serviço, de um olho cego, fosse à cozinha lhe buscar água de
beber.
Após saciar a sede, deliciada no bom atendimento, alguém
lembrou de perguntar donde o garoto trouxera o copo d’água, ao
que ele respondeu haver sido da bacia do lavatório, daí
acrescentando:
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A VOZ DA EXPERIÊNCIA
DADOS PESSOAIS