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José Emerson Monteiro Lacerda

CINEMA DE JANELA
(Crônicas e Narrativas)

Crato - Ceará
2001
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Alguns autores dizem, ao referir-se a suas obras: Meu livro,


meu comentário, minha história, etc. Isso cheira a burguês
com bens de raiz e sempre com um meu lar nos lábios.
Fariam melhor dizendo: Nosso livro, nosso comentário,
nossa história, pois, em geral, há nisso mais bens alheios do
que próprios.

Blaise Pascal

SUMÁRIO

TODO SER HUMANO É UM SER DE CULTURA

- Como nos é transmitida a cultura do nosso meio e de que


maneira somos por ela determinados?
- Podemos participar de várias culturas ao mesmo tempo?
- A cultura dos grupos socialmente dominados está fadada ao
desaparecimento ou à imitação?
- A mudança cultural pode ser decretada ou responde a leis que
os indivíduos ignoram?
Não são poucas as questões que a leitura de CINEMA DE
JANELA nos sugere.
Quem, como eu, tem ou teve o privilégio de convivência com
Emerson sabe que o seu agir é permeado por essas questões de
constante atualidade.
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Quer escreva, quer fotografe, quer realize suas belas colagens,


Emerson revela a procura constante da beleza, da integridade,
da unidade do ser complexo que somos nós humanos.

Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau

APRESENTAÇÃO

O presente livro é uma nova safra de relatos e crônicas que o


autor - especialista no gênero - vem nos oferecer, dando-nos o
contorno de um diversificado mapa geográfico e humano.
Nascido no sítio de sugestivo nome, Tatu, em Lavras da
Mangabeira - Ceará, José Emerson Monteiro Lacerda conhece
palmo a palmo o seu chão, de onde nos traz estranhas e
saborosas notícias, mas nele não se atém, abrindo a observação
e a imaginação para outros contextos, de aquém e de além, do
cotidiano e da história.
Com a lente do etnógrafo e a sensibilidade do poeta, ele nos
alcança com sua palavra certeira, na busca da precisão. Há
relatos que são como aquarelas, traços suaves, cores singelas,
em paisagens urbanas ou de sertão. Uns correm pela memória,
seja familiar ou regional, onde não falta o caráter exemplar e o
senso de humor diante das contraditórias ações humanas.
Outros se inspiram mais diretamente no imaginário popular que
permeia o dia-a-dia de nossa gente, dia-a-dia marcado pela
necessidade de sobrevivência, mas povoado de sonho e
esperança, revelando aqui e ali botijas de sabedoria.
No autor encontramos o homem em dimensão telúrica, com a
marca do amor à terra e o gosto de viver. Entrevemos seu perfil
social e político, bem como o pulsar espiritual e a ligação com o
mistério. CINEMA DE JANELA é ainda passeio a pé, é banho de
açude. É balanço de rede, cadeira de balanço. É simplicidade,
café com sequilhos. Venha servir-se. Aprecie cada relato, um por
um, saboreando o fino sabor do alfenim, deste livro que nos
chega com gosto de Ceará.

Francisco Assis de Sousa Lima

ACERTO DE CONTAS

Logo cedo, de espingarda em punho, o caboclo buscou na mata


a mistura do dia para as refeições da família. Andou muito e nada
achou que atendesse o objetivo. De mãos abanando,
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desanimado, retornava ao casebre, quando avistou bela


espécime de cabra a lhe cruzar o caminho. Sabia ser de um dos
vizinhos de terra, seu compadre, dono de muitos bichos que
vinham aumentando com muita facilidade. Coçou a cabeça,
mediu as conseqüências e viu justiça no ato que planejava em
nome dos seus filhos que precisavam sobreviver.
Auscultou as imediações, viu-se distante, solitário: a ocasião faz
o ladrão, diz o povo. O isolamento propiciava impunidade. Armou
o gatilho e atingiu a marrã de criação. Arrastou-a para o mato,
tirou-lhe o couro, partiu-lhe os ossos e a carne, desfez as pistas.
Quando chegou em casa, trazia nas costas o alimento de duas
semanas ou mais.
Alguns dias se passaram. Mesmo não sendo descoberto, o
caçador parecia pouco confortável dentro dele próprio, dado o
ato que cometera. Vivia sério, sem graça; de honesto, acordava
no meio da noite suando frio e tendo pesadelos. A coisa tendia
ao agravamento. Perdia, sob as tenazes do remorso, o
patrimônio da alegria de viver.
De alma presa, bela manhã, resolveu se confessar. Procurou o
vigário da freguesia e lhe contou, em todos os pormenores, a
história do delito praticado. O sacerdote ouviu-o atencioso,
refletiu durante alguns minutos e disse:
- O senhor agiu de forma vergonhosa. Fez o que nunca deveria,
querendo disso se beneficiar. Assim, para limpar a culpa pelo
que cometeu, irá procurar seu vizinho e esclarecer o assunto,
dizendo a ele que pagará o animal morto tão logo possua
recursos.
- Mas, padre, fazendo desse jeito vou passar por desonesto -
retrucou, contrariado, o sertanejo. - Isso fica muito ruim para
quem juntou fama de sério, como sou eu. Deve haver outro jeito
melhor de resolver - acrescentou.
- Meu filho, não vejo nada mais simples do que essa penitência -
replicou o sacerdote. - Pois, não sendo desse modo, quando
chegarmos no Dia do Juízo, lá vão comparecer, na presença dos
santos, o senhor, seu compadre e a cabra roubada, o que
resultará numa situação muito mais constrangedora.
Nesse momento, ecoou no interior da igreja a sonora gargalhada
do caboclo, que, em seguida, foi dizendo:
- Ah, padre, agora compreendi nas suas palavras o que devo
fazer. Visto o que falou seu reverendo, quanto à cabra
reaparecer inteira, no Juízo Final, nessa hora, então, eu pego ela
e a devolvo ao dono, o meu compadre, ficando tudo resolvido
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sem maiores prejuízos. - E retirou-se cheio de felicidade pela


solução do seu drama.

AMIGOS CAÇADORES

Eram amigos assim reconhecidos por todos. Aonde um fosse, o


outro lhe acompanhava dentro da maior sem-cerimônia. Até
namoradas conseguiam uma perto da do outro, facilitando a
viagem. Isso coisa de causar pasmo como podia ocorre nesses
tempos de tanta desunião.
Nos projetos, passeios, caçadas, no que fosse, lá seguiam eles.
Essa aventura que vamos contar verificou-se entre os tais
amigos, e desta forma aconteceu: Uma onça pintada vinha
dominando as cercanias, exterminando rebanhos inteiros de
criação, qual flagelo devastador. Certo dia, os fazendeiros
reunidos trataram das providências. Convocaram os caçadores
da redondeza, oferecendo meios e boa gratificação a quem
desse cabo do medonho felino. Sem dúvidas que os dois amigos
encabeçavam a lista de justiceiros.
Numa madrugada escura de inverno, buscaram, com outros, a
mata fechada onde pululavam marcas da nefasta presença;
antes do alvorecer, iam na dianteira, por cima de rastros vivos
achados logo no começo da trilha que tomaram. Daí seguiram
firmes no encalço da gata, por cima de lajedos, folharia,
garranchos, animados ao esperado confronto.
Diz o povo que quem procura acha, e toparam com a presa numa
clareira espaçosa, ponto ideal em que o perigo fez evidência.
Não se pode determinar qual dos dois o mais ligeiro ao instante
de fugir, contudo, na surpresa, foi esse quem conseguiu trepar na
única árvore das proximidades, deixando atrás espingarda,
cartucheira, bornal, cantil, alpercatas, chapéu e o companheiro;
saíra-se mais rápido que sabugo de milho seco em boca de
moageira. Um arraso de vexame.
A fera achou fácil fácil perseguir o que ficara embaixo. A esse
coube esperar pela sorte, coisa exclusiva de fazer; entregou o
corpo ao chão, colado, teso, e aquietou de tudo, retendo a
respiração.
Veio a onça, escutou de perto, bem de cima, rodeou a marmota,
calculou o estrago, tomou chegada e fuçou-lhe o pescoço e a
cabeça, na altura dos ouvidos; o caçador achava-se muito mais
morto do que vivo. Três minutos eternos se seguiram até que o
animal resolvesse ir embora sem causar danos.
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Passado o pior, desceu da árvore o que nela subira. Ainda batia


a poeira das calças, quando lhe deu querer saber do
companheiro o que a pintada ao ouvido lhe dissera, talvez a
pretexto de quebrar o gelo que restava da ocorrência. E o outro
não esperou maiores chances para expelir seu desencanto:
- Ela me preveniu que antes de sair nessas empresas arriscadas
eu aprendesse a escolher melhor com quem me acompanhar -,
e, desse modo esclarecendo, partiu sozinho a fim de continuar o
serviço.

O ANDOR

Desde cedo, naquela tarde, tia Vanice resolvera dedicar-se a


decorar o andor de Nossa Senhora da Conceição para a festa do
dia seguinte, a ter como ponto alto uma procissão pelas estradas
do sítio, percorrendo as paredes dos três açudes, chegando até a
cancela do Xique-Xique. Depois, já de noite, aconteceria a
coroação tradicional, em frente da pequena capela do Tatu,
acompanhada de missa que reuniria, como nos anos anteriores,
os habitantes e a vizinhança do lugar.
O andor, peça bem torneada, passara guardado o ano todo, a ser
usado tão-só nos festejos da padroeira. A maneira de enfeitá-lo
mudava de pessoa a pessoa, conforme suas habilidades. Uns
preferiam forrar de seda rosa, azul ou branca, com algodão, à
guisa de nuvens. Daquela vez, fora escolhido o papel crepom de
cores suaves.
As várias folhas recortadas e coladas a grude de goma
envolveram o nicho de transporte da santa, ficando de fora
apenas os braços de apoio aos ombros dos carregadores. Tia
Vanice dedicara, pois, todo seu carinho no amarfanhar dos
desenhos de papel cortado, realçado nas flores do arranjo
colorido. Esmero maior impossível, obra-prima da sacra
elaboração. No feitio da agreste devoção, lá dos páramos
celestiais, a virgem, decerto, sorria agradecida de contente.
Recolhidos os instrumentos da tarefa, agradecimentos
apresentados às auxiliares da boa ação, que também haviam
lavado o piso da igreja, espanado e recamado de toalhas
brancas os altares, eis um fim de tarde perfeito de quem
satisfizera o dever e agora apreciava, da calçada fronteira, as
tonalidades vivas do sol se despedindo, no poente sertanejo.
Naquele mesmo momento, retornavam ao aprisco as ovelhas;
umas mais, outras menos apressadas, a formarem elétricas
rebanho único, na busca do chiqueiro situado próximo da
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igrejinha, junto à casa de seu João Preto. Nisso, alguns dos


animais que catavam o que comer arriscaram uma espiada
furtiva para dentro do templo que permanecia de portas abertas.
A criação talvez tenha pressentido qualquer coisa de alimento na
fofura decorada do andor, porque deu em cima da bela
composição, devorando-a até chegar na madeira, motivo
suficiente às lágrimas sentidas, desconsoladas, da tia, informada
de chofre ao som das gargalhadas travessas de meu pai, que,
comovido, ainda encontrou tempo e material para refazer todo o
trabalho antes do início da procissão.

OS IRMÃOS ANICETO

Manifestações culturais têm na música sua maior expressão,


repassando, desde as mais priscas origens, sentimentos que nos
chegam intactos pela magia do som. Os povos letrados
inventaram cifras, para transmitir, através da História, suas
produções, nas partituras de sete notas, visando reanimação
posterior.
Entretanto, quem codifica a trilha sonora das culturas simples,
pobres, sem códigos gráficos? Como saber o que tocaram e
cantaram os ancestrais, à margem da caligrafia e do papel?
Como reviver seus segredos e descobertas musicais?
A resposta vem sendo dada pelo homem rude, por intermédio da
tradição oral dos períodos mais remotos, nos instrumentos,
ritmos e melodias, qualidades recriadas geração após geração,
tais fios invisíveis de ordem subjacente, que dispõe de uma
ciência (o folclore) a estudá-la, pesquisando heranças de cada
grupo, na estampa cronológica da cultura.
Em Crato, no Ceará, vivemos junto de amplo patrimônio dos
valores antigos, desde rico passado da origem indígena, nos
troncos inca-tupis, até a robusta bagagem do imigrante europeu,
trazido pelo Ciclo do Couro, no século XVIII. O folclorista J. de
Figueiredo Filho foi dos que mais se interessaram pelos estudos
desse acervo, auxiliando inclusive na criação do Instituto Cultural
do Cariri e divulgando ao resto do País as cabaçais dos Irmãos
Aniceto, aqui enfocados.
Esse conjunto de couro apresenta cinco hábeis instrumentistas: o
catargo (ou casal de pratos), a caixa, um zabumba e dois pífaros
(pifes, ou pífanos), peças tocadas, em seqüência respectiva,
pelos músicos de uma mesma família, irmãos e primos, de
nomes Cícero, Britinho, João, Raimundo e Antônio, que vivem da
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agricultura sem-terra, plantando nas encostas e brejos próximo


de onde moram, no bairro da Batateira.
Segundo informações de Antônio, um dos pifeiros, o grupo
remonta o tempo de seus avós, que ensinavam aos filhos desde
os ritmos às danças, tais como baião, maneiro-pau e reisado,
passando pelos rojões, galopes e marchas.
Os títulos das peças falam bem de seu conteúdo pitoresco:
Marcha Rebatida, ... de Chegada, ... de Estrada, Solta, Manhoso,
Pé-duro, O Cachorro, O Caçador e a Onça, Baião Gigante (A
Briga do Galo), A Dança dos Facões (representando as lutas de
espada dos antigos), O Tiramento do Marimbondo, O Casamento
da Cauã com o Gavião, O Casamento dos Sapos (quando é para
começar o inverno), O Caboré, O Camaleão, para citar algumas,
em acordes diferentes, e muitas mais, gravadas apenas no juízo,
sem adjutório de livros, depois trazidas de ouvido, portanto com
sacrifício e apuro.
Eles vêm divulgando, há coisa de sete décadas, esse substrato
cultural das populações humildes do sopé da Chapada do
Araripe, Brasil afora, desde Porto Alegre (onde se apresentaram
na década de 50, pela primeira vez fora da região), até Brasília,
Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, cidades do interior do Estado,
em muitas das quais por várias vezes. Isto sem avaliar os
trabalhos cotidianos, nas festas comunitárias, exposições, feiras,
folguedos, cerimônias religiosas, forrós e festas, despejando
alegria na alma das pessoas.
Alguns dos componentes fabricam e vendem os instrumentos
que executam, sobretudo o pife, feito de taboca (bambu), vazado
com furos de ferro em brasa, semelhante à primitiva flauta dos
índios.
Quisemos, neste texto, demonstrar o mínimo da reverência que
merecem os Anicetos, artistas natos, provindos de lares famintos,
injustiçados sociais, heróis sem reconhecimento oficial, saldos de
onde minguam progresso e liberdade, porém persistem na
democracia dos sonhos, nessa arte verdadeira.

APETITE

Ele, seu Francisco, era negociante próspero da cidade de Crato,


pai de prole numerosa, homem de origem rude, porém a se
destacar pela facilidade no comércio de material de construção,
dominando a concorrência graças ao preço de venda de seus
produtos, adquiridos direto de fornecedores pernambucanos e
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até paulistas, mesmo tendo para isso que fazer longas e


exaustivas viagens.
Um outro aspecto merecia destaque nessa personalidade: ser
garfo imprudente como poucos; ganhara fama nas cercanias pela
disposição no comer, a ponto de ser muito difícil de achar alguém
que pelo menos pudesse igualar tal voracidade gastronômica.
A época dos anos 50, primeira metade, apenas oferecia
precárias condições de deslocamento, em fatigantes estradas de
chão poeirento. Chegar ao Sul gastava de oito a dez dias,
percurso interrompido para dormida, dificultado ou bloqueado nas
épocas invernosas de maior rigor.
Homem laborioso, no entanto, resolveu seguir outra vez a São
Paulo por dever de ofício, a fim de abastecer a sua atividade.
O ônibus em que seguia pernoitava nas costumeiras pensões de
estrada, ponto certo dos motoristas e usuários tradicionais,
servidas por gente honesta e afetuosa, tudo nos moldes daquela
época.
Jantar dos melhores, pratos fartos e variados. Todos comeram
bem, depois das agruras do percurso. Entretanto seu Francisco
ultrapassara os limites, no cálculo das testemunhas. A dona do
lugar, além de impressionada pelo exagero, viu-se preocupada
também com o avanço da hora em que dormiriam.
Deu ao hóspede, por isso, tratamento particular. Armou sua rede
num local de mais fácil observação, para qualquer providência, o
que na verdade veio de acontecer. Os roncos que se escutaram
mais lembravam estertores de agonia.
De pronto, a bondosa senhora chamou seus empregados e, em
equipe, buscou oferecer socorro ao necessitado: - Seu Chico,
seu Chico, o senhor está bem? - indagou. Quer um chazinho
para facilitar a digestão? - falou apreensiva.
- Só se for acompanhado de umas bolachinhas cream craker -,
entre dormindo e acordado, respondeu o hóspede, de ouvidos
ligados na oferta que lhe faziam.

APOSTADORES

O jogo é uma das paixões menos nobres que há. Falo assim
como se houvesse paixão mais nobre do que outra. Na verdade,
sendo paixão nunca deixará de ser instinto bruto. Contudo
existem pessoas que se deixam levar nesses impulsos. Por
qualquer (ou nenhum) motivo, arriscam o coração, na febre das
emoções incontidas do ganho fácil. Ilustro essas cogitações
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contando duas histórias populares que bem caracterizam a


disposição lúdica do homem.
Certa vez, entre apostadores contumazes, alguém afirmou que
poderia morder um olho. A grita foi geral, instalando-se acalorada
discussão; no fragor dos palpites, os circunstantes resolveram
confrontar e casaram os lances.
Em seguida, o desafiante retirou uma das vistas, globo de vidro
bem confeccionado, que mordeu com naturalidade e ganhou a
aposta.
Antes de cessar a surpresa, o mesmo ganhador se ofereceu para
novo encontro. Desta feita, afirmava que também poderia morder
o outro olho. Murmúrio generalizado, pois estava evidente que
não se tratava de um cego completo. Carregar dois olhos de
vidro seria exagero. Deliberaram, em conseqüência, reaver o
capital da primeira aposta e juntaram os bigodes pela segunda
vez.
O adversário, então, retirou os dentes, chapa dupla, e fechando o
olho mordeu com cuidado a outra vista. Ganhara, destarte, as
duas paradas.
Outro relato dá conta de que, numa mesa de roleta, em noitada
de corroer as reservas do tradicional cambista, nenhuma das
mesas lhe estava sendo favorável, caprichosa ocasião. Dados
rolam e caem como quem zomba dos infelizes, conspiração
imaginária da sorte.
Ele, dotado de rara mutação da natureza, possuía, no lugar de
dois, três testículos, o que lhe deu margem a que apelasse e
propusesse uma saída diferente para o jogo, talvez buscando
dessas oportunidades extremas para reverter o tabuleiro; aí,
como derradeira chance, resolveu mudar de tática e propôs:
- Quero agora fazer uma rodada diferente; digo e aposto que eu
e esse peru aqui do meu lado temos, somados, cinco testículos -
disse e apresentou-se com oferta suficiente a recuperar tudo o
que perdera naquela noite, pois trazia consigo a intuição do que
se chama de certeza certa.
Enquanto os vários apostadores avaliavam as chances da
proposta, nisso ouviu-se nas imediações a voz sumida do peru
citado, dizendo aquilo que desenganaria sonhos e definiria a
situação:
- O senhor aposte se tiver quatro colhões, porque eu na verdade
só nasci com um -, tratava-se de outro portador de anomalia. Não
seria dessa maneira que o homem conseguiria recuperar seu
patrimônio. Tais as coisas improváveis da jogatina.
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CAMÕES

Mas não o autor clássico Luís Vaz de Camões. Quero falar de


um outro, personagem tradicional das histórias sertanejas,
herança adquirida dos tempos portugueses da colonização, por
certo. Prescreve o dito popular que morre o homem e fica a fama,
talvez em vista disso haja coincidência de denominação para
esse tipo folgazão, espirituoso, considerado pela Corte e
presença consagrada entre as legendas orais de nossa gente
simples, sobretudo da zona rural.
Cresci ouvido narrarem suas tiradas, como aquela em que
cumpria a obrigação de jogar ao mar os tripulantes de navio
vitimado pela peste. Na frente, o médico examinava e
diagnosticava a doença. Logo a seguir, Camões e seus auxiliares
faziam a defecção. Julgado como presa do terrível mal, certo
marujo apenas curtia o porre da véspera, buscando destarte se
imunizar pela bebida. O médico, no entanto, determinou o
carreto. Quando, em vias de ser jogado na água, o homem
acordou e se manifestou demonstrando boa saúde, ouvindo de
resposta a sua sentença terminativa: - Quer saber mais do que o
doutor?!
Esse protagonista comparece muitas vezes ao anedotário
matuto, sempre levando a melhor, tanto pelo sarcástico, quanto
pelo picaresco, espécie de menestrel errante, sem teto, sem
família, qual Pedro Malazarte, cheio de sorte naquilo a que se
propõe, vencendo pela sagacidade, saída ímpar ofertada de
surpresa aos esquecidos da sorte boa.
Outra de suas histórias diz respeito a um dos tantos encontros
que manteve com El Rei, de quem, na ocasião, foi indagado a
propósito do que mais gostava de comer. - Ovo! - respondeu.
Naquele instante, seu cachorro latiu na floresta, acuado com a
caça, reclamando a presença urgente do dono. Horas depois, de
novo o Monarca lhe avista e acrescenta: - Com o quê? E de
pronto ouve a resposta: - Com sal. Escapava assim de uma
charada, pois a pergunta bem poderia também se referir ao bicho
com que o cão se acuara.
Portugal garantiu à história figuras assim, envoltas na mística
fantasia, ao sabor das preferências da humilde gente, quais
Bocage, o poeta galante, e Bandarra, o profeta sebastianista, de
quem muitas aventuras se anotam. Daí ser de difícil
comprovação a veracidade das lendas nascidas do povo e
espalhadas pelo mundo afora.
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Enquanto isso, vale registrar outra inspiração de Camões,


recolhida no tempo; quando convocado para pedir num improviso
a salvação de náufrago em apuros, a lutar contra águas revoltas,
meio desesperançado de chegar à praia, ele disse: Nadador que
vai nadando, nas ondas do mar sagrado; nada com Deus,
nadador, nada, nada, nada.

CARMA E DESTINO

Estes dois temas vêm circulando nossos pensamentos, subindo


na espiral das idéias, no meio de consoantes e vogais, quase a
pedirem para chegar no papel, que terminamos por fazer-lhes a
vontade, numa tarde de sábado, segunda quinzena de qualquer
mês de abril.
Falar de Carma e Destino, sem lembrar os povos do Oriente,
eqüivale a esquecer das ciganas quando se fala em ledores de
sorte. Mas queremos ir além, aonde nascem as interrogações
largas e os mais profundos conceitos, imensidão das cordilheiras,
desertos sombrios, viagens misteriosas: à pátria do coração.
Por vezes, recolhidos para dormir, lembramos de quantos,
naquela mesma hora, vivem situações adversas. Quão poucos,
no meio de tantos nesta vida, dispõem de família feliz, de seres
amigos ao seu lado? De um teto, do alimento, da saúde, da paz?
E que nem sabem como e nem onde podem adquirir? Vagam no
tempo quais fossem cisco de correnteza, frágeis borboletas no fio
do horizonte. E os que desfrutam de melhores oportunidades até
esquecem disso tantas vezes, numa das curvas da jornada
pondo em risco a felicidade.
Existe um livro que bem pode ampliar tais considerações. Trata-
se de Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire, que conta a história
de personagem aventureiro a se desgarrar pelo mundo, na
procura do sonho. Atravessa as mais inesperadas e cruéis
conjunturas sem, no entanto, perder o ânimo, insistindo no trilho
do Eldorado, terra da bendita fartura. Cada encontro redundando
em desencontro, que por sua vez produz novo encontro, numa
sucessão intermitente. As peripécias irão levá-lo ao infalível êxito
da boa luta.
Assim também na existência humana na Terra, quando cada um
conta sua própria história, entre lágrimas e sorrisos.
O Carma é o que nos cabe elaborar em cada passo, seja
negativo ou positivo. Do mal ou do bem que façamos ou
deixemos de fazer, com relação aos outros e a nós mesmo, na
decorrência dos dias que seguem no ritmo infatigável do Destino.
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Nisto se percebe que Destino é determinação superior; aquilo


que não se pode derrogar. Lei acima das leis dos homens,
promulgada em níveis inalcançáveis pelos poderes terrenos,
instâncias tão elevadas que muitos preferem agir como não
sendo assim.
Os poderosos daqui do chão fazem seus planos quais soberanos
senhores. E os jornais a divulgar tais atitudes de força, a falar no
projeto do fim do mundo, com a mais singela naturalidade, para
combater o antigo poder nuclear soviético, em caso de ataque.
Todavia avaliamos que, no confronto das superpotências com
despropositadas armas, o abalo seria tão nefasto que de nada
adiantariam quaisquer estratégias militares. Escombros é o que
resultaria, de ambos os lados.
Em sendo desta forma, onde encaixar o assunto - Carma e
Destino?
Seria carma coletivo de toda a Humanidade a conflagração
generalizada. E destino a transmissão do Planeta a um outro
estágio, por certo do conhecimento da lei acima das leis dos
homens, onde cada ser, de per si, responderá por seu carma
individual, face a face com o Poder Maior, submetido ao novo
destino que lhe seja reservado por via de conseqüência. Noutras
palavras, enquanto o materialismo impenitente se propõe, com
seus feitos arrevesados, a desobedecer ao equilíbrio harmônico
do Universo, avaliando que, no mínimo, vai gerar uma fogueira
de vaidades, nada mais conseguirá do que servir à
correspondência matemática dos valores eternos e seus projetos
insofismáveis.
Concluímos, por dedução:
Este silêncio suspeito que se fez após o término da indigitada
Guerra Fria pontifica-nos a servir de momento de reflexão para o
que iremos aprontar agora, nas linhas claras do Tempo Infinito.

CAVALHADAS

Minha família e eu chegamos em Crato no ano de 1953. Nossa


primeira casa ficava à rua José de Alencar, no quarteirão entre
as José Carvalho e Pedro II. Das lembranças dessa época
recordo que, numa manhã de domingo, fui com outras pessoas
assistir às cavalhadas, torneios realizados nas areias do rio
Grangeiro, trecho logo abaixo da atual localização da Prefeitura,
depois encoberto pelo Canal.
Esses eventos típicos remontam, segundo os manuais de
folclore, as antigas Cruzadas, combates entre mouros e cristãos,
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presentes no Brasil desde a chegada dos primeiros colonos,


guardando relação com o passado medieval da Europa. Nas
lutas, dois partidos de cavalerianos, o vermelho e o azul, se
defrontavam com lanças, fitas, argolas, todos trajando
indumentárias características. Existem também noutras
localidades do interior de Minas, Goiás, São Paulo, Mato Grosso,
os mais conhecidos.
O que agora me parece dotado de riqueza ancestral, naquele
tempo, entretanto, me causou impressão desencontrada,
assustado que fiquei no meio da multidão, visto proceder de zona
rural sertaneja onde nunca presenciara tanta gente reunida de
uma vez só. Isso gerou reação de pânico tão extremada que teve
de alguém me levar de volta para casa bem antes do término das
manifestações, constrangendo a quem coube cumprir tal
obrigação, uma jovem que nos ajudava nas tarefas domésticas.
Décadas depois, procurei conhecer detalhes dessas cavalhadas,
no entanto pouco consegui além de informes rápidos, da parte do
livreiro Ramiro Maia, residente no Município desde o princípio do
século. Ele me esclareceu que esses eventos populares, na fase
a que me referi, eram organizadas pelo capitão Arnaud.
Mais além, vim encontrar, escrito por Paulo Elpídio de Menezes,
o seguinte texto: Dezembro, porém, era o mês de maior
animação do Crato de meu tempo. A cavalhada constituía um
dos esportes preferidos pelos cratenses. A ela concorriam os
rapazes e casados de destaque social. A Rua Grande, desde a
saída da Praça da Matriz ao Fundo da Maca, enfeitava-se com
arcos de palmeira, onde se passava uma corda. No centro, uma
argola ao alcance do cavaleiro, que devia tirá-la na ponta da
lança, em passagem rápida, em corrida vertiginosa. Os que
acertavam levavam o prêmio de sua perícia às suas noivas,
namoradas ou senhoras, que lhes amarravam no braço e na
lança fitas largas, de seda, oferecendo-lhes ainda lindos buquês
de flores naturais. Do livro O Crato de meu Tempo.
Outros subsídios existem, pois, a serem recolhidos através de
maiores estudos e outros depoimentos, no intuito de se
preencher essa lacuna da história regional e seus valores
advindos de nossas origens históricas.

A CIÊNCIA DA ABELHA

Os segredos da Natureza cabem ao ser humano perceber para


fugir de atrapalhar, que, atrapalhando, lhe fica mais espinhosa a
vida. Assim se observa em volta, em tudo, e como é bom quando
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as engrenagens deslizam com fluência a cada amanhecer, a


cada anoitecer, vendo-se os bichos calmos como nossas almas.
A colméia é forte exemplo disso que estamos a falar. Acho até
que todos os que acompanham este raciocínio já ouviram dizer
que a abelha faz o mel tirando das flores sua matéria-prima,
chegando a preparar o doce néctar polinizando uma única
espécie de flor, das que mais se ofereçam nas imediações. Outro
dia me venderam um litro de mel feito da flor do marmeleiro, que
achei fosse raro, ou mais do que isso. Porém acreditei, por que
os mistérios de Deus podem, tudo podem. E logo do marmeleiro,
de que nunca observei a flor, apesar de nascido nos matos. Seria
ficção, fruto do imaginário, ou a clara realidade?
Da transparência do mel derivamos para a harmonia suprema da
ordem do Universo, em que existe mais milagre numa simples
abelha do que na mais perfeita das máquinas até aqui inventadas
pelo Homem. Em cada flor o seu perfume e sua cor.
E anotamos alguns traços do marmeleiro, planta-símbolo da
resistência do sertão, mundo garranchento da caatinga, que os
meninos usam para cambito de baladeira e o caboclo para
trançar cerca de vara. A planta chegou a ser pesquisada como
fonte alternativa de energia, na crise do combustível, há alguns
anos noticiada, e que foi equacionada nos aumentos posteriores
do petróleo e dificuldades conseqüentes no custo de vida.
O saber da Ciência não desconhece, entretanto, que aquela
vegetação suporta o calor e mantém guardada sua resistência
genética por anos e anos secos, nas épocas mais tortuosas,
enquanto chora no peito do roceiro o coração da esperança.
E do marmeleiro a abelha tira a seiva para fazer o mel que traz a
cura de muitos males, a essência da vida guardada em forma de
doce.
Quem quiser saber mais sobre o mel de abelha irá descobrir uma
infinidade de aplicações no âmbito da saúde, com poderes
terapêuticos surpreendentes. A própolis, um de seus derivados,
vem sendo adotado como antibiótico natural da melhor qualidade,
superando outros produtos, sem apresentar qualquer contra-
indicação ou efeitos colaterais.
Aqui, portanto, algumas considerações oportunas sobre esta
maravilha da ciência original.

AS CINZAS DA ÁFRICA

Enquanto o ônibus espacial voltava de mais um passeio cósmico,


vizinho, na mesma página do noticioso, milhares vêem-se
15

exterminados pela guerra, a fome, a sede, a doença, no


Continente Africano, sem que isso ocasione qualquer reação
para além das ações internacionais destinadas a refrear os
ânimos e serenar as consciências. Tudo dentro da mais perfeita
ordem, conforme previsto no melhor dos mundos. Seriam
providenciados vôos humanitários transportando agasalhos,
remédios e mantimentos.
Por mais de dois séculos o mundo rico se abasteceu dos
tesouros africanos, após haver transformado seus habitantes em
sucessivas gerações de escravos, principais responsáveis pelo
desenvolvimento dos países europeus.
Como se nada disto merecesse a mínima consideração, o resto
da Humanidade viajou pelo território negro dizimando florestas,
animais, tribos; infestou de males povos altivos, cervizes
dobradas no jogo brutal da rapinagem gananciosa, indiferente,
reclamando de toda compaixão, enlutando nossa raça, rubra
penedia, infinito galé.
Um mundo antes misterioso, enigmático, virou trapo, símbolo de
frustração, desencanto, areias desérticas esvoaçantes.
Ordenharam a mãe esquecidos da cria.
E esta nossa época tem alastrado esse condão de ferreiro
maldito. Onde a mão imperialista tocou sobraram cinzas, poucos
amoedaram e os demais que se conformem ao nível submisso,
feitos cascas vazias de ostra, vazias e inúteis, projetos
inacabados.
As conseqüências ora se manifestam corpo geral. Países inteiros
devorados pela miséria, pano comum desta civilização prenhe
das condições de realizar o sonho universal da Paz, utopia
alimentada séculos a fio, já agora empalidecido, dormente no baú
do esquecimento.
Fortes odores de festas ao fim tomam o espaço. Retalharam os
domínios coloniais. A população dobrou nas projeções
esperadas. Os Sete Grandes se restringiram aos seus valores de
custeio, na expectativa de abrirem uma janela para o alto, através
da corrida espacial. Todavia a ficção permaneceu nos
almanaques.
Recursos naturais que pareciam ilimitados principiam a minguar
(o caso atual de Ruanda vem acompanhado de vários outros).
Bens de produção se prenunciavam sucedâneos à carência, pela
industrialização de massa; isto de não ocorreu face por causa
das barreiras nacionais e dos ditames exclusivos de um mercado
segmentado, particularista, apenas competitivo. Os pobres mais
pobres foram se tornando, reduzindo destarte quaisquer chances
16

de progresso, pois os guetos distantes dos centros nobres a


cada dia se multiplicam.
No outro aspecto, existe a centralização da riqueza entregue em
mãos pouco responsáveis, para deixar de repetir termos como
desonestidade, inconsciência, ineficiência. A corrupção
naufragou muitos governos, o que por certo ocorreria também
com um governo mundial, caso houvesse. Falta senso de justiça,
empenho, coerência, na solução dos destinos globais. Ainda que
otimistas, devemos admitir serem as maiores verbas usadas para
fabricar armamentos, pesquisar e produzir supérfluos, construir
mausoléus, indiferentes que ficaram de saber das limitações do
monte econômico, herança de todos. Puseram em ação o
comezinho princípio isolacionista de destruir pontes.
Na década de 80, alguns cineastas ainda se voltaram a prever o
que depois sobrará, fortalecendo as bilheterias de alguns
estúdios (O Exterminador do Futuro, O Caçador de Andróides,
Brazil, o Filme, O Sobrevivente, Mad Max, Highlander, etc.), na
ânsia de servir a público preocupado com os acontecimentos,
terreno restrito de meras hipóteses, pois o futuro pertence a
Deus; e um silêncio dantesco neutralizou também essas
manifestações especulativas.
Queremos crer no princípio chinês, expresso num de seus
ideogramas, onde crise também eqüivale a solução. Propomos,
entretanto, de nada valerem todos estes pensamentos,
amadurecidos nas furnas do coração, terminássemos a cena
exangues, aflitos, derrotados; portanto saibamos escolher o rumo
justo para salvar a vida, neste bairro azul do Universo.

OS COMBOEIROS

Em época de transportes difíceis, quando no sertão havia quase


que só caminhos carroçáveis, percorridos a pé ou em lombo de
animais, as mercadorias eram acondicionadas em resistentes
fardos de couro curtido, denominados surrões, para distribuição
por tropas de burros, trangidas nas longas viagens de cidade em
cidade.
No início da década de 50, morávamos em fazenda no município
de Lavras da Mangabeira, de propriedade do meu avô paterno,
Amâncio Lacerda Leite, onde passava um desses caminhos e
que, não raras vezes, servia de entreposto a essas tropas, pois
ofertava condições de pouso, com açude para banho e bebida
dos animais, curral amplo, varanda acolhedora na casa grande,
17

além de produzir rapadura doce, famosa, boa para comércio,


negócio assegurado para hóspedes certos.
Dentre os comboeiros, recordo de um, seu Rosalvo Salviano,
figura de senhor alto, tez clara, corado, de olhos esverdeados,
amigo do meu avô, que três décadas depois vim de reencontrar
como cliente da agência do Banco do Brasil, em Crato, cidade
para onde se transferira e instalara a família.
Aspecto característico desses tropeiros: usavam longo açoite
para conduzir os burros, preso a cabo de madeira linheira, quase
sempre de pau pereiro, feito de tiras de couro trançadas em
vários estágios; ia ficando cada vez mais fino, até chegar a uma
ponteira de cordel, dessas usadas pelos meninos para soltar
pião. Acionado, esse chicote atingia longa distância, até o
primeiro dos bichos da tropa, enquanto percutia som alto de
estalo, ouvido de longe nas quebradas sertanejas, sinal
inconfundível da aproximação do comboio.
Esse meio de transporte, antecessor dos modernos caminhões,
trens, aviões, efetivava o intercâmbio dos produtos do campo
pelos artefatos industrializados da civilização moderna, peças de
tecido, sal, querosene, ferragens, medicamentos, etc., trazendo
também consigo notícias recentes dos centros adiantados.
As visitas dessas caravanas mercantis, portanto, se
transformavam em grandes acontecimentos comunitários,
causando espécie aos roceiros dos rincões mais afastados,
sempre motivo de muita admiração nesses lugares de pouca
novidade. Reunidos em volta dos fardos depostos, comiam o
alimento típico, carne seca torrada com farinha, enquanto
propalavam as histórias do percurso.
Assim como chegavam, partiam. Cangalhas postas, cargas
amarradas, lá seguiam caminhos afora, numa fase histórica
quando havia menos risco nas travessias, a confiança
predominava entre as pessoas e os costumes se mantinham
dentro de valores positivos, na esperança de mundo melhor do
que esse, de tão pouca cordialidade.

CONVERSA DE ENGENHO

As sombras longas do fim de tarde casavam bem com o clima


morno que se estabeleceu no beco entre a casa grande e o
engenho, onde, acocorados, os homens da moagem ouviam
atentos as narrativas do cigano Lourenço a propósito de seus
sonhos e andanças pelo mundo, embalados na zoeira festiva da
18

meninada a correr em volta, agitação natural de quem aceita as


coisas e nelas se integra.
Fez-se no ar o apito estridente da caldeira a vapor ao término da
jornada, para liberar do eito a turma dos cortadores de cana,
enquanto os ouvintes estiravam na vista distante o sentimento,
indo buscar na vegetação do outro lado da represa o traçado
suave do vôo das garças silenciosas, salpicando de brancas
reticências o azul metálico da tarde em declínio, por cima dos
troncos calcinados de carnaubeiras antigas e suas palmas
tremeluzentes, ritmadas. O vento, a seu turno, escamava ondas
no espelho da água que distorciam a imagem das nuvens no leito
do açude velho.
Palavras e aves do entardecer raspavam de leve os chapéus de
palha dos caboclos, retorcidos pelo sol e manchados de suor,
noturna sensação de abismo que entorpeceu os ânimos, alguns
a esfregar os olhos no canto dos dedos, qual querendo despertar
de sono pesado e guardar com esforço o que ouviam.
Lourenço pôs-se de pé, catou as cordas dos burros e bateu-lhes
nas ancas, tangendo-os ladeira abaixo na direção do
reservatório. Meio caladão, tinha desses instantes de ficar sem
saber explicar direito o porquê de se chegar naqueles assuntos
graves, novidades antigas do interesse de quase ninguém e
necessidade eterna dos mortos e vivos. Saber para onde se vai
depois, quando acabar isso daqui.
O focinho dos animais, na calma das águas, ia desenhando
movimento de ondas sucessivas, chamando a atenção do
viajante para o sentido que tomavam, indo quebrar nas margens
de pedra e argila, ou se faziam mais extensas e rumavam para
longe, no leito das águas profundas, oscilando a babugem
esverdeada e as moitas de mofumbo fincadas no lodo,
quebrando o repouso das rachanãs e galinhas-d’água.
- ... Muitas oportunidades individuais - repetiu baixinho as
derradeiras palavras de há pouco, querendo gravar, qual saíssem
de uma outra boca que não a sua.

CORPO INTACTO

Ao terminar a sábia conferência que proferiu no dia 06 de


setembro de 1999, na cidade de Juazeiro do Norte, ocasião de
um evento de direito, o renomado jurista baiano, radicado em
São Paulo, Fernando da Costa Tourinho Filho transmitiu
anotação no mínimo instigadora, face à originalidade histórica
que apresentou. Em conseqüência, achei de bom alvitre registrar,
19

para informação dos que lá não estiveram, fazendo-os parceiros


de semelhante oportunidade.
Quando ia fechar as suas palavras, voltadas aos aspectos vários
da prisão no Direito Penal brasileiro, aquele professor teceu
considerações sobre achado incomum que se verificara em
Roma, fins do século XVIII e começos do século XIX. No
decorrer de escavações arqueológicas realizadas na Via Apia,
trabalhadores localizaram uma urna mortuária, resquício da
antiga civilização romana. Logo em cima da rara peça
evidenciava-se a inscrição: Júlia, filha de Cláudio.
Adotados os métodos próprios, a urna foi aberta e o seu interior
revelado. Ali se viam os restos mortais de bela jovem de
aproximados 15 anos, encimados por longos cabelos louros que
se derreavam sobre alvo e despido dorso, quedado todo o corpo
no estado mais perfeito de conservação, livre das marcas
destruidoras do tempo; o que sói acontecer todavia inocorrera.
A insólita descoberta causou espanto no seio dos que
executavam o trabalho, motivando rápida divulgação da notícia
aos demais habitantes da comunidade, que afluíram em multidão
para ver o estado inalterado daquela fisionomia, tantos séculos
depois de retornar à natureza.
O caso não demorou para chegar nos ouvidos das autoridades
eclesiásticas, que, apreensivas com os rumos do episódio, nele
anteviram riscos prováveis de manifestações pagãs voltadas ao
culto do mistério, e, sob o pretexto de melhor examinarem a
relíquia, depositaram-na em um sítio secreto fora da visitação
pública, jamais sabido até os dias de hoje.
Nas expressões persuasivas do prof. Tourinho Filho, homem de
lídima reputação, por isso merecedor da credibilidade dos que
privam do seu convívio, a visão maravilhosa daquele corpo
eternizar-se-ia na alma de quantos ainda puderam contemplar a
incolumidade daquela beleza.

COSTUMES

As dificuldades de transporte sempre acompanharam o homem


nas muitas fases da História. Exemplo disso, quando não havia
os meios atuais de estradas e seus idolatrados veículos
automotivos, deslocar os doentes no sertão exigia esforços
inestimáveis. A solução encontrada, muitas vezes, era estender
uma rede em linha de madeira bruta e distribuir o peso nos
ombros de valentes carregadores, os quais perfaziam
caminhando longas distâncias na busca do socorro, sendo
20

também essa a modalidade usada para remeter os falecidos ao


pouso derradeiro.
Nos caminhos, quem encontrasse um carreto daquele tipo
sombrio queria logo saber o que conduziam seus portadores:
- É vivo ou é morto? - perguntavam de costume, o que acanhava
os vivos que tivessem de se utilizar daquele tipo de ambulância
do passado, pondo-os numa situação vexatória.
Sobre tais situações indesejáveis, o padre Neri Feitosa, em seu
livro Usos e Costumes de 50 Anos Atrás, conta que o seu Pedro
de Brito, varão residente no Quebra, sítio do distrito de Ponta da
Serra, em Crato, quando adoeceu e teve que ser trazido às
pressas para tratamento na sede do município, viu-se na
condição de passar pelo tal embaraço, estendido numa rede,
levado no ombro, à busca da cura.
Em princípio, reagiu de não querer acordo sob nenhuma
hipótese. Preferia se acomodar e finar nos matos a defrontar os
curiosos agourentos do percurso. - E o doente, por nada deste
mundo, queria ir na rede, com receio da pergunta costumeira -
afirma no seu livro o sacerdote. No entanto, dada a continuada
persistência dos familiares, aceitou fazer a viagem o bravo
sertanejo.
Era, no entanto, justificado seu zelo. Dito e feito, muito pouco
demorou de lhe acontecer o que temia. Envolto nos lençóis da
jornada, num certo instante, escutou contrariado a temível
indagação:
- É vivo ou é morto?
Sem esperar a resposta dos carregadores, afastou o enfermo as
bordas da tipóia improvisada, botou para fora a cabeça e, de
pescoço esticado, ainda resmungando (- Eu não disse, eu não
disse!), despejou:
- É vivo, seu filho da puta!

O CULTO DA MÍNIMA VIRTUDE

Vezes além da conta a gente se pega a considerar que existem a


natureza e a natureza humana, qual sendo duas coisas distintas
uma da outra, visto a facilidade com que as pessoas
desrespeitam a primeira, em detrimento de sua própria espécie.
Atitudes ostensivas de contradição revelam descompasso nas
relações com o universo onde se inserem, vindo daí o sofrimento
tanto individual quanto coletivo, marcando de forma coordenada
o preço dos erros, fruto da propalada dependência de seus
21

agentes, predadores contumazes, ao solo carcomido pelas


mesmas garras afiadas, geração após geração.
Nisto, a vontade de se ser coerente com um ritmo mais bem
ajustado com o todo por vezes quer extravasar sentimento
construtivo de mais obediência àquela natureza original, quase
nunca levada em consideração quando o caso fica restrito a
questões pessoais face aos interesses coletivos.
Criaturas precisam alterar comportamentos equivocados e
aguardam de fora tais decisões... Sabem da teoria, reclamam
orientação, imploram aos céus métodos adequados, sem, no
entanto, traduzir gestos efetivos de mudança, o que deixa a
dever aos propósitos racionais.
Caprichos humanos beiram os substratos da loucura no que
concerne às suas práticas, nada importando conseqüências. As
guerras e suas justificações desfalecem esclarecimentos
complementares sobre o assunto. Rótulos raciais, econômicos,
políticos, religiosos, apenas atendem sabores temporários,
sagacidade biológica de fatores complementares, resinas de
fechar cicatrizes circunstanciais pelos códigos estabelecidas de
antemão.
Assim, uns menos afeitos à teimosia reacionária desses
egocêntricos desobedientes resolvem transformar o panorama do
atraso, dominando o ímpeto dessa natureza transgressora,
pondo em função instrumentos renovadores do instinto caótico
particular. Da face do chão pode brotar o novo que se semeia,
fruto contratual das leis da natureza primeva.
Querer agir por caminhos lógicos e criar lógica adaptada, dentro
das mesmas cabeças que deverão pagar o custo dos
experimentos infelizes. No globo, isto se anota com a destruição
deslavada do ecossistema, nos gestos empresas totalitárias que
lucram pela eliminação das espécies em razão da cegueira de
superpotências parasitárias, numa avalanche sem precedentes.
Na vida privada do cada um por si, idêntico se acusa nos vícios
explícitos da droga, do sexo, violência, preconceitos, luxuria,
ganância, avareza, indiferença, causas de morticínios, doenças,
vingança, discórdia. Tudo se questiona em termos de resultados,
pois se diz que os fins justificam os meios.
Ninguém escuta mais uns aos outros, tiradas exceções. O lobo
arreganha os dentes por falta de outro exemplo e nada importa
preservar a família, que se esfacela na velocidade cibernética.
Querer iludir de pouco adianta, pois a cantilena vem parecida por
todos os meios, parabólicas, celulares, fax, Internet e secretárias
eletrônicas. Os ouvidos ensurdeceram ou quem habita a
22

carcassa prefere desconsiderar as notas suaves das derradeiras


violas.
Escrever isto só para dizer que o mínimo de virtude deve ser
levado em conta no que tange elaborar nossos sonhos de um
mundo mais justo, projeto de quem pretender ser para sempre
feliz. A eternidade é agora, tênue fresta que divide o antes do
depois.

CURAS MUSICAIS

Certa vez, na segunda metade da década de 80, encontrei Luiz


Gonzaga numa loja de móveis, em Crato, quando pude escutá-lo
falar algumas coisas sobre o poder de cura que tem a música,
guardando, dessa ocasião, as duas histórias que agora quero
narrar.
Transcorriam os anos de ouro da Rádio Nacional do Rio de
Janeiro, a cujo cast pertenceram os maiores talentos da música
brasileira à época (anos 50), dentre eles estava Gonzaga. Aos
domingos, havia programa noturno da mais ampla audiência.
Numa dessas ocasiões, o menestrel nordestino foi procurado por
Netinho, colega músico, trompetista, que fazia parte da orquestra
da emissora, a lhe dizer que um filho dele se achava enfermo,
vítima de problema grave, o qual a medicina ainda não
conseguira diagnosticar. Por ser o garoto fã incondicional do Rei
do Baião, queria o pai fazer-lhe uma surpresa e convidava o
músico a visitar sua residência.
De pronto, aceitou Luiz o convite, oferecendo, inclusive, seu
automóvel para, tão logo concluíssem o trabalho noturno, nele
seguirem até o bairro afastado onde residia a família, assim
ocorrendo.
Chegados à casa, munido da famosa sanfona, o cantor se dirigiu
aos aposentos da criança, que pode feliz ouvir as músicas de
sua preferência interpretadas pelo próprio ídolo.
Quase em seguida, para espanto de quem presenciava a cena, o
menino, antes tomado de intensa febre que lhe prendia ao leito,
esboçou imediata recuperação e, já na despedida, levantou-se,
indo à porta, de todo restabelecido.
Ocorrência semelhante, de acordo com as palavras de Luiz
Gonzaga, também se dera numa visita que ele e dona Helena
fizeram a amigos seus residentes na cidade fluminense de
Muriaé.
Tratava-se de casal de origem sírio-libanesa, em que o esposo
estava a passar difíceis momentos por conta de doença sem cura
23

que lhe roubava o entusiasmo de viver. Informado da situação,


pouco antes de um show que faria na cidade, Lua decidiu ver o
amigo, indo a sua procura, mesmo se demorando o mínimo, dada
a programação prevista.
Após a visita, seguiu para a apresentação, onde grande público
lhe aguardava lotando a praça principal da localidade.
Da hora em que saíra da casa dos amigos até aquele instante
não se passara muito tempo. Interpretava uma das primeiras
músicas da festa, O Baião da Penha, quando percebeu algumas
pessoas forçarem caminho no meio da multidão, oferecendo
espaço para automóvel que rumava na direção do palco. Nele
vinha, junto da esposa, o dito senhor que Luiz Gonzaga há pouco
visitara; aproximaram-se, foram alçados ao palco improvisado,
onde permaneceram até se completar a função.
Depois disso, conforme o testemunho de quem protagonizou o
ocorrido, sumiram os sintomas da enfermidade e o amigo, sadio,
pôde viver ainda por muitos anos.

DOIS ANOS

No mês de abril de 1944, viu minha mãe, num sonho, que grande
multidão descia pela rua José Carvalho, onde ela morava com a
avó paterna, em Crato, qual acompanhasse o enterro de pessoa
da sua família. A reação que experimentara, ao divisar o cortejo,
fez com que, apreensiva, lembrasse de seu pai, buscando de
imediato a residência em frente da casa, para saber de quem se
tratava.
Da janela, uma senhora amiga, dona Violeta Brito, indagada, foi
quem lhe atendeu:
- Não, Lourdinha, fique despreocupada, que não foi seu pai.
Toinho só morrerá daqui a dois anos.
Quando retornou ao estado de vigília, ainda sob os efeitos da
forte emoção que experimentara, gravou bem aquele sonho,
tendo, inclusive, contado a alguns familiares e ao seu noivo, Luiz
de Lacerda Leite, meu pai. No ano seguinte, casariam e
deixariam o Crato para se fixar no município de Lavras da
Mangabeira, na fazenda do sogro. Não esqueceu, entretanto, do
que sonhara; de tempos em tempos, lembrava da cena marcante
que vivenciara, um tanto aflita com a aproximação da época
prevista.
Em outubro de 1945, nascia Luís Everardo, meu irmão mais
velho, a quem logo meu avô materno muito se afeiçoou. Tratava-
se do seu primeiro neto. E no ano seguinte, numa manhã do mês
24

de abril, portanto há dois anos do sonho, minha mãe se achava


no salão de beleza de Stella Parente, também na rua José
Carvalho, esquina da José de Alencar, cortando os cabelos,
quando notou pessoas se aproximarem a olhá-la de modo
diferente; alguns populares, dando demonstração de curiosidade,
chegavam até à janela para lhe ver; a cabeleireira, por sua vez,
apressou-se na conclusão do trabalho; e quando saiu à calçada,
minha mãe percebeu movimento incomum na frente da casa de
sua avó, para onde rápido se dirigiu.
Ansiosa procurava saber o que ocorria, e, ainda na porta,
recebeu a notícia de que seu pai sofrera um colapso e deixara
esta vida. Efetivara-se, pois, com extrema pontualidade, a
previsão inarredável.

OS ELEMENTAIS E A ECOLOGIA

Depois de quebrarem o pote, que a água sumiu terra adentro, os


que enxergam mais longe principiam a clamar pelo respeito à
Natureza, pois as matas não têm preço (e as vendem por quase
nada sem donos serem), que o ar deve permanecer limpo,
limpeza dos rios que viraram esgotos, que a maré pode crescer e
engolir a terra. Um berro de apreensão se espalha das notícias
da tevê. Identificaram até que a camada de ozônio, protetora de
nossa atmosfera, vem de apresentar brechas irremediáveis,
comprometendo a sobrevivência da vida no planeta.
Os elementais, entes hoje invisíveis ao homem, sempre cuidaram
melhor deste paraíso, zelando pela sua beleza, como artesãos
inspirados, nos tantos ramos da Criação. Foram eles os primeiros
ecologistas (palavra tão na moda e ao mesmo tempo tão fora de
moda) e poucos se lembram deles, nas manifestações
românticas de ruas e praças, nesses atuais países ricos,
fumacentos. Nenhuma faixa, nenhum cartaz, nenhum hino de
louvor. Colonizadores arrasaram com minérios e raças
tradicionais, malversando as provisões do futuro.
Os homens se transformaram nos piores predadores da boa
saúde planetária. Exemplos de civilização coerente no trato das
coisas naturais ainda agora não se acham, no decorrer das eras.
Contam os livros que há pouco menos de trezentos anos um
macaco podia, se pretendesse, viajar de Portugal à Dinamarca
sem pisar no chão, apenas tocando a folhagem das árvores
vistosas, numa Europa recamada de lindas florestas, os bem
cuidados campos do Senhor.
25

Esses elementais, seres encantados de que se tem notícias no


folclore e nos contos de fada, são responsáveis diretos pelas
condições básicas da existência na face da Terra. Zelam pelo
vento, plantas, rios, mares, oceanos, bosques, flores, montanhas,
lagos, pelo fogo, pela água, pelas sementes; pelos fenômenos
mais diversos do sistema universal; os gnomos, os silfos, as
salamandras, as ninfas, as nereidas, os elfos, duendes; inúmeros
registros deles se acham nas lendas dos povos; todos formam o
grande exército de amor, na preservação do Equilíbrio Universal.
Quem sabe virá o dia em que deixaremos de falar nesses
assuntos de crise e tudo correrá, outra vez, com antes foi, no
seio harmonioso do Silêncio e da Paz, onde viveremos, conforme
indicar o Poder Superior, humanos e divinos, sonho bom e
espiritual?

A ESCAVAÇÃO DA BOTIJA

Dentre as histórias que circulam quanto à botija de dona


Fideralina, vale conhecer o episódio relativo ao filho de seu
Raimundo Velhinho, residindo nas tremas do Tatu, no sítio
Várzea da Roça, propriedade situada logo depois do Riacho do
Meio, no município de Lavras da Mangabeira.
Afilhado de Fideralina, duas ou três décadas depois da morte da
madrinha, ela começou a lhe aparecer. Segundo consta, o intuito
dessas visitas dizia respeito a entregar botija que enterrada antes
de morrer em 1919, por conta da febre denominada Balearina,
flagelo de âmbito mundial, responsável por milhares de vítimas
em todos os continentes.
Meu avô, Amâncio Leite, vivia na fazenda à época em que ali
esse rapaz e alguns membros de sua família compareceram,
visando localizar o tesouro que a eles cabia de direito, vistas as
ofertas nas sucessivas aparições.
Hospedaram-se na casa grande, ex-residência da velha senhora.
Coube a Hipólito de Souza, agregado e morador tradicional da
propriedade, o papel de escavar os pontos indicados, nos vários
cômodos da residência. Esse esforço durou dias e dias, sem, no
entanto, indicar vestígios concretos de localização.
Após muitas experiências resultarem infrutíferas, ocorreram
momentos dramáticos e inesperados, quando graves sintomas de
esgotamento psíquico acometeram o moço. Ele manifestava
excitação nervosa e avisava presenciar na sua frente à imagem
horrenda de fera descrita como cachorro gigantesco, agressivo,
26

que o perseguia sem tréguas, enquanto deitava lavaredas pela


boca, levando-o a profundas crises de pavor.
Nisso, as pessoas que na sua companhia haviam chegado não
mais quiseram alimentar a continuidade das buscas e tais
circunstâncias abalaram de vez o ânimo da família, que cuidou
de interromper os trabalhos e arribar quando menos se esperava,
dissipando aquele sonho de possuir o rico espólio.

EXPLOSÃO POPULACIONAL

Reunião da ONU pede a contenção do crescimento da população


mundial, este o título da matéria vinda de Tóquio, onde se dera
conferência sobre a explosão demográfica (Encontro de Pessoas
Eminentes sobre População e Desenvolvimento), que dentre
outras conclusões afirmava: O crescimento da população é um
grande obstáculo ao alívio da pobreza, ao desenvolvimento
sócio-econômico e à melhoria da condição das mulheres.
E ainda acrescenta que no próximo século a Terra alojará em
torno de 10 bilhões de pessoas, o dobro das atuais, alertando
para o limite das fontes de recursos; que os países mais ricos se
reservam no direito de consumirem mais; e que no próximo
setembro, haveria um evento de até maiores proporções, dessa
vez na capital do Egito.
Estas palavras trouxeram de volta iniciativas de 10 anos atrás,
mais ou menos, quando se espalhou, sobretudo nos países do
Terceiro Mundo, o hábito do controle indiscriminado da
natalidade, envolvendo também o Brasil. Tudo que era de
método anti-conceptivo foi usado nos mangues, favelas, cortiços,
algo parecido com vacinação em massa, geopolítica de ocasião
da aristocracia planetária.
Passado algum tempo, técnicos perceberam que as curvas de
Malthus (população versus alimento, onde a primeira cresce em
progressão geométrica e a segunda em progressão aritmética)
não mereciam o cuidado de tantas verbas; que seria melhor
aperfeiçoar os arsenais utilizáveis a qualquer momento, para
reduzir, nas guerras localizadas, a fome, eliminando populações;
isso além de agradar os críticos sociais mais exigentes nas suas
contestações de que o crescimento da pobreza geraria uma
grande revolução mundial, engano perverso no mínimo
irresponsável, pois fome atrofia, maltrata e mata; enquanto que
sem consciência multidão vira rebanho. Nesse embalo vamos
todos, até os ricos mais alienados em suas modernas vitrines
urbanas.
27

Algumas nações parecem demonstrar mais sensatez.


Estabelecem metas, restringem quantidade de filhos, exercem
rígido controle, sustentam práticas políticas conseqüentes,
oferecem prêmios (rádio portátil, guarda-chuva, cobertores) aos
pais vasectomizados. Sem muito esforço iremos identificar tais
comportamentos, sobretudo nalgumas regiões da Ásia.
Outros locais, no entanto, amarguram a total descoordenação
dos governos. Há falta de quase todos os valores, desde
postulados científicos imprescindíveis, aos mais comezinhos
requisitos morais. Cada um por si e para seus cargos e
privilégios, numa sanha exacerbada onde a coletividade existe
apenas por base de sustentação.
Novos conclaves de certo serão promovidos, nem que sejam
para ocupar funcionários superiores bem vestidos e melhor
pagos às custas dos anônimos esfarrapados, e, como se dá em
relação à Natureza, enquanto destruem florestas, rios, mares e
os bichos desaparecem, a farra avança célere pela madrugada.
Fica, porém, a lembrança de que cada um de nós traz consigo
poder suficiente para reverter esse quadro e as gerações futuras
(?) poderão recordar com orgulho sadio a epopéia dos seus
avós.

FLAGRANTES DE MEMÓRIA

Transcorria o ano de l958, no Nordeste. As chuvas almejadas


não caíram e o campo se acinzentou ao sol intenso de uma seca
jamais esquecida. Rebanhos esgotados, sem pasto, sem água,
eram tangidos para outras terras, que o sertão se impropriara à
vida.
Foi naquele ano que presenciei um dos quadros que descrevo
aqui. Descia a rua Bárbara de Alencar, em Crato, quando, no
cruzamento da Tristão Gonçalves (antiga Rua da Vala), avistei
surpreso um grupo de, mais ou menos, duzentos homens, os
flagelados da seca, agricultores famintos. Todos eles, de índole
pacífica, traziam consigo sacos vazios enrolados da mão para o
pulso, à procura de mantimentos junto às autoridades
constituídas.
Qual pelotão em ordem unida, o grupo passou silencioso,
seguindo para as bandas da Praça da Sé, em direção à
Prefeitura Municipal, que, naquela época, funcionava nos altos
da Cadeia Pública, prédio hoje ocupado pelo Museu de Arte
Vicente Leite.
28

A cena me causou espanto, mostrando a contradição humana da


riqueza na presença forte daquela gente, homens esquálidos,
sinceros, evadidos da cruel intempérie, embrenhados na sede do
município, quais soldados corajosos da sobrevivência.
Também da mesma época, recordo a prisão, nas matas da
Serra, de um homem esquisito, de cabelos longos e
desgrenhados, unhas recurvadas, grandes e escuras, tais garras,
bigode e barba de anos, a lhe encobrir selvagem fisionomia
selvagem. Denominaram-no Pai da Mata.
Por vários dias permaneceu exposto à visitação popular, nas
grades da cadeia, na rua Senador Pompeu, para onde acorria
constante multidão. Muitas histórias circularam a seu respeito.
Desconfiado e soturno, a ninguém respondia, quando
interrogado, apenas fixava no vazio os olhos enigmáticos.
Depois de uma ou duas semanas, transferiram-no para outro
lugar, nada mais sendo divulgado a seu respeito.
E quase em frente ao mesmo prédio da cadeia, esquina da Praça
da Sé, já nos começos da década de 60, quando escavavam as
ruas para implantarem a rede de água, outra ocorrência marcou
a minha memória.
Vi dali ser desenterrada uma igaçaba (urna funerária de barro,
com risco de tinta amarela ocre). Na avaliação de alguns
professores que a examinaram, teria servido para acondicionar
os despojos de chefe indígena das antigas tribos regionais.
Apenas os cacos permaneceram guardados, durante algum
tempo, no museu histórico da cidade, onde pude avistar algumas
vezes mais, hoje não se sabe o paradeiro.
Desse espaço nebuloso das lembranças, consigo reconstituir
também a primeira imagem que gravei do Seminário São José,
visão de baixo para cima, da rua José de Alencar, entre as ruas
Pedro II e José Carvalho, trecho onde primeiro morou minha
família quando chegamos de Lavras, em l954.
O tradicional estabelecimento figurava-se vetusto, sombrio,
enegrecido pelo passar do tempo, pintura a cal amarelecida, com
marcas de lodo escorridas nas paredes, meio escondido de altos
eucaliptos (depois cortados, quase todos). Dessas árvores, quais
frutos insólitos, nas manhãs pendiam friorentos urubus, vindos
das imediações onde ficava o matadouro público antigo, situado
nos currais do Alto da Independência.
Um outro aspecto nítido, que desse Crato de algumas décadas
não esqueci: o footing dos fins de semana da praça Siqueira
Campos, para onde afluía multidão surpreendente.
29

Os dias anteriores geravam expectativa quase incontida que


perpassava a semana inteira, sobretudo de rapazes e moças.
Tão logo se punha o sol de domingo, movimento inusitado
ativava a população. De todos os lados, nos melhores trajes,
jovens e adultos preenchiam as ruas do centro.
O logradouro não demorava a fervilhar de gente, qual numa
quermesse mágica. Luzes fortes, jardins bem cuidados, dezenas
de carros parados em volta, o Cine Cassino movimentado, e o
som da Amplificadora Cratense a envolver dramas e comédias,
encontros e desencontros de casais, numa algazarra multiforme.
As jovens, de braços dados, principiavam a contornar toda a
praça, girando grupos de três, quatro, ou de até mais, animado
carrossel de humana beleza; enquanto os jovens, atentos e
conversadores, se postavam nas laterais do passeio, a observar
o desfile faceiro de pontos privilegiados.
Dessa contemplação espontânea que se estabelecia, davam-se
as trocas de olhares, no chamado flerte, os primeiros toques de
mútua simpatia.
De se olharem, confirmada a preferência, o homem
acompanhava a escolhida em mais outra volta, seguindo ambos,
depois, no rumo da Praça da Sé, onde quase sempre havia
banco vago, para a consolidação dos namoros, às vezes
fugazes, outras, começo de casamento.
Só depois, com as mudanças do progresso, inícios dos anos 70,
com a vinda do sinal de televisão, sumiu essa festa interiorana,
após deixar um rastro enorme de uniões feitas ou desfeitas.

A FORÇA DO PRESTÍGIO

Princípios do século; um dos vaqueiros de dona Fideralina deu


de assuntar que se inteirara da vida nos matos e precisava, o
quanto antes, de fixar residência em Fortaleza, para completar os
dias no aconchego de parentes que há muito não avistava.
Carecia apenas de um ganho certo. Por isso buscou a madrinha
e lhe descreveu tais planos:
- Dindinha, resolvi que quero ir embora, morar na Capital - de voz
mansa, buscou o salvo-conduto. - Fica faltando a manutenção, e
a senhora eu sei que pode resolver...
- Se quer mesmo partir - avaliou pensativa a matriarca, - vou
preparar carta ao Governador e esperemos o resultado. Amigos
da política servem nessas horas. É do que mais reclamam, que a
gente os ocupe. Eis que se apresenta boa oportunidade.
30

Tratou de elaborar a apresentação esclarecendo as


particularidades daquele gesto e, em derradeiro, reclamou,
prestigiosa, que fosse, pois, colocação digna de sustentar o
afilhado, pessoa da casa.
Algumas lágrimas na despedida. Sacos e picuás, sem esquecer
das latas do melhor chouriço, quitute sertanejo feito de rapadura
e sangue de boi, temperado com castanha, gergelim e erva-doce.
Daí, pé na estrada rumo do litoral.
Longos dias se gastavam quando o caboclo se apresentou em
Palácio, sob o patrocínio da liderança interiorana, de comendas
ao punho:
- Venho da parte de dona Fideralina, de quem trago essas
lembranças e uma carta - disse, solene, o homem, cheio de
confiança no resultado da missão.
Silencioso, o Governador recolheu os alforjes, apontou cadeira
ao circunstante; retirou do envelope a carta, que leu enquanto
cofiava o extenso cavanhaque. Imaginou logo o que oferecer em
resposta ao pedido da amiga. Num estalo, transferiu a tarefa ao
Secretário de Educação, a quem recomendou o afilhado, no
dever de não faltar à dileta senhora, nem de jeito nenhum. A
sugestão que recebeu do secretário: nomear o matuto para
diretor de um grupo escolar da periferia.
Sem acréscimos, dias depois, o vaqueiro se fez presente no
endereço do trabalho. Assim, completou-se a nomeação. Mais
um servidor integrava a folha de pessoal do Estado, com todas
as honras e direitos.
Algumas semanas transcorridas, numa reunião de rotina, e o
secretário se avista com o Governador, querendo este conhecer
o desfecho do encaminhamento.
- Tudo segundo foi determinado por V. Exa. - respondeu feliz o
assessor. - Porém surgiu um impasse, nosso novo diretor de
colégio é analfabeto de pai e mãe - daí quis, reticente, indagou: -
E agora, o que iremos fazer com ele?
O chefe do Executivo, afagando a soberania do vasto abdome,
no ato, decidiu judicioso: - O que o senhor ainda está esperando?
Aposenta o homem, secretário - disse, fechando de uma vez por
todas aquele assunto.

O GOL

Início dos anos 70, tempos blindados e sonhos lotéricos também


na Miranorte, cidadezinha do atual estado de Tocantins, onde
31

Alemberg viveu parte de sua infância e guardou muitas histórias


tais qual esta que vamos contar.
Numa tarde de domingo, após a feijoada do meio-dia, na sala de
visita de seu Luiz Torneiro, os amigos se achavam reunidos para
acompanhar os jogos da Esportiva pelo País afora. Na verdade
essa era a diversão maior da semana.
Dona Iracema bem que se esforçava para dar de conta dos tira-
gostos improvisados. Uns poucos aperitivos quentes e a festa
enchiam todas as medidas, depois dos buchos cheios de feijão
preto e dobradinha, no almoço.
Lá pelas cinco e meia, a maioria dos placares recolhidos
atendiam ao cartão da apostas de seu Luiz, que muito se
alegrava na transmissão da partida principal: no Maracanã
jogavam Flamengo e Fluminense. Excluídos dois vascaínos da
roda, os outros sete torciam pelo rubro-negro da Gávea, opção
cravada sem dúvidas no sonho dos treze pontos.
A noite se definia calorenta, apesar de ligeira brisa que entrava
pela janela da sala abafada. Sofá e poltronas pareciam mais
aquecedores do que conforto, quando a soma dos pontos
principiou a esfriar o sangue da turma com a hipótese do sucesso
integral dos palpites. Nove jogos completados e o território ficava
pequeno para tanta expectativa.
Seu Luiz chamou um dos filhos e passou as instruções:
- Vá na venda e pegue adiantado três brahmas geladas -
percebeu aí que denunciava uma certeza suada de vitória, mas
disfarçou, acrescentando: - Traga também duas latas de quitute,
que as coisas vão mesmo melhorar.
O Compadre Zé Pedro administrava a totalização dos pontos, de
ouvido colado no receptor a válvula, lápis e papel na mão. Outro
resultado favorável, e a sorte dadivosa se lhe oferecia.
Veio o material requisitado na bodega e a notícia se espalhava
pela redondeza, arrebanhando os primeiros perus, que
engrossaram o grupo e agitaram a casa. No meio do labacé,
apenas uma figura permanecia quieta, desconfiada, impaciente
da sala para a cozinha: Dona Iracema parecia concentrada na
devoção ao santo para o empurrãozinho que faltasse Ainda
assim, cuidou com zelo de esquentar as conservas, num
combinado de tomates e farinha que desse para atender a todos.
Outros jogos se completavam e emoção grande se reservava do
décimo primeiro ao décimo segundo palpite; houvesse saldo,
teriam pipocado os primeiros rojões; no entanto ouviam-se
apenas os gritos estridentes da torcida numerosa. Restava aí tão
só o garboso Fla X Flu. E tomem choro e gemidos.
32

Pelo visto, a fortuna sorriria naquela casa, nessa tarde; daria


Flamengo na cabeça, pois a partida pendia para seu término e o
time garantiria com facilidade aquele 2 a 1.
Daí generalizou-se a tensão, parecido como se os circunstantes
sentissem a gravidade do momento; por certo cada qual se
punha no lugar da família de seu Luiz, em vias de realizar
grandes transformações, passar de pobre a rico, num golpe do
destino. E se escutou, vindo de dentro do quarto, pungente, a
reza de Dona Iracema, devota respeitável em frente do santuário.
O locutor tremia a voz como se vivesse o drama daquele interior
distante. Mãos suadas. Atenção redobrada nos lances de
pequena área. E o tempo cooperando com os números.
Quarenta e três minutos do segundo tempo. Quarenta e quatro.
Quarenta e cinco, e os descontos. Nessa hora, uma falta na
cabeça da grande área a favor do Fluminense. Barreira formada,
derradeiro cartuxo, escaramuça debaixo das traves, e o tricolor
converte:
- Goooooooooooool! - de dentro do quarto, a explosão de alegria
da fiel companheira de seu Luiz, braços aos céus, num gesto de
agradecimento.
A princípio, calculou-se ter a mãe da família desvairado, produto
da frustração que atingira os presentes, isso para susto de seu
Luiz, a dizer:
- Mas Iracema o gol foi do time adversário e nós perdemos os
treze pontos. Por que essa manifestação de alegria? - indaga
receoso.
- Não é isso, não, Luiz. É que faltou tempero em casa e com o
dinheiro que me deste para fazer o jogo foi que eu comprei os
legumes e a perna de porco para botar na feijoada que vocês
comeram no almoço.

O GRUPO BAIANO DE TEATRO

Ano de 1968, em Crato. Prefeito, Humberto Macário de Brito.


Secretário de Cultura, José Hélder França. Da Bahia fora
convidado, sob a égide do município, o ator e diretor de teatro
José Luiz Penna a fim de organizar na cidade um grupo de artes
cênicas. Com ele vieram seu irmão Túlio Penna, Paulo Costa,
Marcos Garcia, Cláudio Dortas e Rosa, irmã de Paulo,
companheira de José Luiz, que se instalaram no distrito do
Lameiro, numa chácara denominada Tesouro Encantado, logo na
entrada da vila, no lado de baixo.
33

O mundo atravessava período de amplas transformações. O


Vietnam vivia a escalada do seu holocausto. As ruas de Paris
ardiam sob as barricadas de maio. O movimento hippie
alcançava níveis extremos, culminando a seguir com o festival de
Woodstock. As artes e as drogas se confundiam na
Contracultura, iniciando-se o Ocidente nas largas modificações
de pensamento provocadas pelas influências orientais, por
intermédio de uma geração insatisfeita com os padrões da
cultura dominante.
O Brasil, por sua vez, se rendia ao peso do militarismo no poder,
condicionado que se vira pelo golpe de 1964.
Aquele grupo de teatro trazia em seu bojo todas essas
informações bem aquecidas. O líder Zé Luiz dominava todas as
contradições do momento político mundial, do que se verificava
dentro e fora do País, em termos de forma e pensamento, e
passou a desenvolver trabalho intenso, também assistido por
alguns jovens cratenses, dentre esses, José Roberto França,
João Lima Santos, Graça Brito, Huberto Tavares, para citar os
mais constantes, e montou, como primeira peça, O Vaso
Suspirado.
Os ensaios se realizaram a princípio no salão paroquial da Igreja
de São Vicente, na rua Senador Pompeu. Enquanto isso, a
Secretaria de Cultura desenvolvia, na Praça da Sé, o projeto de
adaptação do prédio do teatro, lá onde viria depois funcionou a
Biblioteca Municipal e hoje se instalam lanchonetes e bares.
No seguimento, foram encenadas as peças A Consulta e Picnic
no Front, esta do autor espanhol Fernando Arrabal, dos mais
respeitados autores do movimento denominado Teatro do
Absurdo, identificado pela coragem de afrontar as elites, na
preparação do espetáculo principal que abriria a caráter o Teatro
do Município, o que veio de ocorrer com O Rei da Vela, texto de
Oswald de Andrade.
Numa noite das mais esperadas, a força desmistificadora da
montagem atingiu em cheio as bases da municipalidade, pelo
impacto da linguagem violentadora dos valores burgueses
prevalecentes, em festa onde compareceram as principais
lideranças locais, desde o bispo da diocese ao prefeito, todos ali
surpreendidos pelo vanguardismo da montagem, num choque de
cultura sem precedentes na localidade.
Resultado: no dia seguinte, o Crato retornava aos padrões
artísticos tradicionalistas, devolvendo a Salvador o grupo cênico
que se propôs revolucionar o panorama cenográfico de nossa
mentalidade, restando em alguns poucos nativos a lembrança
34

desses jovens que fustigaram de perto as resistências desse


universo arcaico, tradicionalista, para quem as coisas jamais
seriam o que antes foram.

HERANÇA

Nas vastidões geladas do Ártico, em meio a naturais dificuldades,


viviam pai e filho, únicos habitantes de cabana modesta, longe
dos valores da civilização, num tempo em que pouco se sabia
dos atuais degelos, quando até se prevê outra glaciação na
Terra.
Era costume do povo do lugar ser a existência das pessoas
restrita à capacidade individual para se sustentarem do
necessário através da caça e da pesca, sob os rigores do clima
de muitos graus abaixo de zero. Após a decrepitude, as famílias
agiam com naturalidade, depositando nas planuras desérticas os
idosos ou doentes sem cura, qual cumprissem uma lei acima de
qualquer questionamento.
Naquela casa, porém, um filho retardava a providência quanto ao
seu pai, já em fase de pouca resistência, debilidade que chegava
na mesma época em que surgira no filho a disposição para
constituir família e iniciar outro sistema de vida, restando-lhe
apenas se livrar do genitor e liberar a vaga para outra companhia,
noiva bela e intransigente.
Mesmo admitindo aquele procedimento, o filho insistia em manter
em casa o velho pai, dadas razões bem particulares, além até
dos hábitos de grupo, ainda que não soubesse justificar para os
outros o que de vantagem lhe propiciava o confronto das
tradições seculares; ao menos para si, no íntimo, achava certo
querer consigo, por mais algum tempo, quem tanto sacrifício
investira na fundação e continuidade do lar, e demonstrara tanto
zelo pela saúde da família, enquanto forças tivera.
Os dias prosperavam, no entanto. A noiva nutria pelo futuro
sogro sentimentos positivos, os quais, todavia, murchavam em
face do instinto conjugal. Dotada de especial talento para o
artesanato, tecera bela manta que pretendia ofertá-la quando da
viagem definitiva do idoso ao penhasco gelado, em data não
muito remota, segundo planejara com o noivo.
E não tardou a madrugada em que movimentos diferentes
sacudiram a humilde choça. O filho atara os cães ao trenó,
reunira alguns poucos trastes, ligeiros mantimentos, instalara o
pai no meio da carga, fazendo-se a caminho. Depois de
35

tempestuosa jornada, se viram numa planície branca remota,


circundada de montanhas sombrias e ameaçadoras.
Tão logo o escuro da noite principiou a envolver o mundo,
fizeram a parada definitiva. Naquele sítio cinzento dar-se-ia o
desfecho da longa espera.
Sem trocarem palavras, de cabeça pendida no prumo do peito,
os dois se olharam pela derradeira vez. Um adeus brutal,
primitivo, assim podemos dizer. O ancião buscou tirar por menos,
desviando-se para fora da trilha, exercitando no íntimo
compreender aquela hora. O filho refazia a bagagem, enquanto
alimentava os cães e dava mostras de ter, a contento, cumprido
sua árdua missão, aprontando-se para retornar na mesma
pisada. Após estalar no espaço as dobras do relho com que
tangia os animais, ouviu de súbito a voz do pai a chamá-lo:
- Filho, filho! - gritos firmes ecoaram no vazio gelado e de suas
mãos pendia a manta confeccionada pela noiva. - Isto é
desnecessário para mim. Prefiro que a conserves contigo e uses
quando teu filho aqui vier, um dia, te ofertar ao desconhecido.
A expressão sincera daquele gesto foi mais do que suficiente
para que o moço visse desfazer toda dureza do seu coração e
reordenar os planos antigos. Lívido de arrependimento, agindo
com rapidez, voltou atrás e tratou de recolher os pertences que
deixara; pondo o pai no lastro do exíguo veículo, começou a
viagem que os levaria de novo para casa.

INTERCESSÃO VALIOSA

Das inúmeras ocorrências verificadas no decurso da


Confederação do Equador, no Ceará, idos de 1824, episódio
impressionante ficou registrado por Esperidião de Queiroz Lima,
no livro Tempos Heróicos, que narramos aos que ainda não
leram essa publicação.
Trata-se da execução de um dos sentenciados pelo tribunal
militar precário, mais conhecido por Comissão Matuta, no mês de
outubro daquele ano, instalado para punir as hostes rebeladas.
Depois de julgados e condenados, cinco líderes republicanos
seriam fuzilados no pátio da Cadeia Pública de Icó. Um desses,
Antônio de Oliveira Pluma, autodenominado Pau Brasil, conforme
sua assinatura no manifesto do movimento, insatisfeito com o
resultado a que se via submetido pelo julgamento, reagiu em
altos brados, protestando misericórdia de quem ali se achava.
36

Recusara mesmo permanecer de pé, mas, sendo assim,


forçaram-no em cordas a se postar numa cadeira, de onde, com
olhos vendados, ainda pedia que o deixassem viver.
De nada lhe valeram as rogativas, pois logo em seguida o
pelotão recebeu a ordem de preparação:
- Apontar!
E, ante os disparos iminentes, o pânico pareceu querer tomar a
alma do insubmisso face a morte inevitável, perdido todo o
idealismo que até ali dominara os atos de sua corajosa
existência. Outra vez um gesto cresceu de sua voz, explodindo
mais alto as reclamações de amparo, lançadas aos páramos
superiores:
- Valei-me, Senhor do Bonfim!
Nisto foi secundado pelo toque de comando:
- Fogo!
Cessada a fumaceira, os projéteis achavam-se cravados no muro
junto ao qual o condenado permanecia incólume, sacudindo de
espanto os presentes. Seguiu-se nova carga de munição.
Restabeleceu-se a ordem preparatória, e, no ar, se fez outro grito
de socorro:
- Valei-me, Senhor do Bonfim!
- Fogo! - em seguida veio a ordem militar.
O alvo manteve-se intacto. Os tiros feriram tão só e outra vez
apenas o muro, para desânimo da escolta. Em meio ao
inesperado da cena, tonto, pálido, o oficial comandante
reclamava dos homens melhor prática de tiro, visando mantê-los
no senso do dever, tratando de retomar as suas determinações
para a próxima tentativa, precedida pelo mesmo grito do
condenado, tão sincero, quando pungente:
- Valei-me, Senhor do Bonfim!
Os disparos se deram, de acordo com a obediência. - Desta vez
Pluma fora atingido por algumas balas, mas continuava vivo -,
segundo a narrativa de Queiroz Lima, no citado livro.
Os soldados de pronto se movimentavam para um quarto fogo;
nesse instante, a população presente, tomada de simpatia pelo
confederado, se ergueu coesa e exigiu o direito de que o réu
fosse libertado, qual merecesse o valimento dos céus. Ato
contínuo, essas pessoas levaram-no consigo, alheado e preso à
cadeira do sacrifício, até à Igreja do Senhor do Bonfim, distante
cerca de duzentos metros do ponto onde a cena ocorrera, entre
preces e fervoroso bendito.
Há registros de 184l que dão conta de que o sobrevivente veio a
ser titular da Promotoria Pública da comarca de Baturité, o que
37

comprova sua resistência aos ferimentos recebidos na pretensa


execução de que fora objeto no município de Icó, 17 anos antes.

INUSITADO

Há muito que o secretário de Cultura da pequena cidade vinha


planejando levar ao homem do campo as modernas produções
do cinema, sobretudo aquelas mais engajadas, comprometidas
com o progresso humano, cheias de informação. Afinal o
município precisava de umas sacudidelas, e o projeto envolvia
abordagem sensível, generalizada, nessa quadra em que a
maravilha da eletricidade beneficia também a zona rural.
A primeira experiência contemplou o sítio mais distante da sede,
lá onde resistam de pé casa grande, engenho, casa de farinha,
localização típica de um passado feudal no Nordeste.
Data marcada com relativa antecedência, desde cedo se arrumou
o equipamento e combinou-se o carro: uma televisão grande,
vídeo de última geração, cabos, fitas e tudo o necessário para
possíveis emergências. Tão logo escureceu partiram no projeto
inovador.
Varrido com zelo, o terreiro se achava próprio, na medida certa.
Cadeiras bem distribuídas e gente muita a se localizar pelas
imediações. Até bandeirolas coloridas tremiam entre as árvores,
para alegrar o raro evento.
Maca abaixo, o auxiliar instalou rápido o som e, enquanto se
providenciava um suporte para a tevê, o Sr. Secretário
improvisou palavras preparatórias, justificando a nova
programação, graças ao ilustre Gestor Municipal, homem
dinâmico e proficiente.
Dentro em breve, luzes reduzidas, iniciou-se a função. Filme de
diretor europeu, ninguém melhor escolhido para o momento. Bela
história italiana do pós-guerra, Roma, Cidade Aberta, de Roberto
Rossellini. É verdade que ainda no preto-e-branco, porém dentro
do mais acessível ao público leigo. As atenções confirmavam a
boa escolha, visto o silêncio generalizado que só foi rompido pelo
guincho estridente do telefone celular. O secretário e seu auxiliar
deveriam comparecer na cidade, pois assunto urgente assim
exigia junto à Prefeitura.
Com retorno garantido para daí a pouco, zarparam sem desfazer
a função, que ficava rodando até se completar, quando voltariam
sem falta para recolher o material.
38

Já quase inteirando o compromisso, o Secretário lembrou-se de


ter gravado na mesma fita que deixara rodando, logo depois do
filme principal, um pornô desses incendiários; fatalidade atroz.
Visto o relógio, restava pouco tempo para terminar o filme em
exibição no terreiro distante.
Por maior que fosse, o impulso de chegar, mostrou-se por
demais insuficiente para desfazer o choque cultural em
andamento, no que pesem os estragos deixados na poeira do
caminho. A casa, antes acolhedora, se via agora de portas
fechadas, terreiro limpo, sem cadeiras, nem vivalma, no silêncio
noturno; e a peleja libidinosa troava no mundo (filmezinho sujo
chegara ali mesmo); com quase ninguém a testemunhar, não
fosse o abilolado Zé Sabugo, que, meio escondido no escuro,
torcia o pescoço de um lado para o outro, feito galo indiano em
fim de briga, escondido que ficava por detrás de frondosa
goiabeira, a mostrar um olho de cada vez, indiferente à baba que
lhe descia pelos extremos da boca.
Reunidos os troços (destroços), terminava de modo melancólico
a primeira, e talvez a derradeira, sessão de cinema cultural do
município.

IRMÃ SANTINHA

Na cidade, todos conheciam Irmã Santinha, guardando dela as


melhores impressões, dado suceder que o nome fazia correta
justiça à religiosa, de conduta irrepreensível e total dedicação
aos pobres, sempre disponível a quem lhe viesse pedir conselho
ou reclamasse sua prestimosidade. Era voz geral que, existindo
Céu, a amável freirinha nele possuía lugar reservado.
Aconteceu, nesse tempo, que veio à presença da Irmã Santinha
um dos homens mais ricos do lugar, à busca de orientação.
Noivo de bela e prendada jovem, carecia, no entanto, de
submeter seus planos à religiosa para completar sua decisão de
casamento.
- Irmã, gosto muito de minha noiva. Ainda assim não tenho
certeza de sua integridade - esclareceu com reserva o
interessado. - Por isso vim saber da senhora, pessoa virtuosa e
boa, se aquela com quem pretendo casar é moça donzela, como
tem a mim configurado.
Após minutos de recolhimento, a Irmã lhe respondeu que a noiva
podia ser ou não ser virgem, deixando, dessa forma, margem às
duas deduções.
39

O noivo retirou-se e pegou a pensar no que ouvira, interpretando


que a freira dera aquela resposta evasiva por deduzir que ele não
tivesse condições emocionais de ouvir de frente toda a verdade,
concluindo não ser mais virgem a mulher de seus sonhos,
condição inarredável para as esperadas núpcias. Em face disso,
contrafeito, rompeu o noivado, vendeu todo seu patrimônio e
resolveu sair pelo mundo afora. Porém antes de seguir, reservou
boa parte dos recursos arrecadados e depositou nas mãos da
irmã Santinha.
Muitos anos se passaram. Uma década ou mais depois, o
homem, enfastiado de vagar sem destino, retornou à povoação
para rever os antigos conhecidos. Então foi que soube da morte
da irmã Santinha, ocorrida há pouco tempo. De imediato,
lembrou-se do dinheiro que com ela deixara e reportou-se ao
padre responsável pela freguesia no sentido de saber como agir
naquela situação.
O pároco desconheceu o assunto, mas sugeriu que a melhor
solução seria procurar falar com a própria freira:
- O senhor vai meia-noite à porta da igreja e, em voz alta, chama
por ela. Daí saberá notícias do que pretende - afirmou.
Meia-noite, na porta da igreja, ouviram-se os gritos insistentes e
repetidos daquele homem: - Irmã Santinha, irmã Santinha. E
ninguém lhe atendeu.
Logo cedo, no outro dia, de novo o sacerdote recebeu a visita do
viajante insistindo no auxílio para localizar a freira.
- Mas o senhor não conseguiu falar com irmã Santinha no Céu? -
admirou-se o padre. - Pois meia-noite vá ao cemitério e, de novo,
faça o mesmo, chame em frente do portão principal, que ela
deverá atender os seus rogos.
Outra vez aqueles mesmos gritos... E nada. De volta ao padre,
este ficou ainda mais admirado de não se achar a freira nem no
Purgatório, segundo suas palavras.
- Bom, desta vez, o senhor terá o que procura - informou. - Vá
meia noite à porta do mercado e chame por ela que será
respondido, porque nesse local se comunicam aqueles que vivem
no Inferno, único canto que resta procurar.
Assim se fez; uma pequena demora sucedendo aos gritos, e voz
distante, a se aproximar, correspondeu ao chamamento. Era voz
fanhosa, tristonha, a dizer onde se achava guardado o dinheiro,
numa laje solta que havia sob a cama do quarto onde dormia a
freira.
O homem tratou de externar o seu reconhecimento pela
honestidade da depositária e se preocupou em saber do motivo
40

dela ter ficado, após a morte, em lugar inferior, posto que vivera
vida cheia de muitos gestos de pura bondade.
A freira escutou sensibilizada as observações do cavalheiro, e,
demonstrando profunda infelicidade, acrescentou:
- Lembra o senhor de uma consulta que me fez a propósito da
virgindade de uma pessoa com quem, certa feita, esteve noivo?
Eu não guardava a certeza da resposta e respondi com
indecisão. Resultado, como a sua interpretação errônea
precipitou acontecimentos e terminou prejudicando a moça
envolvida na história, que, de desgosto, caiu na prostituição e
morreu anos depois, vítima de doença do mundo. Quando soube
disso tudo, era tarde demais e agora tenho, para reparar o dano
causado àquela criatura, de suportar as caldeiras do mais cruel
remorso.
Em seguida, silêncio maduro comprimiu a noite. Cedo da manhã,
o homem localizou, no ponto determinado, integral, a quantia que
deixara nas mãos da freira. Num gesto de gratidão, buscou a
igreja e depôs boa parte do dinheiro no cofre das almas, ocasião
em que agradeceu e se despediu do padre. Gesto contínuo, sem
delongas, resolveu ir embora.

LANÇAMENTOS

Mundo ignoto, as cidades interioranas recebem devagar o


progresso sorrateiro, qual mancha de tinta num mata-borrão,
espraiando-se de modo definitivo pelos trilhos culturais em forma
de novos hábitos, aplainando o gênio bruto das pessoas nas
paredes do tempo, mistura de originalidade e sonho. Depois fica
difícil refazer as histórias que, de geração a geração, se
transmitem, nos redutos humanos, até virar folclore e coisas de
antepassado.
Isso pode ser visto quando analisamos os documentos do mundo
oral desses afastados rincões, no meio das conseqüências e
fantasias. Em alguns momentos, parecem versões inventadas,
engraçadas, o que, na verdade, bem pode ocorrer. Duas delas
quero deixar escritas aqui para posteriores avaliações.
Em Crato, à época do lançamento de Sonrisal, aspirina
efervescente, útil em casos diversos no combate a dor de
cabeça, azia, mal-estar no estômago, etc., sob campanha
publicitária de nível amplo, senhor ligado a família antiga do
torrão, valorizou o produto com tamanha intensidade, sentiu tanto
entusiasmo pelo sabor da especialidade, que resolveu adquirir
41

dela uma das embalagens grandes, tipo as que os grossistas


recebem para revenda.
Tocou daí a usar essa beberagem de modo indiscriminado,
passando a adotá-la no lugar da pura água, isso em qualquer
hora do dia e da noite. Resultado, antes de consumir a primeira
remessa, sumiram-lhe todos os pelos, desde as axilas até o
couro cabeludo, envolvendo cílios, sobrancelhas, barba, bigode;
isto é, das regiões visíveis às abissais. Só quando suspenso o
costume recém adquirido, após outro tanto de tempo, é que
retornaram os filamentos desfigurados.
Outro acontecido, esse (quem sabe?) fruto do anedotário
popular, fala que, numa cidade do sertão, em um dia de feira,
certo rurícola chegou para os deveres de rotina e se depara com
a festa de lançamento da Coca-Cola, o emblemático refrigerante
símbolo da civilização contemporânea.
A princípio apenas sustou-se a observar o movimento
generalizado: banda de música, palhaços, foguetes, carro de
som e distribuição gratuita do líquido gasoso. Cuidadoso,
principiou chegada e resolveu experimentar; encheu o bucho
daquela felicidade, logo imaginando um modo de também dividir
o prazer inesperado com seu prestimoso jegue.
Buscou uma bacia espaçosa e carregou na dosagem. O animal
aceitou sem refugar. Esvaziou todo conteúdo para mais de duas
vezes; ligeiro enlargueceu a pança de lamber os beiços; e as
conseqüências não tardaram aparecer. Depois de dois relinchos
fortes, o bicho deu um arroto tão potente que perdeu o rabo, diz a
história quanto a esse outro lançamento mercantil.

LEVANTE POPULAR

Meu avô Amâncio participou da luta para derrubar Antônio Pinto


Nogueira Accioly, no Ceará, nos inícios do século XX. Após duas
décadas do seu desaparecimento, relembro das narrativas dele
sobre esse episódio. Era ainda rapaz na ocasião e unira-se à
população de Fortaleza para depor o chefete de ações ditatoriais,
mantido sob o peso de nefastas influências.
As ações rebeldes ganharam corpo depois de atitudes
repressoras que vitimaram pessoas ordeiras da sociedade
fortalezense, por ocasião de uma passeata de repúdio ao poder
instituído no Estado, promovida em 29 de dezembro de 1911, em
plena Praça do Ferreira, ferindo militares e manifestantes civis.
O desenrolar dos confrontos reduziu a área de predomínio do
Governo e levou-o a se fixar tão só no Palácio, imediações do
42

Passeio Público, onde o caudilho, seus familiares e a guarnição


policial resistiram durante alguns dias, culminando com a
rendição em 24 de janeiro de 1912.
Ainda de madrugada, os revoltosos seguiam ao front, portando
rifles, fuzis e munição, para se instalar nos sobrados em torno do
refúgio governista; os soldados, por sua vez, entrincheirados
detrás de sacos de areia e no alto do edifício palaciano,
respondiam aos disparos; ambos na expectativa de qualquer
descuido de lado a lado, ocasião de muitas perdas.
Certa manhã, ao despertar, meu avô recebeu de sua mãe o
conselho de que, nesse dia, ficasse fora das escaramuças, pois
vira em sonho que ele seria atingido na cabeça por balaço.
Jovem e afoito, procurou desfazer as preocupações maternas e
partiu para a luta, instalando-se numa janela em posição de tiro,
donde disparava contra o inimigo.
Num certo momento, anotou a presença de artilheiro, visível em
uma das sacadas do Palácio, também lhe apontando arma.
Cochilou na mira do rifle e escutou estampido; o outro atirara
primeiro. A bala resvalou no fingido lateral da construção e o
tampo de massa arrancado veio de encontro a seu rosto,
cobrindo-o de poeira, toldando-lhe a visão, além de inundar seus
olhos de cal e barro. Pouca distância faltara daquele sonho se
transformar em realidade.
Noutro momento do conflito, já mais próximo do seu término,
achavam-se, ele e outro aliado, coboclo das hostes de dona
Fideralina, sustentando fogo por detrás da proteção de sacos,
quando um disparo frontal atingiu esse combatente, que caiu de
bruços sobre o rifle. Meu avô, de pronto, indaga: - Perigou, Bindá
(era o seu codinome)? - E a resposta dele foi o gesto de levantar
a cabeça e mostrar a face com feia perfuração de bala no meio
da testa, para, em seguida, restar na posição anterior.
Do levante de Fortaleza muitas marcas restaram, a exemplo do
medo que tomou conta dos soldados quando tiravam guarda no
quintal situado nos fundos do Palácio do governo, pois dizem
que, no turno da noite, as sentinelas avistavam vultos saltando
de dentro de um cacimbão que lá existia entre as árvores da
quinta. Isto porque, segundo consta, no decorrer da peleja, ao
invés de sepultarem os mortos, eram esses jogados naquele
poço, saindo de noite para formar pelotão junto de outros praças
que também eram vistos enfileirados nas proximidades. Os
praças em serviço fugiam apavorados com aquilo.
Os esforços da luta valeram a pena durante alguns anos.
Derrotada a oligarquia, seus membros se retiram para o Rio de
43

Janeiro, houve eleição e Franco Rabelo assumiu o comando


político do Estado, fazendo destacada administração, até ser
deposto, dois anos adiante, como desdobramento da chamada
Sedição de Juazeiro.

A LOURA DA PETROBRÁS

Eis aqui uma história dos inícios da década de 80, quando nossa
sociedade interiorana ainda vivia à margem dos perigos cruciais
da Aids, flagelo que reclama cuidados redobrados de quem se
aventura nas intimidades sexuais com parceiros desconhecidos.
Nessa época dos primeiros anos daquela década, viera residir
em Crato, nas proximidades do terminal da Petrobrás, no bairro
do Buriti, louraça de fechar comércio, nos dizeres antigos. Dada
a concentração de motéis na vizinhança, tornara-se presa fácil
para os maridos infiéis que quisessem exercitar a ginástica de
pular cerca, nos encontros fortuitos como essa jovem paulistana,
de cuja existência não tardou de circular nas rodas boêmias a
notícia.
No apelo desses clandestinos encontros, vários desavisados
arriscavam as penas, envoltos no manto esgaçado da impune
promiscuidade. Em horas galantes, eles buscavam as fugidas
libertinas.
Não demorou muito da realidade se apresentar com toda sua
pujança. Quem acompanhou de perto esse caso poderá, sem
largo esforço de memória, confirmar o que dizemos. Belo dia, a
casa veio abaixo. O que antes fora atração fatal virava pesadelo.
Quando o risco parecia inexistir no nosso meio, qual rastilho de
pólvora em noite escura, rompeu nas bocas o boato tenebroso de
ser aidética a loura da Petrobrás.
Fica difícil de se estimar o tanto de marido aflito, esmorecido,
pálido, enfastiado. Virou corre-corre, uma mistura de pânico.
Seguiam a Fortaleza, a Juazeiro, na busca dos testes para esse
tipo de análise, porquanto os laboratórios do interior ainda se
viam deles desequipados. Naquele momento, entretanto pouca
coisa seria mais importante para quem se envolveu na perigosa
ocorrência. Ansiosos, trataram de agir rápido, questão de
sobrevivência, garantia de vida, provar que se achavam livres do
monstro devorador.
Houvesse confirmação da suspeita, Crato registraria um surto da
perversa calamidade, o que, graças a Deus, não se verificou,
restando, em conseqüência, o aviso aos que escaparam e aos
que, por vezes, expõem a saúde nesses constrangimentos.
44

Após o acontecido, nunca mais se ouviu falar na misteriosa


beldade.

MAJOR BENTO

Dentre as muitas histórias registradas pelo povo cratense figuram


as do major Bento, Francisco Bento da Silva, oficial da Polícia
Militar do Estado, conhecido pelo rigor espartano com que tratava
os problemas que lhe chegavam às mãos. Por duas ou mais
vezes (anos 50 e 60) foi delegado no Município, onde pude
conhecê-lo, a locomover-se e aos seus soldados de patrulha em
um jipe de capota meio aberta, impondo respeito e determinando
punições. Foi dele a invenção do castigo aqui conhecido sob a
denominação de dança do sapinho, destinada aos farristas e
seresteiros que fugiam do regulamento, para, na ressaca,
pularem de cócoras debaixo de uma mesa recheada de pontas
de prego no tampo, ao som das músicas em voga.
Sabe-se que as festas juninas sempre (e ainda hoje) deram
muito trabalho às autoridades, por causa dos fogos, balões, tiros,
foguetões, provocando muito desassossego antes, durante e
depois da época própria.
Numa de suas missões no município, o major Bento resolveu dar
um basta nesses abusos. Com certa antecedência, baixou
portaria para disciplinar o assunto, proibindo, de modo
terminante, o uso de bombas, traques, pistolas, etc. Fossem
barulhentos, perturbassem a paz pública, enquadravam-se na
pauta das restrições. Vale lembrar que nas ordens emanadas de
Chico Bento não cabia costura. Enfim a conhecida (mas pouco
obedecida) lei do silêncio seria imposta com justeza.
Nessas rondas que fazia para manter a ordem, pelas imediações
do Colégio Diocesano, ao dobrar a esquina, Bento avistou ato
delituoso enquadrável na determinação, sendo praticado em
flagrante delito, na hora em que desordeiro acabara de pipocar
bomba daquelas grandes, das mais zoadentas e perigosas,
famosa pela alcunha de cabeça de negro, visto o tamanho do
artefato.
Parado o jipe, restaram no local, arrasado, o autor da
contravenção e a patrulha, cheia de vontade, pois os
circunstantes sumiram, como num passe de mágica. Antes da
manifestação do delegado, reagiu trêmulo o acusado, através de
expressão bem sabida nas rodas anedóticas da cidade:
- Mas, major Traque, foi só um bentinho que eu soltei.
45

Dado o pitoresco da situação que se estabeleceu, o militar caiu


numa sonora gargalhada... E deixou a punição para caso de
reincidência; sorte do delinqüente.

MENDIGOS DE BANQUETE

É tempo de eleição. Casa desarrumada. Trens e trouxas


ajuntados às pressas. Movimentação incomum. Ano zero da vida
nacional. Tudo que se fez até hoje parece ficar para trás, que
nem as filas de emprego. Outras campanhas. Novos messias
candidatos. Tanta gente de qualidade (tudo muito sabido!)
gastando dinheiro, sapato, verbo, no afã de ocupar os mandatos
que até preço se estabelece para cada eleitor. Homens bons (?).
Sair de sua paz, tirar do que é seu e aplicar em favor da
sociedade, indo servi-la na representação política. Quanto
desprendimento, quanta bravura democrática! (?).
Desta maneira, entremeada pela Copa do Mundo de 1994,
deflagra-se outra campanha eleitoral brasileira, eleições quase
que gerais, não fosse a ausência dos cargos de vereador e
prefeito. Época em que persistem idênticas as contradições
primitivas na formação do país que gostaremos de ver um dia
estabelecido, desejo talvez motivado pelo exemplo farto dos
muitos povos que adquiriram senso, riqueza, conforto, educação,
saúde e dignidade para todos. Enquanto aqui as mesmas
escamoteações se repetem desde o Descobrimento, gáudio de
minorias impenitentes, gananciosas, devassas, que no poder se
sucedem...
A lógica adotada, qual panacéia universal: primeiro engordar uma
banda menor, que a outra herdará por declividade. Crescer o
bolo, para depois distribuir com os demais. Depois esse que
nunca chega. E nesta pisada as décadas vão escorrendo pelo
ralo da ilusão. Vem eleição, vai eleição; desce vice-rei, sobe vice-
rei; e do papel a teoria não passa. O mundo se reforma, as
gerações se aperfeiçoam; e aqui os pretensos líderes não se
cansam de fazer dívidas às custas dos impostos mais elevados
que existem no planeta, construir/reformar prédios monumentais,
viajar de graça nas melhores aeronaves, comprar fazendas,
oferecer recepções, crescer contas bancárias, morar nos
melhores palacetes, passear carros estrangeiros, gastar nas
mais sortidas lojas, falar nos telefones mais celulares, manter
privilégios, fazer os mais manjados discursos; e o bolo nada de
crescer que se saiba.
46

Lá se foram nossos melhores anos, a juventude da alma verde-


amarelo, espalhada pelo mundo a fora porque exigia, protestava,
primeiro nos diretórios acadêmicos, depois nos festivais, ruas e
praças, por fim nos calabouços da vida. Muitas luas cruzaram os
céus e nada mudou.
Na imaginação prevalece a visão ideal de que o sentido seja
mesmo decantado pela privada iniciativa, pois foi assim que deu
certo nos muitos países ricos. Para satisfazer a consciência
(querendo ou não, existe a consciência) os que fazem o sistema
dominante devem engordar os salários, responsáveis diretos pelo
consumo do que produzem as fábricas, favorecer a população
com serviços mais eficientes, conseqüência de prováveis
reformas que se instalem, qual fariam os senhores feudais a seus
agregados, ainda que seja para desfrutar de hálitos mais
perfumados, mais belas paisagens, maior disciplina social.
Entretanto não vem sendo assim do lado de cá do globo, onde
tais benefícios dourados permanecem restritos aos muito poucos,
nos salões de elite imperial. Partes estanques rebrilham quais
picos teimosos de icebergs grotescos, num mar de corrupção e
miséria submersa, invisível aos seus próprios olhos, cegos a pão
e circo.
Em cada turno eleitoral essas coisas nos são jogadas na cara
pelo cinismo de tantos aventureiros que fazem dos irmãos reses
de corte, a zombar da palavra e dos métodos viciosos, por meio
das máquinas modernas de alcançar lugares distantes. A
cantilena se parece sempre. Farão o mais adequado, corrigirão
velhos erros, transformarão a face da Terra quais mágicos
geniais, trazendo de volta o verde, os tesouros, a tranqüilidade,
ora abalada por traições e desmandos.
Quanta falácia, meu Deus!
O sadismo todo por certo deverá ter um basta, a despeito dos
contentes que, às custas do saldo, gastam na folha os lucros
esperados e convidam a corte para o banquete dos mendigos da
Ética, numa antropofagia milenar. Aguardamos insones esse dia,
onde quem dever tem de pagar até o derradeiro centavo real.

MESTRE ZUMBA

De olhos no jornal e ouvidos ligados no que ocorria em volta,


padre Frederico aguardava que o barbeiro completasse a tarefa
de rapar o outro cliente, um garotinho aflito a se sacudir na
cadeira enorme de tudo que era jeito para fugir da máquina
impertinente. O causador da reação se tratava de mestre Zumba,
47

que fizera fama, em Crato, como profissional de nomeada. A mãe


da criança, sofrendo junto, acompanhava, de pé, cada gesto do
filho, por dentro rezando pela conclusão daquilo que mais parecia
inevitável provação.
- Calma, filhinho, que seu Zumba vai acabar logo - repetia,
querendo mais (quem sabe?) acelerar a função do que mesmo
conformar o pequeno.
Nisso, o barbeiro, calejado em situações desse tipo, na hora
certa, recorreu a expediente infalível:
- O menininho quer um bombom? - e falando, sem esperar
resposta, abriu a gaveta do velho móvel de trabalho, procurando,
entre tesouras, pentes e navalhas, confeito reservado para a
ocasião, de pronto transferido à mãozinha aflita do menino.
Daí ficou menos drástico o período que faltava para o término do
trabalho de contorno da cabeça, corte a zero, deixando no
cocuruto apenas trunfa estreita e saliente, aumentando mais um
tanto a feiura do pirralho, de fisionomia abusada que nem seu
pranto.
De cara e braços salpicados de talco, livraram-se mãe e filho,
cedendo lugar ao freguês da fila, o sacerdote alemão de sotaque
inconfundível e corpo avantajado, que ocupou assento junto às
garras do fígaro.
O novo paciente, logo recebeu as primeiras mastigadas do
instrumento, pouco demorou em compreender as razões do
menino berrar daquele jeito. A máquina, cega de há muito,
carecia de manutenção. Dói daqui, dói dali; o instinto de
conservação pesou mais, e o levita espirituoso, externando
sofrimento, reagiu em tom de quem choraminga:
- Ô, Zumba, será que nessa gaveta ainda sobrou algum
bombonzinho? Pois não é que eu também vou precisar de
consolo?!

NOTÍCIAS DA SELVA

Viver em sociedade tem sido nada fácil, sobretudo agora depois


que descobriram como destruir a paz alheia através da
sofisticação desses equipamentos acústicos ultrapossantes,
instalados sem qualquer alvará tanto nas esquinas de bares e
bodegas, quanto nas traseiras impenitentes dos veículos
automotivos. Ter vizinho nesses tempos de hoje virou transação
de alto risco psicológico e físico, para quem ainda desfruta de
alguma paciência na procura dos seus limites de tolerância. Isto
48

sem considerar os resultados policiais de tantos desvarios,


quando a coisa descamba para as vias de fato.
Andou-se falando na imprensa do Sul que estaríamos para
receber uma nova legislação de meio ambiente que contemplaria
o assunto, definindo altura de som para uso nas zonas urbanas.
Mesmo assim até hoje nada se sabe a respeito, ou se será ou
não uma das leis que pegarão, pois existem dois tipos de leis: as
que pegam e as que não pegam.
Queremos, porém, considerar serem urgentes medidas
coercitivas contra quem abusa do direito de ouvir som na
dimensão que pretenda. Ouvir sons seria mais abrangente, pois
existe muito do que classificam de música que na verdade situa-
se apenas na dimensão de ruídos estridentes e nocivos à saúde.
Em tempos antigos, definia-se que o nosso direito acaba lá onde
começa o dos outros, levando-se em cogitação que o mais forte
sempre invade áreas circunvizinhas e se impõe pela sagacidade
truculenta.
Desta maneira, os dias atuais ficaram menos cômodos visto o
nível em que se chegou de tecnologia disseminada a preço de
crediário módico, quase que em descompasso quanto ao grau de
civilidade. O produto desse desnível são as sucessivas
agressões à cidadania em forma de desassossego da paz
pública.
Haverá um método de solução do grave problema, qual seja
educar o jovem para que venha construir a boa convivência sob o
império do respeito coletivo, o que nascerá de dentro da própria
individualidade. Façamos a nossa parte e eduquemos primeiro os
nossos ouvidos, em vez de transformar em penico os ouvidos de
nossos semelhantes.

OSSOS DO OFÍCIO

Grande conflito se dá na consciência do advogado na hora de


aceitar a causa, por mais que se pretenda exercer o postulado
soberano do contraditório, onde todos merecem defesa. Há ou
não culpabilidade? No entanto existe sempre um lado em que
prevalece o senso da justiça em sua mais ampla nobreza. Daí o
anseio do trabalho limpo, em favor dos que merecem.
Sobre isto, outro dia Dennis Hartnett me contou caso ocorrido
nos Estados Unidos, país em que nasceu, com um amigo de sua
família, advogado recém-formado, idealista, disposto a ficar do
lado bom das causas, pleiteado em prol de quem esteja correto,
no pugilato da Justiça.
49

Dentre seus primeiros clientes surgiu cidadão indiciado como


suspeito de contrabando de bebida. Meticuloso desde o início da
defesa, o paladino do direito procurou se acercar de todos os
elementos que evidenciassem a lídima inocência do constituinte,
lacrimoso na justificação de ser apenas vítima de trama insidiosa,
porquanto não lhe pesasse o mínimo de responsabilidade quanto
às acusações formuladas. Seria mais um dos casos onde se
verifica excesso de perseguição do fisco contra alguém
inexpressivo e de parcos recursos, insistente a prosseguir no
ramo do comércio.
Ciente dessa isenção, cuidou logo o advogado de produzir a tese
no tanto necessário ao melhor convencimento do juiz, coletando
provas, estudando mais e mais doutrinas e arrecadando as
melhores jurisprudências. Seguiu bem de perto cada passo,
ocupando-se do andamento da ação como quem zela por
assunto de ordem pessoal, até alcançar admirável vitória com a
absolvição do réu.
Após o término do feito, ainda emocionados com a forte
argumentação apresentada no processo, resolveram acertar
honorários. E qual não foi o espanto do causídico ao ouvir seu
cliente lhe oferecer a título de pagamento dos serviços prestados
caixas de vinho estrangeiro da melhor espécie, só que sem a
correspondente nota de fornecimento, pois haviam transitado
pelas malhas da clandestinidade! Auxiliara, por isso, o mais
deslavado contrabandista a escapar da Lei.

OUVI DE LYSÂNEAS

No ano de 1975, quando vivia em Salvador, eu assisti palestra


inflamada do então deputado federal Lysâneas Maciel, numa
cruzada que empreendeu por vários estados para denunciar o
clima de exceção que constrangia a ordem democrática
brasileira. Sabia-se mesmo sujeito à cassação de mandato que
veria a sofrer logo no ano seguinte, atingindo também outro
corajoso parlamentar, o cearense Alencar Furtado.
De verbo fluente, destemido, sensibilizou em profundidade todos
presentes, levando-nos a interpretar de forma contundente o
grave momento que enfrentávamos, sob o peso rígido da força
militar no comando das instituições políticas.
Dentre os recursos pedagógicos adotados naquela ocasião, bem
nos moldes da boa oratória evangélica e pastor que era, o
parlamentar narrou episódio verificado com um pastor
protestante, na Alemanha, durante o domínio nazista.
50

Zelava esse pela sua comunidade religiosa, quando ocorreram as


primeiras detenções do período negro que antecedeu a Segunda
Grande Guerra. Vieram prender os comunistas. Ele pensou
consigo: - Não sou comunista, portanto nada tenho com isso. E
se omitiu de qualquer reação contrária àquela violência praticada.
Os senhores do poder, sob a égide da ditadura hitleriana,
seguiram na escalada de terror, vindo, em seguida, a deter
também os socialistas, o que motivou comportamento idêntico no
líder religioso, permanecendo desatento a mais essa ocorrência,
em flagrante descompromisso público. Por não ser socialista,
aceitou indiferente as manobras policiais da Gestapo.
Depois, foram perseguidos os homossexuais, as prostitutas, os
ciganos e as outras minorias, segundo narra a história. O
raciocínio do pastor se fazia repetitivo, quedando-se inerte face a
tudo o que observava, sem, no mínimo, esboçar qualquer atitude
perante sua comunidade.
Mais adiante no tempo, também foram recolhidos judeus,
católicos, enquanto nada disso alterava as boas relações do
citado senhor com as forças dominantes, vez não se enquadrar
nos grupos atingidos; nem de longe se avaliava responsável
pelas vítimas das sangrentas arbitrariedades cometidas.
Até que um dia, quando os carrascos lhe bateram à porta da
igreja para também levá-lo ao cárcere, ninguém mais havia que
pudesse mobilizar forças em sua defesa, denunciar, gritar em
prol da liberdade, se movimentar no cuidado à vida, se unir em
defesa dos direitos da democrática cidadania. Era o fim.
Eis, destarte, num tanto de ocasiões, o nosso retrato, sendo-nos
sempre oportuno lembrar que, ao nos acomodarmos,
transferimos aos nossos filhos, em épocas porvindouras, a crua
responsabilidade face ao que cabe a nós próprios determinar.
Atenção, por isso, ao grande amor que hoje lhes devotamos.

PARA QUANDO SENTAR A POEIRA

(Título este que nos soa parecido com o que é que vou dizer em
casa, dos antigos folguedos carnavalescos, e que cabe qual luva
certa nos dedos atuais da vida brasileira, seja nas capitais ou no
interior, após as definições administrativas de um governo que
se completa entrando de armas e bagagens num outro que
principia de corda toda, dentro de pompa só comparável às
festas hollywoodianas e aos casamentos das princesas nas
mil e uma noites... isto em época exaustiva para milhões, onde
sobra pouco a comemorar fora das hostes das oligarquias
51

poderosas, que mandam, mandam e desmandam, bem ao sabor


do fim-de-século).
Mesmo assim se fala em sucesso e não seremos nós a contrariar
o ritmo de moeda nova que invadiu as fronteiras com reservas
cambiais aos vento, compras importadas, sumiço da ciranda
financeira, propostas de mudança na aposentadoria, exército nos
morros cariocas, continuidade nas privatizações, governos eleitos
pelo povo, instituições enferrujadas, turismo erótico no Nordeste,
políticos profissionais acomodados, carência de alternativas de
trabalho às gerações afluentes, grandes bancos estaduais sob
intervenção federal, crise nunca vista na rede hospitalar privada e
pública, esquerda consciente, desunida, isolada bem longe dos
tributos oficiais, por medo ou vingança.
Tempo quando os russos reeditaram nova guerra imperialista,
cujas vítimas voltam a ser os árabes, ocupando tropas e
abalando ainda mais seus orçamentos, nessa geopolítica
insana de reduzir populações para viver melhor, há muito
adotada pelo ser humano, desde que se tem notícia de sua
participação na Natureza. Com isto, os países ricos da
Europa andam alarmados com as suas guerras continentais, por
justa razão, uma vez que existem mais de 300 milhões de
muçulmanos massacrados pela injustiça, à espera de uma
segunda chance histórica. Guerra nova... Que coisa mais
antiquada.
Essa moda de transformações políticas radicais, para cortar
apenas os privilégios populares, no lado penso,
internacionalizando a miséria econômica, onde moedas fracas
valem mais do que as mais fortes do mercado, compras a rodo,
época de substituição de guarda, manu- tenção de classes no
poder, imprensa cantando loas a raposas velhas conhecidas
nos terreiros... Ah! Como gostaremos de ver outro filme, em
sessões contínuas, sonho materializado na fartura de todas as
mesas.
Muita casa, saúde, segurança, emprego, educação, inverno,
união, realização pessoal, alegria permanente, festa sadia no
coração de quem deseja usufruir, sem nenhuma exceção, do
menorzinho ao maior, do Brasil para o Mundo todo, a partir
dagora, com a descoberta da mágica de uma fortuna mais
eqüitativa. Eliminadas as pressões contingenciais, a fera
inflacionária sumiria, cientes que ficamos dela agradar tão só aos
banqueiros e agiotas externos. Este o quadro atual.
52

Quiséssemos ou não, permita-se espaço ao riso generalizado


deste começo de ano que chega molhado ao Cariri, recordando
que colherão os que tiverem plantado, aquilo que plantaram.
Deixemos de banda outras observações intempestivas, talvez
próprias a épocas de sufoco, tais como: vale a pena ser honesto?
Aonde foram parar as virtudes? Todos ainda viverão felizes?
Quando? (Ficaremos atentos aos búzios, tarô, I Ching, astros,
cartas, em todos os canais).
A vaidade ganhou foro principal no enredo das maiores escolas,
tatuando as faces antes pálidas dos circunstantes. Por isso,
depois das experiências de vida que os mais idosos têm
comentado, o segredo hoje eqüivale a dosar melhor as
ambições e se conformar no pouco (que às vezes chega até sem
se esperar), pois a cada um de acordo com o mérito, lá onde
aquilo que é do bicho o homem não coma.

O PEDIDO

Contam que em lugar do sertão distante habitava um pobre


homem, sua mulher e três filhos menores, próximo de outros
viventes que moravam pelos estirões dos caminhos, em casas
simples de palha e barro. Ali existiam suficientes condições de
sobrevivência, desde que fossem normais as épocas de chuva,
dando-lhes da terra os gêneros.
Naquele ano, todavia, as coisas se apresentaram desfavoráveis,
porquanto o inverno não surgira no tempo próprio, esturricando o
chão e ressecando as matas.
Desde cedo, o casal se angustiou ante os riscos de romper longo
período a esperar sorte benfazeja. Assim preocupados, rezaram,
pedindo muito pela misericórdia dos céus e pelo futuro dos filhos,
motivo maior de seus padecimentos.
A sucessão dos dias anunciava crise inevitável, sendo
consumidos os derradeiros mantimentos e aumentada a
angústia. O que temiam afinal se deu; a fome chegou intensa e
as possibilidades de escapatória mostraram-se pouco prováveis.
No rosto das crianças, os primeiros sinais do abatimento.
Intensificaram-se as orações, qual única alternativa. A fé gritou
forte nas almas, que, por dentro, sentiram nos sinais as emoções
de serem ouvidas. Queriam tão só descobrir como a ajuda
chegaria para salvação dele, dos filhos e da mulher.
Certa manhã do período mais sombrio, quando abriram a porta,
numa surpresa, se depararam com boi erado, bem em frente da
casa, bloqueando o caminho dos que quisessem sair. A fim de
53

desobstruir o percurso, tiveram de insistir com o animal, que


retornava tantas vezes quantas deslocado.
Durante todo dia, foi essa a peleja, distração do ambiente
reinante com a seca, virando caso estranho, dado inexistirem
fazendas na redondeza e muito menos pasto suficiente a manter
bicho vivo.
No dia seguinte, iguais circunstâncias. Os meninos até puseram
nome naquele bovino, esforçados de tangê-lo a outro território,
missão na qual êxito nenhum lograram, pois, no outro dia, o
terceiro, ainda permanecia bloqueando a porta do casebre,
desconsolo do roceiro, levado a imaginar uma saída para salvar o
animal.
Resolveu, de comum acordo com a esposa, ir à cidadezinha,
jornada de várias léguas, no propósito de colher informações
sobre a rês e devolvê-la ao dono.
Agiu rápido. Chegou à povoação e perambulou onde, por certo,
levantaria notícias, porém nada descobrindo. Horas depois, meio
desvanecido, parava, forçando as idéias. Do outro lado da praça
divisou a igreja-matriz, em busca da qual se dirigiu.
Entrou no templo (quem sabe mais perto dos santos?) e,
chegando à sacristia, divisou a presença do pároco. Com
respeito, resolveu abordá-lo.
Explicou os detalhes do impasse, falou da insistência do boi em
não abandonar a família, chegando a interferir na rotina tensa em
que viviam.
Após demorado de alguns minutos em silêncio, o sacerdote quis
saber mais, se o interlocutor reivindicara, em suas orações,
alguma graça, algum bem, a Deus ou aos seus emissários.
Veio, então, na lembrança do caboclo a crise avassaladora que
defrontavam, a fome que sujeitava a todos, transmitindo as
agruras do seu lar.
De olhos no aflito sertanejo, calado permaneceu o sacerdote,
como juntando os elementos do relato. Em seguida, aconselhou
ao homem que voltasse e abatesse o boi para alimentar os seus
familiares, posto que se tratava do atendimento às suas preces.
Diante desse conselho, assim ele procedeu, ciente de haver
merecido dos céus um benefício, no tanto de suprir a fome e
espantar a privação.

O PEIXINHO DOURADO

Naquela manhã, o humilde pescador saiu cedo a procurar o


sustento dele e da esposa. Viviam na penúria, moradores de uma
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palhoça junto de bela enseada, onde o mar quase sempre lhes


trazia cardumes numerosos. Dessa vez, porém, a facilidade não
se repetiu. Jogou a rede muitas horas e nenhum resultado
positivo. Quando pensava em desistir, peixe dourado, de
reduzidas proporções, veio preso nas malhas do arrasto. Muito
pouco, no entanto, para suprir-lhes a fome. Nisto, ao segurar
entre os dedos o peixe, voz inesperada se fez ouvir:
- Meu bondoso pescador, deixe que eu permaneça vivo - as
palavras saíam claras da boca o minúsculo ser. - De nada sirvo
pelo tamanho que tenho. E, além do mais, posso ser mais útil
doutra forma, pois atenderei aos pedidos que o senhor me fizer.
Aturdido com a ocorrência inesperada, o pescador quis
comprovar aquela promessa. - Muitas histórias dão notícia de
coisas assim - ficou imaginando, - de gênios e outras maravilhas,
o que devem ter razão de existir. - Meio temeroso, de imediato
retrucou:
- Peixinho, me disponho a examinar o que dizes. Por isso pedirei
primeiro que, quando eu chegar em casa, encontre a mesa posta
com pratos dos melhores sabores. Caso isto ocorra, te devolverei
a liberdade. Disse e fez prumo de volta ao lar. Sua mulher,
eufórica, acenava da porta, vindo-lhe ao encontro; dizia que lauto
banquete os esperava.
Enquanto saboreavam os manjares, o homem contou o que se
passara. Daí trataram logo de preparar novo pedido. Iriam morar
no palácio mais bonito que houvesse na Terra.
Libertado o peixe, de acordo com a palavra do pescador, ele
passou a servir com fidelidade e constância ao casal, agora
habitante de um palácio de sonhos.
Na seqüência, a mulher pretendeu desfrutar do trono de uma
rainha poderosa, sendo nisso também atendida. Depois, quis
ocupar o lugar do Papa. O peixe, sem desobedecer, de novo
correspondeu à reivindicação que lhe fora apresentada.
Para quem antes vivera na adversidade, sob os cuidados
daquele peixinho misterioso a existência se transformara num
paraíso. Todo o tempo era pouco para aproveitar bem dos
inúmeros presentes recebidos. Notava-se nos dois certo acento
de fastio pelas tantas mesuras, pelos tantos primores ofertados
pelo amigo.
Belo dia, a mulher chamou o seu companheiro e lhe transmitiu
mais outro dos seus desejos imaginosos. Dessa vez superaria
todos os anteriores. Queria ocupar nova posição, desfrutar das
funções e prerrogativas supremas de ser Deus, o criador de tudo
o que existe.
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No início, o marido reagiu estupefato, pois, pelo equívoco da


pretensão, prenunciou os resultados que sucederiam face à
desmedida soberba da esposa. Todavia não reuniu as forças de
lhe contrariar, seguindo triste em direção ao peixinho, no lugar
habitual.
Chegou, esperou, esperou... Mas nada de peixe. Tão só o mar
silencioso acolhia os insistentes chamados. Outra vez o pescador
não voltaria a rever o servidor fiel. Cabisbaixo, sem planos, na
tarde cinzenta daquele dia, retornou à mesma casinha modesta
do início da história. Inobstante provara de um antigo conceito
que diz: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e
o que tem.

AS PORTAS DO ABISMO

O ser humano vive para responder a desafios, sendo esses ainda


mais variados nos dias atuais, desde doenças transmitidas nas
relações íntimas até as desigualdades sociais expressas nos
atos da violência urbana que predomina, sobretudo, nas cidades
maiores, sem, no entanto, isentar dos crimes bárbaros as
menores comunidades, em sua grande parte originados da falta
de formação moral, do índice de agressividade crescente dos
tempos dito modernos e da utilização indiscriminada de
substâncias bloqueadoras das funções da racionalidade.
Neste ponto histórico da nossa espécie, os exageros se
apresentam com tamanha dominação que muitos se deixam
abandonar sob o impacto desses desafios, quais meros escravos
das avassaladoras ondas de uma destruição perversa.
O senso crítico bem que pode prevenir a vacilação
comprometedora. Já partir da infância, os jovens devem dispor
de estrutura para superar o sugadouro em que se transformou a
cultura de massa, tendo no comando a televisão, espécie de
tóxico permissivo, de poderes inimagináveis, máquina do
desequilíbrio, outro tipo de droga, quase sempre usada de modo
equivocado para vender sensacionalismo, tolerada acima de
qualquer avaliação prévia.
Assim, dizíamos, os jovens têm de descobrir desde cedo como
criar firmeza para atravessar a longa jornada no planeta,
independente da opinião de terceiros, pois a vida é, na verdade,
uma missão individual, fora do juízo dos outros, considerando-se
a saúde mental como a peça chave do equilíbrio naquilo que
iremos cumprir no rumo da felicidade perene.
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Quando detêm consciência do que fazem, os moços procuram


agir com superioridade em relação a todos esses fatores
adversos. Põem-se a par do valor das coisas simples, dentre elas
a lucidez, construindo em si um sonho novo no coração, dentro
da realização futura, a esperança dos tempos.
O homem da atualidade possui limitadas condições de vencer o
mar tormentoso da droga, porém deve fazê-lo, custe o que custar
de sacrifício das vaidades, em nome de sua própria
sobrevivência, porque esta traz consigo a semente do amor e da
paz, respostas plenas de renovação de nossa espécie. Avalie
com carinho as suas perspectivas: mantenha sua sobriedade no
decorre da vida e verá como as reservas serão suficientes para
vencer a todos os desafios. Só então perceberá o quanto há de
sapiência nos mistérios da Natureza.

AS PROEZAS DO BICHO-HOMEM

- Você não quer saber de outra coisa, só como ficar vivo; -


palavras de Luetos Smith, um dos 450 mil refugiados de Serra
Leoa que fugiram da guerra em seu país, vindo ele para o Brasil.
Outras vezes mais e as mesmas cólicas sacodem a entranha dos
noticiários atuais, levando aos lares o fantasma do medo agora
globalizado, com espasmos de dor sem dimensão.
Um testemunho de observador do Vaticano que visitou a
província conflituada de Kosovo, invadida pelas tropas sérvias
procedentes da vizinha Iugoslávia, relata atrocidades
inomináveis, e chega a identificá-las nos seus aspectos
apocalípticos.
Desse conflito escaparam milhares de habitantes de origem
albanesa, estimados em 650 mil vítimas, que abandonaram
conquistas de muitos séculos. As causas desta perseguição
podem estar relacionadas a fatores de ordem econômica,
financeira, social, política, religiosa, histórica, racial, cultural, etc.,
no entanto nada justifica a destruição, o extermínio, levas
informes de exilados que se movimentam no seio da península
balcânica, péssimo exemplo de povos civilizados para o resto do
planeta.
Nos campos onde improvisaram barracas de lona para esses
infelizes que perderam bens, teto e famílias, localizados na
Macedônia, território próximo, as noites tornaram-se difíceis,
quando pessoas têm de manter vigilância permanente, vistos os
saques constantes de ladrões que furtam o pouco que lhes
sobrou. Fim do mundo e de toda cultura.
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Eis mais uma guerra na história da humanidade, talvez pouca


diferença fazendo, há de se pensar, não fosse a sofisticação dos
equipamentos utilizados, desenvolvidos a peso de ouro, com o
espólio da civilização. O que se nota através do olho mágico da
tevê: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN),
instituição criada pelos países ricos do Ocidente para fazer face
ao poderio bélico da antiga União Soviética, desde longe, do mar
Adriático, afastado 400km, disparam dos seus navios armas que
atingem alvos dentro e fora de precisão matemática,
exterminando pessoas de ambos os lados.
Daí, um impasse, ou se reduz o ímpeto de conquista do poderio
iugoslavo, pela saturação de mísseis estratégicos, ou deverá
ocorrer a invasão por terra com armas convencionais. Como
imaginar isso, depois das tragédias da Segunda Guerra Mundial,
Guerras da Coréia e do Vietnam?
Quem ganha e quem perde, em face de tais movimentações
bélicas? Nós, os seres humanos, que apenas perdemos, porque
ainda hoje não resolvemos quase nada dos problemas sociais da
raça sequiosa de domínio ilusório, olhos cegos de ganância, na
fome atroz do inevitável. Houvesse um mínimo de sensatez e
relataríamos feitos promissores dessa espécie que a Ciência
ousou denominar de homo sapiens, acreditando viesse dispor
melhor da capacidade que possui.

O REI DOS POETAS SERTANEJOS

Desde quando encontramos Patativa pela primeira vez


guardamos dele a imagem de pessoa dotada de compromisso à
altura do gênio que, depois, foi por todos reconhecido e
propalado mundo afora. Carregava consigo, no miolo do ser, um
verso renitente, a jorrar sobre as mesas festivas da Exposição de
Crato, inícios da década de 70. Falava, obstinado, de histórias,
bichos, flores, saudades sertanejas em ventania feroz de
sumidouro, qual profeta impaciente para desatar a vontade dos
lábios e da língua. Uma explosão efusiva de amargores dosados
nas alegrias das matas invernosas, mistérios mágicos do sonho.
Homem de personalidade marcada pelo pisar dos animais
sarracenos no medievalismo crônico do Nordeste.
Ouvíamos reverentes o som das rimas, para saber melhor de sua
vida, suas preocupações, reconhecendo-lhe a força hercúlea de
comunicador oral de verbo espontâneo e memória fotográfica.
Puro exemplo de que as palavras vieram bem antes da escrita,
na lógica estrutural das verdades naturais.
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Vendia os exemplares da primeira edição de Inspiração


Nordestina, feitos pela Gráfica Borsoi, do Rio de Janeiro, que
retirava de uma pasta de couro. Andava por entre folgazões
festivos, acrescentando sabor típico sertanejo ao momento da
feira de amostras, muito mais autêntica naquelas épocas.
Antes disso, Antônio Vicelmo já nos dera notícias do Poeta,
quando trabalhávamos no jornal A Ação, declamando os seus
poemas impecáveis, definitivos, quais Triste Partida e Engenho
de Ferro, entre uma e outra baforada dos seus cigarros brabos,
com entusiasmo que só mais adiante soubemos o motivo, na
expressividade individual daquele que tão bem os escrevera.
Estas ficaram sendo as primeiras lembranças do poeta de
Assaré, hoje patrimônio das letras nacionais, ora a completar 90
anos de apostolado contra a injustiça e o pacto de silêncio que
domina quase tudo neste mundo torto de muitos homens mornos;
respeitado como um sábio, monge dos tibetes daqui deste chão
carrascoso; artista popular que adota código pessoal de
gramática matuta para dizer das coisas que o coração lhe
fornece aos borbotões, sem falsa economia. E assim cresceu na
fama da cultura brasileira do Norte.
Depois, em 1975, fomos visitá-lo em seu habitat, na Serra de
Santana, onde Jurandy Temóteo, Paulo Tasso Mendes e eu
fomos conhecer sua morada de taipa e telha, sua família (fica-
nos a imagem meiga da esposa, dona Belinha), isso num tempo
feliz de inverno, com a vegetação promovendo espetáculo
variado, digno de se ver, com arbustos antes adormecidos nos
garranchos ressequidos voltarem cobertos de verde e turbilhões
de maria-preta, uma florzinha branca esverdeado claro,
característica da região, e o rosto daquela gente simples que nos
recebeu de olhos abertos e com afeição genuína.
Patativa se propõe, nos seus versos, a registrar tudo isso,
eternizar esse mundo belo abandonado pelos mandriões, déficit
resultante na vida do caboclo rude, homem honesto, trabalhador,
puro, de alma humilde, que se realiza no mínimo conforto, nos
prazeres mais modestos, esperançoso de eqüidade e paz, contra
a petulância cruel do signo da exploração fundiária em que se
vive sem outro jeito que seja, ou donde venha. E o dia chegará,
por cima de pau e pedra, na rolança das eras, nas letras sonoras,
nos cânticos do passaredo resistente que ele carrega dentro do
peito e reflete no espelho do nome que adotou, imortal deste
universo pujante do campo ao sol.
Tem viajado o País, arrastando uma perna manca, vista
deficiente (já cego de um olho, enxergando pouco pelo outro),
59

ouvidos roucos, idade avançada para essas gerações atuais,


sem canga e sem freio, no gesto de dizer com força, porém de
voz cristalina, tremida de emoção, sorriso e verdade, a convencer
quem escuta. Gravou discos, editou vários outros livros (Cante
Lá, que Eu Canto Cá, Espinho e Fulô, Balseiro, Aqui Tem Coisa),
sem falar nos muitos cordéis publicados, nas letras que outros
artistas musicaram e chegaram a sucesso; com ele fizeram
filmes e a televisão o tem como uma de suas estrelas.
Ficou importante, mas nada disso lhe modificou os hábitos
singelos de estradeiro fiel, respeitador de todos, amante das
musas brejeiras, que por muitos anos se hospedava na mesma
pensão modesta da rua Nelson Alencar, nos dias de segunda-
feira do Crato, gostando de sair pela cidade, nas vezes que vinha
visitar e alegrar os amigos.
O que somar ao que se conta de Patativa? Que tem aguçado
senso de humor, lucidez democrática, pensamento político
libertário, avanço nas idéias em favor das minorias segregadas,
intrepidez na palavra pitoresca de matuto; paisagens que ilustram
suas histórias, desvãos trágicos, na seca; crítica a esnobes e
tiranos; tudo isso ganha forma no caleidoscópio dos sentimentos
poéticos de Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, a
quem somos gratos de poder com ele conviver, neste trecho de
mundo; que eles, os poetas, resistam ao tempo e amarfanhem
muito mais amor no imo de todos os corações sensíveis de
possuir a humana dignidade deste exemplo.

REPÚBLICA VELHA

Era dia da eleição municipal e o sítio São Bento teria pela


primeira vez sua mesa receptora de votos; isso graças à
interveniência prestigiosa prestimosa do major Filemon, político
de renome e dono das terras, que desde cedo pedira dos fiéis
agregados seus respectivos títulos.
No decorrer da votação, se oferecia lauto banquete movido a
muita farofa, cozido e pirão, para apascentar os eleitores que
chegavam dos rincões adjacentes. Um boi fora morto e, logo no
claro do dia, acesa a fogueira. O terreiro da casa grande, no
sombreado das jaqueiras, virava improviso esperto de sanfona,
triângulo, zabumba, pandeiro, para onde todos acorriam, sob a
atenção do cheio enfumaçado da carne ciando na brasa. Alegria
de ninguém reclamar. Gente fagueira, animada. Bebida pelo meio
da canela.
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Assim transcorreram manhã e tarde, sem quaisquer


inconveniências. Caboclos, tão de raro bem servidos,
observavam o movimento da sala de visita, onde se instalava a
seção com a urna e os mesários. O encarregado da fazenda, da
varanda, acompanhava a função lá fora, mantendo o ritmo,
controlando excessos, fazendo as amarras nas conversas e
suprindo os pratos vazios. Pouco se falou em disputa de
candidato, no calor de tanta fartura. Menos ainda se tocou em
eleição, no que pese ser data de sufrágio.
E lá pelo pôr do sol, quando teve até eleitor refugando toras da
melhor carne, veio o rapapé de despedida por parte do senhorio,
avisando a todos da hora de ir. Compareciam fagueiros o Major e
dois secretários, trazendo os títulos para devolver aos donos:
- Bom, pessoal, terminada a eleição, vai vir o apurado; no tanto,
de hoje já deu tudo certo. Espero que ganhem os melhores e
estarmos vivos na próxima vez. O dia se foi e com ele vão vocês
às suas casas. Boa noite, boa sorte!
Quando isso acontecia, Zé Chico, vaqueiro graduado, valente
nas quebradas e famoso no aboio, de bico melado e fogo aceso,
resolve dizer que sentia falta mais alguma coisa. Pigarreou, fez
da fraqueza a força e resolveu desembuchar o que lhe
encasquetava o juízo:
- Coronel, inhô sim! - gaguejou nos começos, ainda que sentisse
a coragem da cana, - tudo correu dentro dos conformes, no dizer
do senhor. Mas, antes de ir, preciso saber duma resposta.
O Major esquisitou a posição do caboclo, advindo de quem
procedia, sujeito dócil, conformado. Jamais imaginara, naquela
gente, estilo mais firme. Agüentou mais um pouco, avaliou
atitudes e viu ser melhor decidir logo a pendenga, falando em
seguida:
- Venha de lá não, Zé Chico. Explica de perto o que ficou te
faltando, pois precisamos fechar a urna e levar ao juiz.
- Seu Coronel, só careço mesmo é de saber em quem foi que
votei nas eleições desse dia.
- Pode não, meu vaqueiro, isso nunca. Pois se ainda não sabes,
posso agora te dizer, por ensino; numa democracia, o voto é
coisa secreta. Daí eu não poder dar a resposta que me pedes.
Boa tarde!

O QUEIJO

Naquela manhã de segunda-feira, os primos Henrique Costa e


Rosalvo Salviano, ambos proprietários de fazenda de gado e
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vacaria, se encontraram no Banco do Brasil, agência de Crato,


onde o primeiro, doublê de bancário e dentista, recebe do outro
proposta de financiamento pecuário, nos bons tempos em que
havia incentivo aos pequenos e médios produtores na agricultura
brasileira.
No decorrer da entrevista, Rosalvo aguça os instintos
gastronômicos de dr. Henrique quando descreve os itens de sua
produção, indicando a fabricação de queijos com até 15kg, que
vinha fazendo com o leite do seu rebanho.
- Uhhhh! - retrucou animado o bancário, afastando de lado a
máquina de escrever. - Veja, Rosalvo, eis aí um produto que
gostarei muito de ter em casa, lá na mesa da sala-de-jantar, nem
que seja apenas para conhecer.
Cabisbaixo, desconfiado, Salviano retribui a observação,
abreviando detalhes:
- Bem, Henrique, se quiser a prensa desse queijo, posso
emprestar. Tenho duas, e devolverás quando tiver usado. Ficará
ao teu dispor.
Ali mesmo esfriou a prosa sobre o famoso queijo; papéis
assinados; dinheiro liberado; e nada se comentou além das
coisas normais quanto ao financiamento.
Na feira da semana posterior, de novo os dois se deparam,
noutro feliz reencontro. Conversa vai, conversa vem, animados,
chegam ao assunto da segunda passada, o tal queijo de 15kg,
aspiração de Henrique Costa. Rosalvo foi quem primeiro lhe
ativou a lembrança:
- Sim, Henrique, quanto ao queijo sobre o qual te falei e
demonstraste interesse de conhecer...
Pensativo, Dr. Henrique fitou o primo, a esboçar, no entanto,
calculada indiferença, maquinando responder o desafio. Quis
falar, sem lograr êxito, vez que Rosalvo ainda acrescentou:
- Achei que devesse oferecer a prensa para tu mesmo produzir o
queijo porque essa nossa família tem um costume esquisito,
guarda o que é seu para comer o que é dos outros.
Dessa maneira, deram por concluído o assunto, buscando seus
destinos, uma vez que o dia de feira apenas começava, sempre
cheio de muitos compromissos.

REGINA

Fui vê-la duas vezes, na casa de uma prima, onde residia em


Crato, à rua Getúlio Vargas. Da primeira vez, levava comigo
encomenda do padre Vieira, uma carta. Ele dissera no telefone
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que eu deveria conhecer Regina, e que mandava essa carta aos


meus cuidados para que fosse procurá-la. Assim aconteceu.
Recolhida a cadeira tipo preguiçosa, estatura mirrada, retorcida
no próprio espinhaço, de cabeça pendente, sem o domínio das
pernas, quase nula dos braços, resistia viva há mais de 40 anos,
sob o auxílio de parentes queridos.
Conversamos pouco, apenas o suficiente para promessas de
futuros reencontros, o que demorou alguns meses até a segunda
vez, numa manhã, intervalo cronometrado das obrigações,
margem suficiente a diálogo amistoso e, de sua parte, longa
narrativa quanto à sua história pessoal.
Nascera de mãe pobre, habitante das margens do rio Grangeiro,
proximidades da zona urbana, imediações da atual ponte das
Piabas. Sua mãe namorara incerto homem casado, de família
relevante, chegando a engravidar, motivo da vergonha dos avós,
que só aceitaram a criança máxime a beleza rara da qual viera
dotada, trazendo luminosidade a quantos desfrutavam do seu
convívio. Garotinha linda, corada, alegre, dada com todos.
No entanto, dos tais no entanto das histórias humanas, vizinha
de sítio, avó de outra criança bem menos aquinhoada, se vira
contrafeita pela existência feliz da pequena, destilando o
sentimento nefasto da inveja, a princípio dissimulado.
Certa tarde, enquanto a mãe de Regina fora à bênção, na Sé
Catedral, avó e neta, ainda de berço, desciam ao rio para pegar a
roupa estendida no coradouro. Durante alguns momentos, a
criança permaneceu apenas sob os cuidados da vizinha, porém o
suficiente para dela receber golpes vigorosos, aplicados com
porrete de madeira que se usava no bater da roupa. Muitas e
violentas pancadas, dirigidas mais às costas do bebê, na trilha da
espinha dorsal.
Ouvidos os gritos, apressada retornou a avó, nada notando que
considerasse incomum. A mulher disfarçara muito bem o crime
cometido. Nos dias imediatos, arrumou troços e mudou de
endereço. Quando os familiares perceberam o acontecido, era
tarde demais; na ação perversa, a vizinha inutilizara quase por
completo o sistema motor da criança.
Alguns anos adiante, num dia de feira, as duas avós trocaram
opiniões sobre o ocorrido naquela tarde. Os argumentos da
vizinha invejosa demonstraram-lhe a completa inocência,
ignorava tudo sobre a perversidade cometida, no que diziam suas
palavras.
Regina cresceu doente, prostrada como a conheci. Segundo ela,
tempos depois, quando na idade adulta, numa madrugada, sem
63

ao menos saber da morte dessa senhora, acordou avistando


intensa luz dentro do quarto em que dormia. Nessa claridade,
acompanhada de vento forte, divisou nítida a figura de uma freira,
de rosto ameno, sorriso nos lábios; ela, então, perguntou a
Regina se poderia perdoar a quem tão cedo lhe ofendera,
roubara sua saúde, seus movimentos. Pensou um pouco, avaliou
tudo, seu passado difícil, lembrou-se da mãe, dos avós, já
desaparecidos, e de Deus. Não viu por que guardar mágoa,
rancor, nem sede de vingança.
- Perdôo, sim - respondeu.
Daí, num crescendo, principiou a ouvir bem longe voz sofrida que
pedia: - Regina, me perdoa? - E veio se aproximando a repetir
igual pedido: - Regina, me perdoa? - A cada repetição, ia
respondendo: - Perdôo... Perdôo... Perdôo...
A voz veio chegando. E ouviu quando alguém abria o portão de
ferro do jardim, se aproximou da porta da frente, refazendo o
peditório, silenciado no instante em que caiu em prantos; de novo
ficou tudo calmo e o silêncio voltou à madrugada.
De minha parte, escutava atencioso toda a história. O tempo se
completara e me despedi emocionado. Fiquei de voltar outras
vezes, houvesse oportunidade.
Naquela que seria a terceira visita, fui surpreendido, por quem
me recebeu, com a notícia de que fazia um mês que Regina
deixara este mundo. Assim, além de lembrar do seu aspecto de
pessoa conformada com o fiapo de vida que vivia, dela tudo o
que guardei ficou narrado acima.

REVOLUÇÃO

A madrugada ia alta quando o 23.º Batalhão, estacionado em


Sousa, mantenedor da legalidade na fronteira da Paraíba com o
Ceará face às movimentações revolucionárias de 1930, teve sua
aparente calma rompida pela aproximação de um automóvel que
adiantava as definições do conflito. Logo na chegada, parando o
veículo, Juarez se dirigiu à sentinela, transmitindo ordens para o
oficial da guarda.
- O batalhão se acha rendido, quero disso assegurar - foi
dizendo. - E avisem ao comandante que vim receber o posto;
espero urgente resposta. A guarnição deverá, pois, a partir de
agora, obedecer às minhas determinações.
Sem demora, aquela mensagem seguiu até a casa do comando,
na praça ao centro da povoação. Bem nesse instante, frio
metálico percorreu a espinha dos combatentes, qual rastilho de
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pólvora, enquanto a aragem cortante ritualizava as bordas do


alvorecer sertanejo. Era a gravidade do momento em via de uma
definição histórica, após dias angustiosos de longa espera.
Desperto no roldão da tempestade, o militar agiu rápido a compor
o fardamento, meio tontos de sono, corpos oscilantes, envoltos
no clarão fumacento das lamparinas dependuradas no teto.
Agitação desusada sacudia os homens.
Na sala de visitas, o titular da tropa, olhos baixos, semblante
grave, refletia a extrema situação. Reunira todos; impunha-se
uma decisão frontal: entregar armas, apanágio dos guerreiros, ou
ao máximo resistir.
Depois de analisadas as circunstâncias, foram ouvidos, sem
exceção, os que restavam presente. A tendência de rendição
parecia inevitável, quando, num ímpeto, a voz rouca do oficial de
comando se fez ouvir:
- Não tenciono me render; ouçam isto como à minha palavra final.
Tem outra coisa além dessa; vou explodir o paiol - em Sousa
ficava situado depósito de munição suficiente para causar danos
num raio de vários quilômetros, caso fosse pelos ares. - Quem
quiser me acompanhar, verá isso agora mesmo.
Falou e, de pronto, se ergueu no prumo de um dos cantos do
cômodo escuro, onde duas latas cheias de gasolina mostravam-
se à disposição pretendida. Debalde procuraram os outros
milicianos dissuadir o comandante de qualquer gesto
tresloucado, ainda que em vão resultassem os esforços, talvez
pela falta de habilidade, dir-se-ia; assim, não o dominaram no
suficiente para impedir outras atitudes suas. Ele, armado de dois
revólveres, abriu de chofre as rótulas da porta principal do
casarão, saindo a esmo na busca dos inimigos. Juarez Távora e
os demais, que juntos vieram, colhidos na surpresa, efetuaram
carga de sucessivos disparos, sendo o militar atingido pelo fogo
de resposta e levado exangue ao solo já avermelhado nas claras
do dia alvorecente.
A viúva desse soldado, residente em Fortaleza, ao receber
telegrama que o dizia preso após rendição sem fogo, ignorou a
notícia, observando conhecê-lo o suficiente para saber que
jamais se entregaria vivo; e admitiu haver sido o marido morto
numa ação de combate, como aos bravos acontece.

RIO PRETO

Nordeste. Princípio do século XX.


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Durante algum tempo no comando de quase uma dúzia de


capangas desalmados, promovendo as piores estripulias no
sertão paraibano, o facínora deixara crescer a cabeleira, tendo se
homiziado em uma cabana no meio da mata, em serra das
proximidades de Pombal. Tipo cabo-verde, de cor morena e
cabelos retintos, escuros e lisos, merecera o cognome de Rio
Preto, título que significava o maior flagelo da região.
Homens altivos, no entanto, mantinham suas posições de mando
e não se deixavam abater pelos abusos, qual padre Amâncio, a
quem foram dirigidas afrontas indiretas até o dia em que os dois
vierem de se deparar face a face numa estrada variante e o fora-
da-lei tudo que fez foi descer da montaria para pedir a bênção ao
respeitado sacerdote, fazendo lembrar célebre episódio que um
dia se dera entre Átila, rei dos hunos, e o Papa, segundo a
história.
Noutros casos, todavia, esse comportamento desatinava,
causando pânico à sociedade rural daquela época. Sempre que
casava alguma moça na redondeza, fosse de que família fosse, o
bandoleiro mandava dizer que iria buscá-la para passar uns dias
em sua companhia. E desse modo ocorria. Chegava mesmo e
pronto, pois com ele ninguém dispunha de regulamento. Era a lei
dali.
Foi sob esse império de desordem que João Leite, destemido
representante da mais tradicional família da localidade, resolveu
casar. As ameaças do celerado, no entanto, não lhe modificaram
os propósitos. O desaforo da promessa se verificou igual às
outras ocasiões. Marcado o casamento, Rio Preto mandou dizer
que aguardassem sua vinda para buscar a noiva, predestinação
de sórdido risco.
Houve o casamento, muita festa, muita pompa, tudo dentro das
formalidades usuais, porém sob o clima da afronta que se
desenhava. No dia seguinte, ainda no escuro da madrugada,
dirigiram-se os nubentes à casa do sogro e nas mãos deste ficou
depositada a segurança da filha, já esposa zelosa e querida. O
preocupado noivo despediu-se de todos e rumou sem mais
delongas de volta ao lar.
Os planos haviam sido bem elaborados. Dois reluzentes
bacamartes boca-de-sino aguardavam carregados até a boca, no
quarto dos fundos, junto de cangalhas e rolos de fumo curtidos
ao sol. O recém-casado e um irmão seu executariam a missão
arriscada de defesa da honra familiar. Arrearam os cavalos,
conferiram a munição e chisparam no rumo do sítio do inimigo.
Na lua-da-sela os instrumentos letais.
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A casa dominava uma clareira. Na época invernosa, via-se


cercada de mata-pasto de meia altura, coisa normal em torno dos
terreiros sertanejos. No oitão, ficava a janela do quarto onde
dormia a temida personagem, sendo hábito seu, e do
conhecimento dos dois irmãos, a cada manhã nela se debruçar
para apreciar o tempo, expondo no dia o semblante agressivo,
envolto na vasta cabeleira que lhe alcançava os ombros, em
cachos desgrenhados, aspecto sinistro, mais para fera do que
para gente.
Quando abria a janela, nessas ocasiões matinais, dava um
guincho estridente, feito de animal selvagem.
João Leite e o irmão, pressentindo os habituais movimentos,
postavam-se justo em frente da janela, encobertos no trançado
de arbustos, medida suficiente para não serem notados, quando
o bandoleiro botou de fora o corpanzil e liberou o guincho
característico. Nisto, ouviu estrondo enorme que lhe feriu em
cheio bem no centro do peito, toldando de fumaça a vegetação e,
de inopino, assustou a passarada.
Frente ao impacto do tiro, como que por mero instinto, Rio Preto
saltou a janela e correu mata adentro, desvairado de dor, indo
arfante concluir sua agonia num dos pontos mais altos da serra,
proximidades da casa.
Quem passar por Pombal pode perceber visível o morro onde,
segundo consta, existe cruzeiro para identificar o local em que
vieram encontrar depois os restos do feroz bandido.

SABENÇA DE CABOCLO

Talvez por pretender contrariar o princípio de que cavalo ruim se


vende longe, Chico Ivo tratou de camuflar muito bem a
deficiência do animal com a implantação, mais do que perfeita,
de outro belo rabo no baita cavalo luzidio, untando com esmero
uma mistura gosmenta de breu e cola de marceneiro, disfarce
primoroso da lisa vassoura de longos e selecionados fios.
Junto do cotoco, implantara a nova cauda, recolhida de outros
bichos no decorrer de longos meses, cabelo a cabelo, que de
firme mostrava-se suficiente para confundir os maiores
especialistas, como deixará provado. Concedia, inclusive, ao
eqüino ginga do tanto de esboçar ligeiras e saudosas abanadas,
qual nos velhos tempos inteiros.
Bom, foi assim que resolveram desafiar o furdunço da feira de
Lavras da Mangabeira, buscando o pátio dos bichos, onde não
67

teve mesmo quem viesse de notar a gauribagem. Tudo limpo no


céu do meio-dia.
Interessados não custaram a aparecer com suas pretendências e
propostas. Examinavam o cardão de cima abaixo, coleando a
pelagem, friccionando o lombo, sempre cuidando de olhar
dentes, cascos, orelhas, na mania dos espertos. Porém foram, de
verdade, os ciganos que primeiro se fixaram na intenção explícita
da compra, seguindo logo, logo, saber do preço.
Conversa vai, conversa vem; regateia daqui, regateia dali;
negócio realizado. Cabresto na mão, dinheiro no bolso, e
satisfeitos, certos de uma boa transação, restava aos
negociantes pegarem estrada e buscarem o destino da tropa nas
estradas poeirentas do sertão.
...
Passadas algumas luas no ritmo obediente das coisas naturais, a
tranqüila cidade mudara quase nada em meio à falta de
acontecimentos marcantes.
Lá noutro dia, noutra feira de grande movimento, gente muita,
muita animação comercial, difícil até de se achar quem se
procura entre as tantas caras, eis com quem Chico Ivo se
defronta, de imediato reconhecido... Com os mesmos ciganos
que lhe haviam adquirido o cavalo. Vinham de longe acenando,
amarrando o encontro inevitável:
- Ganjão, ganjão! Aguarde um pouco que seja.
- Não quero nem saber, - reagiu enfático o antigo proprietário do
animal, - negócio feito ninguém desfaz. Fechado está, assim
permanecerá.
E quão admirado ficou da resposta que lhe veio do cigano à
frente dos demais:
- Se despreocupe, ganjão. Nosso objetivo é outro. O que passou
está atrás. Viemos aqui foi lhe fazer uma outra proposta, a de
que o senhor aceite, a partir de hoje, seguir com a gente e chefiar
nosso bando.

SABER (QUERER) FAZER

- Se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia, - eis o brocardo


popular que define, dessa maneira, velho tema, na busca de falar
naqueles que muito informam e pouco realizam, à espera de que
outros valorizem as palavras, salvando a festa de suas opiniões.
Mesmo em sendo desta forma, queremos aqui falar da teimosia
como norma predominante na nossa espécie, onde a qualidade
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deixa tanto a dever aos padrões da esperança que ainda resiste,


apesar de tudo.
O cidadão age de modo perverso contra si e contra a sociedade,
viciado nas práticas nocivas, e, quando recebe o castigo que
merece, reage às tontas, qual fosse mero joguete, nas areias do
destino. Raros aceitam as conseqüências das próprias obras de
ânimo altivo, pronto.
Em cima disto, torna-se tarefa ingrata conduzir pessoas por
caminhos outros que não os indicados pelos juízos individuais.
Todos se acham dotados das melhores intenções, até receberem
o troco de atitudes pouco recomendáveis, razão da lei de retorno,
onde a semeadura é livre, mas a colheita obrigatória.
Inúmeros registros verificamos daqueles que apostaram a alma
nas empreitadas funestas e se fizeram vítimas do direito de
fracassar, que nem lesmas coladas no visgo que desprenderam.
Lambem o mel e refugam o fel, na maior sem cerimônia.
Aqui bem que cabe um no entanto, vez que essa típica
temeridade de nossa raça completa o impulso que se possui de
andar para a frente do jeito quer a coisa vem, absortos em
racionalizações fora de hora.
Quando aprimorado pelo sentimento religioso, esse instituto
recebe o nome de fé, palavra pequena de dimensões infinitas, a
mover corações a favor dos ventos eternos.
Quer-se transmitir novas bases aos perdidos, levando-os a
íntimos mergulhos de consciência. Falar é fôlego, retrucam
alguns, os renitentes empedernidos, lustrando as muletas do
equívoco nas filas do desespero, pois o balanço traz de volta
números e resultados em forma de sofrimento...
O conselho a ser posto passará por três fases sucessivas, quais
sejam: saber, querer e fazer, que podem determinar uma ação
contínua, na chamada decisão de imediata: saber querer fazer.
O agir torna-se imprescindível a qualquer mudança, contrapondo-
se à resistente barreira da pura teoria, apontando para uma
verdade concreta. A coragem de pegar da cruz individual e seguir
o Mestre ficou para poucos. Enquanto isso, difícil jamais quis
significar impossível.
Saber, porque o início de jornada requer orientação precisa, o
para onde, em qual direção. E que muitos pensam saber. A
qualidade da boa estrela alarga o caminho, quando aceita de
bom grado e de modo proposital, visto ser este o agente da
reação libertadora.
Querer, passo seguinte, na hora de optar pela comunhão de
pensamento e sentimento, na focalização das energias centradas
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em meta conhecida. No querer funciona a matéria-prima do Eu,


livre das amarras externas.
Fazer, a oração da vida em movimento, na produção dos
resultados pretendidos, sem as contradições da aparência.
Nesse momento transformador, os frutos ganham consistência e
geram novas sementes, realimentando o ritmo, em crescendo
rumo a fatores definitivos, pela revelação de novo ser, partejado
na luz do Ser Primordial, onde calarão os questionamentos
transitórios da vida.
Isso tudo ao sabor da liberdade multiplicada em muitos juízos
pessoais, pautas virgens da composição universal.

SEGREDOS VULGARES

Os limites extremos da jornada impõem resistência à imaginação


dos que avaliavam possibilidades eternas no ritmo do progresso,
ora retido na garganta do abismo. Camadas intransponíveis
mantêm o cenário onde a peça ocorre dentro de padrões
corretos; pouco importam os equívocos do programa espacial
sem objetivo lógico, porque poderosos batem martelo no apurado
das riquezas periféricas.
Nenhuma novidade em tudo isso; muitos comentavam sobre a
chance política da transformação através dos métodos coletivos,
contudo carecia haver pacto abrangente no comum das tribos,
renúncia dos interesses de pessoas, o que não aconteceu, face
ao apego patrimonial dos grupos nacionais.
Depois, o domínio das elites adotou o avanço tecnológico na
manutenção do estado de coisas, sob a supervisão de
inteligências treinadas e vocacionadas a peso de ouro.
Falar em esperança, vida, liberdade, igualdade, deixou de
ameaçar os plantões internacionais do poder, que trabalham em
silêncio esquemas de neutralizar, com dócil facilidade, instintos
secundários. Índices calculados aprofundam o traço da
obediência pela força invisível das instituições; esses valores
agora mereceram significados inversos; consciência de massa
ocupa o lugar privilegiado que cabia à consciência clássica.
Igualdade virou horizontalidade.
Assim, o idealismo naufragou no meio do temporal, resultando
em mera personagem de livros velhos. O equívoco maior da
atualidade vem a manufaturar sonhos que contradigam as
normas correntes; tudo age para nutrir a rede que controla
mentes e atitudes; a posse da informação domina as multidões,
sem competidor; absolutismo total.
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Esses raciocínios dizem do sentimento supérfluo no processo de


absolvição que se estabeleceu, espécie de Nuremberg às
avessas, quando culpadas serão as vítimas, pela falta de senso,
ou até de coragem, depois que esgotou o prazo em que votar
poderia ter resolvido o contexto e ninguém adotou esse querer,
jogando ao vento ocasiões favoráveis. Os trapos da saudade, no
entanto, guardam seus microorganismos no coração, onde se
procurará descobrir mistérios, mais tarde ou mais cedo.
Nessa era das muambas, salve-se quem puder da sedução
cibernética, sobrevoem andorinhas, cegonhas, pombos,
testemunhas fugazes da História, numa balada medieval
monótona e crescente, a rasgar cortinas de horas, olhos que
ardem na fumaça de chuva miúda, florestas arrasadas, sons
altos; nem as parabólicas detiveram da ruína a televisão.
Bocado espúrio esse que amarga entre os dentes e a goela;
cupins já trituram o lixo atômico à procura de copos descartáveis
e sacos plásticos; no rodeio mais próximo, a cerimônia do adeus,
que bem pouco demora para começar, pois, nas auto-estradas,
os primeiros engarrafamentos prenunciam enchentes polares.
A festa deverá prosseguir, por isso armazenem alimentos nos
lugares altos, ajustem máscaras, apertem cintos, mastiguem
chicletes; no ar, zumbem as naves azuis dos profetas; árvores
perderam galhos, folhas, flores, frutos, como seria de se esperar;
os troncos calcinados emitem réstias de luz flutuantes nas ondas
geladas, enquanto filas imensas se arrastam, pés doloridos, nos
sulcos de tanques perdidos na escuridão.
Um sopro de euforia domou o touro manhoso que volta para
casa, ainda com estrelas no céu de primavera, ao clarão das
madrugadas.
Medo jamais ocupará espaço na alma que a tudo sobreviverá;
vagas notícias da liberdade definitiva vieram de uma ilha do
Atlântico, porém a custo impagável, preço de teimosia que
cobrou caro, demais da conta; razão dessas medidas
bloqueadoras dizem caber à manutenção dos exércitos que
conservam a paz em latas de entulho, tamanho da geral
imbecilidade. Crer ou descrer, a quem compete? Rolos de fitas
virgens espalhados na praça indicam a vinda das autoridades, no
fim do dia, para completar a filmagem do roteiro obrigatório; e, na
mais ardente das vaidades, dirão a que vieram; bilhões de reses
famintas, esquecidas no pasto, chegarão quase em cima da hora
para aplaudir tal julgamento.
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Falta pouco, bucha amolada no passado e nada de arcaico


sobrará. Do monturo, nova gente vem surgir. Felicidade, há vida
no seio do coração de cada um.

O SENSO PRÁTICO DA RAZÃO

Mundo moderno. Primeiro expediente de uma segunda-feira


qualquer; metrópole subdesenvolvida. Aos borbotões, saltam
passageiros dos coletivos de linha suburbana chegando ao
centro nervoso. Odor de fritura no ar e não-sei-quê gerundial que
move pernas, marcha batida de pelotão informe; portas, ladeiras,
elevadores; pontes levadiças, túneis, escritórios; telefones,
aeroportos, fábricas. Frenesi esfumado na faísca dos motores
doutra semana produtiva; estafa industrial, comercial, econômico-
financeira.
(A ideologia dominante permite poucas variações estéticas
quanto à descrição desse quadro urbano. Face à ausência de
alternativa, coube aos indivíduos apenas o direito de sobreviver.
Num lado, as exigências materiais da lei das espécies. Em outro,
a pressão totalitária do sistema).
Quando se pensou em conquistar a liberdade, o próprio fator de
organização e limitação dos instintos se encarregou de refrear a
vastidão do sentimento, antepondo as motivações de Estado
para comprimir o território da sociedade, em detrimento dos
sonhos particulares; tudo sob domínio aritmético bem calculado
pelas elites de poder.
Homem livre tornou-se, portanto, o mito predileto dos folhetins, o
herói angustiado das revoluções frustradas, nas quais vem
sempre de doar a cabeça, olhos fixos nas visões sonhadoras de
alcance impossível, presa exaustas, repasto da besta rotineira da
civilização. No máximo, pode grunhir, mostrar presas, deixar de
cortar cabelo, desregular juízo, não tomar banho, não rapar a
barba, nem escovar os dentes, protestos rudes que sobram aos
freqüentadores dos bares e casas de tolerância.
(Sabe-se à fartura que por trás de cada decisão ponteia um
comando, no esforço de tanger o rebanho ao fosso da usura,
alimentador de naves fantasmas, inúteis, enquanto autores
caldeiam o tacho fora das vistas de seus cães de palha,
protegidos pelo biombo da riqueza tecnológica, detida a sete
chaves, nos torreões monumentais dos castelos de vidro e metal;
montanhas escarpadas, ao longe, encobertas de bruma, faces da
enorme pirâmide).
72

No entanto, mesmo assim existe o senso prático da razão,


instrumento afiado, pontiagudo, espada rija de corte, indicada
aos espaços vulneráveis da couraça, com poderes ditos mágicos,
suficiente à transformação por que terão de passar os guerreiros,
único meio de vencer o arbítrio. Muitos chegam a julgar
improváveis outras chances, quando o nefasto invade recantos
vitais.
Agir com firmeza e retidão, tal devem andar os espíritos, cientes
de onde chegar: à Luz da Consciência, percurso da realização,
dentro de atitudes pessoais claras e objetivas.
(Quase meio-dia; sábado seguinte. Finda o expediente e os
zumbis voltarão aos seus ninhos, feitos aves de poema. Ideologia
não é o mesmo que doutrina política e se tem de repousar de
outra semana inglesa; dias vazios, ocres; noites longas, insones.
Saúde um tanto esquisita, mantida a preço de mercado. As
plataformas dos trens sempre cheias; movimento constante e
rostos anônimas. Querer, na hora exata, encontrar o próprio trilho
dentro de cada pessoa - eis tudo o que se pode falar, por
enquanto).
Vão longe os meses quando disseram ser possível a vinda de
bom tempo, mas nem por isso nos sentimos menos fortes para
seguir a jornada.

SONHO

Ainda sinto os calafrios e a sensação de secura entre a boca e o


estômago que me levaram a beber água, quando voltava do
banheiro, acordado que fora no meio da noite, susto de um
sonho esquisito. As imagens dançavam bem nítidas no foco do
pensamento.
Ficaram gravadas duas cenas que sintetizam essa história. Quis
avaliá-las o quanto antes, embora achando pudesse deixar para
mais tarde, em outra ocasião; no entanto algo me trouxe até aqui,
considerado o tom emocional de que se revestiu o assunto,
fazendo-me responsável pela transmissão do apelo, qual
proveniente de seres acuados noutro plano, de um espaço
possível de existir para lá até da própria imaginação.
A primeira das cenas, lembro-me com clareza, era uma
perseguição contra o rebanho inteiro, estabelecida por cão
amarelo-avermelhado, de pelos longos e escorridos, raçado com
lobo. As ovelhas desesperadas corriam em grupo, levando de
eito o que vinha pela frente, em meio aos arbustos de mata
conhecida, situada no outro lado da represa principal do açude
73

grande da fazenda, como também conhecido o cão. Tratava-se


de animal da infância distante, pertencente a tio que vivera parte
de sua vida no sítio, a sede do tronco familiar, onde eu nascera e
passara os verdes anos, cenário de nossas férias de meio do
ano. Os bichos, uma das lembranças mais queridas.
Agora escuto outra vez, na memória, as notícias que delas dava
meu pai, na volta das viagens, suado, empoeirado de 18 léguas
na rodagem de terra, ao tempo em que fora o principal
responsável pela manutenção à distância dos bens que ficaram
para trás, entregues aos poucos moradores que restavam, após
nossa mudança para a cidade, na busca de melhores chances. E
só hoje percebo a severidade dos acontecimentos.
- A onça está acabando com as ovelhas, - falava. - Onça ou os
cachorros da redondeza, ninguém sabe dizer o certo.
Apenas minha mãe esboçava alguma reação. Queria colher mais
informações. Pedia providências. Sentia por todos nós, os
meninos assustados. Sofria perante o sumiço gradual daquele
mundo que deixáramos na réstia do passado. Para mim, algo
inexplicável, inevitável, envolvido que me achava nos tampos de
outros desafios, procurando tecer o futuro.
A outra cena, bem mais forte, talvez seja o motivo de sentar e
escrever todas estas linhas, para concatenar detalhes, encher o
texto e dividir com outros o que me veio ao sentimento.
Aproximava-se de uma janela envidraçada onde nos postávamos,
eu e outras pessoas da família, a ver a mesma mata em que
corriam as ovelhas, na cena anterior, um casal de seres meio
gente, meio carneiro, faminto, acossado pela perseguição, a
fêmea enlaçada por trás ao pescoço do macho, ambos aflitos a
nos olhar como de fora da vidraça intransponível, num pungente
pedido de socorro, instante em que fazíamos apenas por
abandoná-los à própria sorte, vistas circunstâncias adversas para
resolver de outra maneira, dada a incapacidade que funde o
bloco das soluções impossíveis.
Apenas carneiros... Que, naquele sonho, quiseram ser mais,
perdidos entes guardados no lugar dos sonhos, parte de um todo
que depositei na casa do sem-jeito, voltados inteiros da
civilização em extermínio de mundo onde vivêramos juntos, ao
carinho da Natureza: os açudes, o engenho, o canavial, a igreja,
a casa grande, a bagaceira, as cercas de vara trançada, arame e
madeira de pau a pique, os pássaros, as moagens, o brejo,
nossa casa, as casas de taipa dos moradores, nós, as chuvas,
os tabuleiros, as roças, as frutas, o curral, as fantasias, as festas,
os chiqueiros da criação, as matas, as árvores maiores, os
74

bichos, a estrada de barro vermelho, por onde apreensivos


sairíamos um dia. Tudo aquilo que só o tempo me ensinou a
gostar muito, na saudade, e vim a qualificar de ecossitema, termo
adquirido na cultura urbana, quando busquei justificar a
obrigação do exílio.
O sonho-retorno em duas fases distintas, tão contundentes, virou
apenas isso de montar idéias, a fim de partilhar com mais alguém
a emoção avassaladora daqueles dois seres condenados, num
instante solene de extremo protesto, por se saberem entregues a
feras famintas, sem que nada de concreto tivéssemos feito para
preservá-los (todos do rebanho desapareceram, algumas vezes
consumidos por nós mesmos, na forma de cozidos, buchadas,
paneladas e costelas secas, nas temporadas de férias ou nos
retornos de meu pai). A impressão foi de havermos devorado
pedaços de gente, que nem antropófagos.
Animais bem nossos amigos... como sendo gente, chego mesmo
a admitir.

TEMERIDADE

Em 1977, quando retornara de Salvador após anos ausente do


Ceará, fui resolver alguns assuntos em Fortaleza e caminhava
pelas ruas centrais da capital, numa época ainda de muita
hegemonia do comércio naquela área, diferente de hoje, quando
existem pólos de atendimento nos principais bairros periféricos e
nos shoppings de hoje.
Próximo do legendário Hotel Savannah, no auge do expediente
da manhã, observei reunião incomum de populares que
presenciavam o desabafo exaltado de um homem magro, meio
franzino, pálido, trinta e poucos anos, sandálias japoneses, trajes
modestos, palavras agressivas, repetitivas, tendo lá (quem
sabe?) suas razões de andar contrariado e espalhando no pé-da-
calçada os defeitos de alguns dos curiosos, quis deduzi, no
pouco que fui ouvindo:
- Terra de muro baixo, terra de corno - em tom de discurso e aos
gritos, repetia agressões continuadas, sem deixar claro o
endereço das suas palavras, - aqui não tem homem, todos são
um magote de vagabundos. - Generalizava impiedosa cobrança
em face de não dispor de outros meios, talvez, para fazer seu
desabafo. Via-se no desespero total e absoluto, pensei, para
chegar ao ponto de desafiar tanta gente numa única ocasião.
Aos poucos percebia-se a completa impropriedade daquelas
providências. Daí, mais gente que chegava. Pude anotar sinais
75

de desaprovação e revolta na face das pessoas, porém até ali


nenhuma resposta concreta.
Logo, de dentro da pequena multidão, senhor alto, bem nutrido,
estatura acima da dos nordestinos, usando óculos claros, em
camisa mangas, de semblante sério, veio marchando incisivo e
afastando os circunstantes, passos firmes na direção do foco das
atenções, aquele tal, o indivíduo falastrão a quem me reportei.
Chegado onde pretendia, fora de qualquer preparativo, aplicou-
lhe vigoroso tabefe na região situada entre a nuca e a tábua do
queixo, serenando o ânimo exaltado e forçando-o a saltar de um
pulo dentro de táxi Volkswagen parado no mesmo ângulo em que
se projetara, que, cabe cogitar, estivesse avisado para possíveis
eventualidades, entrando pela janela da porta dianteira, tão forte
o vexame do soco recebido.
- Arranca, arranca! - com essas palavras definiu a pronta ação do
automóvel que sumiu no sentido da Praça do Ferreira.
De honra lavada, as pessoas sorriam e se dispersavam. Nas
imediações, apenas ficaram as sandálias do desafiante, que,
abandonadas ao chão, testificavam o aperreio da desastrada
fuga.

É TEMPO DE TRANSCENDER

Numa seqüência regular das estações, chegamos ao tempo de


transcender coordenadas que pareciam sólidas, na ordem dos
acontecimentos. Mesmo certos de que sempre ver-se-ão
pessoas tristes laçadas na teia rotineira do sistema, também
haveremos de anotar a firmeza dos que usam outra linguagem
menos cômoda, para exigir coragem de mudança, própria à
renovação dos valores, em busca de perspectivas. Logo fartos
blocos se sucedem nesse proceder e um vórtice de propostas
salutares crescerá, modificando o quadro geral de incoerência
que domina os espaços vivos da natureza, na Terra, obrigando-
nos a reverter em pesadelos nossos melhores sonhos de uma
história plena de Luz Superior, o que, como nunca antes,
vislumbra-se meta principal do fluir humano. Tanta possibilidade
alimenta os mais diversos setores sociais, desde que se observe
com olhos afeitos a análises abrangentes, quanto ao desejo de
muitos em querer paz coletiva sob os signos de trabalho e
progresso. A felicidade jamais se apresentou tão ao alcance de
ambos os blocos de poder. Não tencionamos negar, entretanto, a
parcela dos riscos, da imperícia, por ser parte normal das
engrenagens, o curinga fantasmagórico, o vilão ameaçador.
76

Contudo, daí a carência das ofertas limpas para quem se


disponha construir um mundo restaurado, onde seres vivam a
justa dignidade.
Por certo, tendência metodológica dos que procuram algo
confiável, vem a dúvida: em sendo assim, qual a garantia de não
vivermos outra fase que prenuncia grandes desatinos,
semelhante recentes passados, em meio aos fossos abertos de
gerações ainda traumatizadas, corpos revirados no monturo?
Perigo existe, há pouco falávamos da margem inelutável de erro.
Todavia o valor maior prevalecerá, ainda que venha de
acontecer. Seria o caso de se fundir os pedaços no reinício
tempestivo de caminhada.
Essa, porém, não será a hipótese de nossa preferência. Mesmo
porque temos agido no sentido de alterar pressentimentos
negativos, outra vez perniciosos ao jogo de escuro e claro que
jogamos após tantas desastrosas tentativas. Chegou a época
das fixações definitivas do estágio para o qual nós, alimárias
inteligentes, os Espíritos, aqui viemos. Dentro dessa ótica, insistir
na timidez quer nos parecer mera obstinação irresponsável,
destituída de quaisquer atributos racionalistas, depois das
inúmeras frustrações descabidas e lágrimas quentes.
E os jovens sabem disso quando desejam ser felizes. Ninguém
falha sabendo acertar. A inconsciência oferece a lição de seu
mesmo descrédito, afastando, por declividade, todos os que
buscam as modalidades corretas de proceder.
Queremos contribuir, desta forma, com o pensamento fiel de que
tempo equilibrado virá predominar, constante e bom, no seio
amigo do Planeta, adotado pelas novas mentes que passem a
gerir instituições. Essa coisa de que não tem mais jeito faz parte
da ideologia dominante, que a divulga com persistência, para
engano dos crédulos, nas orquestrações maquiavélicas de
orientações comprometidas. Fugir incólume desse canto
mercenário cabe a cada um, atitude sábia dos que queiram
resistir aos embates pertinazes do furacão impiedoso.
Grande pugna se prenuncia através de conflito insano dentro de
nós mesmos, entre os vícios e a virtude.
Quais normas de salvamento, na floresta íntima do ser, ficam
nestas idéias esboços que bem poderão acalentar a unidade no
meio dos trilheiros desse rasto brilhante, caminho eterno da
prevista realização espiritual.

TESOURO DA JUVENTUDE
77

Na segunda metade da década de 50, os viajantes da editora W.


M. Jackson, Inc. inundaram o País de coleções dos livros de
Machado de Assis, Humberto de Campos, obras completas, e de
História Universal, de Cesare Cantu, Mundo Pitoresco e Tesouro
da Juventude, sendo que esta detinha a preferência,
enciclopédia montada numa linguagem cuidada, cheia de bem
intencionados conteúdos, no propósito de indicar, sobretudo aos
jovens, variadas vocações, para isso dirigida.
Os 18 volumes, confeccionados em papel resistente,
encadernações luxuosas e graúdas, traziam painel do que havia
de mais atual, desde literatura, ciências e artes, a resgatar
histórias infantis de todos os tempos, poemas tradicionais da
língua portuguesa ou traduzidos; enfocar países, com detalhes
culturais, arquitetura, costumes, ricas ilustrações; realçar
momentos históricos importantes para a cultura ocidental,
satisfazendo a curiosidade sobre temas da natureza; e oferecer
métodos de artesanato, folguedos e jogos divertidos.
Nesse período, poucos estudantes deixaram de pesquisar
naqueles livrões de capa azul, na busca de esclarecer os
diversos fenômenos naturais, circunstanciar resumos de
romances brasileiros ou estrangeiros, ou descobrir novidades ao
gosto dos professores do ensino médio; ainda não possuíamos
no Cariri escolas superiores, enriquecendo bibliotecas e lares
com as luzes do saber.
O despertar para a leitura encontrou nessa coleção trilha fértil, de
rica proposta. Os jovens, por seu turno, acolheram de bom grado
esse manual, sem ter de cruzar a massa de informações que a
cada dia se despeja nas bancas de jornal e revistas, nos tempos
eletrônicos de agora.
Todas essas particularidades nos vêm à lembrança quando se
observa a peleja das gerações de hoje para desenvolver o hábito
da redação, exigência constante dos vestibulares, visto se saber
que o primeiro requisito do estilo terá sempre respaldo na boa
leitura.
A propósito do Tesouro da Juventude, eis um exemplo de texto
dessa bela coleção:

TIRANOS DE SIRACUSA

Conta uma história antiga que Dionísio, tirano de Siracusa,


geralmente detestado por todos os seus súditos, encontrava
freqüentemente em seu caminho uma mulher muito velha, que
sempre exclamava quando o via:
78

- Deus dê longa vida ao rei Dionísio!


Admirado daquilo, o tirano, que se sabia cordialmente odiado por
todos, indagou-lhe, uma vez, do motivo de seus bons votos.
A mulher respondeu:
- Eu sou velha, muito velha. Vi o pai de V. Majestade e o avô de
V. Majestade. Seu avô era um tirano de imensa maldade; seu pai
era pior ainda; V. Majestade é ainda pior do que os dois
anteriores. De modo que rogo aos céus darem longa vida a V.
Majestade, porque tenho medo daquele que possa vir depois.
Como se vê, esta célebre história da velha de Siracusa aplica-se
bem a muitas épocas.

TIPOS POPULARES

As comunidades perenizam, em sua paisagem humana, perfis


consagrados de almas exclusivas, movendo o calendário das
décadas, tais marcos que servem de referência histórica,
sacrários de lembranças e costumes.
Crato não fugiu à regra e testemunhos podem ser recolhidos,
pois cada depoimento somado concederá uma visão da memória,
comparável às fotografias diferentes de um mesmo sítio.
Nesse sentido, aqui trazemos uma contribuição, enfocando os
principais tipos, por nós conhecidos, que se destacaram em
feiras, bares, cafés, mercados e praças, no cotidiano da cidade,
dos anos 50 até quase agora. Admitidas lacunas, no entanto
sendo bom que outros contribuam, preenchendo os claros
assinalados.
Muitos talvez se recordem de dois pedintes bem característicos:
Pedro Cabeção e Moipen. Pedro fazia ponto na rua Miguel
Limaverde, onde antes ficava a saída do Cine Cassino;
hidrocéfalo sempre feliz, estalava a língua no encontro do céu da
boca, ocasionando ruído para chamar a atenção dos passantes,
com quem trocava chistes e de quem merecia as migalhas da
sobrevivência. Simpático por profissão, conseguiu se fazer
querido de muitos, sobretudo das crianças.
Moipen (Júlio Grego era o outro nome dele), por sua vez, seguia,
de casa em casa, chapéu de palha de aba larga sobre a testa, a
lhe encobrir os olhos, girando na ponta do indicador uma bandeja
de flandre desbotada, qual fosse um disco, adaptando o som da
palavra esmola ao seu falar diferente (moi... moi... moi...)
(moipen... moipen... moipen...), para significar uma esmola para
Nossa Senhora da Penha.
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Outra figura peculiar das ruas cratenses - Tendô, que não mais
soubemos dele; representava outra época dessa história natural
da cidade, nos fins da década de 40, começo dos anos 50.
Troncudo, baixo na estatura, cinto largo de muitos adereços,
fivelas variadas e cravejado de tudo quanto era ilhoses, e um
chapéu de couro e babicacho que não destoavam do exagero
geral; também muito querido da população, prestativo e eficiente,
vivia de recordar as proezas de seu antigo patrão, Dr. José
Gesteira, a quem servira em sua casa de saúde.
Noventa, o chapeado, outro tipo indelével desse passado,
empurrando uma carroça para transporte de cargas, sabia
conversar com desenvoltura a propósito dos mais diversos
temas, em tiradas filosóficas de humor que desafiavam o rotineiro
dos dias. Morava no bairro do Seminário, onde, certa feita, fomos
vê-lo. Atravessava uma fase de muita bebida, tendo, há pouco,
voltado à faina do carreto após sofrer sério acidente
(atropelamento e fratura numa das pernas). Exímio artista da
palavra falada, distribuía satisfação ao povo.
Outra lembrança, Ramiro, que marcou momentos agradáveis,
primeiro entre padres e internos do Seminário São José, com
verve engraçada; enfatizava seu aspecto feio em histórias as
mais divertidas e apreciadas, ainda agora merecedoras de
registro. (Certa ocasião, voltando tarde da noite de festa em
Juazeiro, fretou um carro de praça. No escuro completo daquele
tempo, mandou parar na frente do cemitério, onde morava e
trabalhava de coveiro, para ir buscar o dinheiro da corrida.
Depois de longa demora, e acordando com longas buzinadas os
moradores próximos, o motorista viu-se surpreendido com a
informação de onde se achava, ao que exclamou: - Bem logo vi;
com uma cara daquelas não podia ser deste mundo!).
Desapareceu nos fins da década de 70.
Lembramos, ainda, de outros personagens: Célio Silva, boêmio
integral, à maneira carioca dos inícios do rádio, no Brasil. Voz
afinada, timbre da de Francisco Alves, cantava deste o repertório,
se acompanhando ao violão, pelas quebradas da cidade, centro
e periferia. Chegou a gravar um disco e nunca se afastou dos
programas radiofônicos, nas emissoras locais, por volta dos anos
60. Expedito Magro, seu outro nome, alegre, comunicativo,
cabelo liso e penteado a Chico Alves, vitimou-se cedo no uso
exacerbado de bebidas alcoólicas.
Dizíamos, a princípio, que as comunidades dispõem do seu
panteão de figuras marcantes, nas várias épocas. Músicos,
poetas, loucos. Artesãos, vadios, mendigos, contadores de
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histórias, profetas impacientes, hóspedes das sarjetas,


marquises e bancos de praças, cantadores, andarilhos, anônimos
da extra-oficialidade, os heróis populares.
Infinidade de outros abordaríamos, por dever de justiça: Pedro
Vinte e Um. Vanda. Doca. Anduiá. Expedita do Bode. Só Deus.
Canena. Pereira Belém. Porrinha. Capela. Sorriso. Chupetinha.
Antônio Cornim. Polícia. Cadeado. Atletas. Prostitutas. Aleijados.
Jogadores de sinuca. De bozó. Camelôs. Pais e mães de família
pobres e autênticos em sua aventura de viver a incerteza.
Contradições ambulantes de um mundo errado, egocentrista. Os
gênios do vulgo, farrapos sociais, ferrões nas consciências
culpadas que lhes passaram para trás, na vida social.
A eles, aos ídolos de nossa infância, nas calçadas, gafieiras,
estações, esta homenagem, mesmo que nunca venham a nos
incluir em suas conversas animadas, bondosas, sensíveis ao
sofrimento alheio, nas contradições desconhecidas das massas,
nos trechos biográficos dos becos solitários, que, de tão comum,
desatinam e se desatinam.

O TIRADOR DE NINHO E O MILAGRE DE SÃO FRANCISCO

Nesse dia, o caboclo acordou cedo, comeu qualquer coisa e


cuidou de buscar, na floresta, árvores velhas onde pudesse
pegar outros ninhos de arara para desarranchar os filhotes e
vender na feira da cidadezinha próxima, sendo essa a
mercadoria de sua especialidade.
Pouco demorou, nem suara direito, quando viu antiga timbaúba
descascada, que bem poderia abrigar, entre seus ramos secos,
os pássaros que procurava. Apressou as idéias, amarrou uma
corda em volta do tronco esbranquiçado, prendeu-se na própria
cintura e escalou a madeira.
Em cima, aboletado no teto, buscando analisar a superfície
embalseirada, sentiu faltar apoio, quando a velha cumeeira se
abriu, deixando-lhe cair o corpo de toda a altura. Afundou no
vazio, buraco abaixo, escorregando por dentro do miolo podre da
árvore, descendo, descendo, desaparecendo no escuro, sem que
lhe sobrasse qualquer réstia de luz por menor que fosse.
Depois, tudo quieto; pegou-se nos braços, nas costelas, nas
pernas, para saber dos ferimentos, tirados inevitáveis arranhões.
Apenas o bafio forte de coisa fermentada, abafadiça, e muito
silêncio na escuridão profunda.
Sem alternativas, logo baixou, nos seus pensamentos, um medo
brutal que tomou conta de tudo; lembrou-se da mulher, dos filhos,
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da casa, sentiu impaciência, para não dizer desespero. Ainda


assim, um apego forte ao mundo lhe levou a erguer o juízo e
lembrar de Deus, dos santos, nas pisadas do coração.
- São Francisco, meu santo, me ajude! - na força da
concentração, gritou com vontade e apego à vida. Repetiu,
repetiu várias vezes o pedido fervoroso.
As horas escorreram caladas. Uma espera de muito tempo se
prolongou o dia todo. Sabe-se lá vindo de que lugar específico,
ele ouviu, procedendo da carne da madeira, rapado de coisa
esquisita indo na sua procura. Naquela instante, do lado externo,
no pé do inútil pau, enorme tatu canastra, que passava nas
imediações, achara de catar o que comer. Caso animal tenha
curiosidade, esse deve ser o nome do instinto de procurar o
alimento. Nisso veio a salvação do caçador de arara, através das
unhas afiadas daquele bicho. Rompeu as grossas fibras do velho
caule até chegar no ponto em que ficou fácil para o tirador de
ninho rever a liberdade.
Conta a tradição popular que, depois dessa vez, jamais quis o
caboclo saber de tirar ninho de nenhuma ave, bem reconhecido
de haver merecido as bênçãos de São Francisco, o santo
protetor dos animais. Há sempre um modo honesto de viver,
sem impedir aos outros igual oportunidade.

UMA SENTENÇA ATUAL

Quase sempre elas carregavam a tiracolo suas bonecas.


Naquele dia, porém, achara Joana de levar para passear, de
carro com os pais, a predileta de Marina, sem que esta notasse,
ou, tendo percebido, tal ocorresse mesmo com a sua
discordância. Não seria a primeira vez de uma querer levar à
revelia os trecos da outra, ainda que, dentro de pouco tempo,
provocasse desarmonia, para abuso dos pais, nos jogos infantis
da concorrência amolada e chata.
Certeza certa, logo mais brigavam à solta, no banco de trás, pela
posse do filhote de plástico, cuja dona esquecera objetos
alternativos que lhe ocupassem as mãos nessas horas. Queria
porque queria a coisa... No grito, no sopapo, no choro, como
fosse.
Depois dos tradicionais estrilos de pai apressado em ver
progresso nos filhos, pequenos e grandes, ele vira ríspido a
considerar, caso prosseguissem na luta, que a primeira criança
pobre avistada levaria consigo o objeto da contenda.
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- Isso, meu pai, dê a boneca a uma menina pobre - foi pronta a


reação de Joana, enquanto que sua irmã, acreditando na
seriedade do aviso, temendo perder a boneca, pedia que não
fizesse o prometido.
Então, qual cena de filme, veio à memória do pai a célebre
sentença de Salomão quanto à guarda de um mesmo filho
reclamada por duas mães, no reino de Israel: Cortai ao meio o
menino vivo e dai metade a cada uma!
Comovida diante do veredicto, a mãe verdadeira desistiu da
peleja, assumindo sozinha as conseqüências do gesto: Rogo-te,
meu senhor, que lhe dês o menino vivo; não o mate. De seu lado,
a segunda interessada diz: Ele não será nem teu nem meu; que
o dividam!
Naquele instante, o soberano voltou-se para a primeira das
mulheres, estabelecendo: Daí o menino vivo a esta mulher; não o
mateis, pois é ela a sua mãe.
Da ingênua manifestação de duas filhas, numa situação rotineira,
mas expressiva, o pai analisou, na consciência, o peso dos
interesses particulares nas cogitações terrenas e quão distante
permanece, para muitos, o sonho de isenção absoluta da justiça
humana onde compareçam pretensões unilaterais.

VINTA

Meu pai conta algumas histórias de Vinta, uma prima que viveu
na casa de sua família, no Tatu. Os traços que lhe marcavam a
personalidade: nunca casara, tornando-se moça velha, como se
usava dizer, e muitas vezes ocorria de exagerar nas atitudes,
levando os demais a rirem do seu jeito característico de
responder às provocações como criatura diferente, de estilo
afetado no vestir, nos modos de falar, nas tiradas e nos repentes.
Em uma das noites da fazenda, quando todos se reuniam no
alpendre fronteiro da casa grande, e meu avô, de mãos atrás do
pescoço, sentado numa cadeira de couro cru apoiada nos pés
traseiros e derreada na parede, como gostava muito de usar em
seu merecido repouso noturno, Vinta resolveu exercer o seu
prestígio fidalgal solicitando que Joaquim Leite, meninote de
serviço, de um olho cego, fosse à cozinha lhe buscar água de
beber.
Após saciar a sede, deliciada no bom atendimento, alguém
lembrou de perguntar donde o garoto trouxera o copo d’água, ao
que ele respondeu haver sido da bacia do lavatório, daí
acrescentando:
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- Pois eu não alcanço no pote, não.


Indignada pela falta de asseio do garoto em sua involuntária
desconsideração, Vinta replicou:
- Ô cego torto! Agora não sei se como um pedaço de queijo com
rapadura ou se meto o dedo na goela e lanço - causando, desse
jeito, risada geral nos presentes à noitada sertaneja.
Outro episódio marcante da vida dessa personagem se deu
quando quis, porque quis, fazer parte da comitiva dos primos à
capital do Estado para o casamento de membro da família. No
que pesem os vexames que viesse de ocasionar, assim temiam,
ninguém conseguiu demovê-la da viagem. Resultado, na estação
de Quixadá, mesmo aconselhada a não deixar o trem, afastou-se
demasiado e, no retorno, havia perdido a composição. Sozinha,
arranchou-se na cidade e, no dia seguinte, continuou a jornada.
Ainda nessa viagem, nas suas andanças pelas ruas de Fortaleza,
se benzia com muita insistência, chamando a atenção dos primos
sobre esse procedimento. Explicou-se, indicando os postes da
energia elétrica:
- Eita terra para morrer gente! – afirmava ao se lembrar das
cruzes que põem à beira das estradas, no sertão.
Também na Capital, achou de visitar um armarinho e examinar
abismada as peças do estoque, equipando-se com espanador de
penas de avestruz, que passou a carregar consigo pelo recinto
da loja. Ao sair, levou-o debaixo do braço, deixando em seu lugar
a sombrinha que transportava... Vendedor cuidadoso seguiu-lhe
no encalço para corrigir o equívoco, e Vinta, aborrecida, em outra
de suas tiradas espirituosas, retrucou:
- Pois tome o seu bicho e me dê a minha coisa - recebendo de
volta a sombrinha que largara na loja.

A VOZ DA EXPERIÊNCIA

Desde cedo que o novo médico desfrutava, na cidadezinha do


interior, de um dia super emocionante, ao se preparar para fazer,
lado a lado com quem muito admirava, a sua primeira cirurgia.
Sentia-se qual sacerdote em face da esperada primeira missa,
algo solene, sagrado; salvaria vidas humanas.
Na ante-sala do hospital modesto, ainda sem a presença de
quem fizera seu modelo de profissional, cuidou de meditar no
Poder Divino, concentrando o pensamento no dever do ofício,
cheio de plena responsabilidade.
Logo após, ver-se-ia no centro cirúrgico, nos procedimentos da
intervenção. Os outros companheiros de equipe agiram com o
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zelo da experiência, escrúpulos às vezes além da conta. Tudo


observava embevecido, até quando presenciou, das mãos do
médico-chefe, ir ao chão o bisturi em vias de ser utilizado.
Daí, sem qualquer cerimônia, o cirurgião abaixou-se, pegou de
volta o instrumento, esfregou-o rápido na bata azulada e
prosseguiu no trabalho, como nada tendo ocorrido, nem se
dando ao gesto de olhar aos outros membros da equipe; se o
fizesse, entre eles teria achado, no seu pupilo, o mais indignado
deles, pela expressão de choque que trazia ao rosto; esse
médico estreante, ainda assim, soube manter as aparências,
guardando emoções para quando fechassem os trabalhos.
Depois de tudo concluído, ao lavarem as mãos suadas na luva
plástica, o médico novo externou a contrariedade quanto ao que
presenciara, uma total afronta aos princípios mais comezinhos de
higiene, valores de preservação da Ciência. Sem esticar
conversa, de sorriso jocoso no canto da boca, o autor da
peripécia tratou de explicar numas poucas palavras:
- Ah! O colega é um idealista. Pensa, na certa, que as bactérias
do sertão, que passam o ano todo debaixo desse sol escaldante,
desfrutam da mesma agilidade dos microorganismos da capital.
Engano seu, nobre doutor! Por isso, vá logo se acostumando que
nosso material cirúrgico, além de caro e difícil, aqui é muito mais
escasso do que se pode imaginar.
A realidade era outra; esgotadas as dúvidas, nunca mais
retornaram ao assunto, sendo esse o primeiro e único incidente
da longa folha de serviços que o jovem profissional iniciava, em
prol da saúde humana, naquela distante comunidade.

DADOS PESSOAIS

José Emerson Monteiro Lacerda nasceu em Lavras da


Mangabeira CE, no dia 26 de março de l949, terceiro dos cinco
filhos de Luiz de Lacerda Leite e Maria de Lourdes Monteiro
Leite. Ex-funcionário do Banco do Brasil S. A. Advogado.
Fotógrafo. Cronista. Contista. Atual Assessor de Comunicação da
Universidade Regional do Cariri - URCA. Membro do Instituto
Cultural do Cariri - ICC. Exposições de desenho, pintura e
colagem. Realizou os filmes super-8 São Gonçalo da Canabrava
(1975 - Salvador BA) e Terra Ardente (1977, inacabado - Crato
CE). Pesquisador de comunicação, psicologia e religião, publicou
o opúsculo Sombra e Luz (1991) e o livro Noites de Luz Cheia
(1996).
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Demonstra interesse pela literatura voltada ao aperfeiçoamento


humano. Estuda religiões comparadas e suas implicações
sociais. Chega a admitir mudança real na História, partindo de
uma nova consciência individual, na tão sonhada transformação
do gênero humano.
Vereador em Crato de 1989 a 1992, foi Primeiro-Secretário do
Legislativo e da Constituinte Municipal, e Presidente da
Comissão de Justiça e Redação.
Publica em jornais e revistas cearenses.
Pai de cinco filhos: Ceci, Ciro, Igor, Virgínia e Janaína. Casado
em segundas núpcias com Danielle Gomes Lacerda.
E-mail: emersomonteiro@gmail.com
...

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