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Valores contemporâneos e consumo de drogas: para propor aos

jovens a crítica social e a construção de uma nova sociabilidade

Vilmar Ezequiel dos Santos

vilmar@usp.br

Sheila Aparecida Ferreira Lachtim

shamf@usp.br

Cássia Baldini Soares

cassiaso@usp.br

Correspondência:

Cássia Baldini Soares

Escola de Enfermagem da USP

Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva

Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419

05403-000 – São Paulo – SP

Telefone: (11) 30617652

Sobre os Autores

Os autores desse artigo participam do grupo de pesquisa filiado ao


Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP denominado
“Fortalecimento e desgaste no trabalho e na vida: bases para a intervenção em
Saúde Coletiva”. O grupo é composto por duas professoras doutoras e alunos
de pós-graduação em mestrado e doutorado, que vem desenvolvendo um
projeto de pesquisa financiado pela FAPESP intitulado “Jovens, valores e
consumo de drogas: políticas públicas na perspectiva da Saúde Coletiva”. Este
tem como objetivo principal sistematizar um arcabouço teórico-metodológico e
operacional para subsidiar políticas públicas voltadas ao fortalecimento dos
jovens. A Professora coordenadora do grupo é a Cássia Baldini Soares, sendo
que os demais autores são alunos sob sua orientação: Vilmar é aluno de
doutorado e Sheila é aluna de mestrado.
Valores contemporâneos e consumo de drogas: para propor aos
jovens a crítica social e a construção de uma nova sociabilidade
1. Introdução
No presente trabalho os autores têm por objetivo traçar correlações
entre a formação e o fomento de novos valores na contemporaneidade e o
consumo prejudicial de substâncias psicoativas, principalmente no que tange à
juventude.
Tomou-se como ponto de partida o conhecimento acumulado por vários
estudos realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas (CEBRID), que apontam tendência de aumento significativo de
utilização de psicoativos, com início de uso em idade cada vez mais precoce.
Essa tendência refere-se tanto às drogas propagadas pela indústria lícita do
álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos, quanto às disseminadas pelo
narcotráfico, que fomentam o mercado das drogas ilícitas.
Considerou-se ainda os estudos que referem críticas às respostas
tradicionais em termos de políticas públicas de drogas, que se revelam ainda
insuficientes e muitas vezes simplistas, ineficazes e contraditórias, como é o
caso da política de guerra às drogas e das políticas de enfrentamento ao
marketing das indústrias lícitas.
Tomou-se como referência teórica os estudos provenientes da Saúde
Coletiva, que procuram oferecer as bases de compreensão da correlação entre
as transformações do capitalismo atual, a construção e/ou exarcebação de
valores correspondentes e o consumo de psicoativos por jovens.
2. Tendências do Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Jovens
Conforme indicam os estudos sobre prevalência realizados pelo Centro
Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID, 2001, 2005), o
consumo de drogas psicotrópicas, lícitas e ilícitas, se configura no cenário atual
com características particulares.
A partir da comparação de dois grandes levantamentos domiciliares nas
108 maiores cidades do Brasil sobre o uso de drogas psicotrópicas, verificou-se
que, em 2001, 19,4% dos entrevistados já haviam usado algum tipo de droga e,
em 2005, esse número foi para 22,8%, excluindo-se da análise o álcool e o
tabaco. Em relação aos vários tipos de drogas observou-se o seguinte quadro
de mudanças de 2001 para 2005: maconha de 6,9% para 8,8%;
benzodiazepínicos de 3,3% para 5,6%; estimulantes de 1,5% para 3,2%;
solventes de 5,8% para 6,1% e cocaína (2,3% para 2,9%). Pode-se notar que
para três drogas houve aumento importante (maconha, benzodiazepínicos e
estimulantes). Por outro lado, observa-se uma pequena diminuição do uso na
vida de orexígenos (4,3% para 4,1%) e xaropes à base de codeína (2,0% para
1,9%).
Em relação ao álcool quando se considera o uso na vida a porcentagem
migrou de 68,7% para 74,6%. Em relação aos outros países, foi inferior aos
86,5% observados no Chile e 82,4% nos EUA. Em relação a um tipo de
consumo que pode ser considerado abusivo, a pesquisa revelou, em 2001, a
porcentagem de 11,2% e, em 2005, a de 12,3%, portanto também com uma
tendência de aumento.
No caso do tabaco o uso na vida teve uma prevalência de 44,0% da
população entrevistada, ao passo que no levantamento domiciliar de 2001 foi
de 41,1%. Quando se considera o consumo considerado dependente a partir
de critérios diagnósticos psiquiátricos, os dados também apontam uma
variação de 9,0%, em 2001, para 10,1%, em 2005.
A análise comparativa entre os levantamentos domiciliares tece ainda
comparações entre alguns países. Apesar dos diferentes índices, observa-se
uma tendência geral de aumento do consumo das várias drogas psicotrópicas
e de problemas sociais e de saúde relacionados.
Em outro levantamento, realizado pelo CEBRID (2004) entre estudantes,
observou-se que as drogas legais, álcool e tabaco, foram as que apresentaram
a menor média de idade para o primeiro uso (12,5 anos e 12,8 anos,
respectivamente). A maconha aparece com média de 13,9 anos e a cocaína
com média de 14,4 anos, para o primeiro uso.
3. Políticas Públicas e Respostas Oficiais: De Psicoativo à Mercadoria
No âmbito das políticas globais e respostas sociais para fazer frente às
constatações do aumento do consumo e de problemas relacionados, a vertente
principal que orienta as ações é a jurídica, que através de mecanismos legais e
de consensos e convenções internacionais adotam um sistema de proibição,
criminalização e repressão da produção, comércio e consumo de um conjunto
de drogas e de restrição ao consumo e formas de punição para os excessos no
caso das drogas lícitas, ou seja, focalizando a droga em si ou o usuário,
tomado na sua condição individual.
No setor da saúde em particular, as políticas se voltam para o
tratamento de dependentes e iniciativas de prevenção para afastar as pessoas
das drogas, tendo como pressupostos a eliminação ou impedimento da
doença. Isto resulta, conforme aponta Velho (1999, p.61), em formulações de
caráter ideológico como a idéia de que a droga enfraquece a moral, fazendo
com que os indivíduos sejam mais facilmente seduzidos, corrompidos ou
enganados. Também reforça, no campo da saúde, a idéia do drogado como um
doente e sua relação com a anormalidade, o “desvio”, e a doença mental.
Essas concepções comungam do fundamento de que o problema central
está na droga (como substância perigosa do ponto de vista dos seus efeitos no
sistema nervoso central) e/ou simplesmente no sujeito (devido a uma
fragilidade ou vulnerabilidade inerente à sua herança genética ou familiar).
Portanto o que se compreende nessa perspectiva é que as políticas deveriam
se voltar para eliminar as drogas da sociedade e tratar os sujeitos vulneráveis
através da criminalização e penas “alternativas”, devido à utilização de drogas
ilícitas, ou através do tratamento visando à diminuição ou à abstinência do uso
de qualquer substância.
Tal perspectiva não leva em conta que a droga, como qualquer produto
ou mercadoria, tem valor e função na sociedade que a produz e comercializa,
para servir a propósitos e finalidades do sistema e não como uma substância
que apresenta riscos por conta de suas propriedades farmacológicas. É por
esse motivo que a constatação do aumento do consumo não se restringe ao
sistema das drogas lícitas ou ilícitas, compreendidos separadamente, mas à
relação que se estabelece entre ambos quando se percebe na droga uma
mercadoria, a serviço do lucro indiscriminado que, descolado dos objetivos e
valores humanos fundamentais, sobrepõe e estampa os valores do capital.
Carneiro (2002, p.115) refere que as drogas passaram do início do
século XX em diante a ser objeto de grande interesse internacional, adquirindo
o papel de principal ramo do comércio mundial quando se considera “os cerca
de 500 bilhões de dólares do tráfico ilícito”, e acrescentando “os capitais das
drogas legais, como o álcool e o tabaco, mas também o café, o chá, etc., além
das drogas da indústria farmacêutica”. Ainda acrescenta que o século XX foi o
“momento em que esse consumo alcançou a sua maior extensão mercantil, por
um lado, e o maior proibicionismo oficial por outro”.
No entanto, segundo Rodrigues (2005, p.293), antes de se consolidar o
proibicionismo como uma política oficial, algumas drogas, hoje proibidas (como
cocaína e heroína), eram disputadas nos mercados lícitos de vários países,
fazendo parte de um “lucrativo comércio legal que envolvia interesses de
potências do período, suas indústrias farmacêuticas e suas estratégias
geopolíticas no globo”.
A aliança entre práticas moralistas e controle social também se faz
presente no proibicionismo e no trato com as drogas, relacionando
determinados psicoativos a “minorias vistas como perigosas por seus hábitos e
procedências. Assim, chineses eram relacionados ao uso abusivo de ópio,
negros ao de cocaína, irlandeses ao de álcool, hispânicos ao de maconha”
(Rodrigues, 2005, p. 294). Lançam assim as bases que justificam os principais
argumentos oficiais para dar contorno político e social ao campo das
substâncias psicoativas: as drogas como ameaça moral, como questão de
saúde pública e como problema de segurança pública.
Os efeitos das políticas oficiais para o campo das drogas já foram bem
estudados por diversos autores (Ribeiro, Seibel, 1977; Escohotado, 1989;
Bucher, 1992; Zaluar, 2005; Ott, 2000; Carneiro, 2002; Karam, 2003; Carneiro,
2005), que demonstraram as adversidades, as contradições e as insuficiências
dessas práticas para obter os resultados humanos esperados. O que se
destaca aqui é um ponto comum que une o universo das substâncias lícitas e
ilícitas: a produção, o comércio e o consumo seguiram-se ampliando apesar de
todos os esforços jurídicos e sanitários. Também se desenvolveram novas
drogas, novas formas de disponibilização para o consumo para atingir públicos
específicos (crianças, jovens, adultos, homens, mulheres) e em diversos
contextos e condições socioeconômicas.
É nesse cenário contemporâneo que se resgata o caráter da droga ou
substância psicoativa como um produto inserido na dinâmica do capitalismo,
uma “mercadoria potente para responder a essas necessidades de valorização
do fugaz e de enaltecimento do prazer imediato. Não é à toa que ela vem se
colocando como uma opção de consumo importante para mitigar os desgastes
advindos do desemprego e da flexibilização do trabalho, da desproteção social
e da substituição dos laços de solidariedade pelas armadilhas da competição”
(Soares, 2007, p. 53).
Tratando da relação capitalismo-droga, Baratta (1994, p. 39) assinala
que a mercantilização selvagem de certas drogas tem relação direta com a
mercantilização geral de todas as coisas, resultado de um sistema de relações
de produção em que prevalece a lógica da reprodução do sistema em
detrimento das necessidades reais dos homens. Nesse sentido a demanda
pelo consumo de drogas na atualidade estaria diretamente relacionada com os
mecanismos do capital, “como tributária da necessidade de evadir-se das
angústias produzidas pela realidade.”
Uma análise de Kaplan (1997, p. 44) sobre tráfico de drogas, soberania
estatal e segurança nacional permite traçar correlações entre o fenômeno atual
do narcotráfico e a crise global gerada pelo capitalismo. Segundo esse autor o
narcotráfico deve ser considerado, por um lado, como um componente do
contexto global representado pelo alto grau de concentração de poder em
escala mundial, pela mutação do neocapitalismo nos centros desenvolvidos,
pela transnacionalização, pela nova divisão mundial do trabalho e pela terceira
revolução industrial e técnico-científica. Globalização esta na qual os países de
capitalismo periférico se inserem e da qual provém poderosa restrição externa
a seus interesses nacionais e à sua transformação progressiva. Ainda se
consideram as situações, processos e crises estruturais desses países, os
limites encontrados e os fracassos e efeitos negativos de seus esforços de
desenvolvimento. Nesse cenário, de insuficiências e distorções de crescimento
econômico insuficiente, é que o narcotráfico encontra um terreno propício para
o seu fortalecimento e desenvolvimento.
È importante salientar, conforme aponta Franch (2003, p. 54-63), que
“as motivações para o envolvimento dos jovens no comércio clandestino de
armas e drogas são usualmente atribuídas ao impacto da sociedade de
consumo entre os jovens de periferia (embora não apenas entre estes) e à
perda de importância do trabalho como referencial moral, entre outros
aspectos.”
No capitalismo contemporâneo, o trabalho perdeu o prestígio moral que
exibia anteriomente. Para o jovem, a referência do modelo voltado para o
presente implica em valorizar as oportunidades imediatas em detrimento da
construção continuada, da carreira. A perspectiva profissional dos jovens
passou a ser composta pelas ocupações relacionadas aos setores mais
avançados na economia (Sennett, 2006).
“Dessa forma, pode-se dizer que as ocupações em destaque, as que
são atualmente procuradas pelos jovens, são aquelas encarregadas de
agregar valor de compra e venda às mercadorias, que, a despeito de terem a
mesma utilidade, tornam-se mais caras conforme a marca e a capacidade de
veiculação midiática. Veja-se por exemplo a variabilidade dos preços de jeans
no mercado atual. Assim, os valores desejáveis às ocupações são qualificados
como: valor de mercado, tecnologia, patente, design e griffe.” (Soares, 2009a,
p. 72).
Soares (2007, p. 55), se apoiando nos fundamentos do campo da Saúde
Coletiva, organiza um conjunto de conhecimentos que buscam fundamentar as
relações entre consumo de droga e capitalismo, numa perspectiva histórica e
contextualizada. Assim “explicar o consumo de drogas inserido na dinâmica
social – na sua dimensão estrutural – requer, portanto, em primeiro lugar, situar
a condição histórica que inscreve a droga como uma mercadoria, ora lícita –
proveniente de uma indústria com lucros aviltantes, ora ilícita – produzida e
distribuída pelo narcotráfico. Em segundo lugar, é necessário compreender o
processo contemporâneo de produção e distribuição da mercadoria droga
como conseqüência das formas atuais de acumulação capitalista”.
Não se pretende aqui desconsiderar os processos individuais, biológicos
e psicológicos, que contribuem para a realização das necessidades de
alteração da psicoatividade e que o consumo, ao longo de um período
significativo da vida das pessoas, condiciona hábitos arraigados e
dependências. Avalia-se, no entanto, que esses processos são, em primeira
instância, determinados pelos condicionantes sociais atrelados ao sistema de
“valores hegemônicos” (Viana, 2007), que moldam as diferentes formas em que
o consumo se apresenta e se desenvolve socialmente.
4. Juventude e Novos Cenários
O reconhecimento da adolescência enquanto uma etapa da vida com
características peculiares é muito recente, remontando no ocidente ao
desenvolvimento da industrialização e conseqüentemente às mudanças sociais
trazidas pela necessidade de maior capacitação técnica para o trabalho. O
aumento dos anos escolares e o maior acesso à escola colaboraram para o
florescimento de uma cultura jovem, despertando o interesse da sociologia
pelos “novos” processos de socialização, bem como da psicologia, que buscou
compreender a formação da personalidade através dos processos de
identificação (Soares, 1997).
O aparecimento de grupos jovens com interesses próprios despertou a
necessidade de reuniões não somente no espaço restrito da escola, mas
também no tempo de lazer. A partir desse ponto, os jovens passaram a
desenvolver então um estilo próprio de roupas, gírias e preferência de
consumo, perfazendo toda uma simbologia que os distinguem como grupos
(Abramo, 1994).
Diferenças conceituais acompanham os termos adolescência e
juventude, sendo que a primeira está relacionada à idéia de ciclo vital,
cronologicamente associada a modificações físicas/biológicas (puberdade) e
psicológicas. Já o termo juventude remete a um sujeito histórico, com
participação social, sendo um período necessário ao processo de socialização
visando à incorporação do sujeito à sociedade, através da interação com as
agências socializadoras, tais como escola, família e os próprios pares (Soares,
2007).
Assumir o termo juventude como categoria social associa-se à
compreensão de que embora os jovens façam parte da mesma geração, eles
não se apresentam homogeneamente, ou seja, passam por diferentes
processos de socialização e de reprodução social a depender da classe social
em que suas famílias estão inseridas. Nessa perspectiva, a juventude, assim
como as demais fases da vida, não é universal, mas depende dos processos
que ocorrem nas classes sociais que suas famílias estão inseridas (Soares,
2009).
5. Formação de Novos Valores Atrelados ao Consumo de Psicoativos
Como Resultado das Transformações do Capitalismo
Na perspectiva do capitalismo, a droga, considerada na sua amplitude
como produto histórico-social e na qualidade de psicoativo, tem força e valor de
mercadoria para fazer frente às novas necessidades imprimidas no cenário
social contemporâneo e naturalizadas pela dinâmica do marketing a serviço do
capital. A necessidade de reprodução cada vez mais ampliada do capital impõe
a criação e disseminação de mecanismos sofisticados na transformação dos
produtos em fetiches da forma-mercadoria aliada à proliferação e naturalização
de novas respostas humanas e estilos de vida.
Para Carneiro (2002, p.12-3) “o consumo das mercadorias fetiches é
estimulado por complexos e cada vez mais poderosos mecanismos de criação
de comportamentos de consumo compulsivo”. Assim, segundo o autor, se
instaura um ideal de uma sociedade cada vez mais viciada: “em alimentos, em
roupas, em carros”. Onde “diversas práticas sociais tomam características
compulsivas: as torcidas esportivas viciam-se em seus times e adotam
comportamentos de dependência, os próprios esportistas, pressionados pela
indústria da quebra dos recordes, viciam-se literalmente em suas próprias
endorfinas, quando não tomam simplesmente aditivos hormonais ou
excitantes. Diversas práticas como o alpinismo ou a direção de carros velozes,
tomam a mesma dimensão viciante e socialmente arriscada de certos
consumos de drogas”.
Diante dessas transformações, atenção especial deve ser dada aos
jovens, uma vez que mudaram também os modelos de identificação, que
passaram da família, da escola e do grupo de pares para a cultura de massas,
resultando um novo modelo de identificação baseado no amor, no prazer e
bem–estar da vida privada, na juventude e no presente. “A juventude, o
presente e o prazer são, no modelo contemporâneo, os objetivos a serem
alcançados, caracterizando-se assim como uma cultura hedonista (Soares,
2009a, p.69).”
No caso da indústria de medicamentos psicotrópicos se observa que o
marketing se vale de promessas de soluções mágicas para problemas
humanos complexos e de difícil solução. Um exemplo é a promessa do corpo
perfeito, que estimulou o crescimento em grande escala do consumo de
anfetaminas por mulheres com a finalidade de emagrecimento rápido,
resultando, muitas vezes, em graves problemas de saúde. Ou seja, a busca
insaciável e desenfreada pela multiplicação e reprodução do lucro se alia a um
sistema de valores do capital: ter o corpo perfeito a partir de determinados
padrões sociais e de um ideal da aparência e valorização do externo.
Também se observa a expansão e crescimento da indústria de drogas
lícitas, com a produção em grande escala de bebidas alcoólicas e tabaco, a
partir da correlação entre o consumo da substância e as sensações de status,
segurança, sucesso, ascensão, prazer, etc. Assim, as bebidas mais caras dão
maior status e vice-versa, existindo assim padrões diferentes de consumo de
álcool dependendo do lugar que o jovem ocupa na estrutura social. Ou dizer
que “certas mercadorias representam, para eles (os jovens), estilos de vida,
marcas de poder que garantem prestígio junto aos iguais e sucesso nas
conquistas amorosas: roupas, carros e também certas bebidas e drogas como
o whisky e a cocaína”. Ainda a “força econômica das empresas de bebidas
pode ser vista pela quantidade e qualidade de propagandas em todas as
mídias, onde o consumo de álcool aparece associado ao glamour, à juventude,
à beleza e à alegria” (Franch, 2003: 54-63).
O consumo de mercadorias, além de incentivado e propagado para
instauração de “culturas de consumo”, assume características compulsivas na
contemporaneidade. Birman (2006, p. 181, 191) destaca algumas modalidades
de compulsão que se naturalizam, não restrita às drogas ilegais, mas também
aquelas “legitimadas cientificamente pela medicina e pela psiquiatria”, como no
caso os “medicamentos psicotrópicos (ansiolíticos, antidepressivos,
estimulantes), que são receitados pelos médicos e psiquiatras, para regular o
mal-estar dos indivíduos, além, é claro, dos analgésicos de potência variável”.
A subjetividade se apresentaria então como “essencialmente narcísica, não se
abrindo para o outro, de forma a fazer um apelo”. Porque “na cultura do
narcisismo, as insuficiências não podem existir, já que essas desqualificam a
subjetividade, que deve ser auto-suficiente”. Aqui se encontra um terreno
propício onde “a psiquiatria biológica pode florescer, já que com os
psicofármacos pode fazer o curto-circuito do sofrimento e atender diretamente
aos reclamos da dor, sem qualquer apelo” (Birman, 2006, p.191-2).
A partir da reflexão sobre a formação das subjetividades
contemporâneas, tendo a primazia no ideal da aparência e do culto ao externo,
observa-se a afirmação de valores alicerçados no modo de produção capitalista
como metas de ascensão e reconhecimento social e ainda de “realização”
humana: ser o melhor, o número um, ter o corpo ideal, a saúde perfeita, obter o
sucesso e status sociais.
Nesse sentido se observa as várias manifestações do consumo de
psicoativos como produto e resultado da vida e do mal estar contemporâneo: a
compulsividade como resposta primordial; o consumo abusivo de anfetaminas
e a relação com o ideal da busca de um corpo “perfeito”; da cocaína como ideal
de potência e capacidade ilimitadas; dos antidepressivos, ansiolíticos e
estabilizadores de humor como soluções mágicas para os problemas da vida
de difícil solução; do consumo de álcool e tabaco como artifícios de
sociabilidade; enfim de formas ilimitadas de medicalização da vida social e
entorpecimento da capacidade de pensamento, reflexão e crítica quando esta
se volta para objetivos de transformação das condições mais gerais da vida.
Historicamente observa-se que uso de drogas responde “às finalidades
de busca de prazer, de desempenho, de sociabilidade, de transcendência, de
alteração de percepções e sensações só que agora numa ambiência cultural
que valoriza a intimidade, que despreza o espaço público e as ações coletivas,
que valoriza o espetáculo e estimula o consumo ilimitado de imagens e de
produtos como únicas formas de satisfação de necessidades” (Brites, 2006, p.
l65).
Cabe ressaltar que do ponto de vista da Saúde Coletiva os valores em
relação ao consumo de substâncias psicoativas devem estar referidos às
diferenças enquanto classe social. Assim sugere-se que “as abordagens sobre
o uso de drogas são, como todas as demais modalidades de práxis, saturadas
de posições de valor que necessitam ser desveladas. Em primeiro lugar porque
na sociedade capitalista os valores podem objetivar interesses de classes”
(Brites, 2006, p. 72). Essa tendência é mais bem compreendida a partir da
dinâmica que se instalou nas sociedades a partir da crise do capitalismo dos
anos 70 propagadora de condições de vida cada vez mais desiguais entre as
classes sociais, com a produção em grande escala de diversos bens e
produtos e, ao mesmo tempo, dificuldades de acesso a esses bens pela
maioria das populações do mundo.
Observou-se até aqui que os diferentes psicoativos, nas suas várias
modalidades e formas de consumo (compulsivo, abusivo, habitual, eventual,
medicinal, etc.) para atingir objetivos humanos (prazer, minimização da dor,
sociabilidade, etc.) e resultando em diferentes problemas de saúde e sociais
(dependências, doenças físicas e psíquicas, mortes por homicídios, etc.),
situados dentro da lógica e dos objetivos do capital reproduzem
primordialmente a sua função de mercadoria, relegando o ser humano ao
segundo plano. Isto significa um distanciamento de “valores fundamentais
autênticos” (Viana, 2007) que refletem a natureza humana e não variam de
acordo com os interesses ou a história, como àqueles relacionados à
solidariedade, às formas de cooperação com interesse no bem comum;
reproduzindo os valores “fundamentais inautênticos” (Viana, 2007) que são
construídos socialmente, a depender do momento histórico, em contradição
com a natureza humana, tais como, o culto ao individualismo e à competição
como formas naturais de se dar bem na vida.
Segundo Viana (2007, p.67) “todo objeto é um objeto-valor” e “a
produção de objetos, em nossa sociedade é uma produção capitalista de
mercadorias”. Ainda “o valor de uso de uma mercadoria revela sua utilidade no
seu uso”, “o seu valor de troca no seu preço” e “o seu valor cultural no próprio
fato de ser uma mercadoria”. Assim podemos compreender a droga como um
objeto onde se incorpora valores à qual tem função de uma mercadoria em
sintonia com os objetivos do capital. Portanto a busca ou motivação para o
consumo pode estar alienada do seu real valor para os objetivos humanos. Ou
seja, a procura por drogas pode estar sendo motivada pelo desejo de status ou
por pressões resultantes da vida de relação (estar com o outro significa
comungar dos mesmos desejos e hábitos) ou pela violência do marketing e das
propagandas através dos meios de comunicação de massa.
Sugere-se que a perspectiva do sujeito histórico, portanto produtor e
produto das mudanças sociais, portador de “valores autênticos” e ao mesmo
tempo condicionados pelos valores capitalistas em ascensão, revela o caráter
de uma “crise de valores decorrente das perversidades sociais introduzidas
pelo processo de globalização e do neoliberalismo, formas atuais de
funcionamento da sociedade de mercado. Tal situação de crise dificultaria
valorizar o que é público e coletivo, perspectivar sua participação na riqueza
socialmente produzida e num projeto utópico de sociedade com liberdade,
igualdade e solidariedade” (Soares, 2007, p.115).
Parte desses valores, considerados como uma categoria mediadora
entre estrutura e dinâmica sociais e os problemas juvenis contemporâneos,
possivelmente perpassa as classes, mas é possível também que parcela deles
possa expressar diferenças entre as distintas classes sociais e até mesmo
representar alguma forma de resistência ou até de antagonismo (Soares,
2007). Para tanto também se considera aqui a condição de grupo ou classe
social quando esta determina diferentes processos relacionados ao consumo
de psicoativos, corroborando diferentes formas de consumo, diferentes
contextos de relações no circuito do mercado dos psicoativos e diferentes
desfechos relacionados.
6. Para Desenvolver uma Cultura do Bem-comum através da
Educação Emancipatória
Jovens do mundo todo estão vivenciando o conjunto de valores que
perfazem a cultura do capitalismo contemporâneo, cuja diretriz fundamental
está relacionada ao desempenho individual e não ao bem-comum. Os matizes
que esses valores assumem nas diferentes classes sociais encaminham
processos de socialização e defechos quanto ao consumo de psicoativos muito
distintos para os jovens.
A nossa proposta, diante das mudanças contemporâneas, é que as
agências de socialização revejam criticamente o conjunto de valores
transmitidos diante da força do capital e de suas novas formas de reprodução.
Conforme vimos esses valores estão imbricados com o consumo prejudicial de
drogas, mas não só, se relacionam também a um certo conjunto de problemas
que vem afetando a sociedade em geral e os jovens em particular: a gravidez
em estágios de formação; formas de se alimentar inadequadas, como bulemia
e anorexia; modificações estéticas artificiais desnecessárias; frustações por
não conseguir consumir bens da moda; certas formas de violência dirigida às
agências de socialização, como contra a escola, entre outros (Soares, 2009a).
Assim, as políticas sociais públicas devem incentivar a discussão de
valores de construção de uma nova cultura (Sennett, 2006) e de uma nova
sociabilidade . “(...) nossa proposta é que nossos jovens sejam incentivados a
“contar suas histórias” à maneira de uma narrativa, ou seja, que tenham um
espaço de recomposição de suas narrativas pessoais, permitindo-lhes agregar
explicações; que sejam incentivados a trabalhar em grupos e a organizar
atividades solidárias” (Soares, 2009a, p.77). Principalmente, que tenham
espaços de socialização capazes de proporcionar a resignificação do espaço
público e o exercício do bem-comum.
Nesse sentido, o processo educativo é instrumento básico. Apostamos
na perspectiva educacional emancipatória, que toma o sujeito da ação
educativa como um sujeito social e político capaz de intervir na realidade
social. As estratégias e técnicas do processo educativo são escolhidas para
propiciar a compreensão da vida em sociedade e despertar para possíveis
soluções de transformação.
O arcabouço operacional com o qual vimos trabalhando com jovens o
tema do consumo de drogas vem sendo construído no diálogo com diversos
autores da área da educação que têm se posicionado criticamente em relação
à educação tradicional propondo uma pedagogia fundamentada na perspectiva
dialética. Procura-se desenvolver um processo de reflexão que criticamente
ponha às claras os processos sociais envolvidos no consumo prejudicial de
drogas. Espera-se que ao conhecer as raízes histórico-sociais desse consumo,
os jovens tenham mais elementos para buscar caminhos alternativos. Nesse
sentido, a discussão dos valores em jogo é elemento-chave do processo
educativo (Soares et al, 2009c).
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