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Pedro Demo
UnB, 2003
1 Este procedimento característico do mundo da ciência não é o único, nem possivelmente o mais
importante. Por exemplo, quando uma criança vai aos Estados Unidos e, brincando com
coleguinhas, depois de 3 meses sabe falar inglês, ocorre um tipo de aprendizagem mais orgânica e
complexa: a criança não estuda lógica, não decora vocábulos, não sabe gramática inglesa, e fala –
quase sempre bem – inglês. Conhecimento e aprendizagem de teor lógico, recorrente representam
um tipo, o mais usado pela ciência e que está na base das tecnologias, que, não por acaso, são
lineares e nisto confiáveis (Demo, 2002a).
complexa não linear; acrescem ainda vícios de falta de
interdisciplinaridade, ao tratarmos a realidade de ótica disciplinar; uma
interpretação sociológica, se for apenas sociológica, significa também um
apequenamento da realidade ao tamanho da sociologia, por mais que seja
inevitável, para imprimir aprofundamento adequado, tratar qualquer
assunto de modo “especializado”; temos aí disjuntiva complicada: não cabe
o “idiota especializado” que sabe tudo de nada, nem cabe o “especialista em
generalidades” que não sabe nada de tudo; um meio termo é combinar o
desafio vertical do conhecimento especializado com o desfio horizontal de
informação e leitura mais amplas; na prática, temos em qualquer texto
tratamento muito limitado e localizado de um tema formalizado;
e) em todo texto é preciso buscar alguma originalidade, pelo menos no
sentido da reconstrução com mão própria; não vale citar demais, esconder-
se atrás dos autores, apenas retratar teorias alheias; é preciso elaborar
posicionamentos próprios, sempre com apoio de teorias vigentes e
relevantes, exercitando a habilidade de argumentar e contra-argumentar;
embora muitos textos sejam apenas exercício acadêmico (trabalhos de
conclusão de curso, teses de mestrado e mesmo doutorado), é fundamental
procurar autoria própria, no sentido de arquitetar textos com perfil próprio;
signo essencial do conhecimento é a autonomia, que não pode ser completa
num ser marcado pela incompletude, mas pode ser sempre mais alargada;
por isso, quando se faz “revisão da literatura”, não basta retratar o que
dizem os autores, mas é mister discutir com eles, argumentar e contra-
argumentar; é preciso “contraler” (Demo, 1994);
f) o jogo teórico implica lógica; embora lógica seja exercício circular (daí
provém a “metanarrativa circular”) (Lyotard, 1989), é forma crucial do
trabalho científico, porque estabelece o sentido da coerência: as partes
devem estar concatenadas, com começo, meio e fim, as idéias precisam estar
articuladas, e o todo necessita apresentar tessitura globalizante; faz parte da
lógica definir bem conceitos e categorias, ainda que tais definições sejam no
fundo circulares (não é possível fazer uma definição que não contenha
termos ainda não definidos), em particular noções mais complexas e
polêmicas; não definimos tudo bem, porque um texto pode conter dezenas
de conceitos e, se fôssemos cercar a cada um deles, não sairíamos disso; mas
é preciso definir da melhor maneira possível o núcleo central de conceitos
chave, para que não variem no texto, nem incidam em possível
contradições lógicas.
3. Por vício metodológico entendemos principalmente dois problemas:
deficiência na concepção epistemológica que não se alerta para a
necessidade de questionar o conhecimento científico; deficiência no
tratamento, produção e interpretação de dados. Aceita-se comumente que a
qualidade do texto está, em grande parte, na cautela epistemológica, através
da qual o autor se conscientiza de seu caminho científico, em particular de
suas deficiências e temeridades. Todos os grandes autores também foram
bons metodólogos, refletindo criticamente o modo como fazem ou faziam
ciência.
Quanto à deficiência epistemológica, cabe assinalar:
a) não é comum encontrarmos autores com consciência crítica e autocrítica
bem formulada em termos do caminho científico próprio; por isso, muitos
que se dizem dialéticos, se apertados, não saberiam definir qual seria sua
dialética, tendo em vista que existem dialéticas para todos os gostos; não se
trata de encontrar o “caminho correto” de fazer ciência, porque, perante
realidade complexa, a flexibilidade metodológica é imprescindível; fórmula
pronta é o que menos serve para captar realidade imprecisa e dinâmica;
trata-se de refletir com persistência e profundidade sobre as polêmicas
metodológicas, de tal sorte que a posição adotada tenha argumentação
mínima e que deverá manter-se aberta; não se busca o “ecleticismo”,
tipicamente relativista e que cai no vale-tudo; mas é válido o “ecletismo”,
ou seja, a noção de que é possível compor métodos, não pela via do
reducionismo, mas pelo respeito a uma realidade tão complexa, que não
cabe em nenhum método; as definições metodológicas serão preferenciais,
prioritárias, tendenciais, mas não exclusivas; “ser dialético” implica saber
definir de que dialética se trata e como o autor a reconstrói;
principalmente, é preciso continuar aprendendo, pois não é boa
metodologia aquela que nos encerra num cárcere de idéias;
b) a inocência metodológica é vício dos mais cruéis, porque não permite
erigir qualquer proposta mais sólida, imprimindo ao autor a pecha de
ecleticismo; não vale, porém, o oposto, como se houvesse metodologias
exclusivas e concluídas; é preciso saber garantir a razão pela qual o autor
considera seu texto digno de ser tomado como científico; significa dizer que
todo autor precisa enfrentar o problema de sua demarcação científica,
mantendo-se permeável ao debate metodológico; a falta de densidade
epistemológica torna o texto um “texto qualquer”, já que está supondo o
que menos se pode supor: sua cientificidade.
Quanto à deficiência no plano dos dados, cabe assinalar:
a) procurando fugir à “ditadura do método” (Morin, 1995; 1996. Demo,
1999), é fundamental colocar a realidade acima do método; este é feito para
aquela, não o contrário; o reducionismo cientifico pode chegar ao extremo
de considerar real apenas o que cabe no método; isto se torna tanto mais
drástico, quanto mais se adota o empirismo positivista, através do qual só
vale o que for lógico-experimental; só vale o que pode ser mensurado,
reduzindo a intensidade dos fenômenos e dinâmicas a conotações
quantificáveis extensas; entretanto, não há dicotomia entre métodos
quantitativos e qualitativos (Demo, 2001): de toda dinâmica pode-se
ressaltar recorrências, assim como em toda quantidade há indícios
qualitativos;
b) há que fugir também da “demissão teórica”: dados empíricos são
construtos teóricos, não existem fora de contexto interpretativo; não são
evidentes em si, mas na trama teórica em que são colhidos; dados são meros
“indicadores” indiretos da realidade, não cabendo impor-lhes expectativas
de fundamentos inabaláveis, porque em todo dado há sempre muita
deturpação; estudos empiristas falam facilmente de “evidência empírica”,
esquecendo o envolvimento teórico na produção dos dados; mesmo assim,
convém muito produzir e usar dados em trabalhos científicos, para
emprestar caráter mais concreto e ilustrativo aos argumentos;
c) pesquisas qualitativas são preferíveis para assuntos qualitativos, sendo
recomendável que se mesclem procedimentos mais e menos quantitativos,
ou mais e menos qualitativos (Turato, 2003); a realidade é que deveria
“decidir”, não posicionamentos prévios; ao final, “decide” a habilidade
interpretativa do autor; abusos metodológicos existem em ambos os
campos: no campo quantitativo, abusa-se da empiria, ao tentar-se colocar o
dado como porta-voz da realidade; no campo qualitativo, abusa-se de
amostras muito pequenas e de deficiência formalizante; a boa
argumentação, de si, necessita tanto de aportes quantitativos, quanto
qualitativos.
Com isto, estou insinuando que a qualidade do texto científico exige bom
fundamento teórico e metodológico. De um lado, está o desafio da boa
teoria. De outro, o desafio da instrumentação para se fazer boa teoria.
Inocência teórica e metodológica é menos inocente do que incompetência
ou malandragem.
III. Formato sugestivo
Ao sugerir formato de trabalho, alerto que não pode ser visto como receita.
A criatividade, por definição, não é receita. É principalmente habilidade de
burlar receitas. Por exemplo, fui uma vez desafiado com a pergunta: se é
importante ser criativo, por que não se pode começar um trabalho com uma
vírgula? Dentro da praxe, seria absurdo, porque qualquer texto começa com
palavra ou título, não com vírgula. Entendo, porém, que um pesquisador
muito criativo poderia dar-se ao talante de começar o texto por uma
vírgula, desde que tivesse para tanto argumentos adequados. O problema é
de argumento, não de vírgula. Não recomendaria isto para principiantes, é
claro.
Tomando em conta o que se discutiu acima, diria que um texto científico
pode ser apresentado no seguinte formato sugestivo e flexível:
Parte I: Introdução
Contém, logicamente falando, três conteúdos:
a) tema do trabalho
b) hipótese de trabalho
c) descrição das partes de que consta o texto.
Nesta acepção, a introdução serve apenas para “introduzir” o texto. Não é
capítulo, nem “consideração geral”. Detém a promessa do texto, a proposta
do autor. Lendo a introdução, fica-se sabendo do que se trata no texto com
a melhor definição possível. Precisa ser breve.
Parte II: Teoria
Pode ser composta de vários capítulos e formula a plataforma explicativa do
autor. Passa pelas teorias, conceitos e categorias considerados estratégicos
para o tratamento do tema, realizando a habilidade “explicativa” do autor.
Inclui o que se chama “revisão bibliográfica”, embora esta expressão corra o
risco de apenas querer retratar de modo reducionista autores e teorias.
Trata-se, na verdade, de estudar a fundo a base teórica disponível, para que
seja possível reconstruir base teórica própria. Precisamos ir além de apenas
descrever, constatar, verificar, entrando no horizonte da argumentação,
fundamentação.
Parte III: Metodologia
Dois são os horizontes centrais da preocupação metodológica:
posicionamento epistemológico e tratamento de dados. Pode acolher vários
capítulos, incluindo necessariamente a razão que o autor tem para
pretender considerar seu texto como científico. Não pode supor
simplesmente, assim como não cabe apenas supor-se dialético, por exemplo,
porque é preciso discutir de que dialética se trata. Este é um dos aspectos
mais difíceis para alunos principiantes, porque é comum a falta de base
epistemológica, que, ademais, demanda leitura complexa. Inclui-se nesta
parte também o que nos cursos se chama de “métodos e técnicas”, estudo
destinado ao tratamento de dados empíricos (quantitativos ou qualitativos).
Por vezes, não se usam dados, quando o texto é teórico ou exercício teórico.
Outras vezes, há que se gerar dados próprios, para além dos dados
secundários (já existentes). É preciso justificar acuradamente os métodos
propostos de coleta e tratamento dos dados, a par da base interpretativa.
Mais que nunca, método não se supõe. É mister definir com a maior
precisão possível, ainda que sirvam para captar realidades imprecisas.
Parte IV: Análise
Podendo conter vários capítulos, a análise significa a “colheita” do percurso
anterior: tendo à mão um bom tema, uma boa hipótese de trabalho, uma
boa base teórica e metodológica, será possível realizar a promessa da
introdução. Pode-se dizer que a análise é a “realização da hipótese”. Se na
hipótese prometi mostrar, a título de exemplo, que política social é
impraticável no capitalismo periférico, trata-se agora de realizar esta
promessa. Posso manter, com argumentos adequados e dados pertinentes,
esta expectativa?
É a parte destinada à habilidade interpretativa, à medida que nela o autor
revela sua qualidade teórica e metodológica, fazendo teorias e dados
“falarem” pela boca de sua criatividade científica. Cabe agora averiguar se
foi possível dar conta do tema adequadamente, se as bases teórica e
metodológica são suficientes, se não persistem vazios e lacunas.
Parte V: Conclusão
Destina-se a dar conta do achado mais crucial do estudo. Precisa ser breve.
Existem trabalhos “bonitinhos”, mas “ordinários”, porque, embora estejam
bem arrumados, não possuem conteúdo apreciável. Existem trabalhos mal
arrumados e, ainda assim, inteligentes, porque mostram habilidade de saber
pensar. O saber pensar fica ainda melhor, quando, além de inteligente, for
bem arrumado. Existem trabalhos bem enfeitados, usando parafernália
digital, mas superficiais, sobretudo reprodutivos, já que na internet,
facilmente, tudo se copia, nada se cria. Existem trabalhos dotados de efeitos
eletrônicos interessantes e também pertinentes, porque o autor soube dar o
devido lugar ao argumento e à roupagem do argumento. Existem trabalhos
curtos e densos, bem como longos e chochos. Existe quem fala demais e de
menos. O que vale mesmo é saber argumentar. A autoridade do argumento
é a única não autoritária. Merece respeito.
I. INTRODUÇÃO
a) tema
b) hipótese de trabalho
c) partes do texto
II. TEORIA
Montagem da plataforma explicativa do texto
Autores, teorias, conceitos e categorias
Habilidade de argumentação
III. METODOLOGIA
a) base epistemológica (cientificidade do texto)
b) produção, tratamento e interpretação de dados
IV. ANÁLISE
“colheita”
realização da hipótese
V. CONCLUSÃO
achado crucial
Para concluir
Cabe ressaltar a face formativa da lide de pesquisa. Não está em jogo apenas
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