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Fantasia

A pesquisa etnográfica
de Renata Pereira Lima
virou uma participação
observante: correndo com
um grupo amador, ela

de
analisou a imagem que os
atletas de corrida fazem
de si mesmos, como eles

atleta
se expressam e como
gostariam de ser percebidos
pelos outros. As marcas
do esporte vieram preencher
as lacunas que faltavam
para construir essa imagem
idealizada. E entender
os anseios desses
atletas-consumidores pode
ser a chave para Renata Pereira Lima
muitas estratégias de marca.
Normalmente, trabalhos de natureza acadêmica não navegam bem no ambiente de ne-
gócios, seja pelo seu jargão característico, seja pela pequena difusão fora da universidade.
E, por sua vez, os papers e estudos criados em empresas e entidades profissionais pade-
cem de uma falta de conexão com a academia.

Este livro, escrito por nossa Diretora Associada Renata Pereira Lima, consegue superar
a distância entre esses dois mundos. Ele tem a virtude de ter sido criado com uma raiz
acadêmica e depois repaginado, em sua linguagem e estrutura, para conviver muito bem
com nossa atividade profissional. Formada em Administração
de Empresas pela Fundação Getúlio
“Fantasia de Atleta: corredores e imagem” é um excelente exemplo de como a fertiliza- Vargas (FGV) e pós-graduada
ção complementar de metodologias de investigação e análises acadêmicas e mercadológi- em Marketing pela Escola Superior
cas podem construir um produto intelectual estimulante. de Propaganda e Marketing (ESPM),
a paulista Renata Pereira Lima
O livro mostra como a real compreensão das conexões entre consumidores e marcas não po- é mestra em Antropologia pela PUC-SP
de prescindir de uma sistemática e profunda imersão no universo e na cultura de valores e corredora nas horas vagas!
das pessoas. O que aprendemos nos últimos duzentos anos com antropólogos não pode mais Diretora Associada da Troiano Consultoria
ser deixado de lado por nós, profissionais de mercado, sob a pena de incorrermos em com- de Marca, onde atua desde 2003,
preensões apenas superficiais e literais sobre como as marcas entram na vida dos consumi- é responsável por planejamento e execução
dores e como elas podem se transformar em supremas ferramentas de negócios. de projetos de gestão de marca.

“Fantasia de Atleta” revela com muita clareza como algumas marcas, neste caso no mer-
cado de equipamentos esportivos, são capazes de transportar seus usuários do “eu atual”
para seu “eu ideal”. O que talvez seja a mais essencial contribuição que as marcas podem
oferecer para criar relações sólidas com consumidores. E, simultaneamente, revestirem-
se de valor, criarem condições para praticar preços diferenciados e, como consequência de
tudo isso, beneficiarem-se pela sua lucratividade.

É um prazer para a Troiano editar este trabalho tão bem alinhado com o pensamento de
nossa empresa. Boa leitura!

Jaime Troiano
Diretor-Sócio da Troiano Consultoria de Marca

Para Rodrigo, Luísa e Fernando


Sumário
4.
Corredores e imagem

12.
Observação participante

20.
Grupos de afinidade

30.
Marketing do esporte

40.
Marcas e imagem

52.
Marcas de tênis

62.
Linha de chegada
Corredores
e imagem
É muito comum existir uma distância perceptual entre o eu atual e o eu ideal das pes-
soas. Geralmente, elas são de um jeito, mas gostariam de ser de outro. Estudos da Troia-

D
no Consultoria de Marca mostram que esse espaço de idealização existente entre o
eu atual e o eu ideal é preenchido pelas marcas: são elas que ajudam os consumidores
a construir a imagem idealizada de quem eles gostariam de ser.
urante um ano, convivi com corredores amadores participantes de um
grupo de corrida com a finalidade de realizar uma pesquisa para o
eu espaço de idealização eu
atual + = ideal
meu Mestrado em Antropologia. Como método, escolhi a etnografia,
pela sua capacidade de apreender a cultura de um grupo, seus valores, de
entender o que as pessoas desse grupo pensam e sentem. Segui os passos do antropólogo marcas
“a única maneira de conhecer
Bronislaw Malinowski, para quem
os outros é partilhando suas existências”, e dei início à mi- No caso da corrida, a maneira como os corredores se relacionam entre si, com seus trei-
nha observação participante. nadores e com a vestimenta (uniforme da equipe e tênis, principalmente) dá boas pistas
sobre a identidade que pretendem construir e quais marcas se encaixam nessa busca.
Ao invés de olhar o grupo pelo “lado de fora”, decidi que teria um olhar “de dentro”: E, falando nelas, ficou claro que as principais marcas de tênis – Asics, Mizuno e Nike –
foi aí que me tornei uma pesquisadora-corredora. Em 12 meses de pesquisa, com sol desempenham papel importante nessa imagem idealizada dos corredores.
ou (pouca) chuva, participei de 156 treinos e 5 provas que variavam de 6 a 10 km. Com
isso, minha pesquisa etnográfica virou uma participação observante e eu, Na idealização do que é ser um corredor amador, corredores iniciantes e experientes ou
uma “atleta amadora”! “iniciados” não compartilham a mesma imagem. Cada um deles constrói a sua própria

Meu objetivo foi analisar a imagem que os corredores fazem de si: como se veem, quais
valores os caracterizam e os unem, descobrir se o grupo de corrida exerce algum tipo de
“fantasia de atleta”,
ou seja, cada qual se relaciona com a corrida e com o grupo de corrida por meio de di-
influência nessa imagem. Em outras palavras, foi entender o que compõe o seu “eu ferentes simbologias. Nesse sentido, não apenas as marcas de tênis, mas também os gru-
atual” ou a forma pela qual se veem. E, como contraponto, descobrir a imagem que eles pos de corrida são marcas que carregam distintos significados incorporados ou cons-
gostariam de ter idealmente, como eles desejariam ser percebidos, isto é, o seu “eu ideal”. truídos pelos próprios corredores, preenchendo, assim, as suas “fantasias de atleta”.

6
correr
e pesquisar 7
a no após ano, as corridas de rua vêm conquistando os espaços públicos
das grandes metrópoles, atraindo novos adeptos. O desejo de praticar uma
atividade física e a busca de um estilo de vida mais saudável
abriram espaço para esse esporte na vida contemporânea. O seu grande crescimento foi
potencializado pelo surgimento das assessorias esportivas, empresas formadas por pro-
fissionais de educação física especializados em corrida, que passaram a organizar trei-
namentos em grupo para atletas amadores. As assessorias esportivas popularizaram o
Identificar o papel que as principais marcas esportivas representam na ima-
gem idealizada do corredor é quase um desdobramento natural da pesquisa. Elas exer-
cem alguma influência na construção da imagem dos atletas? Corredores iniciantes
compartilham essa mesma imagem, ou ela é construída ao longo do tempo, através da
convivência com corredores iniciados? Os corredores percebem-se de forma diferen-
ciada ao utilizarem esta ou aquela marca esportiva?

Corredores iniciantes e iniciados valem-se das mesmas


compor a sua imagem de atleta?
marcas
Em outras palavras, as marcas de tênis, tais como Asics, Mizuno e Nike exercem in-
para

acesso ao esporte e facilitaram o ingresso de corredores iniciantes nesse meio. fluência semelhante sobre os corredores do grupo?

Nas assessorias esportivas, ou grupos de corrida, os corredores iniciantes convivem com


corredores mais experientes, mas que estão longe de ser profissionais no esporte. O ca-
As marcas de esporte, assim como as marcas de
ráter amador está na essência dessa nova atividade: os participantes reconhecem suas
qualquer outra categoria de produto ou serviço, re-
limitações físicas e não possuem ambição de se tornar atletas profissionais. O objetivo velam as imagens que seus usuários desejam trans-
é, basicamente, praticar o esporte e superar desafios pessoais. A participação em pro- mitir para as outras pessoas, ou seja, qual o tipo de atleta que eles
vas pode ser uma consequência desse objetivo. gostariam de ser ou de aparentar ser.

Mesmo sabendo que não subirão ao pódio das principais corridas de rua, os corredores Uma determinada marca de tênis de corrida , por exem-
amadores sentem-se pessoas diferenciadas, vencedoras e dignas de destaque no meio plo, sugere que o atleta é um vencedor, pois correrá mais rápido, superará obstáculos,
em que circulam. Identificam-se entre si pelo status e prestígio, mesmo que inconscien- conquistará desafios e vencerá limites. Outra marca reforça que o corredor que usa seus
te, de fazer parte de um grupo de corrida. Querem ser percebidos como pessoas ativas tênis fez uma escolha inteligente, pois passa a pertencer a um grupo maior de corredo-
e saudáveis, que praticam esse esporte de forma orientada e séria, apesar de amadora. res, mais experientes, e que também optaram por ela. Uma terceira marca de tênis dei-
Querem ser notados como atletas que adotaram a corrida como esporte, à qual se de- xa implícito o fato de seu usuário ser um corredor consciente, preocupado em correr
dicam com determinação. com segurança, que protege seu corpo dos impactos causados pela corrida.

marcas de
8 esporte 9
Áreas de pesquisa:
Marcas e Antropologia

Recorte da pesquisa:
Assessorias esportivas/grupos de corrida

Características do grupo menor


(Parque Villa-Lobos): Vinte pessoas, 60% homens
Objeto do estudo: e 40% mulheres, com idade média entre 25 e 60 anos.
Assessoria esportiva Run&Fun, em São Paulo

Critério da escolha: Características do grupo maior


(Cidade Universitária): 200 pessoas, 55% homens e 45% mulheres,
Uma equipe de corredores mais numerosa permitiria um estudo com idade média entre 20 e 65 anos.
mais abrangente. Em 2005, a Run & Fun estava presente em seis
diferentes locais da cidade (Cidade Universitária-USP, Parque
do Ibirapuera, Parque da Água Branca, Parque Villa-Lobos, Jockey
Frequência dos encontros:
terças e quintas-feiras, das 6h30 às 8h30, no Parque
Club e Alphaville). Aos sábados, os atletas de todos os grupos
Villa-Lobos e aos sábados, das 7h às 10h30, na USP.
reuniam-se na Cidade Universitária para um treinamento único.

corrida
Proposta de estudo: Duração do estudo:
Analisar a imagem que os corredores De janeiro a dezembro de 2005.
fazem de si: como se veem
e como gostariam de ser percebidos.

2oo5
um ano de
Observação
participante
Como pesquisadora, meu interesse era conhecer, absorver e decodifi-
car a dinâmica cultural do grupo de corrida a partir de um olhar interno, ou seja, de den-
tro para fora e não de fora para dentro. Para isto acontecer, era preciso me
fundir ao grupo, ser “um deles”, pertencer. Como todos os membros
da equipe, sem exceção, eram moradores dos bairros próximos ao Parque Villa-Lobos (Al-
to de Pinheiros, Vila Madalena, Vila Beatriz, City Lapa, Vila Leopoldina), ser também
uma moradora “da região” foi um fator importante para começar a ser percebida como
“igual”, como parte do grupo. Além disso, minha idade estava dentro da faixa etária de
maior incidência na equipe e tinha um perfil sócio-econômico-cultural semelhante.

Assim, evitei ser vista como uma pessoa de fora, estranha ao perfil do grupo, que se juntaria
a ele somente para observá-lo. Não desprezo a importância do distanciamento ou da experi-
ência da alteridade (estado ou qualidade do que é outro, distinto, diferente), tão fundamental
Antropologia é a ciência que estuda o homem e a cultura
na Antropologia, mas defendo que é possível estar fisicamente dentro de um grupo e ter, ao
“aprender a ver o que é nosso
mesmo tempo, uma postura que permita anthropos = homem; logos = estudo
como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse Busca conhecer o ser humano como membro de grupos organizados, a partir da análi-
nosso o que é estrangeiro” (“De Mauss a Lévi-Strauss”, Merleau-Ponty, 1984). se de suas crenças e valores, hábitos, comportamentos e atitudes, linguagem, manifes-
tações culturais etc.
O fato de “ser um deles” não implica em ausência de distanciamento ou em perda da
importância do “outro”. Muito pelo contrário, “ser um deles” exige uma maneira de pen-
Os primeiros estudos antropológicos ocorreram na época das colonizações, quando as
sar diferente, exige mais estranhamento, exige mais perplexidade. Como complementa
diferenças entre as culturas dos colonizadores e colonizados eram motivo de grande es-
Merleau-Ponty, “também viramos etnólogos de nossa própria so-
tranhamento. Povos culturalmente distantes da “civilização” foram, por muito tempo,
ciedade, se tomarmos distância com relação a ela”. considerados “primitivos”.

“Tornar-se um nativo” é, portanto, uma das várias formas de O “laboratório científico” do antropólogo é a pesquisa de campo, onde faz uso de uma
se conduzir uma análise antropológica e estruturar os seus resultados. Mas, indepen-
metodologia específica, desenvolvida para registrar as suas observações: a etnografia
dentemente da forma, o importante é descobrir o que os “nativos” acham que estão
fazendo. “Ninguém sabe tão bem o que eles estão fazendo quanto eles próprios”, afir-
Observação e descrição, análi-
(éthnos = povo; graphein = escrever).
ma o antropólogo Clifford Geertz (“A interpretação das Culturas”, 1989). Esse motivo se e reconstituição das culturas: o desafio é investigar
era forte o suficiente para que eu me tornasse uma “nativa”. todos os aspectos culturais que estão em jogo.
Optei pela fusão dos papéis de “informante” e etnógrafa para poder elaborar uma inter- Antropologia X Sociologia: dentro das Ciências Sociais, são as que mais se aproximam
pretação em primeira mão, com o cuidado de manter o distanciamento em relação ao gru- entre si. Ambas estudam o homem que vive em grupos, mas enquanto a primeira pre-
po. Ao mesmo tempo em que precisava estudá-lo, não podia perder a visão crítica dian- ocupa-se com o conceito de cultura, a segunda concentra-se no conceito de sociedade e
te dos fatos, que tendiam a parecer cada vez mais comuns com o passar do tempo. seus sistemas econômicos, políticos e normativos.

pertencer e
14 manter distância 15
e u chegava e saía dos treinos com meu próprio carro, assim como os demais
corredores do grupo. Usava o mesmo tipo de tênis, das mesmas marcas, o mesmo mo-
delo de camisetas e frequencímetro, assim como eles. Participava das mesmas ativida-
des durante os treinos, competições e eventos. Segui o caminho de Malinowski que,
“tendo compreendido que a única maneira de conhecer os outros é partilhando suas
existências, ele inventou literalmente e colocou em prática pela primeira vez a obser-
vação participante, dando-nos o exemplo do que deve ser o estudo intensivo
de uma sociedade que nos é estranha” (“A Descrição Etnográfica”, Laplantine, 2004).
Ao longo dos 12 meses da minha pesquisa etnográfica, utilizei técnicas e processos tí-
picos de uma etnografia tradicional, como estabelecer relações com os “informantes”,
transcrever diálogos e manter um detalhado diário de campo.

No grupo de corrida, questões aparentemente simples, como perguntar para outro cor-
redor quanto tempo ele demorou para terminar uma prova, poderiam ser descritas su-
perficialmente como meramente informativas.

A pesquisa etnográfica, no entanto, revelou significados que remetem, por exemplo, à


competição velada existente no grupo, e muitas vezes ocultada pelo seu caráter amador
Como complementa James Clifford, “a
observação participante obriga e amistoso. O próprio nome do grupo “Run & Fun” (corrida e diversão) pode ser inter-
seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelec- pretado como uma tentativa de minimizar as questões competitivas e intrínsecas do es-
Ela requer (...) um grau de envol-
tuais, as vicissitudes da tradução. porte, priorizando o entretenimento e a integração das pessoas.
vimento direto e conversação, e frequentemente um
‘desarranjo’ das expectativas pessoais e culturais” Após o meu primeiro treino, em janeiro de 2005, comecei a escrever o meu diário de campo.
(“A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”, Clifford, 2002).
Nele registrava: 3 Acontecimentos e seus desdobramentos
A observação participante serviu de base para a realização des-
3 Hábitos
se trabalho etnográfico, que enfatizou o poder da observação de comportamentos, roti-
nas e hábitos dos corredores, além dos movimentos e “gestos característicos passíveis de 3 Interação com os atletas e treinadores
registro e explicação por um observador treinado” (Clifford, 2002).
3 Rotinas
Como eu me tornei parte integrante e ativa do ato e do discurso social, essa pesquisa et-
nográfica foi mais do que uma observação participante. Passou a ser, na verdade, uma 3 Comentários sobre as marcas esportivas

participação observante, 3 Descobertas


ou seja, os comportamentos analisados refletiam os corredores em seu ambiente natural. 3 Assuntos das conversas durante os treinos
Isso evitou a reprodução glamourizada de relatos que espelhassem apenas como os cor-
redores gostariam de ser vistos pelos outros.

16
participar
e observar 17
Para minha surpresa, fui aos poucos gostando de correr, a ponto de
passar a dormir cedo às sextas-feiras ou de deixar de viajar nos finais de semana para po-
der treinar aos sábados de manhã, de acordar às seis da manhã aos domingos para par-
ticipar de competições que geralmente começam às oito horas. Em setembro de 2006, par-
ticipei de minha primeira meia-maratona (21 km). Essa pesquisa colocou o desafio de investigar os elementos que compõem o código da
imagem dos corredores. 3Esses elementos existiam de fato?
Considerando que os corredores dizem o que pensam, mas fazem o que
sentem (como sempre defendeu Jaime Troiano acerca dos consumidores), somente es- 3Que valores uniam estas pessoas?
tando “na sua pele” para aprender novos significados de palavras como “esforço”, “sofri-
mento” e “superação”. Além de aprendiz de corredora, também fui aprendiz de antropó- 3Seriam de qual natureza?
loga, pois sou administradora de empresas com especialização em Marketing!
3A vivência etnográfica permitiria perceber
a eventual influência das marcas
esportivas dentro do grupo de corrida?
Para correr em grupo é preciso aprender algumas regras, rotinas e hábitos, fazer os proce-
dimentos de um determinado jeito. Alongar-se antes e depois de correr, medir a frequ-
ência cardíaca e informá-la ao treinador, alimentar-se corretamente antes e depois dos
treinos e provas etc. É preciso, também, aprender o jargão do esporte, ou seja, o significado
de expressões como “correr para quanto?” (em quanto tempo vai fazer cada qui-
lômetro ou em quanto tempo vai terminar a corrida) ou “quebrar na prova”
(não conseguir chegar ao final). E, ao juntar-se ao grupo de corrida, aprender que “quem
entende de corrida” só usa tênis das marcas Asics e Mizuno.

Não “pega bem” utilizar uma camiseta de uma prova da qual o atleta não participou ou van-
gloriar-se por ter sido o corredor mais rápido do grupo em determinada corrida. Ou mesmo
usar um tênis Nike se não quiser ser percebido como um iniciante no esporte. Esses são alguns
exemplos de atitudes identificadas no grupo de corrida pesquisado, que explicitam elementos
as pessoas se mos-
que constituem a imagem dos corredores e confirmam que
traram como realmente são, como pensam, o que va-
lorizam, o que fazem e o que não fazem.

18 19
Grupos de
afinidade
e stá cada vez mais comum encontrar grupos, comunidades ou “tribos”
de pessoas reunidas por interesses comuns. Há séculos os processos de integração so-
cial estão concentrados nas relações de parentesco e vizinhança, mas na nossa socieda-
de moderna, a dinâmica tem mudado muito.

Vivemos uma silenciosa revolução comportamen-


tal, que levou à fragmentação das relações entre as
E onde as marcas entram nessa história? As marcas estão ocupando um papel muito po-
Vemos que existem laços de pro-
deroso e peculiar nesse contexto.
ximidade, ainda que intangíveis, entre milhões de
pessoas que consomem e partilham os valores de
uma mesma marca!
nova era da tribalização!
Esse é um dos sinais mais evidentes da
Um bom exemplo disso são os consumidores que têm assinatura da OSESP (Orques-
tra Sinfônica do Estado de São Paulo). Laços intangíveis unem essas pessoas ao redor
dessa marca. Elas dividem, inconscientemente, este sentimento de pertencer a esse gru-
po seleto. Outro exemplo são os consumidores de produtos da Apple. Logo após cada
pessoas. Essa fragmentação tende a gerar uma individualização extrema dos in- um dos respectivos lançamentos, ter um Macintosh, um iPod, um iBook ou um iPho-
divíduos e um consequente isolamento social. Os momentos de integração e encontro ne significava pertencer ao “mundo do futuro”, estar sincronizado com o que existia de
dos mesmos grupos de pessoas são cada vez mais raros. mais “cool” e tecnológico.

Mas isso tem um limite: não suportamos a fragmentação por muito tempo. Ao lado des- Em outras palavras, existem conexões que unem os consumidores de uma mesma mar-
se processo, tem emergido, quase que simultaneamente, uma busca por novos processos ca. É esse compartilhamento de valores, ideias e “mindsets” que faz com que as pessoas
de reintegração, quase como um antídoto para combater os sintomas se tornem próximas, ainda que não fisicamente.
do isolamento social. Percebe-se uma busca latente pela reaproximação en-
tre as pessoas. Pela necessidade de pertencer a algum grupo, a alguma comunidade ou
a alguma tribo. É por isso que vemos, além dos grupos de corredores dos parques, reu- Na era da nova tribalização, o intangível, a mística
niões de motoqueiros, tribos da ioga, confrarias de gastronomia ou vinhos que se reú- e o mito das marcas têm o poder de reintegrar as
nem para comer e beber... pessoas.

a nova era da
22 tribalização 23
Voltando ao mundo da corrida, vemos que existem fortes
traços de contemporaneidade em um ambiente aparentemente trivial e ordinário como o
dos grupos de corrida e das marcas esportivas. As pessoas usam as mesmas marcas de tê-
nis e, por isso, acabam tendo uma aproximação com o grupo, ainda que inconsciente.
As relações interpessoais são passageiras e transitórias, e, no
limite, duram o tempo em que os corredores frequentarem os treinos. No dia em que os As pessoas que hoje fazem parte do grupo de corrida da Run & Fun do Villa-Lobos
atletas resolverem correr sozinhos, ou quando quiserem “dar um tempo” sem correr, por podem não ser as mesmas que farão parte do grupo amanhã. O grupo é fluido,
exemplo, estarão sujeitos a romper os frágeis vínculos existentes com os demais corredo- “escorre”, não se atém a uma formação com estas ou aquelas pessoas. Os atletas
res do grupo. A relação desses consumidores com as marcas de tênis, porém, estará esta- entram e saem da equipe e o grupo permanece existindo, assim como as marcas.
belecida: eles já terão “aprendido” quais são as marcas de quem “entende de corrida”. Reuniões momentâneas como estas são consideradas por Bauman como um
fenômeno das sociedades atuais: reunir-se e dispersar-se;
Na visão do sociólogo Zygmunt Bauman, esse é um fenômeno urbano contemporâneo encontrar pessoas que compartilham a mesma atividade e
por excelência, típico das grandes metrópoles modernas, que apresenta características utilizam as mesmas marcas; criar vínculos e laços, ainda
semelhantes às dos fluidos. Para ele, a “fluidez” é a melhor metáfora para expli- que efêmeros; conviver com as pessoas que praticam a mes-
car o momento da era moderna em que vivemos, pois “os líquidos, diferentemente dos ma atividade ou compartilham os mesmos ideais, ainda
sólidos, não mantêm a sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fi- que superficialmente.
xam o espaço nem prendem o tempo. (...)
A vida nas sociedades contemporâneas e, especialmente, nas grandes metrópoles, é com-
Os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e posta por diversos grupos como estes. Os vínculos existentes entre seus membros podem
estão constantemente prontos (e propensos) a mu- ser fluidos ou sólidos, dependendo do tipo de relação que se deseja ter ou construir.

dá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca A fluidez, portanto, pode ser fruto de uma escolha individual, consciente e moderna,
ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um momento’” (“Modernidade Lí-
mas caracteriza, cada vez mais, grande parte das relações que mal podem ser descritas
quida”, Bauman, 2001).
como pessoais.

Nesta“modernidade líquida” não se po-


de ignorar o tempo, pois as “descrições de líquidos são fotos instantâneas, que preci-
Manter “relações líquidas” e efêmeras com a maio-
ria das pessoas é uma forma de pertencimento à no-
sam ser datadas”. va era da modernidade líquida.

vínculos
24 fluidos 25
marcas e
grupos
Os corredores iniciantes querem ser reconhe-
cidos como corredores; os iniciados querem ser percebidos como corredores “sérios”.
Iniciantes curtem a animação de uma mega-corrida-evento; iniciados preferem a seletivi-
dade das corridas menores. Iniciantes querem se sentir parte do grupo; iniciados querem Sendo assim, além de oferecerem um equipamento para a prática da corrida, as
mar-
fazer parte do grupo que “entende do assunto”. Iniciantes correm com tênis Nike; inicia- cas esportivas também oferecem uma promessa de tran-
dos correm com Asics ou Mizuno. quilidade. Elas se propõem a desempenhar o papel de “acalmar” os seus consumi-
dores, reafirmando as decisões que eles tomaram. Funcionam como uma garantia, como
Independentemente da marca de tênis escolhida – Asics, Mizuno ou Nike – inician- um apoio para consumidores nos seus momentos mais inseguros.
tes e iniciados estão em busca de um aval de segurança: am-
bos querem ter a tranquilidade e a certeza de que fizeram a melhor escolha, que não se As marcas de tênis não são as únicas a desempenhar esse papel no ambiente da corrida.
limita aos aspectos técnicos dos produtos (sistemas de amortecimento com tecnologia avan- As próprias assessorias esportivas também podem ser conside-
çada, o modelo mais adequado ao tipo de pisada, o tênis mais leve etc.). Esse aval também radas marcas. Além de possuírem nomes diferenciados, como Run & Fun, Find
contempla, principalmente, os aspectos mais subjetivos das marcas: corredores que- Yourself ou Equipe Movimento, procuram oferecer serviços de treinamento em corrida
rem ter a confiança e a tranquilidade de que escolheram a marca que distintos umas das outras e geram uma série de sensações e percepções subjetivas em seus
todo mundo usa. Ou a marca de quem entende de corrida. Ou a marca que fornece mais atletas. Por serem capazes de suscitar associações de marca, como uma forma de diferen-
status e prestígio ao seu usuário. ciação de seus concorrentes, incorporam os seus aspectos mais subjetivos, reafirmando a
condição de serem consideradas como marcas em seu sentido mais amplo.
A decisão por esta ou aquela marca, portanto, pode ser entendida como uma forma não
verbalizada de aliviar tensões e minimizar as dúvidas intrínsecas ao processo de escolha, A marca Run & Fun diz muito sobre quem são os corredores que decidiram se juntar a
sejam elas objetivas ou subjetivas. Os corredores não querem ter dúvidas de que seus ela e o que eles esperam da corrida. Os atletas pesquisados demonstram uma vontade de
R$ 500 foram bem gastos. Os iniciantes querem ter a segurança de que não estarão “por conciliar a prática do esporte com diversão. Apesar de te-
fora” e de que, efetivamente, fazem parte do grupo de corrida. Os iniciados, por outro la- rem consciência de que são atletas amadores, sem pretensão de vencer corridas de rua,
do, não querem ter nenhuma dúvida de que entendem de corrida e de que fazem parte não querem só correr ou se preparar para determinadas provas. Também querem desfru-
de um grupo maior de pessoas que pensam e agem da mesma forma. tar de um ambiente agradável, leve e divertido. Durante os treinos mais intensos e difí-
ceis, os atletas costumam “cobrar” dos treinadores: “Ei, por enquanto só vi ‘run’ neste trei-
Os dois tipos de corredores depositam nas marcas no... ’fun’, que é bom, nada...” O perfil dos treinadores da Run & Fun também está ali-
as suas inseguranças e frustrações, assim como as nhado com estas associações da marca. De uma forma geral, são pessoas divertidas, en-
graçadas e que demonstram preocupação em preservar esse ambiente de descontração.
suas aspirações e expectativas.

26 27
Nessa convivência com o ambiente da corrida, notei as diferenças mais flagrantes en-
tre o grupo estudado e outras assessorias esportivas. Uma delas foi a T.P.M. (Treina-
mento Para Mulheres), que oferece basicamente os mesmos serviços da Run & Fun, mas
“menino não entra” no grupo. Seu uniforme é cor-de-rosa, os treinamentos no Parque
Villa-Lobos começam um pouco mais tarde e, além da corrida, dedicam uma parte do
Assim como ocorre com muitas marcas presentes no mercado, as marcas de gru-
treino a exercícios de musculação para as regiões “mais solicitadas” pe-
las mulheres (glúteos, abdômen e pernas). po de corrida também podem conferir status aos seus cor-
redores. Além de oferecerem os serviços de orientação técnica para a corrida, confe-
rem aos seus atletas a percepção de que eles são pessoas diferenciadas e especiais.
Essas diferenças não indicam que as integrantes do T.P.M. não têm a preocupação de
se divertir ao fazer um esporte. Essas atletas, tão amadoras quanto os corredores da
Run & Fun, apenas priorizam outras associações de marca. A marca funciona como uma credencial, que por si
só, “promove” o corredor.
Para elas, a opção de praticar atividades físicas exclusivamente na companhia de mu-
lheres é um fator muito relevante nessa escolha. Correndo muito ou pouco, participando de todos os treinos ou de apenas alguns, atin-
gindo ou não os seus objetivos pessoais, o simples fato de fazer parte de um grupo de
A marca M.P.R. (Marcos Paulo Reis) é outro exemplo. Essa assessoria esportiva também corrida já é uma forma de se diferenciar dos demais corredores amadores.
oferece serviços semelhantes aos da Run & Fun, mas o traço subjetivo que as diferencia é
a presença de um caráter competitivo mais acentuado na M.P.R.. Tudo sentimento
A marca do grupo potencializa, portanto, esse
indica que seus atletas optam por um tipo de treinamento mais voltado para a perfor-
mance esportiva, para a participação em provas com uma preocupação maior na velo-
cidade, no tempo gasto para completá-las.
de fazer parte, mesmo que seja através
de vínculos efêmeros e voláteis que podem se desfazer rapidamente.

28 29
Marketing do
esporte
Segundo a Secretaria de Esportes de São Paulo, a corrida de rua também é uma das mo-
dalidades esportivas que mais cresce na cidade.

Quantidade de provas por ano (em SP) cerca de 100

50
40
14

o sucesso da Volta de São Paulo e da Volta de Piracicaba, realizadas em 1918 e


1919 respectivamente, e de uma corrida noturna francesa em que os corredores carre-
gavam tochas de fogo durante o percurso serviram de inspiração para o jornalista Cás-
per Líbero criar a Corrida de São Silvestre em 1924, na cidade de São Paulo. Na sua
primeira edição, apenas 60 corredores se inscreveram e, destes, apenas 48 comparece-
ram para disputar a corrida. Atualmente, essa prova, que acontece sempre no dia 31 de
dezembro, chega a levar vinte mil participantes às ruas de São Paulo, conforme dados
do site da competição.
2002 2003

mo a de Nova York e a de Paris.


2004 2009
Em 2004, 50 provas fizeram parte do calendário anual de São Paulo: quase uma prova por
final de semana. Para 2009, cerca de cem provas já estão previstas na capital paulista.

De acordo com o site da Maratona de Revezamento do Pão de Açúcar, em 13 anos de


história, a prova cresceu 30 vezes em relação ao número inicial de participantes, fir-
mando-se como uma das maiores corridas de rua da América Latina e a maior do Bra-
sil. Nivelou-se, em número de inscritos, com as maratonas mais famosas do mundo, co-

As sociedades contemporâneas, porém, não foram as primeiras a desenvolver ativida-


des físicas coletivas. Na Idade Média, as pessoas já jogavam futebol onde hoje é
a atual Inglaterra, os cortesãos de Luís XIV possuíam as suas quadras de tênis, os anti-
gos gregos, pioneiros do atletismo e de outros esportes, organizavam competições de jo-
gos locais e entre Estados em escala grandiosa. Os Timbira, povo indígena que habita o
a corrida de rua é hoje
Segundo a Confederação Brasileira de Atletismo,
interior do Maranhão e partes dos Estados do Pará e de Goiás, praticavam corrida de to-
ras, assim como os índios Xerente (Tocantins) e os Xavante (Mato Grosso).
uma das maiores manifestações esportivas no Brasil,
com centenas de provas em todo o país e milhares de O renascimento dos Jogos Olímpicos do nosso tempo também indica
participantes. que o esporte não é um assunto novo.

32
a corrida
de rua 33
Um dos raros estudos sociais contemporâneos sobre a corri- No Brasil, não foi apenas a quantidade de atletas e de corridas de
da de rua é a pesquisa etnográfica realizada pela antropóloga francesa Martine Segalen. rua que cresceu significativamente nos últimos anos, após um início tímido nos anos
Maratonista há 25 anos, ela se propôs a investigar as imensas transformações pelas quais 1980. O mercado que se alimenta das corridas de rua também foi fortemente impulsiona-
a corrida havia passado, a ponto de chegar a reunir milhares de pessoas nas ruas. Ao dar- do: empresas especializadas em organizar as provas, marcas patrocinadoras, órgãos oficiais
se conta de que uma maratona como a de Barcelona conseguia juntar cerca de 80.000 pes- em todos os níveis, revistas e sites especializados no tema, além dos fabricantes de equipa-
soas, percebeu que havia uma questão comportamental que a Antropologia poderia abor- mentos esportivos. Segundo a Federação Paulista de Atletismo, esse mercado movimentou
dar. Segundo Segalen, a corrida de rua surgiu no final dos anos 1960, a partir de uma R$ 7 milhões no Estado de São Paulo em 2005, somente com as inscrições para as compe-
“influência ecológica que ressalta a alegria das corridas através dos bosques, mas é na ci- tições. De acordo com a CORPORE (ONG Corredores Paulistas Reunidos), cada evento
dade que ela se expande” (“Ritos e rituais contemporâneos”, Segalen, 2002). esportivo gera trabalho para aproximadamente mil pessoas, entre socorristas, médicos, blo-
queios, pessoal da medição, inscrições, organização, arbitragem, montagem de kits, pla-
A autora, porém, elege o intervalo que vai da década de 1970 até o início da década de cas, palcos, grades e barracas.
1990 como objeto de estudo da corrida de rua, já que foi nesse período que a ati-
vidade tomou corpo distinguível e organizado. Em “Les Enfants d’ Achille et de Nike”, Outro indicador do crescimento do mercado ligado às corridas é o aumento da quantida-
1984, Segalen diferencia, ao longo das décadas, as motivações que levavam um pratican- de de publicações especializadas no assunto. Até 2003, havia uma única revista vendida
te a escolher essa modalidade: em bancas voltada para corredores: a Contra-Relógio. Atualmente convivem com ela, nas

‘‘
bancas de jornal, outros quatro títulos direcionados exclusivamente para esse público: as
Participar de uma corrida em 1970, os anos heróicos da epopéia do movi- revistas O2, RunningBr, SuperAção e a Runner’s World.
mento, em 1980, na época da ‘loucura do jogging’, e em 1990, não tem o mes-
mo sentido que na atualidade, quando ver corredores nas ruas, nos bosques
‘‘ Segundo o Dossiê Esporte, pesquisa realizada em 2006 pelo instituto IpsosMarplan Me-
próximos das cidades, ou nas corridas populares se tornou comum (...). dia Research em nove capitais do Brasil, a corrida é o sexto esporte mais pra-
ticado pelos brasileiros, com 5% de adesão, atrás da caminhada (31%), do
futebol (30%), do vôlei (13%), do ciclismo (8%) e da natação (5%). Estima-se que haja qua-
Segalen também propõe uma divisão entre motivações racionais e emocionais para a op-
ção pela corrida como esporte. De um lado, ressalta a pouca infraestrutura necessária pa- tro milhões de corredores no Brasil, sendo que 250 mil participam de cor-
ra a prática do esporte e o fato de a corrida ser um excelente remédio natural para o se- ridas de rua. Empresas como a Nike do Brasil calculam que o número de corre-
dentarismo imposto pela modernidade. De outro, aponta a necessidade fisiológica, a par- dores brasileiros esteja crescendo ao redor de 30% ao ano.
ticipação na vida urbana e a afirmação pessoal que essa escolha representa:

‘‘
Os Estados Unidos, considerado “ o país da corrida de rua” têm aproximadamente 40 mi-
A essas motivações, adiciona-se atualmente o espetáculo das corridas que lhões de corredores e destes, 17 milhões participam de eventos esportivos organizados. Na
ano após ano atraem mais participantes. A televisão se deu conta disso e França, segundo Segalen, havia 1.000 corredores em 1975; em 1984 foram recenseados
transmite as corridas (parcamente, é verdade), a propaganda se multiplica 500 mil e no início da década de 1990, o número de corredores atingiu 1,2 milhões .
nos cartazes dos trens do metrô, as camisetas comemorativas das corridas
mostram a proliferação de provas organizadas pelas cidades, empresas, gru-
‘‘
pos de amigos, etc. Não corremos apenas para nós, para estar em forma,
mas também para participar destas manifestações que são expressões da
modernidade urbana.

34 35
o esporte
e as assessorias

Corrida de rua é hoje, no Brasil, um assunto que parece es- O surgimento das assessorias esportivas também é um reflexo do cresci-
tar na moda. A disponibilidade de tantas informações e materiais em fontes públicas e mento do mercado ligado às corridas. Elas se espalharam pelo país, em especial pela ci-
privadas é um reflexo direto do interesse do mercado pelo tema. Parece ser, também, uma dade de São Paulo, facilitando o acesso de novos atletas ao esporte. Além de planejar e
eficiente maneira de divulgar ainda mais essa modalidade esportiva, estimulando com orientar o treinamento, muitas assessorias também oferecem o acompanhamento de ou-
mais intensidade esse círculo vitorioso. Em São Paulo, o movimento em torno da corrida tros profissionais relacionados a esse esporte, como nutricionistas, psicólogos, massagis-
de rua tem sido tão intenso nas últimas décadas que justificou a criação da organização tas, além de parcerias com academias de ginástica, lojas de materiais esportivos e labora-
não-governamental Corredores Paulistas Reunidos – CORPORE. Desde 1982, essa ONG tórios médicos. Elas beneficiaram-se do espaço aberto pelos personal
promove circuitos com várias provas ao longo do ano, em vários locais do Estado de São trainers e passaram a oferecer o mesmo tipo de serviço, mas com uma diferença es-
Paulo. Em 1997, apenas 800 atletas eram associados à organização e uma média de 9 500 sencial: ao invés de treinamentos específicos para uma única pessoa, especializaram-se
atletas participava das suas provas. em treinamentos em grupo.

Em 2005, a quantidade de associados multiplicou-se por dez (8 100 atletas associados) É importante ressaltar que, apesar do suposto caráter democrático e popular deste espor-
e o número de corredores inscritos nas provas passou para 103 260, representan- te, a prática da corrida com o apoio das assessorias esportivas tem uma faceta bastante eli-
do um crescimento de 995% em apenas oito anos, o que compro-
va a capacidade das corridas de rua de atrair um grande número de novos atletas. Segun-
tista. Considerando que fazer parte de uma assessoria esportiva custa algo entre R$ 80 e
R$ 200 por mês, que ter um bom par de tênis de corrida custa algo entre R$ 400 e R$ 500
do o site da CORPORE, em 2004, dos 8 580 corredores inscritos na prova de e que participar de provas pelas vias públicas da cidade custa, no mínimo, R$ 30, a cor-
13%
abertura do seu circuito anual de corridas, eram pessoas que nunca
haviam disputado nenhuma prova organizada por essa ONG.
rida em grupo pode ser vista como um esporte que requer investimentos.

Esse momento de crescimento do esporte foi bem aproveitado pelos organizadores de even- Ou seja, o prestígio e a exclusividade que as assessorias espor-
tos esportivos, que criaram um extenso calendário de provas em vários locais do Brasil. tivas proporcionam têm o seu preço.

36 37
As assessorias esportivas trouxeram para a corrida uma infraes- Os treinadores agrupam os atletas com objetivos semelhantes e estes passam a correr la-
trutura que atraiu e agradou as pessoas com maior poder aquisitivo: o conforto de ter à do a lado, ou seja, passam a treinar efetivamente em grupo. A corrida, que é considera-
disposição água, bebidas isotônicas, frutas e barras de cereal, os espaços reservados para da por muitos corredores do grupo estudado como um esporte solitário, passa a ser vista
estacionar o carro com segurança e tranquilidade, a organização da participação dos atle- por eles como um esporte coletivo, uma vez que incorpora as características típicas de um
tas em corridas selecionadas, a escolha de lugares bonitos e variados para treinar (USP, esporte dessa natureza, como o dinamismo, a alegria, a diversão, o contato físico, a com-
Aldeia da Serra, parques da cidade), a oferta de uniformes patrocinados por As assessorias esportivas con-
petição e a interação entre as pessoas.
grandes empresas com tecidos de última geração etc. seguiram, portanto, conciliar atributos importantes
Quando surgiram, em 1994, existiam apenas seis assessorias esportivas em São Paulo:
e típicos dos esportes, como performance e técnica,
a 4any1 (For any one), a M.P.R., a Miguel Sarkis, a Run & Fun, a Run for Life e a Race. a um ambiente agradável e motivador.
Em 2002, quando já eram 28 empresas, foi fundada a Associação de Treinadores de Cor-
rida de Rua (A.T.C.), responsável pelo cadastramento de todas as assessorias esportivas
atuantes na capital paulista. A ATC estima que 5000 corredores sejam associados às cer-
ca de 100 assessorias cadastradas em São Paulo. Nos outros Estados do Brasil, há apenas
clubes de corrida que organizam provas. RUN & FUN
Ano de fundação: 1994
Os grupos coordenados pelas assessorias podem ser formados por pessoas que já se co- Fundador: Mário Sérgio Andrade Silva, professor de Educação Física
nhecem (funcionários de uma mesma empresa, sócios de um mesmo clube, grupos de Objetivo: assessorar praticantes de corrida, fornecendo treinamento individualizado
amigos, por exemplo), ou por pessoas que ainda não se conhecem, como os frequentado-
res de algum parque da cidade. Os atletas cadastrados nas assessorias esportivas se encon- Atletas cadastrados: 300 (2005)
tram com os respectivos treinadores em dias, horários e locais pré determinados. Em ge-
ral, as assessorias esportivas dispõem de equipes distribuídas em locais públicos da cida-
Atletas homens: 55%
de, principalmente em parques, nos períodos da manhã e/ou da noite. O tamanho dos Atletas mulheres: 45%
grupos varia muito conforme a assessoria esportiva, podendo chegar a 500 atletas. Idade dos corredores: de 20 a 65 anos
Os atletas do grupo não precisam estar no mesmo nível de Perfil dos corredores: executivos, empresários e profissionais liberais
corrida (iniciantes ou corredores há mais tempo) e tampouco precisam correr no mes- Mensalidade média: R$ 150 a R$ 200
mo ritmo. Apesar dos treinos serem coletivos, cada atleta recebe um treinamento perso-
Uniforme dos corredores: 4 camisetas da cor da equipe
As metas mais fre-
nalizado, isto é, adaptado aos seus objetivos pessoais. (amarelo fosforescente) identificam atletas em treinos e competições
quentes costumam ser emagrecer, melhorar ou man- Treinos: durante a semana, por 2 horas e aos sábados, por 3,5 horas
ter o condicionamento físico, ou preparar-se para Km percorridos por treino: de 3 a 18 km, aproximadamente
provas específicas, como as maratonas, meias-maratonas, provas de 5 km, 10 km etc. Sequência de atividades nos treinos: alongamento inicial,
É com base nos objetivos de cada atleta que as assessorias desenvolvem um programa de aquecimento, atividade específica do treino,
treinamento personalizado. desaquecimento, alongamento final

38 39
Marcas e
imagem
a pesquisa junto aos corredores do grupo de corrida da Run & Fun do
Parque Villa-Lobos mostrou que essas pessoas se preocupam muito com a própria
saúde. Ser saudável, para eles, significa estar com o corpo em boas condições para en-
frentar as tensões do dia a dia. Entendem por corpo saudável aquele que tem dispo-
sição e reage bem aos esforços requeridos diariamente, além de acompanhar o avan-
çar da idade e de atender aos “padrões sociais” de beleza.
‘‘ Acho que a gente aqui está num meio termo. Não somos atletas
profissionais, que vivem da corrida e por isso têm que fazer tudo certinho,
comer as coisas certas, na hora certa etc., e nem somos aquelas
pessoas que não fazem nenhum esporte, que comem doces e frituras todo
dia. A gente tem uma noção do que pode e do que não pode ‘‘
e vai tentando fazer as coisas. Se der, ótimo. Se não der, não é o fim
do mundo. É só correr uma hora e meia que fica tudo bem!!!
(Helena C., 39 anos)
Na visão dos atletas pesquisados, a corrida conse-
gue desempenhar essa tripla função: ser uma “vál-
vula de escape”, atuar como uma fonte de energia
e contribuir para a boa forma física. ‘‘ Eu corro porque
é minha terapia.
Costumo dizer que
a ‘endorfina’ é melhor
do que Lexotan!
E para pensar na vida,
nos problemas,
Por que
correr? nas soluções, é bom
ter espaço à minha
volta e a linha ‘‘
‘‘
do horizonte
Eu corro por causa da minha saúde! Para que essa ‘casa’
que habitamos, o nosso corpo, cuide bem de nós,
em troca. Também corro para dar um bom exemplo,
‘‘ na minha frente.
(Jair M., 46 anos)

preservando a jovialidade e a disposição.


(Messias S., 60 anos)

‘‘ Eu corro porque faz bem para a cabeça


e para a saúde do corpo também. Enquanto corro, posso

‘‘
Eu corro para emagrecer,
me manter saudável
e envelhecer bem. Quando
quero, corro sozinha
escutar música, posso ficar quieto pensando na vida,
‘‘
posso ficar prestando atenção no meu corpo, posso
prestar atenção na natureza, nas pessoas à minha volta,
conhecer as ruas de São Paulo, os parques.
e, se quero um papo,
é fácil arrumar alguém
‘‘ (Maurício L., 43 anos)

para correr junto.


(Flora M., 45 anos)

42 43
Por que
correr
em grupo? ‘‘ O grupo estimula
a assiduidade
aos treinos e, com
sorte, como é o nosso
O prazer
do
reconhecimento
caso, você desenvolve

‘‘ Correr em grupo é mais


divertido, é ótimo conhecer ‘‘ um novo ambiente
de relacionamento ‘‘
‘‘
novas pessoas e trocar social com gente
Contei no escritório

‘‘
experiências ‘trotando’. bacana e interessante.
que eu comecei a correr. Minha mãe
(Messias S., 60 anos) (Rodrigo G., 38 anos)
O pessoal lá ficou está surpresa
impressionado!... com a minha

‘‘
Me perguntam como eu já disciplina
Antes de entrar no grupo, eu treinava com um personal trainer.
Teve uma noite que eu não dormi bem e não estava nem
consigo correr ‘‘
tanto, aí eu falei da planilha,
para correr!
Nos dias de frio,
um pouco a fim de treinar no dia seguinte... Mas só de saber dos treinos etc. então, ela
que tinha um cara me esperando cedinho lá no
parque, me deixou mal... Aí, eu fui mesmo sem vontade...
Me incomoda saber que tem alguém me esperando ‘‘ (Júlio A.) nem acredita
que eu acordei
‘‘
e que eu não posso faltar. No grupo não tem isso. Se eu faltar, para treinar...

‘‘ ‘‘ (Isabela M.)
não tem problema, o treino acontece do mesmo jeito. Correr em grupo é legal porque
(Rodolfo S., 45 anos) um estimula o outro e porque obtemos
parâmetros junto aos outros.
(Juliana B.)

O gosto
da
superação ‘‘Não corro para
participar de provas.
Gosto de treinar,
de suar, de ver que
estou melhorando,

‘‘
que estou conseguindo
Nunca imaginei fazer coisas que
que eu fosse conseguir antes não conseguia.
correr desse jeito...
O grupo ajuda a superar
‘‘ Quando entrei
na Run & Fun, não
o esforço e os obstáculos.
(Anita N.)
conseguia correr
100 metros e hoje já
‘‘
consegui correr 18 km!...
(Rodolfo S.)

44 45
Na idealização do que é ser um corredor, corredo-
res iniciantes e iniciados não compartilham uma Nos pés, os atletas iniciantes costumam usar tênis da marca Nike,
mesma imagem. Cada um deles constrói a sua pró- principalmente os modelos que parecem, mas não são específicos para corrida. Apesar de
pria “fantasia de atleta”, ou seja, se relaciona com a terem cápsulas de ar para amortecer o impacto do corpo no chão, tecidos que permitem
corrida e com o grupo de corrida por meio de dife- a ventilação dos pés etc., assim como a maioria dos tênis de corrida, muitos desses mode-
rentes simbologias. los são, na realidade, mais apropriados para caminhadas e corridas curtas e leves.

Entre os iniciantes, existe um forte desejo de ser percebido como “corredor”. Para Para um corredor iniciante, se a Nike é boa no futebol, no basquete e no tênis,
eles, o simples fato de ingressar em um grupo de corrida os habilita a pertencer a esse am- também deve ser boa na corrida. Na visão deles, chegar ao ambiente do grupo com um tê-
biente de saudabilidade e performance. Mesmo sem conseguir correr muito, o grupo fun- nis Nike significa trazer consigo todo o prestígio dessa marca. Representa o desejo de ser
ciona como uma “credencial” para que ele se imagine como um esportista e comece a visto como uma pessoa que “está por dentro”, que não é novata ou iniciante no esporte.
construir a sua
“fantasia de atleta”. Os corredores iniciantes relatam que, a partir dos primeiros con-
tatos com o grupo, passaram a observar os hábitos, os costumes e as roupas dos iniciados
As roupas e os acessórios para correr são outros componentes dessa fantasia. Corre- com o intuito de “aprender com eles”. Demonstram, com isso, certa humildade para repro-
dores iniciantes, homens ou mulheres, costumam fazer seus primeiros treinos duzir o comportamento de quem tem mais experiência, mas também, uma grande valori-
junto ao grupo de corrida vestindo camisetas de algodão, grandes e folgadas. Os ho- zação dos aspectos estéticos e visuais daqueles que correm há mais tempo. Os iniciados, por-
mens geralmente usam shorts de “jogar futebol”, e as mulheres recorrem às bermudas tanto, parecem ter o importante papel de avalizar as escolhas dos iniciantes, que, por sua
“ciclistas”. As meias de cano longo, cobrindo toda a extensão dos tornozelos, ajudam a vez, demonstram grande preocupação em não parecer “por fora” do conjunto. Existe um
compor esse visual, que não costuma incluir bonés ou qualquer outra proteção para a forte desejo de pertencer, de ser reconhecido como “um deles”, de não destoar do grupo. Na
cabeça (considerando que a corrida é um esporte praticado ao ar livre, esse é um item visão dos iniciantes, quanto menos chamarem a atenção das pessoas para o fato de serem
de extrema importância, dependendo da hora do dia). novatos, melhor. Por isso, pouco a pouco, vão se desfazendo das antigas roupas e tênis e pas-
sam a incorporar o vestuário, as marcas e o estilo dos corredores mais experientes.
É muito raro um iniciante chegar ao grupo usando um frequencímetro. Geralmente, ele
desconhece não só a existência do equipamento, como também a sua utilidade e necessi- Vestir-se ou “fantasiar-se” de corredor é uma forma
dade para os treinos. Ele tenta treinar sem o equipamento, demonstrando, por vezes, cer-
ta descrença na sua efetiva relevância para a atividade. No entanto, com o passar do tem-
de camuflar-se no novo cenário. A satisfação do ini-
po, ele “dá o braço a torcer”, pois todos os treinos são planejados e realizados tendo como
ciante está muito mais em parecer igual e comum
base a frequência cardíaca máxima de cada atleta. aos olhos do grupo do que em se diferenciar, em ser
autêntico.
Valendo-se das roupas e acessórios, atletas iniciantes buscam o vínculo com o grupo de
corrida para construir e alimentar a sua “fantasia de atleta”.

a “fantasia de atleta” de um corredor


46 iniciante 47
Para os iniciados, “considerar-se um corredor” vai muito além As camisetas de provas também são vistas como símbolos de
do que o simples ingresso em um grupo de corrida. Para eles, o grupo serve como um exclusividade, principalmente as mais incomuns ou difíceis de serem conquista-
suporte para as realizações individuais e como uma fonte de reconhecimento, pois é den- das. Por representarem um atributo valorizado nesse ambiente, seria esperado, portan-
tro desse ambiente que as conquistas dos atletas serão reconhecidas e valorizadas pelos to, que os atletas exibissem as suas “camisetas-troféus” em todas as oportunidades pos-
demais membros da equipe. As superações pessoais são uma importante fonte de pra- síveis. Paradoxalmente, não é o que ocorre: seu uso fica restrito aos treinos ou aos even-
zer individual, mas o grupo amplifica essas sensações, desempenhando um papel fun- tos familiares (churrascos, finais de semana, etc.). Isso demonstra, de um lado, um as-
damental na sua “fantasia de atleta”. pecto bastante pragmático: o de usar a camiseta de corrida para correr. Por outro lado,
e, acima de tudo, revela que as camisetas de corrida são usadas quando há um público
competir em gru-
Para os iniciados, correr é conquistar; chegar é superar-se; que sabe lhes dar o devido valor.

po é uma forma de reafirmar a sua condição de atle- São pessoas que conhecem a simbologia que elas
ta, validada pelos demais corredores da equipe. carregam, ou seja, sabem o que significa correr de-
Os atletas que já correm há algum tempo com o grupo de corrida se vestem de modo terminada prova. Por esse motivo, pode-se dizer que
diferente dos atletas iniciantes. Os homens correm com shorts específicos para a corri-
da: curtos, com as laterais transpassadas, permitem um amplo movimento das pernas.
a camiseta só é valorizada entre iguais.
A maioria das mulheres também corre com shorts, mas algumas ainda preferem as ber- Um ponto curioso: o uso da camiseta em eventos familiares deixa clara a vontade dos cor-
mudas “ciclistas”. Meias de cano curto e bonés também fazem parte do vestuário típi- redores de servir como um bom exemplo para as pessoas próximas. Eles relatam que as
co de um corredor iniciado. camisetas “geram assunto” e até servem de argumento para “converter” alguns amigos e
parentes mais sedentários.
Homens e mulheres usam camisetas específicas para a prática desse esporte. Seu tecido é
bastante fino e desenvolvido para absorver rapidamente o suor durante a corrida (tecidos
“tecnológicos”, como ‘dry fit’ e ‘coolmax’). Muitos atletas iniciados treinam com as cami-
Nos pés, os corredores mais experientes preferem os tênis das
setas que ganharam nas provas das quais participaram (ao se inscreverem em competi- marcas Asics ou Mizuno (é muito raro ver um iniciado usando um modelo da
ções, os atletas recebem um kit composto por, geralmente, uma medalha e uma camise- Nike). Os tênis são utilizados única e exclusivamente em treinos e provas e são, carinho-
ta, ambas alusivas ao evento). Curiosamente, a qualidade da camiseta é, muitas vezes, um samente, chamados de “xodós” ou “profissionais”. Por isso, não são usados em passeios,
fator de decisão para participar ou não das provas. Há uma clara preferência pelas cami- eventos ou outras situações corriqueiras. Seu uso é totalmente limitado à corrida. ‘‘
‘‘
setas com tecido “tecnológico”, próprio para corrida, ao invés das de algodão.
Eu economizo esses tênis,
Mais do que uma recordação das provas, essas camisetas re- não fico andando por aí com eles.
presentam um troféu conquistado. São consideradas mais úteis do que as (Flora M.)
medalhas porque podem ser vistas e exibidas em público. Elas representam a “conquista Um motivo para tanta “economia” é o preço desses equipamentos. Um par de tênis de
suada”, a confirmação de que fizeram por merecer. Por isso, não é um costume entre os corrida das marcas Asics ou Mizuno custa, em média, R$ 450. Considerando a vida útil
corredores usar a camiseta de uma prova da qual o atleta não participou. É como se ele do tênis (aproximadamente 800 km), e o volume de treinamento dos atletas estudados no
não tivesse feito o esforço necessário para merecê-la. grupo (média de três vezes por semana, totalizando 30 km por semana), um par de tênis
dura por volta de sete meses. Se tiverem dois pares de tênis para uso intercalado, os atle-
tas chegam a investir pelo menos R$ 900, somente em tênis, em um período inferior a
um ano... Além disso, os tênis também são objeto de distinção e caracterização entre os
membros do grupo. Assim como as camisetas das provas, preferem
usá-los onde haverá reconhecimento.

a “fantasia de atleta” de um corredor


48 iniciado 49
Iniciantes e iniciados vestem suas respectivas “fan-
tasias” antes de correr e mostram que a denomina-
ção “fantasia de atleta” não se limita à dimensão
imaginária e subjetiva: ela também incorpora uma
dimensão literal, ligada às roupas e aos acessórios. Essa pesquisa revelou a explícita preferência dos iniciados pelas marcas Asics e Mizuno
e certo distanciamento da marca Nike. Ao mesmo tempo, trouxe à tona algumas ques-
tões intrigantes:

Tipo de
fantasia
Equipamento
ou acessório
Corredores
iniciantes
Corredores
iniciados A Nike realmente não tem
Fantasia tênis Nike Asics ou Mizuno modelos de tênis específicos
literal
camisetas algodão tecidos “tecnológicos”: para corridas mais intensas,
para disputar esse mercado?
“dry fit”, “coolmax”

shorts futebol/ciclista curto, para corrida/


ciclista

meias cano longo cano curto

O que os iniciados
bonés não sim

frequencímetro não sim, da marca Polar


viram na Asics
Fantasia Serem percebidos Serem percebidos e na Mizuno
subjetiva como pessoas
saudáveis e ativas
como pessoas saudáveis
e ativas, disciplinadas que os iniciantes (ainda)
Corrida é um meio
e movidas a desafios

Corrida é um
não viram?
meio e um fim

Valorizam marcas Valorizam marcas mais


de status e prestígio, seletivas e exclusivas.
além da beleza estética Buscam a performance
Será que os tênis da
dos tênis, mais do do produto na
Asics
e da Mizuno são de fato
que a sua performance corrida, mais do que
na corrida a sua beleza estética

Querem deixar de ser


vistos como iniciantes
Querem ser percebidos
como experientes, superiores aos da Nike
o mais rapidamente exigentes, confiantes, ou trata-se apenas de uma
questão de percepção dos atletas?
possível. Para isso, vão determinados,
atuar onde conseguem: modelos para os outros.
no vestuário. Tentarão Pessoas que
parecer corredores, superam desafios
mesmo ainda
não sendo um deles

50 51
Marcas de
tênis
a preferência dos iniciados por Asics ou Mizuno pode ser fruto de uma
combinação de fatores. Em primeiro lugar, percebe-se a imensa influência que a reco-
mendação dos treinadores exerce sobre o comportamento de compra dos atletas. Eles são
vistos como “especialistas” nesse esporte e, por isso, passam a ter autoridade e proprieda-
de para opinar sobre todo e qualquer equipamento ou acessório usado pelos atletas, co-
mo tênis e frequencímetros. Eles são a primeira fonte de consulta dos corredores quando
pensam em comprar algum artigo específico para a corrida e, quando o assunto é tênis,
invariavelmente, recomendam os modelos das marcas Asics e Mizuno.
Por que recomendam Asics ou Mizuno? Treinadores declaram
que Asics e Mizuno oferecem produtos de qualidade, específicos para corrida e adequa-
dos para os diferentes tipos de pisada (neutra, pronadora/ “pisada para dentro” e
supinadora/“pisada para fora”). Para eles, os tênis dessas marcas são “testados e aprova-
dos” pelos seus atletas, isto é, têm um histórico de poucas reclamações ou insatisfações.

Os contatos com esses profissionais também revelaram um distanciamento em relação à


Nike, fruto das suas experiências prévias com os produtos da marca.

Segundo eles, os primeiros modelos de tênis de corrida vendidos pela Nike no Brasil ma-
chucavam os pés dos corredores, causando-lhes bolhas. Isso contribuiu negativamente pa-
Em comportamento do consumidor, a influência ra a sua imagem, pois desencadeou uma série de associações ruins e generalizadas sobre
pessoal exerce grande peso nas decisões de compra, seus produtos para corrida.
principalmente em duas situações. A primeira delas é quando os produtos são caros.
A segunda situação ocorre quando o produto pode revelar algo sobre o status ou o gosto Os modelos seguintes lançados pela marca (“Nike Air”, “Air Max”, “Nike Shox”) tinham
pessoal do comprador. Nesse caso, os compradores tendem a consultar outras pessoas pa- um visual muito atraente e preços mais baratos que os tênis de corrida das outras marcas,
ra minimizar eventuais constrangimentos. mas, na opinião dos treinadores, eram mais apropriados para caminha-
das ou corridas leves. Para eles, a marca passou anos sem inserir em seu portfó-
A recomendação dos treinadores para a escolha das marcas de tênis de corrida parece se lio modelos de tênis realmente específicos para corrida.
encaixar em ambas as situações: os tênis são itens caros e há o risco de se gastar muito di-
nheiro e não comprar, obrigatoriamente, o produto mais adequado. Além disso, a es- De fato, somente em 2006 a marca começou a oferecer alguns modelos da sua linha “profis-
colha dessa ou daquela marca revela uma faceta dos corredo- sional”, denominada Bowerman (uma homenagem a Bill Bowerman, co-fundador da mar-
res, ou seja, se são iniciantes ou iniciados nesse esporte. ca), composta de tênis especialmente desenvolvidos e indicados para corridas mais intensas.

54 55
Não há como negar que a estratégia de comunicação das marcas Asics, Mizuno e Nike
também exerce grande influência no processo de construção da imagem das suas marcas.
Meios e mensagens ajudam a formar a percepção
dos consumidores e a delimitar os espaços que ca-
da uma das marcas ocupa na mente dos atletas.
Durante o período de realização dessa pesquisa, Asics e Mizuno publicaram anúncios em
todas as edições das principais revistas especializadas em corrida. A Nike, por sua vez, teve
uma participação mais esporádica nesse meio e mais forte na promoção de grandes eventos.

Ao escolherem as revistas especializadas como principal veículo de comunicação, Asics


e Mizuno transmitiram ao mercado uma mensagem de que são “especialis-
tas em corrida”. Seletividade e exclusividade passam a fazer parte do repertório de
associações a essas marcas. Elas não falam com todo mundo: elas fa-
lam com quem corre.
A Nike, por outro lado, trouxe o marketing de massa para o mundo da corrida. Seus
eventos atraem 25 mil pessoas, mobilizam as cidades que sediam as provas e geram muita
repercussão. Impossível pensar em seletividade e exclusividade com números desse porte!
Ela fala com muita gente: com quem corre e com quem não
corre.
Ao longo dessa pesquisa, as três marcas analisadas também apresentaram distintos con-
teúdos de comunicação. ‘‘ Tanta gente assim
não pode estar enganada...
Tudo bem que alguns
até podem ser patrocinados
A marca Asics (cujo nome representa as iniciais de Aenima Sana In Corpore Sano pela marca e por isso
– alma sã em corpo são) explorou sua presença entre a maioria dos participantes das prin-
cipais corridas internacionais. Ao mesmo tempo em que reforça a sua expertise no mun-
‘‘
ganham tênis de graça, mas é muita
gente usando esses tênis...
do da corrida, busca transmitir confiança e credibilidade aos potenciais consumidores. Devem ser bons mesmo.
Além disso, coloca-se como um “símbolo de pertencimento”: corredores experientes usam
(Júlio A.)
Asics. Esse é um discurso publicitário que faz sentido para muitos corredores. Eles con-
cluem que os tênis dessa marca devem ser robustos e confortáveis o suficiente para aguen-
tar os 42 km da corrida.

diferentes estratégias de
56 comunicação 57
A Mizuno, por outro lado, explora mais diretamente as características, as funciona- Nesse mesmo período, a comunicação adotada pela Nike também explorou as carac-
lidades dos seus produtos e os seus benefícios para o corredor: os modernos sistemas de terísticas técnicas dos seus produtos e suas consequências para o aumento da velocidade
amortecimento prometem reduzir os impactos causados pela corrida, permitindo correr durante a corrida. Em paralelo, investiu em grande eventos, como as megacorridas de 10
mais rápido. A marca quer mostrar que entende de corrida e desenvolve produtos para km, organizadas para 20 mil pessoas em 2005 e para 25 mil pessoas em 2006, 2007 e 2008,
melhorar, de fato, a performance do corredor. em São Paulo e em outras importantes cidades da América Latina. Nesses momentos,
procurou destacar os benefícios que a corrida traz para seus praticantes, parecendo se co-
A comunicação adotada pela Mizuno em 2005 apoiava-se em metáforas. Elas sugeriam municar com um público que ainda precisa de argumentos para começar a correr.
que o atleta que usasse seu tênis conseguiria correr tão rápido quanto um guepardo.

‘‘
Na corrida de outubro de 2005, a sua campanha de comunicação explorou as inúmeras
Esse tênis é super levinho, mais leve até que o Asics.
Se ele ajuda a correr mais rápido?
‘‘ possíveis respostas para a frase

Bom, é um peso a menos para eu carregar...


(Isabela M.)
“Estou correndo por que...”:
“Gostei da coisa”
“Quero ficar em forma de deusa”
“Suar faz bem”
“Sou uma negação no futebol”
“Adorei fazer minha primeira prova”

58 59
Na corrida de outubro de 2006, o tema central da campanha foi

“Imagine você terminando”.


A marca sensibilizou os corredores com mensagens de incentivo: o esforço de correr
‘‘ Você vai nessa corrida da Nike???
Ah, eu não vou, vai tanta gente
que você tem que andar nos primeiros
quilômetros. Isso não é corrida pra
‘‘
10 km seria recompensado, a linha de chegada poderia ser uma realidade, essa conquis- (medir) tempo, é só para fazer social.
ta seria inédita, um “feito heroico”:
(Maurício L., corredor iniciado)

O cenário estudado em 2005 indica que Asics, Mizuno e Nike não se comunicaram com
os mesmos perfis de corredores. Enquanto Asics e Mizuno disputavam
a preferência dos corredores mais experientes, Nike priori-
zava os novos adeptos desse esporte.
Voltando à fantasia de atleta, usar marcas diferenciadas, mais exclusivas, é uma forma dos
iniciados reforçarem que fazem parte de um grupo seleto, que conhece o assunto, que enten-
de de corrida. Como se reconhecem (ou querem ser vistos) como corredores, usam “marcas
de corredores” e não as “marcas que todo mundo” usa, em qualquer lugar, como a Nike.

Usar Asics ou Mizuno ajuda a estreitar os vínculos


de pertencimento com o grupo e todas as oportu-
nidades de reforçar essa conexão são aproveitadas
por seus membros, mesmo de forma inconsciente.

‘‘
“Quando eu cruzar a linha de chegada, vão passar ‘‘
Eu corria com um Reebok. Por que eu comprei esse Mizuno?
mil coisas pela minha cabeça. Ué, porque TODO MUNDO QUE CORRE
Inclusive um copinho de água mineral.” fala que Mizuno e Asics são bons para corrida!!!
(Anita N.).
“Você vai se atrapalhar com o cronômetro,
mas vai chegar.”
“Você vai achar que enlouqueceu, mas vai chegar.”
‘‘ Pode reparar: os tênis expostos
nas lojas de shopping não
estão nos pés dos caras que
correm aqui (referindo-se
à Nike). A gente só compra desse
Corredores iniciantes e iniciados reagiram de forma diferente a essas mensagens:
‘‘ vendedor que vem aqui
no treino e que só tem coisa boa.
‘‘
‘‘ Nunca corri 10 km... será que eu vou conseguir?
Bom, qualquer coisa, eu ando em vez de correr...
(Alberto S., corredor iniciante)
(referindo-se a Asics e Mizuno).
(Jorge R.)

Percepções como essas, corretas ou não, passam a ser realidade no ambiente da corrida.
São elas que, dia após dia, alimentam a “fantasia de atleta” dos corredores.

60 61
linha de
chegada

Fonte: troiano consultoria de marca


Asics, Mizuno e Nike são grandes marcas de tênis de corrida e não há dúvidas de que os identidade posicionamento imagem
corredores as percebem assim. Além de reconhecerem o prestígio, a reputação e a qualida-
de de cada marca, suas percepções vão além e adquirem contornos distintos para cada uma
delas. Os atletas estão certos ou errados em suas percepções? O que a marca Como a marca
é ou quer ser é percebida
Feliz ou infelizmente, isso não vem ao caso! Por mais absurdo que pareça, a força da per- pelo mercado
cepção das pessoas independe de ela ser realidade ou não. O que interessa, o que vale, o
que fica é a percepção que se tem sobre as coisas!
Voltando às “nossas marcas”...
Isso não significa, porém, que os consumidores saem por aí “achando” e “percebendo” as mar- Será que a Nike não teria como fazer da linha Bowerman o objeto de desejo dos cor-
cas com base em nada... A percepção se constrói em cima de uma plataforma de realidade. redores amadores?
Ela não acontece sozinha. Os consumidores constroem a imagem e formam uma percepção Será que ela poderia explorar o fato do Marílson dos Santos treinar com um Nike Péga-
pela sua experiência com a marca, em cada um dos seus diferentes pontos de contato. sus e ser bicampeão da Maratona de Nova York usando Nike Katana?

Produtos, serviços, ações de relacionamento, canais de atendimento, pós-venda, embala-


gem, frota adesivada pelas ruas, comunicação, exposição de executivos na mídia, promo-
ções, distribuição, etc. Estudos mostram que cada marca tem pelo menos
30 e, às vezes, chega a ter 100 pontos de contato com seus con-
‘‘ Desde a primeira vez que treinei com
o Pegasus já gostei de cara. Faço a maior parte
das minhas rodagens com ele. (...) Corri
(a maratona de Nova York) com um Nike Katana. ‘‘
sumidores, colaboradores e outros stakeholders diariamente! É um modelo antigo que pedi para
a Nike, porque me adaptei bem com o tênis.
Inconscientemente, os consumidores somam tudo isso e “tiram a média”: simples ou pon-
derada, é assim que eles chegam ao veredito que exalta ou crucifica as marcas. A boa (ou Será que ela não teria como surpreender e encantar os “caciques” e “pajés” da tribo da corrida?
a má) notícia é que esse “julgamento” não é estático nem eterno. Quem está bem hoje po-
de não estar tão bem amanhã e vice-versa... São tantos os pontos de contato entre as mar- Sim, sim e sim. A marca poderia estimular o consumidor com uma série de argumentos
cas e os consumidores que, com eles, surgem as oportunidades para surpreender e as ar- capazes de fazer com que aquele espaço de idealização existente entre o “eu atual” e o “eu
madilhas para desapontar... ideal” fosse preenchido pela Nike e não por um concorrente.

Nesse “campo minado”, uma coisa é certa: se as marcas quiserem, elas têm Com maior ou menor ajuda das marcas, os consumidores conseguem criar as suas pró-
como mudar a percepção dos consumidores. Podem investir na cons- prias fantasias: fantasia de atleta, fantasia de bem informado, fantasia de rico, fantasia de
trução de uma imagem desejada ou na mudança de uma percepção equivocada. moderno, fantasia de sem-fantasia etc. Mas mesmo respeitando suas percepções, é sem-
pre bom lembrar que “a realidade é percepção, não um reflexo da
Como? Definindo um posicionamento que seja relevante e verdade.” (“The Art of Looking Sideways”, Alan Fletcher).
crível para o consumidor, além de diferenciado (já que duas marcas não po-
dem ocupar o mesmo espaço). Ele traduz para o mercado a identidade pretendida pela
marca, ou seja, o que ela é ou deseja ser. A partir da compreensão e interpretação do po-
sicionamento, os consumidores formarão a imagem da marca.

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Edição de texto: Maggi Krause
Revisão: Cristiana Pupo Feola
Projeto Gráfico
e Direção de Arte: Carla De Franco

Contato: renata@troiano.com.br
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