You are on page 1of 48

PLATÃO: A DESCOBERTA DA ALMA*

Maura Iglésias**

Embora banida das discussões filosóficas, entre outras coisas por


remeter a um conceito obscuro, com um referente problemático (que talvez
nem "exista"), a palavra alma continua de uso absolutamente corrente, e
não parece haver, na linguagem cotidiana, nenhuma dificuldade sobre sua
compreensão. Olhe-se um cadáver ainda não decomposto e olhe-se um
corpo vivo: a alma faz a diferença. É aquilo que reúne tudo o que na pessoa
não é seu corpo físico; com a exclusão dos fenômenos meramente fisiológi-
cos (na compreensão atual pelo menos), a alma reúne todas as faculdades
que um corpo vivo tem e que o corpo morto não tem. É aquilo com que
pensamos e com que sentimos. A diferença entre fenômenos psíquicos e
fenômenos físicos parece tão extremamente bem marcada, que, na con-
cepção corrente, a distinção entre corpo e alma parece ser universal, es-
*
Este texto apresenta de forma condensada resultados de pesquisas realizadas no decorrer de
seminários de pós-graduação na PUC-Rio. As reflexões aqui contidas foram apresentadas, em
grande parte, na conferência de mesmo título proferida em 27.03.98 a convite do CPA (IFCH-
UNICAMP). A maior parte do item III, sobre a questão da cognição, foi desenvolvida especial-
mente para apresentação em conferência proferida em 22.10.98 na IV Semana de Estudos
"Platão, Mito e Filosofia", promovida pelo Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da
USP (USP-FFLCH-DLCV) e pela SBEC.
**
Professora Doutora - Departamento de Filosofia - PUC/Rio.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 13


Maura Iglésias

pontânea, independente da crença ou não na imortalidade da alma; mortal


ou não, a alma é a sede dos fenômenos psíquicos, radicalmente diferentes
de fenômenos físicos.
Sabemos entretanto que essa concepção está longe de ser universal.
Em Homero, por exemplo, ela é ausente. Existe sim a palavra ,
mas ela designa algo muito diferente da alma que compreendemos como
sede de sentimentos e da intelecção. Ela é, de uma parte, o sopro que mantém
o homem vivo; mas jamais é mencionada a não ser com relação ao homem
morto, desmaiado ou adormecido. Na morte, ela escapa pela boca ou pela fe-
rida e vai para o Hades, onde vive como um simulacro do corpo
( ), um espectro, um fantasma, levando uma existência que é
às vezes chamada larvária.
E não se trata de um problema de diferença de vocabulário. Nenhum
outro termo existe em Homero que designe uma unidade que congregue os
fenômenos posteriormente reconhecidos como pertencentes à alma. Se-
gundo B. Snell,1 três palavras principais são usadas por Homero para cobrir
"a área da alma": a própria palavra , no sentido de "força que
mantém o homem vivo" (uma função original da que se manteve
na concepção grega posterior), e . Os fenômenos
mentais estariam grosso modo distribuídos entre esses dois "órgãos":
seria gerador de movimento ou agitação (e pois ligado à
emoção) enquanto seria a causa de idéias e imagens (e pois da
percepção e conhecimento). Entretanto, , e
não formam de maneira alguma uma unidade.

1
Bruno Snell. Die Entdeckung des Geistes; Göttingen, 1986 (6a. ed.; 1a. ed. Hamburgo, 1948).
Tradução em português: A Descoberta do Espírito; trad. Arthur Mourão, Lisboa, 1992.

14 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Aliás, na visão de Snell, não só a alma é fragmentada; também o


corpo. Isso porque, a exemplo do que acontece com a palavra ,
que não designa o que entendemos por alma, a palavra , em Home-
ro, tampouco designa o que entendemos por corpo – uma unidade articula-
da das várias partes físicas do homem vivo. , em Homero, é o cadá-
ver. E nenhuma palavra existe para designar o corpo vivo, no seu conjunto;
Homero apenas dispõe de palavras designativas de partes do corpo.
A conclusão que tira Snell da falta de termos designativos da unidade
das funções psíquicas e da unidade das partes do corpo vivo é que o ho-
mem homérico não se sente nem como unidade corpórea, nem como uni-
dade psíquica, nem como unidade corpo e alma.
Um outro aspecto relevante da análise de Snell sobre a visão homéri-
ca do homem para o qual gostaria de chamar atenção é que, segundo ele,
"Homero ainda não conhece decisões pessoais genuínas; mesmo nas ce-
nas de ponderação, a intervenção dos deuses tem um papel decisório.”2 O
homem homérico, na visão de Snell, é joguete de forças que incidem sobre
ele, e determinam seus atos. Daí o grande número de termos designativos
dessas forças:

A visão de Snell sobre a concepção homérica do homem, surpreen-


dente e polêmica, foi e continua sendo o ponto de partida de uma série de
discussões de grande atualidade, sobretudo ligadas à ética e à teoria da
ação.

2
Op. cit., p. 28.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 15


Maura Iglésias

As críticas, é claro, não faltam, e gostaria de destacar a que lhe diri-


giu B. Williams.3 Esse aliás não visa especificamente a B. Snell, mas aos
que ele chama "progressivistas", pessoas que, tendo da ética uma perspec-
tiva evolucionista, vêem, nas ações descritas nos poemas homéricos, "a
expressão de uma experiência ética primitiva, irrefletida, desprovida de mo-
ralidade e mesmo incoerente".4 B. Snell é citado nominalmente como tendo
proposto uma teoria segundo a qual está além do alcance de Homero enten-
der pessoas como sendo agentes, isto é, capazes de tomar decisões e agir
sobre elas. Em outras palavras, as teses de Snell e outros "progressivistas"
negariam que o homem homérico tivesse genuína deliberação, decisão, von-
tade, intenção.
Numa crítica, aliás extremamente lúcida, contra essas teses, B. Williams
vai mostrar, ilustrando sua argumentação com citações extraídas dos poe-
mas, os personagens homéricos em pleno exercício das capacidades que
segundo essas teses eles não poderiam ter: capacidade de deliberar, de
concluir, de agir, de esforçar-se, de obrigar-se a fazer coisas, de resistir.
Em resumo, para B. Williams, em Homero estão presentes todos os
elementos básicos da nossa perspectiva ética, todos os elementos neces-
sários para uma análise das ações humanas. Mas se Snell e outros são
incapazes de reconhecer esse fato, é porque, em sua concepção, o reco-
nhecimento, em Homero, de ações genuinamente humanas e portanto de
uma ética não primitiva, exigiria duas coisas que Homero realmente não
tem e que, para B. Williams, são "acréscimos de uma filosofia enganosa"
("accretions of a misleading philosophy"), ou simplesmente da “má filosofia”:

3
Bernard Williams. Shame and Necessity; Berkeley, Los Angeles e Londres, l993. Este artigo
refere-se sobretudo ao capítulo intitulado "Centres of Agency".
4
Op. cit., p. 21.

16 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

por um lado, a dicotomia corpo e alma; por outro, a idéia de que a teoria da
ação básica, a explicação sobre o que seres humanos são e como eles fa-
zem alguma coisa é uma teoria que tem de ser expressa em termos éticos,
mais particularmente em termos de uma ética do dever.5
A dicotomia corpo e alma é invocada por ele como algo que, ausente
de Homero, não permite a Snell reconhecer o homem homérico como um si
mesmo, razão pela qual ele não o reconhece como um agente genuíno.
Snell só entende um si mesmo, na teoria da alma. Se para ele o homem
homérico é fragmentado, é porque ele, Snell, é incapaz de reconhecer que
há uma unidade possível, independente do reconhecimento de uma unida-
de da alma: a unidade da pessoa, sem reconhecimento de distinção corpo e
alma, que é a visão de homem que B. Williams atribui a Homero.
É interessante notar que ambos os acréscimos da má filosofia são,
em última análise, referidos a Platão.6
Embora B. Williams não atribua explicitamente a Platão a invenção
da dicotomia corpo e alma, provavelmente porque essa dicotomia já estava
de alguma maneira elaborada, ou pelo menos esboçada em forma não sis-
temática, no período de Homero a Platão, na medida em que só se pode

5
É a essa última característica que B. Williams atrela a falta da "vontade" que os progressivis-
tas não encontram em Homero: "O que é a vontade que os progressivistas encontram ausen-
te? Sugiro que a estranheza para algumas pessoas das noções homéricas de ação liga-se
principalmente a isso: que elas não giram em torno de uma distinção entre motivações morais
e não morais. Aquilo de que as pessoas sentem falta, suspeito, é uma vontade que ... serve
apenas ao interesse de um tipo de motivo, os motivos da moralidade. Particularmente, ao inte-
resse do dever.” (Ib., p.40-41).
6
Embora B. Williams observe que os progressivistas não reconhecem nem mesmo em Platão
a categoria da vontade, ele acusa explicitamente Platão de ser o inventor da idéia de que "as
funções da mente, sobretudo com relação à ação, são definidas em termos de categorias que
tomam sua significação a partir da ética ...", uma idéia que "certamente falta em Homero e nos
trágicos. Foi deixado para o pensamento grego tardio inventá-la, e praticamente não nos largou
mais. Foi inventada, parece, por Platão." (Ib., p.42).

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 17


Maura Iglésias

falar de uma efetiva dicotomia corpo e alma quando há uma teoria já coe-
rente, é claro que isso se deu em Platão.
Ora, essa crítica sugere que a alma, além de invenção, é uma inven-
ção inútil, uma deturpação introduzida pela filosofia. A concepção sadia e
espontânea a respeito da natureza do ser humano é como encontramos em
Homero: um homem que se apreende em sua inteireza de pessoa e que
não precisa cindir fenômenos corpóreos e fenômenos psíquicos, para se
apreender a si mesmo e para agir humanamente no mundo.
O que aí se reconhece, em verdade, é a velha crítica de Aristóteles
relativa à teoria das Idéias: a de que ela representa uma duplicação supér-
flua do mundo dos fenômenos. A essa crítica acrescente-se a rejeição ao
apelo a entidades metafísicas, por inúteis, e teríamos a acusação a Platão:
a alma, separada do corpo, afirmada como a própria pessoa, é uma entida-
de metafísica inútil, que apenas duplica a pessoa sem nada explicar.
É exatamente o fundamento dessa "acusação" contra Platão que eu
gostaria de argüir, começando por lembrar a conhecida tese de H. Cherniss
sobre o real significado da teoria das Idéias no pensamento de Platão.7

II

Cherniss começa por afirmar que a crítica de Aristóteles à teoria das


Idéias, apresentando-a como uma duplicação supérflua do mundo dos fe-
nômenos, revela uma compreensão equivocada, que distorce a motivação

7
H. F. Cherniss. “The Philosophical Economy of the Theory of Ideas”, originalmente publicado
em American Journal of Philology, 57, l936, 445-456. Traduzido para o português por Irley
Franco, em O que nos faz pensar, PUC-Rio, no. 2, 1990, 109-118.

18 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

da hipótese8. Essa deve ser compreendida, afirma Cherniss, levando-se em


conta a atitude expressa de Platão com relação aos problemas científicos,
tal como representada por uma célebre afirmação de Eudemo,9 segundo a
qual Platão dizia que as complicações dos movimentos planetários tinham
de ser explicadas pela elaboração de uma hipótese de um número definido
de movimentos fixos e regulares que iriam “salvar os fenômenos”
( ).
Essa mesma atitude, diz Cherniss, é expressa no Fédon (99d4-
100a8), onde Sócrates explica o método de hipótese que ele usou para dar
conta do mundo aparentemente desordenado dos fenômenos, e que resul-
tou na teoria das Idéias.
Cherniss menciona três tipos de fenômenos que Platão quer salvar:
éticos, epistemológicos, ontológicos. Em cada uma dessas esferas, o pen-
samento do século V havia desenvolvido doutrinas tão paradoxais, que se
tornava impossível reconciliar essas doutrinas umas com as outras e cada
uma delas com os fatos observáveis da experiência humana.
A chamada teoria das Idéias é apresentada então por Cherniss não
como algo que multiplica entidades metafísicas, mas, ao contrário, como
uma hipótese que obedece a um princípio de economia na explicação raci-
onal de fenômenos: uma hipótese não somente única mas unificadora na
explicação dos fatos observáveis da experiência humana.
Embora não caiba aqui desenvolver toda a argumentação de Cher-
niss em seu artigo, gostaria de apresentá-lo esquematicamente, indicando,
em cada esfera que ele menciona, quais são os principais "fenômenos a

8
A teoria das Idéias, que é, para Cherniss, uma “hipótese” de Platão.
9
Citada por Simplício, sob a autoridade de Sosígenes, em De Caelo, p. 488, 18-24 (Heiberg).
Apud Cherniss, op. cit.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 19


Maura Iglésias

salvar", e quais as teses paradoxais com que Platão se depara. Na esfera


ética, os fenômenos a salvar seriam, por exemplo, a possibilidade de distin-
ção entre o bom e o mau, o justo e o injusto, o reconhecimento da própria
existência de pessoas virtuosas; as teses paradoxais seriam aquelas como
desenvolvidas nos , que negam a existência de
valores absolutos, o que torna impossível tal distinção. No campo episte-
mológico, os fenômenos a salvar seriam os fatos reconhecidos da possibili-
dade do aprendizado, da distinção entre opinião e ciência, da própria exis-
tência da percepção sensível e da ciência; as teses paradoxais seriam, de
um lado, a aporia do Mênon, que nega a possibilidade do aprendizado; de
outro, certas concepções sobre a natureza do sensível – desenvolvidas so-
bretudo ao longo da que é considerada a primeira definição de ciência do
Teeteto (151d7-187b) –, que, afirmando a só existência do fluxo, e negando
qualquer tipo de repouso, tornam impossível não só a distinção entre opini-
ão e ciência, mas a própria existência tanto da ciência quanto da percepção
sensorial. Na esfera ontológica, finalmente, o fenômeno a salvar é a reali-
dade sensível, que se dá a nós ao mesmo tempo com consistência e em
constante fluxo; a tese paradoxal, desenvolvida também na primeira defini-
ção do Teeteto, é que se absolutamente tudo está em alteração – isto é, se
não somente “coisas” percebidas (coisas como o "branco" apreendido) se
alteram, mas se as próprias qualidades apreendidas (a própria brancura)
não têm fixidez –, temos, por um lado, que as sensações são indiferencia-
das, pois dependem do reconhecimento de características fixas naquilo que
se altera; por outro lado, que a própria alteração é impossível, uma vez que
a alteração, para ser inteligível, exige a subsistência permanente de quali-
dades abstratas imutáveis.

20 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

A teoria das Idéias é justamente a hipótese que vai salvar todos es-
ses fenômenos. Não somente isso. Ela é a hipótese que vai permitir a inte-
gração dessas várias facetas da experiência humana – ética, epistemológi-
ca e ontológica –, uma vez que, além de explicar os fenômenos de cada
uma dessas esferas, ela fundamenta cada uma delas na outra: é a teoria
que fornece uma ontologia adequada à fundamentação de uma epistemolo-
gia, por sua vez adequada a uma fundamentação da ética.
Em resumo, para Cherniss, longe de multiplicar entidades na busca
de explicação dos fenômenos, Platão, ao formular a teoria das Idéias, está
obedecendo a um rigoroso princípio de economia, a busca do menor núme-
ro possível de princípios explicativos. E a hipótese das Idéias realiza um
prodígio de economia: além de ser uma só para dar conta de todos os fatos
da experiência humana nas esferas ética, epistemológica e ontológica, ela
unifica essas esferas e permite ver a experiência humana como um todo
organizado e unificado.
É exatamente essa rigorosa economia na explicação de fenômenos
ou fatos da experiência humana que gostaria de invocar, para afirmar que,
também no caso da teoria sobre a alma, o mesmo princípio está em ação.
Se Platão afirmou a unidade da alma e a distinguiu do corpo, certamente
não foi na ânsia de criar um entidade supérflua, ou validar uma entidade
que estava em vias de formação durante o período que o separa de Home-
ro. Sua postulação como entidade distinta do corpo certamente obedece a
um princípio de economia característico da hipótese tal qual descrita no Fé-
don, e explorada por Cherniss. A alma tem de ser também resultado de
uma economia de princípios.
Onde e como se vê em ação a aplicação dessa economia?

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 21


Maura Iglésias

Em primeiro lugar, é claro, isso se dá de uma maneira indireta, na


medida em que a alma é o correlato necessário da própria teoria das Idéias.
Sem ela, as Idéias, postuladas para explicar, nada explicariam, uma vez que é
na alma que se dá a compreensão da ligação entre Idéias e mundo fenomê-
nico. Poder-se-ía argumentar, talvez, que, para que isso se dê não é necessá-
rio postular a alma como entidade independente do corpo. Mas, lembremos,
essa separação é uma exigência para a solução da aporia do Mênon.
Entretanto, não é somente como correlato da teoria das Idéias que
pretendo afirmar que a alma é, em Platão, resultado de sua busca de eco-
nomia de princípios explicativos. Pretendo mostrar como ela é, ela mesma,
o resultado de várias unificações e reduções, que se podem constatar den-
tro da obra platônica, muitas delas nos diálogos chamados "socráticos".
A primeira dessas unificações que eu mencionaria é o trabalho de
reunião de fenômenos reconhecidos como não corpóreos na unidade cons-
tituída pela alma.
Diferente de Homero, onde fenômenos reconhecidos posteriormente
como psíquicos não estão articulados numa unidade e não se distinguem
de fenômenos corpóreos, essa distinção é perfeitamente clara já dentro dos
diálogos chamados socráticos, onde atividades intelectivas, disposições, e
outros fenômenos são reunidos na unidade constituída pela .
Não estou com isso querendo afirmar que foi Platão o primeiro a re-
conhecer um a um os pedaços psíquicos do homem homérico fragmentado,
como no-lo apresenta Snell, para reuni-los na entidade . Entre
Homero e Platão há uma distância considerável. A literatura grega, não só a
filosófica, nos dá conta de uma crescente transformação na concepção gre-
ga do homem e da relação corpo e alma.

22 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Um dos aspectos dessa transformação é o progressivo destacamento


de atividades mentais, emocionais, intelectuais, espirituais de suas localiza-
ções corpóreas. Pois uma característica extremamente interessante da no-
ção grega arcaica do homem é a localização corporal de atividades que
serão posteriormente reconhecidas como psíquicas, havendo uma varieda-
de de termos designativos desses "órgãos". Snell, como mencionamos, re-
conhece sobretudo dois: e . Mas há outros. Alguns
comentadores, baseados na diferença e na etimologia dos termos utilizados
em conexão com os vários fenômenos psíquicos, tentam estabelecer distin-
ções precisas e sutis entre eles, começando, é claro, pelos textos homéri-
cos. O problema é que, ainda que possa haver uma distinção original no
uso desses termos, que poderíamos tentar captar pela etimologia, os textos
de Homero são os mais antigos de que dispomos e forçar a etimologia para
ver essas distinções em Homero representa talvez simplificação enganosa.
É o que parece indicar a análise de Furley,10 que tem a respeito uma
posição que me parece a mais razoável. Furley parte da noção comumente
aceita de que, antes de Aristóteles, não havia uma compreensão adequada
da técnica linguística de abstração. Um dos resultados é que as palavras
tendem a ser vistas como nomes de coisas. É isso, segundo ele, que justifi-
ca que, no estudo da noção pré-filosófica de alma, há que estudar não os
verbos que descrevem funções da alma, mas os substantivos que eram to-
mados como nomes de entidades nas quais e pelas quais essas funções
eram realizadas.
Furley concentra sua análise nos termos ; ;
ou ; / ; e

10
D. J. Furley. “The Early History of the Concept of Soul”, em T. Irwin, org., Classical Philoso-
phy: Collected Papers, vol.1: Philosophy Before Socrates, Nova York e Londres, 109-126.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 23


Maura Iglésias

suas variantes e sinônimos: , , ! . Todas


essas palavras são nomes de coisas onde acontecem atividades mentais. E,
embora Furley reconheça claras diferenças na maneira como elas se articu-
lam com o corpo,11 o que certamente indica distinções originalmente signifi-
cativas entre elas, a mais notável tendência dessas palavras, nota ele, é
serem assimiladas umas às outras. "As distinções originais, que já estavam
confundidas em Homero, logo praticamente desapareceram."12 E, sobre a pa-
lavra , acrescenta ele que, no seu desenvolvimento a partir de
Homero, "acabou por substituir outras palavras num número crescente de
contextos".13
De qualquer forma, na época de Platão, uma certa forma de cisão
corpo e alma já estava feita. Isso entretanto não equivale a dizer que já ha-
via uma teoria da alma, uma vez que não há nenhum trabalho de integração
dessas funções psíquicas numa unidade claramente definida, ou uma com-
preensão de como se dá essa integração ou sua integração com o corpo.
Esse é o trabalho de Platão e, por isso, apesar de ele ser de certa forma
herdeiro da cisão corpo e alma, e não ter sido absolutamente o primeiro

11
Furley reconhece três categorias distintas a que pertencem essas palavras: de um lado, i)
(e suas variantes) e / ; de outro, ii)
, e iii) . As primeiras (i) designam claramente partes do
corpo, formadas de tecidos: refere-se ao coração e coisas que acontecem
nesse órgão segundo o conhecimento da função do coração; /
refere-se provavelmente ao diafragma, aos pulmões, ou a todo o conjunto de órgãos situados
grosso modo entre os intestinos e a clavícula. As coisas designadas pelos termos mencionados
em ii) e iii), embora em Homero se diga que residem no corpo (normalmente no peito), não são
partes do corpo formadas de tecidos. Mas há uma diferença entre (ii) e (iii): parece
ser, originalmente, um substantivo abstrato derivado de um verbo (tipo: compreensão, pensa-
mento) e não denota nenhuma entidade física. Já é algo suficientemente substan-
cial para ser um fantasma que sobrevive após a morte do homem, e , quer seja
a respiração excitada na emoção ou o efervescente remoinho do sangue, é suficientemente
substancial em Homero para dar ordem e falar.
12
op. cit., p. 112.
13
Ib., p. 114.

24 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

filósofo a falar da alma, ele é com razão considerado como o primeiro filó-
sofo a ter uma genuína teoria da alma.
Mas o trabalho de unificação e redução de princípios levado a efeito
na elaboração da noção de alma em Platão vai muito além dessa reunião
de atividades dispersas já compreendidas em grande parte como não cor-
porais. Não se trata apenas de conduzir os fenômenos psíquicos a uma só
entidade, a alma. A teoria da alma presente nos diálogos chamados socráti-
cos é produto de outras importantes reduções, levadas a efeito no seu inte-
rior, por assim dizer.
Lembremos algumas delas:
1. redução de todas as virtudes a uma só virtude, o conhecimento.
A relação entre as várias virtudes reconhecidas pela opinião corrente
e pela própria língua, que distinguia entre justiça, temperança, coragem,
respeito, sabedoria etc., era aparentemente objeto de discussões da época,
como nos testemunham os diálogos platônicos, sobretudo o Protágoras.
Que todas essas virtudes se implicam mutuamente, talvez com exceção da
coragem, parece ser a concepção corrente, representada pelo próprio per-
sonagem Protágoras nesse diálogo. A dialética socrática vai mostrar entre-
tanto uma quase identidade entre elas, na medida em que todas são uma
forma de ciência, mesmo a coragem, definida como "o conhecimento do
que é e do que não é temível” (360d).
2. A redução de todos os bens a um só bem, o conhecimento.
Essa redução é efetuada por Sócrates de maneira exemplar no Euti-
demo (278e-282a) a partir de duas premissas aceitas sem reserva: i) que
todo homem deseja a vida bem sucedida, a ; e ii)
que a vida bem sucedida significa ter bens ou coisas boas.
Note-se que, no início da argumentação, os bens que aparecem

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 25


Maura Iglésias

como os meios para ser feliz não são absolutamente o Bem platônico, ou
algum bem abstrato colocado pela filosofia ou pela religião. A enumeração
dos bens no Eutidemo se pretende completa e inclui bens externos (nasci-
mento, riqueza, honras na cidade) e bens relativos ao corpo (beleza, saúde,
vigor) tanto quanto os relativos à alma (as virtudes, reconhecidas como tais e
por todos desejadas como bens). Enfim: trata-se de tudo aquilo que é tradici-
onalmente e popularmente reconhecido como bens. Daí a aceitação incondi-
cional da equivalência que Sócrates estabelece entre eudaimonia e "ter
bens".
Em sua argumentação entretanto, Sócrates vai mostrar que todas as
coisas enumeradas como bens só o são se “bem usadas”, e que o bom uso
é produto do conhecimento. Em outras palavras: o conhecimento é a única
coisa que é em si mesmo um bem; todos os outros bens, se não são co-
nhecimento, são pelo menos subsumidos a ele, sem o que deixam de ser
bens e podem mesmo tornar-se seu contrário. É digno de nota que, no Eu-
tidemo, até mesmo a , o sucesso, é dissociado de qual-
quer ligação com o acaso feliz, que parecia essencial para a sua realização
conforme nos mostra a própria palavra, para ser inteiramente subsumida ao
conhecimento. De fato, Sócrates argumenta que o sucesso sempre acom-
panha o saber, enquanto o insucesso é produto da ignorância.
Podemos também acrescentar, embora isso não apareça nessa pas-
sagem do Eutidemo, que a redução ou subsunção dos bens ao conheci-
mento inclui até mesmo o prazer, quando esse é tido como o supremo bem,
como na argumentação no Protágoras (351 b ss.). Se o bem se identifica
com o prazer, e o mal com a dor ou desprazer, tendo em vista que muitas
vezes o prazer se acompanha de dor, vai ser preciso um cálculo dos praze-
res para garantir a maior soma possível deles, com exclusão das dores.

26 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Ora, esse cálculo é obra da razão, e é o correto uso da razão, isto é, a ciên-
cia, que garantirá o maior bem, isto é, o gozo da maior quantidade possível
de prazeres.
3. Redução do desejo ao desejo do que se julga ser o bem ou o me-
lhor, o que significa a redução do desejo à cognição ou razão, se não ao
próprio conhecimento.
Que todo desejo é desejo do que se julga o bem é resultado do axioma
aceito de que todo homem deseja a e que essa
significa ter bens.
O homem deseja pois, por natureza, o que é ou o que ele julga ser o
bem, o melhor, ou o menor mal (Protágoras 358d). Assim sendo, pode-se
dizer que todo desejo é racional. É claro que a razão pode errar, tomando o
mal pelo bem ou o pior pelo melhor. Mas isso não muda a natureza do de-
sejo, que é sempre desejo daquilo que se julga ser o bem. A união entre
desejo e razão é assim indissolúvel: a ação humana é exclusivamente de-
terminada pelo que a razão toma pelo bem, ou pelo melhor.
À luz dessas reduções podem-se compreender algumas afirmações
que resumem a ética socrática: i) que nenhum homem faz o mal delibera-
damente, isto é, sabendo que o mal é mal; ii) que o homem sábio é o ho-
mem justo; iii) que o homem sábio é o homem feliz; iv) que não existe a
(fraqueza da vontade).
Todas essas afirmações são paradoxais, isto é, elas vão contra a
opinião corrente. E não me refiro à nossa, mas também à dos contemporâ-
neos de Sócrates, que se espantam cada vez que elas aparecem, exigindo
uma argumentação que as sustente. À luz das reduções operadas por Só-
crates, todas sustentadas por argumentos, os paradoxos se tornam claros.
É porque as virtudes são uma só virtude, a ciência, que a ação virtuosa tem

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 27


Maura Iglésias

uma só fonte: o conhecimento. O homem virtuoso é pois o sábio. É porque


todos os bens são subsumidos à ciência, para realmente ser bens, que só o
sábio é verdadeiramente feliz, uma vez que ser feliz é ter bens. É porque
desejo é sempre desejo do que a razão toma pelo bem ou pelo melhor, que
não há conflitos de desejos no momento da ação: a é
assim impossível, pois a ação humana é inteiramente determinada por
aquilo que a razão, nesse momento, toma como o bem ou o melhor. A ra-
zão pode errar, é claro, e tomar o mal pelo bem. Trata-se entretanto de um
erro intelectual; essa a fonte da injustiça, isto é, do cometimento do mal.
Ninguém comete o mal deliberadamente. Aquele que sabe, o sábio, não
cometendo esse erro intelectual, jamais tomando o mal pelo bem, age sem-
pre segundo o bem. O sábio pois é necessariamente justo.
A alma socrática é assim de uma unidade e simplicidade absoluta,
um princípio ao mesmo tempo racional e desejante, e desejante de uma
coisa única: aquilo que é tido pelo bem. Ela é sede das virtudes, ou das
ações virtuosas, que não são remetidas a diferentes fontes dentro da alma,
uma vez que são uma só, ciência, que é também desejo daquilo que sabe
ser o bem. Essa simplicidade absoluta recebe como que um coroamento no
Fédon, onde a constituição simples da alma é um dos argumentos de sua
imortalidade.14

III

Até aqui, creio que não há dúvida de que o trabalho de Platão é


exemplar na aplicação de um princípio de economia tal como vimos afir-

14
V. Fédon 78b-c.

28 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

mando que ele fez, segundo aliás o que era a inspiração do pensamento
grego desde o seu início: a busca do menor número possível de
.
Mas todos sabemos que essa não é a última palavra de Platão sobre
a alma. Depois de ter conseguido elaborar sua perfeita unidade e simplici-
dade, Platão acabou renunciando a elas, chegando a teses que parecem
contradizer esse espírito de economia. Refiro-me especificamente à triparti-
ção da alma em República IV, à quadripartição do conhecimento em Repú-
blica VI e à constituição da alma no Timeu, que afirma a própria alma inte-
lectiva como uma complexa mistura de "ingredientes".
O que eu proponho mostrar entretanto é que, apesar das aparências,
ainda aqui o trabalho de Platão segue rigorosamente dentro do mesmo es-
pírito de salvação de e economia de princípios expli-
cativos.
Começando pela tripartição da alma em República IV, lembremos
que o tema aparece ligado a uma pesquisa sobre a natureza da justiça.
Dando-se conta da dificuldade de compreender o que ela seja no
homem, Sócrates propõe procurá-la num exemplo mais vasto de possessão
da justiça, isto é, na cidade, uma vez que também a cidade pode ser justa.
Sócrates dedica-se assim a erguer uma cidade ideal, pois nela certamente
a justiça será encontrada. Essa cidade bem construída compõe-se de três
classes sociais distintas, cada uma com sua "natureza própria" (ou função
específica), e a justiça acaba sendo encontrada como a virtude que resulta
de cada uma dessas classes realizar a natureza que lhe é própria (cumprir
a função que lhe compete), sendo isso o que garante o bom funcionamento
do todo. A justiça é assim uma espécie de elo que liga partes heterogêneas,
delas fazendo um todo harmonioso. A unidade da cidade não é assim re-

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 29


Maura Iglésias

sultante de sua homogeneidade e simplicidade, mas uma unidade que vem


da reunião harmônica de partes heterogêneas.
Seguindo sua estratégia, Sócrates terá então de transportar esse re-
sultado para o caso do homem, a fim de nele encontrar a justiça. Essa terá
de ser então resultado de uma harmonização de partes heterogêneas da
alma. É então que a alma vai ser revelada como também constituída de três
partes, em paralelismo com a cidade.
Essa maneira como Platão apresenta a tripartição da alma vai ensejar
um tipo de interpretação que procura minimizar sua importância, entendendo-a
como resultante da correspondência que Platão tem de encontrar na alma com
as classes sociais que ele estabelece na cidade, uma vez que o paralelismo
entre alma e cidade é assumido desde o começo da pesquisa sobre a justiça.
Entretanto, algumas leituras recentes vão propor interpretações que,
ao invés de minimizar, valorizam a tripartição, nela vendo o reconhecimento
que teve Platão de certos problemas ligados à motivação da ação humana,
e seu esforço em solucioná-los.
Cooper15 se propõe mesmo mostrar que a tripartição da alma, longe
de ser resultado da tripartição da cidade em classes sociais, é antes o fun-
damento dessa. A teoria psicológica de Platão na República resultaria de
uma cuidadosa observação de certos fatos da conduta humana levada a
cabo por Platão, e consegue dar uma explicação bem mais satisfatória da
ação humana do que muitas outras teorias posteriores.
O primeiro passo para entender o porquê disso exige uma reflexão
sobre a relação entre desejo e razão. Assim, Cooper faz remontar a Hobbes
uma conhecida teoria segundo a qual as ações de uma pessoa são o pro-

15
John M. Cooper. “Plato's Theory of Human Motivation”, em History of Philosophy Quarterly,
o
vol. 1, n .1, janeiro l984. Reimp. em T. Irwin, org., Classical Philosophy: Collected Papers, vol.
3: Plato's Ethics, Nova York e Londres, 1995, 97-115.

30 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

duto conjunto de suas crenças e seus desejos relevantes. O desejo provi-


denciaria a força motivadora e a crença forneceria a informação sobre como
agir para satisfazer o desejo. Nessa teoria pois o desejo é a fonte exclusiva
da motivação e a crença contribui com informação factual, mas não fornece
nenhum impulso adicional para a ação. Ora, devido a uma semelhança su-
perficial com a teoria de Platão – que parece estabelecer uma divisão entre
razão, de um lado, e dois tipos de desejo de outro –, a tendência é ler Pla-
tão atribuindo à razão o mesmo papel que tem a crença na teoria moderna.
Ela seria uma fonte de informação, mas não fonte de motivação; essa viria
exclusivamente do desejo, surpreendentemente divido em duas espécies.
Mas essa leitura, diz Cooper, é incorreta. O contraste entre razão e
desejo não é o mesmo da teoria moderna, embora isso não venha explicita-
do até o livro IX da República, onde Sócrates afirma que “assim como há
três partes, há também três espécies de prazer, cada um peculiar a cada
parte, e assim também com os desejos” (580d7-8).
Aí se torna claro que a razão não é uma função distinta do desejo,
mas ela própria fonte de desejos que lhe são próprios. Na verdade, a tripar-
tição da alma é uma tripartição dos desejos. Ou, como insiste Cooper, o
reconhecimento de três diferentes fontes da motivação humana, três tipos
de desejos originários, irredutíveis uns aos outros.16 É isso que vai permitir
uma explicação mais satisfatória da ação humana.
Ora, essas fontes de motivação da ação, as partes da alma, são en-
contradas não por paralelismo com as três classes sociais da cidade, mas

16
A leitura Cooper se preocupa com encontrar as características de cada uma das fontes de
motivação da ação, entendendo a unidade de cada uma pelos exemplos de Platão, que às
vezes se prestam a equívocos. Desejos racionais: élan para o conhecimento da verdade e élan
para governar; desejos da parte irascível: ligados à competitividade, à auto-estima e à estima
dos outros; desejos apetitivos: ligados a impulsos e aversões físicas.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 31


Maura Iglésias

diretamente a partir da observação e análise de alguns exemplos de ações


humanas, extraídas da experiência do dia a dia ou de situações conhecidas
que envolvem heróis e personagens da literatura.
Essa interpretação, como vemos, acaba reencontrando pelo menos
um dos aspectos da tese de Cherniss que, segundo sustento, aplica-se in-
teiramente ao caso da alma: a elaboração de hipóteses para a explicação
de fatos observados, isto é, para “salvar ”. Pois Platão
parece ter-se dado conta de que a alma socrática deixava sem explicação,
e mesmo negava a possibilidade de existência de
amplamente observáveis relativos à ação humana.
Platão parece ter visto que a ação humana é muito mais complexa do que a
teoria da alma anterior dava a entender. Os desejos não são só racionais.
Há sim conflitos de desejo, há sim deliberadas ações para o mal, há sim
. Platão deve ter constatado esses fenômenos, e precisa
“salvá-los”. Para isso vai ter de romper com a hipótese de uma alma indivi-
sa, e criar diferentes fontes de motivação da ação.
Que essa explicação vai recorrer ao número possível de princípios
explicativos, no caso o menor número possível de partes da alma, vistas
como fontes de ação, é evidente pela leitura a partir de República 435c ss.,
onde Platão começa a transposição do resultado de sua pesquisa sobre a
justiça da cidade para o homem. Na passagem de 439a-441c, onde ele de-
duz, a partir de certos conflitos, o número de partes necessário para poder
explicá-los, nota-se claramente a preocupação de Sócrates em estabelecer
o menor número possível delas. Depois de constatar a necessidade de re-
conhecer a distinção entre a parte apetitiva ( " )e
a racional (439 e), Sócrates pergunta se aquilo com que nos iramos
( #$ ) é uma terceira parte ou então de qual das

32 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

outras duas se aproximaria. Em outras palavras: ele tenta reduzir a parte


irascível a uma das duas outras. Se não o fez é porque não conseguiu, uma
vez que ela se revelou como uma fonte de impulsos distinta e irredutível
capaz de entrar em conflito tanto com a parte apetitiva quanto com a racio-
nal.
É verdade que têm sido levantadas suspeitas sobre a validade do
princípio em que se baseia Sócrates para deduzir o número de partes da
alma. Esse, que vem sendo chamado “princípio dos opostos”, é talvez a
primeira formulação do princípio da não contradição. Sócrates argumenta
que uma coisa não pode fazer ou sofrer coisas opostas em relação à mes-
ma coisa ao mesmo tempo. Segue-se então a análise de vários casos de
conflitos, em que se reconhece que a alma está sendo solicitada ao mesmo
tempo por impulsos opostos, o que vai determinar o reconhecimento das
diferentes partes: racional, irascível, apetitiva.
O que se tem observado é que, se o princípio dos opostos fosse re-
almente válido, isto é, se a mera existência concomitante de desejos in-
compatíveis fosse suficiente para reconhecer diferentes partes da alma,
Sócrates seria obrigado a atribuir-lhe muito mais do que as três partes que
ele quer encontrar para garantir o paralelismo com a cidade. De fato, a
parte apetitiva pode ter um número indefinido de desejos concomitantes
incompatíveis. E se o princípio dos opostos não tem validade, não se vê
claramente por que dividir a alma, em vez de resolver qualquer conflito, en-
tre desejos apetitivos ou de quaisquer outros tipos, com base no princípio
socrático de que a escolha é sempre pelo que se toma pelo melhor. A divi-
são da alma seria assim desnecessária, e o número de partes reconhecido,
arbitrário.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 33


Maura Iglésias

Mas não é fácil argüir Platão de inconsistência. M. Woods,17 por


exemplo, conseguiu dar ao texto uma interpretação que salva a validade do
princípio dos opostos, e justifica o reconhecimento de apenas três partes da
alma. Para isso, ele insiste sobre a “morbidez” de certos impulsos nos ca-
sos de conflitos analisados por Sócrates, para sustentar que esses casos
são escolhidos com o claro propósito de desvincular esses impulsos de
qualquer ligação com um “bem” visado. Em outras palavras: Platão estaria
mostrando, contra a tese socrática de que todo impulso é desejo pelo bem
ou pelo melhor, casos de impulsos que de maneira alguma podem ser con-
siderados tais. Não há pois como resolver os conflitos em que entram esses
impulsos com o princípio da escolha pelo melhor; eles se revelam como
provindo de uma fonte independente de motivação de ações que não pare-
cem resultar de desejos pelo bem. É verdade que, em geral, esses impulsos
vão ter também um bem visado; mas isso não invalida o processo pelo qual
foram encontradas as distintas fontes de motivação para a ação, com base
no princípio dos opostos.
De qualquer forma, a divisão da alma parece ser necessária, e o nú-
mero de divisões o estritamente necessário para dar conta dos conflitos
constatados.
Mencionei duas outras questões que, embora rompendo com a con-
cepção socrática da absoluta simplicidade da alma, estão só aparente-
mente em contradição com o procedimento platônico de busca do menor
número possível de princípios explicativos: a quadripartição da alma em
República VI e a constituição complexa da alma em Timeu 35a ss.

17
M. Woods. "Plato's Division of the Soul", em Proceedings of the British Academy, LXXIII,
1987, 23-48. Reimp. em T. Irwin, org., Classical Philosophy: Collected Papers, vol. 3: Plato's
Ethics, Nova York e Londres, 1995, 117-141.

34 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Considerando que as duas questões se articulam na teoria do conhe-


cimento de Platão, que, a meu ver, forma um todo coerente ao longo de
toda a sua obra, permito-me tratá-las conjuntamente, e abordar os textos
platônicos num ziguezague cronológico: indo do Sofista para o Teeteto, que
lhe é anterior, depois para o Timeu que é posterior ao Sofista e finalmente
para a República, que é anterior a esses três.
A passagem do Sofista a que me refiro (245e ss., sobretudo 248a ss.)
é aquela em que o Estrangeiro de Eléia, à procura de um esclarecimento
sobre o ser, refere-se à , o confronto entre os
que vão ser chamados de Filhos da Terra e Amigos das Formas. Os primei-
ros só admitem que é ser o que é corpóreo, isto é, aquilo que oferece re-
sistência e contacto (" e " ). Os Amigos das
Formas, ao contrário, partem de uma radical distinção entre ser
( ) e devir ( ).
O Estrangeiro vai tentar fazer convergir uns e outros numa definição
comum de ser e consegue, primeiro, que os menos radicais dos corporea-
listas aceitem uma definição provisória de ser como

...o que quer que tenha naturalmente uma potência qualquer, seja
de agir sobre o que quer que seja, seja de sofrer uma ação, por
mínima que seja, de um agente, mesmo o mais insignificante, ain-
da que por uma só vez... (Sofista 247d8-e4).

É a essa definição que o Estrangeiro tenta conduzir também os Ami-


gos das Formas. Na reconstituição que faz o Estrangeiro da doutrina des-
ses, ele afirma não só que eles operam a radical cisão entre ser e devir,
mas também que, segundo eles,

...pelo corpo ( ) temos comunhão com o devir


( ) através da sensação

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 35


Maura Iglésias

( ’ ); e pela alma ( $ ) através


do raciocínio ( ) temos comunhão com a
; e essa...é sempre idêntica e imutável, enquanto o
18
devir é sempre outro a cada vez (248a).

Trata-se evidentemente da descrição do que seja a apreensão do


sensível e do inteligível, entendida como resultado de uma comunhão: no
caso do sensível, do corpo com o devir; no caso do inteligível, da alma com
a .
A estratégia do Estrangeiro para fazer aceitar a definição de ser como
pelos Amigos das Formas é compreender essa comunhão
que existe em ambos os tipos de apreensão como paixão ou ação, resul-
tante do encontro mútuo. Mas ele sabe de antemão que os Amigos das
Formas não vão admitir essa explicação, no que se refere à cognição da
, pois, para eles, o devir participa da potência de agir e sofrer
ação, mas a não admite nem ação nem paixão. Nenhum tipo
de movimento tem lugar na .
O Estrangeiro precisa romper com essa concepção, pois seu objetivo
é introduzir o movimento no ser. E isso ele vai fazer, segundo creio, partin-
do de um fato admitido pelos Amigos das Formas – que a alma conhece e
que é conhecida – e insistindo sobre uma concepção de co-
nhecimento como atividade da alma, o que vai acarretar uma contrapartida
de passividade na que é conhecida. O movimento seria des-
sa forma introduzido no ser como ação sofrida pela .

18
Cf. Fédon 79a, onde aparece o contraste entre apreensão sensorial e apreensão pela razão
( $ $ ). Note-se entretanto que no entender
de Platão, já no Fédon, é sempre a alma que conhece: através dos sentidos, no caso do sensí-
vel, ou por si mesma, no caso do inteligível. Na teoria platônica, a diferença é o estado da
alma, confuso e errante quando se volta para o sensível, e em repouso quando em contacto
com o eterno e imutável. V. Fédon 79a-e; cf. República 508d.

36 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

O problema é que a concepção de conhecimento (apreensão da


) como atividade não pode evidentemente ser a dos Amigos
das Formas. Mas qual seria essa afinal, se tampouco como passividade da
alma o conhecimento é possível, pois acarretaria uma atividade da
?
Aparentemente pois, embora afirmando a possibilidade de conheci-
mento, a doutrina dos Amigos das Formas, – que parece ser uma versão da
teoria das Idéias, ou uma maneira de entendê-la – deixa o conhecimento da
sem explicação, ao mesmo tempo que a percepção sensorial
não parece estar explicada nem pela alma nem pelas Formas.
De fato, o paralelismo estabelecido na passagem citada entre, de um
lado, corpo - devir - sentidos e, de outro, alma - ser - raciocínio parece ne-
gar qualquer papel à alma na percepção sensorial, que é produto de con-
tacto das coisas no devir (coisas sensíveis) com o corpo através dos órgãos
dos sentidos ( ’ ).
Essa teoria pois não permite nem explicar o que seja o conhecimento
da , nem apela para as Formas como envolvidas de alguma
maneira na apreensão do sensível. É aparentemente uma versão da teoria
das Idéias que, ao radicalizar a distinção entre, de um lado, ser e devir, de
outro, apreensão sensível e conhecimento (este último só reservado à
), incidiria numa das críticas à teoria das Idéias feitas na pri-
meira parte do diálogo Parmênides: as Formas, sendo em si e não em nós,
são o que são nas relações umas com as outras, e não nas relações com
as coisas que são seus homônimos no sensível. E, inversamente, as coisas
homônimas das Formas são o que são nas relações entre elas e não nas
relações com as Formas. É assim que, alguém que é escravo não é escra-
vo do senhor em si e nem alguém que é senhor é senhor do escravo em si.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 37


Maura Iglésias

Inversamente, a senhoria em si e a escravidão em si são o que são em su-


as relações mútuas, e não na relação com o escravo ou com o senhor entre
nós. E o mesmo vai acontecer com a ciência: a ciência em si seria relativa
às coisas em si, e a ciência das coisas entre nós seria ciência das coisas
entre nós. No Parmênides, a conseqüência é que o próprio deus, tendo a
ciência em si, não poderia ter a ciência das coisas entre nós, o que era uma
conclusão inaceitável (Parmênides 133c-135 a).
Ora, essa maneira de entender as Idéias como totalmente cindidas
dos seus homônimos sensíveis, e como não implicadas no conhecimento
desses, deve ser rejeitada. Aliás, o sentido das aporias do Parmênides seria
justamente que elas revelam maneiras como as Idéias não podem ser com-
preendidas.
Assim, essa cisão absoluta tanto no plano ontológico quanto no
epistemológico revelaria uma dificuldade reconhecida por Platão e portanto
uma maneira de como não se devem entender as Idéias, maneira essa que
incidiria na crítica aristotélica de que as Idéias seriam uma multiplicação
supérflua dos fenômenos, que nada explicariam. A teoria das Idéias seria,
em outras palavras, a criação gratuita de entidades metafísicas, que mante-
ria estanques dois domínios: de um lado o ser e o conhecimento; de outro,
o sensível e a % . A essa dupla cisão, aparentemente corresponde-
ria uma cisão no interior do homem – corpo e alma –, que, pelo menos na
questão do conhecimento, permaneceriam dissociados: a alma estando em
contacto apenas com o inteligível, sem aparentemente exercer um papel na
percepção sensorial, e essa sendo produto do contacto do corpo, através
das sensações, com o devir.
Seja qual for a origem dessa teoria, Platão evidentemente a rejeita,
assim como rejeita uma versão da teoria das Idéias segundo a qual elas

38 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

não se relacionariam entre si, o que, conforme mostra o Estrangeiro, torna-


ria impossível o próprio discurso (Sofista 251a-252c). A teoria das Idéias
dele, Platão, ao contrário, estabelece a comunhão das Formas entre si (numa
estrutura, chamada de " , cuja nature-
za é um das lições mais importantes do Sofista); afirma a participação do sen-
sível nas Formas – o que dá o sentido da teoria das Idéias como hipótese
explicativa dos fenômenos; afirma as Idéias não só como objeto da intelec-
ção mas como implicadas na própria percepção sensorial; estabelece a
alma como aquilo com que realmente apreendemos não só o inteligível,
mas também o sensível.
Esses dois últimos aspectos equivalem a dizer que corpo e alma es-
tão relacionados na apreensão do sensível, e é a esse aspecto que eu me
volto, deixando a crítica da teoria dos Amigos das Formas e seus desdo-
bramentos no Sofista – que vão em direção aos propósitos próprios desse
diálogo – para examinar a questão da percepção sensorial no Teeteto.
O tema do diálogo é a busca da definição de ciência, e a questão é
tratada ao longo da análise daquela que é considerada a primeira definição
– a que propõe que a ciência é (Teeteto 151d7-187b).
Aliás, a maneira como a definição é proposta merece consideração.
Depois de uma tentativa frustrada, em que tenta responder à questão através
de uma série de exemplos de ciências, Teeteto, instado por Sócrates, tenta
de novo, dessa vez consciente da exigência socrática de universalidade:

... ! & "


'
" '

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 39


Maura Iglésias

" (
(151e, grifo meu).
(...Parece-me então que aquele que sabe algo sente aquilo que
sabe, e, como pelo menos aparece agora, a ciência não é outra
coisa senão sensação.)

A definição é notável, em primeiro lugar pela significativa imbricação


de quatro diferentes verbos (e dois substantivos seus cognatos) ligados à
cognição ( , " , e
). Um segundo aspecto digno de nota é que, se
tomarmos como significando sensação – o que é a tra-
dução normal desse termo –, a definição é mais que surpreendente, é qua-
se incompreensível. Como um matemático poderia dar uma definição de
ciência como sensação? O fato é tanto mais surpreendente quanto, subme-
tida à dialética socrática, a definição de Teeteto será tratada como a afirma-
ção de que toda percepção de um objeto externo é verdadeira, e isso pare-
ce, na discussão, como absolutamente equivalente a afirmar que qualquer
opinião é verdadeira.
Está claro pois que a que Teeteto propõe como ci-
ência não pode ser a mera percepção de um objeto externo.
Para a compreensão do que Teeteto quer dizer, recorro às observa-
ções feitas por M. Frede19, a respeito do sentido de anteri-
or a Platão. Ele começa por lembrar – o que aliás é óbvio pela simples leitu-
ra do Teeteto – que a palavra tem, até Platão, um sentido
muito mais amplo do que o veiculado por sua tradução, "sensação" ou "per-
cepção" (sobretudo percepção imediata de um objeto externo), e que é
Platão que, por razões próprias, vai restringir o sentido dessa palavra. (Seja

19
M. Frede. “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues”, em Essays in Ancient
Philosophy; Oxford, 1987, 3-8.

40 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

dito de passagem, o sentido que ele vai lhe reservar no Teeteto é ainda
mais restrito que a tradução consagrada da palavra, como será evidente
daqui a pouco.) O que é interessante no que Frede tem a nos dizer sobre o
sentido de é, em primeiro lugar, que os gregos, até o tem-
po de Platão, e freqüentemente para além dele, não reconheciam como coi-
sas de natureza distinta a apreensão do objeto externo e a apreensão inte-
lectiva, o que explica por que todos os casos de "tornar-se ciente de algo"
são compreendidos segundo o paradigma da visão; em segundo lugar, que
há uma tendência de usar em casos em que é
particularmente claro que alguém está ciente de algo, e não simplesmente
arriscando um palpite, ou fazendo uma conjectura, ou sabendo algo por
ouvir dizer. Assim, quando Teeteto propõe a definição de ciência como
, ele está aparentemente usando essa palavra num sentido
amplo, que significa uma clara apreensão de alguma coisa, que pode ser
tanto o objeto externo apreendido na sensação quanto uma opinião.
Vista dessa forma, a definição de Teeteto talvez seja viável e merece
a cuidadosa análise de Sócrates. Essa vai levar a muitas questões interes-
santes, inclusive uma teoria sobre a própria natureza do sensível e da per-
cepção sensorial, baseada numa ontologia heraclítica e numa epistemolo-
gia protagoreana, que entretanto fogem à alçada deste trabalho.
O que nos interessa mais de perto é a precisão que Sócrates vai in-
troduzir na maneira de se falar e de se entender como e através do que se
dá a percepção sensorial. A observação que ele vai fazer a esse respeito é
a seguinte: se se perguntasse a Teeteto "pelo que" o homem vê o branco e
o preto, e "pelo que" ouve o agudo e o grave, ele, Teeteto, provavelmente
responderia que é "pelos olhos", e "pelos ouvidos". Ora, observa Sócrates,
uma certa imprecisão no uso das palavras não é em geral indício de falta de

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 41


Maura Iglésias

raça. Ao contrário. Aqui, como aliás em várias passagens de Platão, a ex-


cessiva preocupação de precisão com a linguagem é marca de servilismo.
Mas, às vezes essa precisão é necessária, diz Sócrates, como no caso pre-
sente. A resposta correta de Teeteto seria que vemos, ouvimos etc. por algo
que, seja qual for o seu nome (Sócrates propõe que é a alma), é uma forma
única, para onde convergem todas as sensações. Olhos, ouvidos, etc. são
meros instrumentos ( ) de que se serve a alma na percepção.
Se não houvesse essa forma única, para a qual convergem todas as sen-
sações, essas "ficariam assentadas em nós como em cavalos de madeira".
Seriam registros sem nenhuma relação entre si, e sem nenhum valor cogni-
tivo.
Não é pois pelo corpo mas pela alma, que usa os sentidos como ins-
trumentos, que atingimos os sensíveis. Essa relação se esclarece na se-
quência da análise a que procede Sócrates. Cada tipo de sensível – cores,
sons, quente ou frio etc. – só pode ser recebido através do órgão próprio à
(sentido) que lhe corresponde. Em outras palavras: por
intermédio dos olhos, só podemos receber cores; por intermédio dos ouvi-
dos, só recebemos sons; e assim para os outros sensíveis. Não é possível
perceber sons por intermédio dos olhos, nem cores por intermédio dos ou-
vidos.
Sendo assim, raciocina Sócrates, no caso de haver algo percebido
como comum a coisas captadas por dois ou mais sentidos diferentes, esse
algo não pode ter vindo por intermédio de nenhum dos sentidos. É o caso
do que Sócrates vai chamar , coisas comuns a perceptos de
vários tipos. Coisas como o ser, o não ser, o semelhante, o dessemelhante,
o igual, o belo etc., que são percebidos como pertencentes a perceptos de
várias origens.

42 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

A conclusão de Sócrates é que esses , não vindo por


intermédio dos órgãos dos sentidos, são coisas que já estão na própria
alma. E a atribuição desses aos dados dos sentidos é produto
de uma atividade da alma, é fruto de um julgamento ( % ).
Ora, entre esses estão o próprio ser e o não ser. É nes-
se momento da análise que Sócrates vai distinguir, na percepção sensorial,
duas coisas que pareciam confundidas, na noção usada por Teeteto de
, mesmo quando aplicada à percepção de um objeto exter-
no: de um lado a captação de algo pelo sentido correspondente; e, de outro
lado, a própria afirmação do que é apreendido. Em outras palavras: o que
Sócrates revela é que a percepção de um objeto externo, que nos parece
uma apreensão direta, sem nenhum tipo de mediação, é de fato produto de
uma atividade da alma que vai atribuir a essa percepção o ser, afirmando-a
como sendo aquilo que ela é. Sócrates vai reservar a palavra
a essa mera captação do sensível, desprovida de qual-
quer tipo de "dar-se conta de algo". É a afirmação dessa percepção (dar-se
conta de que isso é tal ou tal coisa) que constitui o elemento cognitivo da
apreensão do sensível, e esse elemento é da ordem da % .
É assim que % e percepção do objeto externo são aproxi-
madas por Platão. A percepção do sensível, na medida em que é um dar-se
conta de que a coisa é assim ou assim, isto é, na medida em que é da or-
dem da cognição, é também % , também feita pela alma. O corpo é
mero instrumento na captação do sensível.
E note-se que aos pertencem não somente o ser e não
ser (responsável pela afirmação ou negação do que se percebe), mas coi-
sas como o belo, o semelhante, tudo o que se pode atribuir a perceptos de

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 43


Maura Iglésias

várias origens. Os julgamentos ( % ) se tornam assim ope-


rações complexas de atribuição de aos dados dos sentidos.
Note-se também que o texto do Teeteto nada fala a respeito das Idéi-
as em geral, somente dos . Mas embora as Idéias não sejam
todas , a interpretação mais aceita é que os são
Idéias. E se o Teeteto só fala dos , é provavelmente porque
eles são necessários e suficientes para revelar a inconsistência da definição
da ciência como simples . Uma vez aceito que algumas
Idéias (os ) são necessárias para explicar o conhecimento, a
sugestão, para além do texto do Teeteto, e em coerência com a teoria pla-
tônica apresentada em diálogos anteriores, é que as Idéias são aquilo que
se conhece, mesmo no caso da apreensão sensível.
Em resumo: toda cognição, mesmo a cognição do sensível, é feita
pela alma, e é resultado de uma atividade da alma; no caso da cognição
sensível, uma atividade de subsunção de perceptos a Idéias.
É essa visão de Platão sobre a cognição e sobre o papel desempe-
nhado pela alma na cognição que se deve opor à concepção dos Amigos
das Formas, como aparece no Sofista. Não há uma apreensão do sensível
feita pelo corpo, em oposição a uma apreensão do inteligível feita pela
alma. Toda apreensão cognitiva é feita pela alma.
Entretanto, há um problema que tem de ser contornado. É que, nas
teorias antigas, o conhecimento era resultado ou da afinidade ou do con-
traste entre cognoscente e cognoscível. Ou bem conhecimento do seme-
lhante pelo semelhante, ou do dessemelhante pelo dessemelhante; em ge-
ral, do semelhante pelo semelhante. Platão se filia claramente a esse ponto
de vista.

44 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Ora, na concepção socrática, ou platônica da fase socrática, a alma


era algo cujas afinidades pareciam ser claramente com o inteligível.20 Isso
talvez explique por que a teoria das idéias deu origem a uma versão como a
dos Amigos das Formas do Sofista.
Para que a alma possa ser aquilo com que apreendemos o sensível,
é preciso que ela de alguma forma tenha em si algo de sensível. Essa a
razão pela qual, também no que tange à sua própria constituição “física”,
digamos, Platão vai ter de renunciar à simplicidade absoluta que era uma
das condições da imortalidade no Fédon.
Eis por que no Timeu, onde Platão apresenta, sob a forma de um
mito, suas concepções sobre a natureza do sensível, a alma vai ser criada
pelo demiurgo como uma mistura complexa onde entram "ingredientes"
tanto do inteligível quanto do sensível (Timeu 35a ss.).
Antes de mais nada, lembremos que essa passagem descreve, em
verdade, a fabricação da “alma do mundo”, e que essa concepção platônica
de um universo dotado de alma responde claramente à necessidade que
Platão sentiu de fundar uma certa racionalidade do sensível, que ele passou
a reconhecer em sua última fase. A alma do mundo será assim princípio de
movimentos racionais, portanto inteligíveis, dentro do sensível. Esse, que
na visão primeira de Platão parecia irremediavelmente ligado à errância, vai
ser assim passível de um certo conhecimento científico, na medida em que
vai ser matematizado, embora jamais desligado da errância própria de
, o receptáculo ou matriz onde vai surgir, por obra do demiurgo, a
realidade sensível organizada. Essa, lembremos, tanto quanto as Idéias e o
próprio demiurgo, é eterna, e sua natureza, imutável, é a própria errância.

20
V. Fédon 79d ss..

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 45


Maura Iglésias

A alma do mundo, criada pelo demiurgo, e não co-eterna com ele ou


com as Idéias, é pois fabricada com a intenção de explicar a inteligibilidade
do movimento no sensível, especialmente o movimento dos céus. Essa
alma corresponde assim somente à parte intelectiva da alma dos mortais,
que mais adiante no Timeu será chamada simplesmente a alma imortal,
também construída diretamente pelo demiurgo de maneira semelhante à
alma do mundo (Timeu 41d). As duas outras partes, não racionais, constitu-
em a alma mortal, criada por deuses inferiores (69c7 ss.). Em conjunto, as
duas almas são, grosso modo, correspondentes às partes da alma de que
fala a República.
Considerando que as razões dessa divisão da alma já foram exami-
nadas, o que nos interessa no Timeu para a questão aqui examinada é a
complexidade introduzida no interior da própria parte intelectiva.
Embora Timeu 35a ss. descreva a fabricação da alma do mundo e o
que nos interessa mais de perto seja a alma individual, a questão é a mes-
ma, uma vez que a alma imortal, isto é, intelectiva, dos mortais, é constituí-
da basicamente pela mesma mistura, se bem que degradada em relação à
original.
Quais sejam exatamente os ingredientes dessa mistura é um assunto
sujeito a interpretações diferentes, que implicam inclusive diferença no es-
tabelecimento do texto.
A interpretação de Rivaud,21 mais simples, faz só duas ações de
mistura: uma primeira mistura, formada da indivisível (ou
do Mesmo) mais a divisível (ou
do Outro) cujo resultado é uma intermediária; uma segunda

21
Platon. "Timeu", in Oeuvres Complètes, tomo X; texto estabelecido e traduzido por A. Rivaud
(CUF), Les Belles Lettres, Paris 1970 (5a. tiragem).

46 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

mistura, formada da indivisível (ou do Mesmo), mais a


divisível (ou do Outro), mais a recém-formada
intermediária, cujo resultado é a mistura final a partir da qual o demiurgo
fabrica a alma do mundo.
Na interpretação de Cornford,22 que se apoia em Proclo, entram qua-
tro ações de mistura: i) a mistura da indivisível com a
divisível formando uma intermediária; ii) a
mistura do Mesmo indivisível com o Mesmo divisível, formando o Mesmo
intermediário; iii) a mistura do Outro divisível com o Outro indivisível, for-
mando o Outro intermediário; iv) a mistura dos três ingredientes formados,
que constituiriam então a mistura final ( intermediária mais
Mesmo intermediário mais Outro intermediário), a partir da qual vai ser
construída a alma do mundo. 23

Seja qual for a leitura, a mistura feita pelo demiurgo tem o claro pro-
pósito de associar inteligível e sensível para garantir a afinidade da alma
com ambos os domínios, uma vez que é nela que se dá o conhecimento
seja do que for, em qualquer nível. Mas, enquanto para Rivaud o Mesmo e
o Outro são simplesmente a inteligível e a sen-
sível, na interpretação de Cornford , Mesmo e Outro são vis-
tos como os gêneros supremos do Sofista, o que reforça a ligação da mistu-
ra com a questão do conhecimento. De fato, no Sofista, conhecer é clara-

22
F. M. Cornford. Plato's Cosmology; Indianapolis e Cambridge, 1987 (reimp.; 1a. ed. Rou-
tledge, Nova York, 1935).
23
Há que considerar também o problema de identificar a divisível, uma vez que a
criação da alma precede a do corpo, e não é possível que essa , ou quaisquer
ingredientes do sensível, venha da própria realidade sensível, que ainda não foi criada. Exami-
nei a questão num trabalho não publicado, apresentado na reunião da ANPOF em 1996, onde
rejeito a idéia de que esses ingredientes do sensível possam provir de , e proponho
que sejam os "intermediários", sólidos geométricos que serão de alguma forma identificados
com os elementos (fogo, terra, ar e água).

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 47


Maura Iglésias

mente conhecer, em relação a qualquer ser, o que ele é, o que é o mesmo


que ele e o que é outro em relação a ele.
Mas não é só na composição da mistura que se estabelece a afinida-
de da alma tanto com o sensível quanto com o inteligível. O próximo passo
do demiurgo é impor uma estrutura matemática à alma, o que ele faz desta-
cando dessa mistura porções segundo proporções geométricas de dois e
de três, e em seguida "preenchendo" ( " ) os interva-
los com porções segundo proporções aritméticas e harmônicas. Embora
Platão não pareça visar a formação de uma escala musical (a extensão com
que ele trabalha é muito superior ao alcance da nossa audição), a utilização
de proporções matemáticas precisas e o "preenchimento" de intervalos são
clara alusão à formação de uma escala musical à moda dos músicos mate-
máticos. Essa matematização e harmonização da alma não só fundamenta
a racionalidade do movimento – sobretudo cósmico, mas sensível em geral
–, como cria na alma um paralelismo adequado ao conhecimento tanto do
“corpo” do sensível, que vai ter também uma estrutura matemática, quanto
talvez do próprio inteligível, uma vez que as Idéias sofrerão aparentemente
algum tipo de matematização no último pensamento de Platão.
De qualquer forma, a "tira" formada pelo demiurgo pela junção das
porções destacadas da mistura será dividida em duas, longitudinalmente.
Cruzando as duas como um ), e unindo as extremidades de cada uma,
surgirão dois círculos e o demiurgo atribuirá, ao externo, o movimento do
Mesmo e ao interno, o movimento do Outro. Cosmologicamente, o círculo
do Mesmo corresponde ao céu das estrelas fixas, e o círculo do Outro, divi-
dido em sete, corresponde aos planetas, cada um com seu movimento pró-
prio, ao mesmo tempo carregado pelo movimento do Mesmo, que os domi-
na, circundando-os por fora. Do ponto de vista do conhecimento, os dois

48 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

círculos têm a finalidade de fazer a alma capaz de captar tanto o inteligível


quanto o sensível, através dos movimentos que lhe são impressos, regra-
damente, num ou noutro círculo, conforme se trate do mesmo ou do outro
que ela tenha de reconhecer.
E com uma alma assim constituída, mista de sensível e inteligível,
podemos voltar-nos para a questão do conhecimento como se apresenta
nessa que é uma das mais célebres e mais comentadas passagens de
Platão: a passagem da linha dividida, que aparece no final de República VI,
e que é normalmente posta em paralelo com duas outras passagens igual-
mente célebres, uma que a precede, conhecida por imagem do sol, e uma
que a segue, a alegoria da caverna.
Na passagem da linha, lembremos, Sócrates propõe que se tome
uma linha dividida em duas partes desiguais (sejam a e b) – que correspon-
dem ao inteligível e ao sensível –, e que se proceda a uma nova divisão de
cada uma das partes na mesma proporção (sejam c e d em a; e e f em b).
Ficamos assim com uma linha composta de quatro segmentos que guardam
entre si uma proporção: a/b = c/d = e/f.
A maneira mais simples de entender essas divisões, e que repre-
senta uma interpretação bastante difundida, é que a cada um desses
segmentos corresponde um tipo de coisa, e a cada tipo de coisa uma
apreensão cognitiva diferente. Uma das vantagens dessa leitura é que ela
estabelece uma perfeita simetria na linha. Entretanto, examinado de per-
to, o texto não é absolutamente claro a esse respeito. Em relação ao
segmento do visível, não há dúvida de que Sócrates faz corresponder a
cada um dos subsegmentos um tipo de coisa visível diferente, e a cada
tipo de coisa uma apreensão diferente. A distinção entre as coisas é de-
terminada pelo grau de clareza ou obscuridade de umas em relação às

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 49


Maura Iglésias

outras. O primeiro segmento corresponderia às imagens (ele menciona


sombras e reflexos) e o segundo às próprias coisas visíveis (ele nomeia
seres vivos e artefatos humanos). A essa distinção entre as coisas visí-
veis corresponde uma distinção na sua apreensão, pois, Sócrates obser-
va, a imagem está para o modelo como um objeto de opinião
( % ) está para um objeto de conhecimento ( ).
Note-se que Sócrates está falando só do visível (ou do sensível em geral)
e esse não se refere, aqui, à apreensão da Idéia que vai
aparecer no segmento do inteligível. Ele fala da diferença de clareza que se
tem entre ver um objeto e ver seu reflexo na água por exemplo.
Entretanto, embora seja claro, desde o princípio, que à seção do inte-
ligível correspondem coisas ( ) de tipo diferente das da seção do
visível, não há menção clara na fala de Sócrates de dois tipos de inteligíveis
ontologicamente distintos, correspondentes aos dois subsegmentos dessa
seção. Certamente alguma distinção existe entre eles e são muitas as solu-
ções propostas por inúmeros comentadores que se debruçam sobre essa
questão. A distinção claramente indicada por Sócrates entre os dois sub-
segmentos refere-se a procedimentos (e, adiante, aos "
da alma, que interpreto como estados resultantes desses procedimentos, e
não como os próprios procedimentos).

Na primeira parte dessa seção, a alma, servindo-se como de ima-


gens dos objetos que na seção precedente eram originais, é for-
çada a fazer suas pesquisas partindo de hipóteses e segue um
caminho que a conduz não ao princípio mas à conclusão; na se-
gunda parte, a alma vai de hipótese em hipótese ao princípio ab-
soluto, sem fazer uso de imagens como no caso precedente, e

50 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

conduz sua pesquisa por meio exclusivamente das idéias (Repú-


24
blica 510b).

O primeiro desses procedimentos Platão atribui aos matemáticos e o


segundo corresponde ao que ele, pelo menos nessa passagem da Repúbli-
ca, entende por dialética.
Como se torna claro na seqüência dessa passagem, duas são as ca-
racterísticas apontadas como distintas, num e noutro segmento: o uso, ou
não, dos sensíveis, e a fundamentação, ou não, de hipóteses.
Os matemáticos, esclarece Sócrates, tendo colocado certas coisas
como hipóteses (coisas como o par, o ímpar, as figuras, três espécies de
ângulos etc.), tratam-nas como coisas evidentes, que não necessitam de
fundamentação, e a partir dessas hipóteses, passando por todos os de-
graus, chegam por via de consequência à conclusão que procuravam.
Por outro lado, eles utilizam figuras visíveis (figuras traçadas) e racio-
cinam sobre elas, embora seu pensamento não vise a elas, mas a outras às
quais essas se assemelham. Por exemplo, eles raciocinam sobre o quadra-
do-em-si, a diagonal-em-si, e assim por diante, e não sobre as figuras que
eles traçam. Essas figuras traçadas, capazes de produzir sombras e ima-
gens na água, eles as utilizam como se fossem imagens para chegar a ver
as coisas superiores que se apreendem pelo pensamento.
Na segunda seção do segmento inteligível, a razão toma as hipóte-
ses não como princípios mas como simples hipóteses, e se serve delas
como de degraus e pontos de apoio para se elevar ao princípio de tudo, que
Sócrates chama de não-hipotético. Uma vez atingido esse princípio, ela

24
Esta e outras citações da República são baseadas na tradução de Chambry, em Platon,
Oeuvres Complètes, tomo VI, texto estabelecido e traduzido por E. Chambry (CUF), Les Belles
Lettres, Paris, 1970 (6a. tiragem).

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 51


Maura Iglésias

desce até a última conclusão, sempre passando de Idéia em Idéia para


chegar a uma Idéia. (511b)
No final da passagem, Sócrates dá nomes a todas as diferentes for-
mas de apreensão e as considera distintas pelo grau de clareza. Dou abai-
xo a tradução de Chambry por ser bastante significativa para a questão que
vou abordar em seguida:

Agora, a essas quatro seções, aplica essas quatro operações do


espírito (" $ $ ): à
seção mais elevada, inteligência ( ), à segunda o co-
nhecimento discursivo ( ), à terceira atribua a fé
(" ), e à última a conjectura ( ) e orde-
na-as por ordem de clareza, partindo da noção de que, quanto mais
seus objetos participam da verdade, mais eles têm clareza (511d-e).
Antes de mais nada, chamaria a atenção para o fato de que a distin-
ção aqui entre os " resultantes da apreensão cognitiva
parece exigir correspondentes distinções entre tipos de coisas apreendidas.
Portanto, como apontado anteriormente, alguma distinção também entre os
inteligíveis está sendo feita. Isso não quer dizer entretanto que haja entre
eles uma distinção ontológica. As coisas visadas pelos matemáticos poderi-
am ser não algo diferente das Idéias, mas sim uma classe delas;25 nesse
caso, é possível que Platão esteja fazendo uma crítica à matemática de seu
tempo, apontando a insuficiência de um método que parte de hipóteses não
fundamentadas, em vez de ascender aos princípios primeiros, como ele
afirma que faz a dialética. O grau de clareza menor na cognição típica das
coisas matemáticas proviria de um procedimento dos matemáticos em rela-
ção às Idéias visadas por eles. E, sendo assim, seria possível dizer que

25
V. F.M. Cornford. "Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII", em Mind N.S. 41 (1932)
37-52 e 173-190.

52 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

pode haver também uma em relação às Idéias não mate-


máticas, bem como uma das próprias Idéias matemáticas.
Caso entretanto os objetos referentes à sejam "inter-
26
mediários" e não Idéias, ou, como já foi proposto, Idéias de uma categoria
27
inferior, seria o caso de dizer que a matemática é por natureza uma cogni-
ção de menor clareza que a cognição das Idéias visadas pela dialética, e
provavelmente nenhuma crítica está fazendo Platão à matemática, mas
apenas assinalando sua obscuridade relativa.
Voltando agora aos quatro tipos de apreensão cognitiva mencionados
na passagem acima citada, note-se que o que Chambry traduz por "opera-
ções de espírito" são
" $ $ . Acredito que a pala-
vra " possa ter uma amplitude de significado para cobrir
qualquer tipo de fenômeno que se dê na alma, atividades ou passividades.
Mas acho que há aqui um problema de interpretação sobre a natureza des-
ses " da alma. O que essa tradução parece sugerir é que

26
A interpretação das entidades matemáticas da linha da República como intermediários tem
por fundamento o que diz Aristóteles em Metafísica A 6, 987b 14-18: "além das coisas sensí-
veis e das Idéias, Platão admite que existem as coisas matemáticas, que são intermediários,
diferentes, por um lado, dos objetos sensíveis pelo fato de serem eternas e imóveis, e, por
outro lado, das Idéias, pelo fato de serem uma pluralidade de exemplares semelhantes, en-
quanto a Idéia é una, individual e singular" (tradução de Tricot). O que se aponta entretanto é
que nem a República nem qualquer outro texto de Platão parece reconhecer a existência des-
ses intermediários. Note-se que, ao falar das entidades matemáticas (511b), Platão usa o vo-
cabulário típico das Idéias (quadrado-em-si, diagonal-em-si). Em defesa da tese dos intermedi-
ários, V., p. ex., S. Mansion. "L' objet des mathématiques et l' objet de la dialectique selon Pla-
ton", em Revue Philosophique de Louvain, 67 (1969), 365-388. . Para outra visão sobre o ca-
ráter intermediário dos objetos dianoéticos, V. n. 28.
27
V. E. De Strycker. "La distinction entre l' entendement (dianoia) et l' intelect (nous) dans la
République de Platon", em Estudios de historia de la filosofia en homenaje al Professor R.
Mondolfo, I. Tucuman, 1957, 209-226. Para Strycker as entidades matemáticas são Idéias, mas
de uma categoria inferior, por não serem completamente livres de toda relação com o espaço e
com a matéria: sua própria definição implica uma relação com o espaço e, diferentemente das
Idéias superiores, suas realizações particulares são necessariamente materiais.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 53


Maura Iglésias

há uma distinção de natureza entre as quatro formas de apreensão cogniti-


va, isto é, que se trata de quatro funções cognitivas diferentes, no interior da
própria alma, correspondentes, cada uma, a um tipo de coisa diferente.
Esse tipo de visão obrigaria talvez a reconhecer uma nova partição no inte-
rior do próprio .
O que eu me propus fazer, a fim de comprovar a hipótese com que
trabalho, de redução e não multiplicação de princípios, é ver se a passagem
comportaria uma interpretação que, reconhecendo as diferenças entre os
" da alma correspondentes às quatro seções da linha,
mantivesse a unidade do princípio cognitivo da alma, compreendendo a fa-
culdade cognitiva como sendo essencialmente a mesma, quer ela se direci-
onasse para o sensível, quer para o inteligível.
A primeira estratégia que ocorre é negar que a linha estabeleça dife-
renças ontológicas entre as coisas, e compreender as diferenças entre os
quatro " da alma simplesmente como diferença de grau
de clareza determinado por uma diferença da luminosidade em que a coisa
se dá. À primeira vista, essa interpretação parece até natural. Na passagem
que acabei de citar, os quatro " aparecem como quatro
graus diferentes de clareza. Além disso, essa interpretação receberia apoio
de certas passagens. Se admitirmos o paralelismo entre as passagens do
Sol, da Linha e da Caverna, como muitos sustentam, podemos invocar
508c-d, onde diz Sócrates:

Sabes que, quando se olham objetos cujas cores não são ilumina-
das pela luz do dia, mas pelas tochas da noite, os olhos vêem fra-
camente e parecem quase cegos, como se tivessem perdido a pu-
reza de sua visão...

54 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

Mas, quando se voltam para os objetos iluminados pelo sol, eles


vêem distintamente, não é?, e evidencia-se que esses mesmos
olhos têm a vista pura.

Até aqui pelo menos, poderíamos entender que Sócrates está suge-
rindo dois graus de conhecimento para a mesma coisa, dependendo da luz
em que ela é vista. Temo entretanto que aplicar essa imagem à linha signi-
fique negar a distinção ontológica entre Idéias e sensíveis e afirmar que as
diferenças dos " correspondem a maneiras distintas de
ver o próprio sensível, em graus distintos de luminosidade ou de verdade.
Ora, não creio ser possível negar a diferença ontológica pelo menos
entre o segmento do inteligível e o do sensível. E, apesar de Sócrates falar
de clareza e obscuridade, segundo a maior ou menor participação na ver-
dade, na passagem da linha clareza e obscuridade são determinadas pela
natureza diferente das coisas, que são, por si mesmas, mais, ou menos,
participantes da verdade (511e). Não se trata, pois, de luminosidade exter-
na. Na linha não se fala de uma mesma coisa vista à luz do sol e vista à luz
de tochas. Fala-se, primeiro, da diferença de clareza entre a coisa e seu
reflexo; ora, o reflexo não é a mesma coisa vista numa outra luz; o reflexo é
uma outra coisa. Fala-se também, na parte inteligível, da diferença de cla-
reza entre os objetos correspondentes à e os correspon-
dentes à . E, ainda que as coisas matemáticas sejam Idéias, e
não "intermediários", alguma distinção Platão está introduzindo entre os
objetos do segmento inteligível.
De qualquer modo, a diferença ontológica não pode a meu ver ser
negada nessa passagem que é o ponto culminante da cisão entre inteligível
e sensível.
Mas por onde então estabelecer a unidade da função cognitiva?

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 55


Maura Iglésias

Ora, eu manteria que a diferença entre Idéia e coisa não impede,


muito pelo contrário, de considerar que o conhecimento, de qualquer nível,
mesmo a percepção sensorial, seja sempre apreensão da Idéia. É o que
nos mostra a passagem do Teeteto à qual já aludimos. A
entendida como afirmação da sensação, Platão nos mostra que implica um
julgamento e, esse, Platão analisa como reconhecimento dos
(isto é, das Idéias) nos dados levados até a alma pelos órgãos sensoriais.
Em outras palavras: a apreensão do sensível pode parecer-nos um
ato simples e imediato, mas isso é uma ilusão; ela é sempre mediada pelo
ato de julgamento. Apreender uma coisa sensível é elaborar um julgamento,
que consiste em remeter os dados sensíveis aos , e, na inter-
pretação mais extensa do Teeteto, às próprias Idéias que fazem da coisa
isso tudo que ela é. Em outras palavras: apreender o sensível é reconhecer
ou apreender Idéias nas coisas.
No caso da matemática, qualquer que seja o estatuto ontológico que
dermos aos objetos referentes à , teríamos de concluir que
a Idéia é sempre aquilo que é conhecido. Se os objetos da
são Idéias matemáticas, é a Idéia que é conhecida, embora, na
, de forma relativamente obscura por conta de um procedi-
mento falho, que trata essa classe de Idéias como hipóteses, sem jamais
ascender ao princípio de que elas dependem e que lhes daria a total lumi-
nosidade; no caso de os objetos da serem intermediários,
a situação seria semelhante à cognição do sensível, como descrita acima.
De fato, admitir as coisas matemáticas como intermediários significa tam-
bém admitir que há Idéias desses intermediários. E o conhecimento relati-
vamente obscuro da matemática se deveria ao fato de o matemático ter de

56 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

apreender a Idéia em algo que é distinto dela, mas que dela recebe seu ser
e sua significação.28
Assim, o que me parece que está em jogo na passagem da linha não
são diferentes formas de cognição. É sempre o mesmo impulso da alma
que se dirige à coisa a ser apreendida e sempre acaba apreendendo a
Idéia. O que acontece entretanto é que, nesse impulso, a alma vai em dire-
ção tanto de inteligíveis quanto de sensíveis. As Idéias ela pode – pelo me-
nos depois de muita dialética – apreender totalmente, num ato simples. Mas
quando encontra sensíveis (ou intermediários), a cognição é mediada. E
isso não somente no caso de uma apreensão sensível simples, em que a
alma visa o sensível e o apreende enquanto inteligível. Mesmo ao visar in-
teligíveis, como no caso de matemática e até mesmo das coisas visadas
pela dialética, o élan da alma para a apreensão dos inteligíveis sofre pro-
cessos de mediação pela simples razão de estarmos mergulhados no sen-
sível. Enquanto a apreensão da Idéia não se faz plenamente, a dialética,
em que pese a descrição de Sócrates, que quer separá-la de qualquer co-
notação sensível, tem pelo menos essa ligação com o sensível: ela se faz

28
P. Aubenque insiste sobre a igualdade dos segmentos intermediários da linha (correspon-
dentes à e à " ), resultante da dupla divisão desigual na mesma
proporção, que cria entre os segmentos uma proporção (analogia) contínua (em que os termos
médios são iguais). Essa igualdade, deliberadamente desejada por Platão, tem por finalidade
estabelecer a identidade entre objetos da " e da , cuja distinção é
apenas na intenção de conhecimento. Nos dois segmentos, os objetos são os mesmos, mas
considerados, na " , como modelos (com relação à ), e, na
, como imagens (com relação à ). É aliás nisso que consiste o
estatuto de intermediários dos objetos matemáticos: são objetos que o matemático traça no
sensível, mas dos quais se serve como de imagens das realidades mais altas às quais se as-
semelham. Se assim for, o trabalho do matemático é tentar alcançar as Idéias matemáticas a
partir de suas representações sensíveis, que ele considera como imagens daquelas. V. P. Au-
benque. "De l' égalité des segments intermédiaires dans la ligne de la République", em Sophies
Maietores, Hommage à Jean Pépin, Paris, 1992, 31-44.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 57


Maura Iglésias

no discurso, e o discurso, por mais que seja discurso sobre o inteligível, é


também da ordem do sensível.
Os diferentes " podem ser assim vistos como es-
tados de alma diferentes – graus diferentes de clareza, como indica o texto
–, correspondentes ao grau de mediação necessário para a apreensão da
Idéia, por sua vez determinado pelo grau de envolvimento que têm com o
sensível as coisas visadas pelo impulso de conhecer da alma.
A função cognitiva, em si mesma, é uma só. Conhecer é apreender a
Idéia.

IV

Antes de concluir, gostaria de fazer algumas observações sobre o


título que dei a este artigo.
Ele foi evidentemente inspirado no título do livro de B. Snell, A des-
coberta do espírito. No prefácio desse livro, Snell observa que a descoberta
do espírito não é comparável à descoberta de um continente. Esse já existia
antes de ser descoberto; não o espírito. O espírito não era algo que estava
lá à espera de que os gregos o descobrissem; ele passou a existir depois
que foi descoberto. Mas tampouco se trata de uma invenção, como uma
ferramenta fabricada para um certo fim. De alguma forma, afinal, o espírito
já estava lá, embora não qua espírito.
Em parte, é o que pretendi sugerir no caso da alma. Na elaboração
de sua noção de alma, Platão não partiu do nada. Ele certamente deve
muito a concepções correntes em seu tempo, que já determinavam uma
certa maneira de se apreender a si mesmo. E o que ele acrescentou não é

58 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998


Platão: a descoberta da alma

uma invenção gratuita que ficou, nem a descoberta de algo que é como é e
que ele, descobrindo, revelou. Platão sondou a natureza humana, lançou
sobre ela seu olhar, e o que seu olhar descobriu forjou, basicamente, a
alma do homem ocidental, a nossa maneira de nos apreender a nós mes-
mos. E ainda hoje, quando a palavra alma foi banida das discussões filosó-
ficas e científicas, a alma, basicamente como concebida por Platão, ainda é,
acredito, a maneira como nós continuamos intuitivamente a nos sentir.
A propósito, gostaria de citar mais uma vez B. Williams, que, ao cri-
ticar a dicotomia corpo e alma, afirma, a certo momento: “Nós todos ... es-
tamos de acordo em que cada um de nós tem um corpo. Nós não estamos
todos de acordo, pace Platão, Descartes, a Cristandade e Snell, em que
cada um de nós tem uma alma”.29
Mas essa maneira de formular a questão talvez não seja proce-
dente. Nenhum de nós realmente acha que tem uma alma, como tem um
corpo. Afinal, o que todos sentimos, pace B. Williams, não é que temos uma
alma, mas que somos a nossa alma. Nós sabemos que podemos trocar um
número indefinido de partes de nossos corpos, sem deixar de ser nós
mesmos. E, se não é de fato possível, é pelo menos imaginável trocarmos
inteiramente de corpo. Mas qual seria o sentido de dizer que podemos tro-
car a nossa alma, conservando-nos a nós mesmos? Afinal, a alma é apenas
o nome caído em desgraça, nos meios filosóficos e científicos, disso que
constitui o nosso verdadeiro eu.
Ora, é justamente essa a descoberta platônica, a novidade introdu-
zida na maneira de o homem apreender-se a si mesmo: o homem é a sua

29
Op. cit., p. 26.

Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998 59


Maura Iglésias

alma.30 Porque a alma que Platão descobriu é o que constitui a verdadeira


natureza do homem que ele buscou.
É por isso que, hoje, a palavra alma pode até ter caído em desgra-
ça, mas os textos platônicos continuam na ordem do dia. E é a eles que têm
de se voltar aqueles que se filiam a algumas das mais florescentes corren-
tes filosóficas atuais: ética das virtudes, filosofia da mente, teoria da ação.

30
Cf. , p. ex. , Apologia 29d; Fédon 115c; República 469d.

60 Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998

You might also like