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Maura Iglésias**
1
Bruno Snell. Die Entdeckung des Geistes; Göttingen, 1986 (6a. ed.; 1a. ed. Hamburgo, 1948).
Tradução em português: A Descoberta do Espírito; trad. Arthur Mourão, Lisboa, 1992.
2
Op. cit., p. 28.
3
Bernard Williams. Shame and Necessity; Berkeley, Los Angeles e Londres, l993. Este artigo
refere-se sobretudo ao capítulo intitulado "Centres of Agency".
4
Op. cit., p. 21.
por um lado, a dicotomia corpo e alma; por outro, a idéia de que a teoria da
ação básica, a explicação sobre o que seres humanos são e como eles fa-
zem alguma coisa é uma teoria que tem de ser expressa em termos éticos,
mais particularmente em termos de uma ética do dever.5
A dicotomia corpo e alma é invocada por ele como algo que, ausente
de Homero, não permite a Snell reconhecer o homem homérico como um si
mesmo, razão pela qual ele não o reconhece como um agente genuíno.
Snell só entende um si mesmo, na teoria da alma. Se para ele o homem
homérico é fragmentado, é porque ele, Snell, é incapaz de reconhecer que
há uma unidade possível, independente do reconhecimento de uma unida-
de da alma: a unidade da pessoa, sem reconhecimento de distinção corpo e
alma, que é a visão de homem que B. Williams atribui a Homero.
É interessante notar que ambos os acréscimos da má filosofia são,
em última análise, referidos a Platão.6
Embora B. Williams não atribua explicitamente a Platão a invenção
da dicotomia corpo e alma, provavelmente porque essa dicotomia já estava
de alguma maneira elaborada, ou pelo menos esboçada em forma não sis-
temática, no período de Homero a Platão, na medida em que só se pode
5
É a essa última característica que B. Williams atrela a falta da "vontade" que os progressivis-
tas não encontram em Homero: "O que é a vontade que os progressivistas encontram ausen-
te? Sugiro que a estranheza para algumas pessoas das noções homéricas de ação liga-se
principalmente a isso: que elas não giram em torno de uma distinção entre motivações morais
e não morais. Aquilo de que as pessoas sentem falta, suspeito, é uma vontade que ... serve
apenas ao interesse de um tipo de motivo, os motivos da moralidade. Particularmente, ao inte-
resse do dever.” (Ib., p.40-41).
6
Embora B. Williams observe que os progressivistas não reconhecem nem mesmo em Platão
a categoria da vontade, ele acusa explicitamente Platão de ser o inventor da idéia de que "as
funções da mente, sobretudo com relação à ação, são definidas em termos de categorias que
tomam sua significação a partir da ética ...", uma idéia que "certamente falta em Homero e nos
trágicos. Foi deixado para o pensamento grego tardio inventá-la, e praticamente não nos largou
mais. Foi inventada, parece, por Platão." (Ib., p.42).
falar de uma efetiva dicotomia corpo e alma quando há uma teoria já coe-
rente, é claro que isso se deu em Platão.
Ora, essa crítica sugere que a alma, além de invenção, é uma inven-
ção inútil, uma deturpação introduzida pela filosofia. A concepção sadia e
espontânea a respeito da natureza do ser humano é como encontramos em
Homero: um homem que se apreende em sua inteireza de pessoa e que
não precisa cindir fenômenos corpóreos e fenômenos psíquicos, para se
apreender a si mesmo e para agir humanamente no mundo.
O que aí se reconhece, em verdade, é a velha crítica de Aristóteles
relativa à teoria das Idéias: a de que ela representa uma duplicação supér-
flua do mundo dos fenômenos. A essa crítica acrescente-se a rejeição ao
apelo a entidades metafísicas, por inúteis, e teríamos a acusação a Platão:
a alma, separada do corpo, afirmada como a própria pessoa, é uma entida-
de metafísica inútil, que apenas duplica a pessoa sem nada explicar.
É exatamente o fundamento dessa "acusação" contra Platão que eu
gostaria de argüir, começando por lembrar a conhecida tese de H. Cherniss
sobre o real significado da teoria das Idéias no pensamento de Platão.7
II
7
H. F. Cherniss. “The Philosophical Economy of the Theory of Ideas”, originalmente publicado
em American Journal of Philology, 57, l936, 445-456. Traduzido para o português por Irley
Franco, em O que nos faz pensar, PUC-Rio, no. 2, 1990, 109-118.
8
A teoria das Idéias, que é, para Cherniss, uma “hipótese” de Platão.
9
Citada por Simplício, sob a autoridade de Sosígenes, em De Caelo, p. 488, 18-24 (Heiberg).
Apud Cherniss, op. cit.
A teoria das Idéias é justamente a hipótese que vai salvar todos es-
ses fenômenos. Não somente isso. Ela é a hipótese que vai permitir a inte-
gração dessas várias facetas da experiência humana – ética, epistemológi-
ca e ontológica –, uma vez que, além de explicar os fenômenos de cada
uma dessas esferas, ela fundamenta cada uma delas na outra: é a teoria
que fornece uma ontologia adequada à fundamentação de uma epistemolo-
gia, por sua vez adequada a uma fundamentação da ética.
Em resumo, para Cherniss, longe de multiplicar entidades na busca
de explicação dos fenômenos, Platão, ao formular a teoria das Idéias, está
obedecendo a um rigoroso princípio de economia, a busca do menor núme-
ro possível de princípios explicativos. E a hipótese das Idéias realiza um
prodígio de economia: além de ser uma só para dar conta de todos os fatos
da experiência humana nas esferas ética, epistemológica e ontológica, ela
unifica essas esferas e permite ver a experiência humana como um todo
organizado e unificado.
É exatamente essa rigorosa economia na explicação de fenômenos
ou fatos da experiência humana que gostaria de invocar, para afirmar que,
também no caso da teoria sobre a alma, o mesmo princípio está em ação.
Se Platão afirmou a unidade da alma e a distinguiu do corpo, certamente
não foi na ânsia de criar um entidade supérflua, ou validar uma entidade
que estava em vias de formação durante o período que o separa de Home-
ro. Sua postulação como entidade distinta do corpo certamente obedece a
um princípio de economia característico da hipótese tal qual descrita no Fé-
don, e explorada por Cherniss. A alma tem de ser também resultado de
uma economia de princípios.
Onde e como se vê em ação a aplicação dessa economia?
10
D. J. Furley. “The Early History of the Concept of Soul”, em T. Irwin, org., Classical Philoso-
phy: Collected Papers, vol.1: Philosophy Before Socrates, Nova York e Londres, 109-126.
11
Furley reconhece três categorias distintas a que pertencem essas palavras: de um lado, i)
(e suas variantes) e / ; de outro, ii)
, e iii) . As primeiras (i) designam claramente partes do
corpo, formadas de tecidos: refere-se ao coração e coisas que acontecem
nesse órgão segundo o conhecimento da função do coração; /
refere-se provavelmente ao diafragma, aos pulmões, ou a todo o conjunto de órgãos situados
grosso modo entre os intestinos e a clavícula. As coisas designadas pelos termos mencionados
em ii) e iii), embora em Homero se diga que residem no corpo (normalmente no peito), não são
partes do corpo formadas de tecidos. Mas há uma diferença entre (ii) e (iii): parece
ser, originalmente, um substantivo abstrato derivado de um verbo (tipo: compreensão, pensa-
mento) e não denota nenhuma entidade física. Já é algo suficientemente substan-
cial para ser um fantasma que sobrevive após a morte do homem, e , quer seja
a respiração excitada na emoção ou o efervescente remoinho do sangue, é suficientemente
substancial em Homero para dar ordem e falar.
12
op. cit., p. 112.
13
Ib., p. 114.
filósofo a falar da alma, ele é com razão considerado como o primeiro filó-
sofo a ter uma genuína teoria da alma.
Mas o trabalho de unificação e redução de princípios levado a efeito
na elaboração da noção de alma em Platão vai muito além dessa reunião
de atividades dispersas já compreendidas em grande parte como não cor-
porais. Não se trata apenas de conduzir os fenômenos psíquicos a uma só
entidade, a alma. A teoria da alma presente nos diálogos chamados socráti-
cos é produto de outras importantes reduções, levadas a efeito no seu inte-
rior, por assim dizer.
Lembremos algumas delas:
1. redução de todas as virtudes a uma só virtude, o conhecimento.
A relação entre as várias virtudes reconhecidas pela opinião corrente
e pela própria língua, que distinguia entre justiça, temperança, coragem,
respeito, sabedoria etc., era aparentemente objeto de discussões da época,
como nos testemunham os diálogos platônicos, sobretudo o Protágoras.
Que todas essas virtudes se implicam mutuamente, talvez com exceção da
coragem, parece ser a concepção corrente, representada pelo próprio per-
sonagem Protágoras nesse diálogo. A dialética socrática vai mostrar entre-
tanto uma quase identidade entre elas, na medida em que todas são uma
forma de ciência, mesmo a coragem, definida como "o conhecimento do
que é e do que não é temível” (360d).
2. A redução de todos os bens a um só bem, o conhecimento.
Essa redução é efetuada por Sócrates de maneira exemplar no Euti-
demo (278e-282a) a partir de duas premissas aceitas sem reserva: i) que
todo homem deseja a vida bem sucedida, a ; e ii)
que a vida bem sucedida significa ter bens ou coisas boas.
Note-se que, no início da argumentação, os bens que aparecem
como os meios para ser feliz não são absolutamente o Bem platônico, ou
algum bem abstrato colocado pela filosofia ou pela religião. A enumeração
dos bens no Eutidemo se pretende completa e inclui bens externos (nasci-
mento, riqueza, honras na cidade) e bens relativos ao corpo (beleza, saúde,
vigor) tanto quanto os relativos à alma (as virtudes, reconhecidas como tais e
por todos desejadas como bens). Enfim: trata-se de tudo aquilo que é tradici-
onalmente e popularmente reconhecido como bens. Daí a aceitação incondi-
cional da equivalência que Sócrates estabelece entre eudaimonia e "ter
bens".
Em sua argumentação entretanto, Sócrates vai mostrar que todas as
coisas enumeradas como bens só o são se “bem usadas”, e que o bom uso
é produto do conhecimento. Em outras palavras: o conhecimento é a única
coisa que é em si mesmo um bem; todos os outros bens, se não são co-
nhecimento, são pelo menos subsumidos a ele, sem o que deixam de ser
bens e podem mesmo tornar-se seu contrário. É digno de nota que, no Eu-
tidemo, até mesmo a , o sucesso, é dissociado de qual-
quer ligação com o acaso feliz, que parecia essencial para a sua realização
conforme nos mostra a própria palavra, para ser inteiramente subsumida ao
conhecimento. De fato, Sócrates argumenta que o sucesso sempre acom-
panha o saber, enquanto o insucesso é produto da ignorância.
Podemos também acrescentar, embora isso não apareça nessa pas-
sagem do Eutidemo, que a redução ou subsunção dos bens ao conheci-
mento inclui até mesmo o prazer, quando esse é tido como o supremo bem,
como na argumentação no Protágoras (351 b ss.). Se o bem se identifica
com o prazer, e o mal com a dor ou desprazer, tendo em vista que muitas
vezes o prazer se acompanha de dor, vai ser preciso um cálculo dos praze-
res para garantir a maior soma possível deles, com exclusão das dores.
Ora, esse cálculo é obra da razão, e é o correto uso da razão, isto é, a ciên-
cia, que garantirá o maior bem, isto é, o gozo da maior quantidade possível
de prazeres.
3. Redução do desejo ao desejo do que se julga ser o bem ou o me-
lhor, o que significa a redução do desejo à cognição ou razão, se não ao
próprio conhecimento.
Que todo desejo é desejo do que se julga o bem é resultado do axioma
aceito de que todo homem deseja a e que essa
significa ter bens.
O homem deseja pois, por natureza, o que é ou o que ele julga ser o
bem, o melhor, ou o menor mal (Protágoras 358d). Assim sendo, pode-se
dizer que todo desejo é racional. É claro que a razão pode errar, tomando o
mal pelo bem ou o pior pelo melhor. Mas isso não muda a natureza do de-
sejo, que é sempre desejo daquilo que se julga ser o bem. A união entre
desejo e razão é assim indissolúvel: a ação humana é exclusivamente de-
terminada pelo que a razão toma pelo bem, ou pelo melhor.
À luz dessas reduções podem-se compreender algumas afirmações
que resumem a ética socrática: i) que nenhum homem faz o mal delibera-
damente, isto é, sabendo que o mal é mal; ii) que o homem sábio é o ho-
mem justo; iii) que o homem sábio é o homem feliz; iv) que não existe a
(fraqueza da vontade).
Todas essas afirmações são paradoxais, isto é, elas vão contra a
opinião corrente. E não me refiro à nossa, mas também à dos contemporâ-
neos de Sócrates, que se espantam cada vez que elas aparecem, exigindo
uma argumentação que as sustente. À luz das reduções operadas por Só-
crates, todas sustentadas por argumentos, os paradoxos se tornam claros.
É porque as virtudes são uma só virtude, a ciência, que a ação virtuosa tem
III
14
V. Fédon 78b-c.
mando que ele fez, segundo aliás o que era a inspiração do pensamento
grego desde o seu início: a busca do menor número possível de
.
Mas todos sabemos que essa não é a última palavra de Platão sobre
a alma. Depois de ter conseguido elaborar sua perfeita unidade e simplici-
dade, Platão acabou renunciando a elas, chegando a teses que parecem
contradizer esse espírito de economia. Refiro-me especificamente à triparti-
ção da alma em República IV, à quadripartição do conhecimento em Repú-
blica VI e à constituição da alma no Timeu, que afirma a própria alma inte-
lectiva como uma complexa mistura de "ingredientes".
O que eu proponho mostrar entretanto é que, apesar das aparências,
ainda aqui o trabalho de Platão segue rigorosamente dentro do mesmo es-
pírito de salvação de e economia de princípios expli-
cativos.
Começando pela tripartição da alma em República IV, lembremos
que o tema aparece ligado a uma pesquisa sobre a natureza da justiça.
Dando-se conta da dificuldade de compreender o que ela seja no
homem, Sócrates propõe procurá-la num exemplo mais vasto de possessão
da justiça, isto é, na cidade, uma vez que também a cidade pode ser justa.
Sócrates dedica-se assim a erguer uma cidade ideal, pois nela certamente
a justiça será encontrada. Essa cidade bem construída compõe-se de três
classes sociais distintas, cada uma com sua "natureza própria" (ou função
específica), e a justiça acaba sendo encontrada como a virtude que resulta
de cada uma dessas classes realizar a natureza que lhe é própria (cumprir
a função que lhe compete), sendo isso o que garante o bom funcionamento
do todo. A justiça é assim uma espécie de elo que liga partes heterogêneas,
delas fazendo um todo harmonioso. A unidade da cidade não é assim re-
15
John M. Cooper. “Plato's Theory of Human Motivation”, em History of Philosophy Quarterly,
o
vol. 1, n .1, janeiro l984. Reimp. em T. Irwin, org., Classical Philosophy: Collected Papers, vol.
3: Plato's Ethics, Nova York e Londres, 1995, 97-115.
16
A leitura Cooper se preocupa com encontrar as características de cada uma das fontes de
motivação da ação, entendendo a unidade de cada uma pelos exemplos de Platão, que às
vezes se prestam a equívocos. Desejos racionais: élan para o conhecimento da verdade e élan
para governar; desejos da parte irascível: ligados à competitividade, à auto-estima e à estima
dos outros; desejos apetitivos: ligados a impulsos e aversões físicas.
17
M. Woods. "Plato's Division of the Soul", em Proceedings of the British Academy, LXXIII,
1987, 23-48. Reimp. em T. Irwin, org., Classical Philosophy: Collected Papers, vol. 3: Plato's
Ethics, Nova York e Londres, 1995, 117-141.
...o que quer que tenha naturalmente uma potência qualquer, seja
de agir sobre o que quer que seja, seja de sofrer uma ação, por
mínima que seja, de um agente, mesmo o mais insignificante, ain-
da que por uma só vez... (Sofista 247d8-e4).
18
Cf. Fédon 79a, onde aparece o contraste entre apreensão sensorial e apreensão pela razão
( $ $ ). Note-se entretanto que no entender
de Platão, já no Fédon, é sempre a alma que conhece: através dos sentidos, no caso do sensí-
vel, ou por si mesma, no caso do inteligível. Na teoria platônica, a diferença é o estado da
alma, confuso e errante quando se volta para o sensível, e em repouso quando em contacto
com o eterno e imutável. V. Fédon 79a-e; cf. República 508d.
" (
(151e, grifo meu).
(...Parece-me então que aquele que sabe algo sente aquilo que
sabe, e, como pelo menos aparece agora, a ciência não é outra
coisa senão sensação.)
19
M. Frede. “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues”, em Essays in Ancient
Philosophy; Oxford, 1987, 3-8.
dito de passagem, o sentido que ele vai lhe reservar no Teeteto é ainda
mais restrito que a tradução consagrada da palavra, como será evidente
daqui a pouco.) O que é interessante no que Frede tem a nos dizer sobre o
sentido de é, em primeiro lugar, que os gregos, até o tem-
po de Platão, e freqüentemente para além dele, não reconheciam como coi-
sas de natureza distinta a apreensão do objeto externo e a apreensão inte-
lectiva, o que explica por que todos os casos de "tornar-se ciente de algo"
são compreendidos segundo o paradigma da visão; em segundo lugar, que
há uma tendência de usar em casos em que é
particularmente claro que alguém está ciente de algo, e não simplesmente
arriscando um palpite, ou fazendo uma conjectura, ou sabendo algo por
ouvir dizer. Assim, quando Teeteto propõe a definição de ciência como
, ele está aparentemente usando essa palavra num sentido
amplo, que significa uma clara apreensão de alguma coisa, que pode ser
tanto o objeto externo apreendido na sensação quanto uma opinião.
Vista dessa forma, a definição de Teeteto talvez seja viável e merece
a cuidadosa análise de Sócrates. Essa vai levar a muitas questões interes-
santes, inclusive uma teoria sobre a própria natureza do sensível e da per-
cepção sensorial, baseada numa ontologia heraclítica e numa epistemolo-
gia protagoreana, que entretanto fogem à alçada deste trabalho.
O que nos interessa mais de perto é a precisão que Sócrates vai in-
troduzir na maneira de se falar e de se entender como e através do que se
dá a percepção sensorial. A observação que ele vai fazer a esse respeito é
a seguinte: se se perguntasse a Teeteto "pelo que" o homem vê o branco e
o preto, e "pelo que" ouve o agudo e o grave, ele, Teeteto, provavelmente
responderia que é "pelos olhos", e "pelos ouvidos". Ora, observa Sócrates,
uma certa imprecisão no uso das palavras não é em geral indício de falta de
20
V. Fédon 79d ss..
21
Platon. "Timeu", in Oeuvres Complètes, tomo X; texto estabelecido e traduzido por A. Rivaud
(CUF), Les Belles Lettres, Paris 1970 (5a. tiragem).
Seja qual for a leitura, a mistura feita pelo demiurgo tem o claro pro-
pósito de associar inteligível e sensível para garantir a afinidade da alma
com ambos os domínios, uma vez que é nela que se dá o conhecimento
seja do que for, em qualquer nível. Mas, enquanto para Rivaud o Mesmo e
o Outro são simplesmente a inteligível e a sen-
sível, na interpretação de Cornford , Mesmo e Outro são vis-
tos como os gêneros supremos do Sofista, o que reforça a ligação da mistu-
ra com a questão do conhecimento. De fato, no Sofista, conhecer é clara-
22
F. M. Cornford. Plato's Cosmology; Indianapolis e Cambridge, 1987 (reimp.; 1a. ed. Rou-
tledge, Nova York, 1935).
23
Há que considerar também o problema de identificar a divisível, uma vez que a
criação da alma precede a do corpo, e não é possível que essa , ou quaisquer
ingredientes do sensível, venha da própria realidade sensível, que ainda não foi criada. Exami-
nei a questão num trabalho não publicado, apresentado na reunião da ANPOF em 1996, onde
rejeito a idéia de que esses ingredientes do sensível possam provir de , e proponho
que sejam os "intermediários", sólidos geométricos que serão de alguma forma identificados
com os elementos (fogo, terra, ar e água).
24
Esta e outras citações da República são baseadas na tradução de Chambry, em Platon,
Oeuvres Complètes, tomo VI, texto estabelecido e traduzido por E. Chambry (CUF), Les Belles
Lettres, Paris, 1970 (6a. tiragem).
25
V. F.M. Cornford. "Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII", em Mind N.S. 41 (1932)
37-52 e 173-190.
26
A interpretação das entidades matemáticas da linha da República como intermediários tem
por fundamento o que diz Aristóteles em Metafísica A 6, 987b 14-18: "além das coisas sensí-
veis e das Idéias, Platão admite que existem as coisas matemáticas, que são intermediários,
diferentes, por um lado, dos objetos sensíveis pelo fato de serem eternas e imóveis, e, por
outro lado, das Idéias, pelo fato de serem uma pluralidade de exemplares semelhantes, en-
quanto a Idéia é una, individual e singular" (tradução de Tricot). O que se aponta entretanto é
que nem a República nem qualquer outro texto de Platão parece reconhecer a existência des-
ses intermediários. Note-se que, ao falar das entidades matemáticas (511b), Platão usa o vo-
cabulário típico das Idéias (quadrado-em-si, diagonal-em-si). Em defesa da tese dos intermedi-
ários, V., p. ex., S. Mansion. "L' objet des mathématiques et l' objet de la dialectique selon Pla-
ton", em Revue Philosophique de Louvain, 67 (1969), 365-388. . Para outra visão sobre o ca-
ráter intermediário dos objetos dianoéticos, V. n. 28.
27
V. E. De Strycker. "La distinction entre l' entendement (dianoia) et l' intelect (nous) dans la
République de Platon", em Estudios de historia de la filosofia en homenaje al Professor R.
Mondolfo, I. Tucuman, 1957, 209-226. Para Strycker as entidades matemáticas são Idéias, mas
de uma categoria inferior, por não serem completamente livres de toda relação com o espaço e
com a matéria: sua própria definição implica uma relação com o espaço e, diferentemente das
Idéias superiores, suas realizações particulares são necessariamente materiais.
Sabes que, quando se olham objetos cujas cores não são ilumina-
das pela luz do dia, mas pelas tochas da noite, os olhos vêem fra-
camente e parecem quase cegos, como se tivessem perdido a pu-
reza de sua visão...
Até aqui pelo menos, poderíamos entender que Sócrates está suge-
rindo dois graus de conhecimento para a mesma coisa, dependendo da luz
em que ela é vista. Temo entretanto que aplicar essa imagem à linha signi-
fique negar a distinção ontológica entre Idéias e sensíveis e afirmar que as
diferenças dos " correspondem a maneiras distintas de
ver o próprio sensível, em graus distintos de luminosidade ou de verdade.
Ora, não creio ser possível negar a diferença ontológica pelo menos
entre o segmento do inteligível e o do sensível. E, apesar de Sócrates falar
de clareza e obscuridade, segundo a maior ou menor participação na ver-
dade, na passagem da linha clareza e obscuridade são determinadas pela
natureza diferente das coisas, que são, por si mesmas, mais, ou menos,
participantes da verdade (511e). Não se trata, pois, de luminosidade exter-
na. Na linha não se fala de uma mesma coisa vista à luz do sol e vista à luz
de tochas. Fala-se, primeiro, da diferença de clareza entre a coisa e seu
reflexo; ora, o reflexo não é a mesma coisa vista numa outra luz; o reflexo é
uma outra coisa. Fala-se também, na parte inteligível, da diferença de cla-
reza entre os objetos correspondentes à e os correspon-
dentes à . E, ainda que as coisas matemáticas sejam Idéias, e
não "intermediários", alguma distinção Platão está introduzindo entre os
objetos do segmento inteligível.
De qualquer modo, a diferença ontológica não pode a meu ver ser
negada nessa passagem que é o ponto culminante da cisão entre inteligível
e sensível.
Mas por onde então estabelecer a unidade da função cognitiva?
apreender a Idéia em algo que é distinto dela, mas que dela recebe seu ser
e sua significação.28
Assim, o que me parece que está em jogo na passagem da linha não
são diferentes formas de cognição. É sempre o mesmo impulso da alma
que se dirige à coisa a ser apreendida e sempre acaba apreendendo a
Idéia. O que acontece entretanto é que, nesse impulso, a alma vai em dire-
ção tanto de inteligíveis quanto de sensíveis. As Idéias ela pode – pelo me-
nos depois de muita dialética – apreender totalmente, num ato simples. Mas
quando encontra sensíveis (ou intermediários), a cognição é mediada. E
isso não somente no caso de uma apreensão sensível simples, em que a
alma visa o sensível e o apreende enquanto inteligível. Mesmo ao visar in-
teligíveis, como no caso de matemática e até mesmo das coisas visadas
pela dialética, o élan da alma para a apreensão dos inteligíveis sofre pro-
cessos de mediação pela simples razão de estarmos mergulhados no sen-
sível. Enquanto a apreensão da Idéia não se faz plenamente, a dialética,
em que pese a descrição de Sócrates, que quer separá-la de qualquer co-
notação sensível, tem pelo menos essa ligação com o sensível: ela se faz
28
P. Aubenque insiste sobre a igualdade dos segmentos intermediários da linha (correspon-
dentes à e à " ), resultante da dupla divisão desigual na mesma
proporção, que cria entre os segmentos uma proporção (analogia) contínua (em que os termos
médios são iguais). Essa igualdade, deliberadamente desejada por Platão, tem por finalidade
estabelecer a identidade entre objetos da " e da , cuja distinção é
apenas na intenção de conhecimento. Nos dois segmentos, os objetos são os mesmos, mas
considerados, na " , como modelos (com relação à ), e, na
, como imagens (com relação à ). É aliás nisso que consiste o
estatuto de intermediários dos objetos matemáticos: são objetos que o matemático traça no
sensível, mas dos quais se serve como de imagens das realidades mais altas às quais se as-
semelham. Se assim for, o trabalho do matemático é tentar alcançar as Idéias matemáticas a
partir de suas representações sensíveis, que ele considera como imagens daquelas. V. P. Au-
benque. "De l' égalité des segments intermédiaires dans la ligne de la République", em Sophies
Maietores, Hommage à Jean Pépin, Paris, 1992, 31-44.
IV
uma invenção gratuita que ficou, nem a descoberta de algo que é como é e
que ele, descobrindo, revelou. Platão sondou a natureza humana, lançou
sobre ela seu olhar, e o que seu olhar descobriu forjou, basicamente, a
alma do homem ocidental, a nossa maneira de nos apreender a nós mes-
mos. E ainda hoje, quando a palavra alma foi banida das discussões filosó-
ficas e científicas, a alma, basicamente como concebida por Platão, ainda é,
acredito, a maneira como nós continuamos intuitivamente a nos sentir.
A propósito, gostaria de citar mais uma vez B. Williams, que, ao cri-
ticar a dicotomia corpo e alma, afirma, a certo momento: “Nós todos ... es-
tamos de acordo em que cada um de nós tem um corpo. Nós não estamos
todos de acordo, pace Platão, Descartes, a Cristandade e Snell, em que
cada um de nós tem uma alma”.29
Mas essa maneira de formular a questão talvez não seja proce-
dente. Nenhum de nós realmente acha que tem uma alma, como tem um
corpo. Afinal, o que todos sentimos, pace B. Williams, não é que temos uma
alma, mas que somos a nossa alma. Nós sabemos que podemos trocar um
número indefinido de partes de nossos corpos, sem deixar de ser nós
mesmos. E, se não é de fato possível, é pelo menos imaginável trocarmos
inteiramente de corpo. Mas qual seria o sentido de dizer que podemos tro-
car a nossa alma, conservando-nos a nós mesmos? Afinal, a alma é apenas
o nome caído em desgraça, nos meios filosóficos e científicos, disso que
constitui o nosso verdadeiro eu.
Ora, é justamente essa a descoberta platônica, a novidade introdu-
zida na maneira de o homem apreender-se a si mesmo: o homem é a sua
29
Op. cit., p. 26.
30
Cf. , p. ex. , Apologia 29d; Fédon 115c; República 469d.