|. Palavra e imagem!
Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi
transformada, pela intensidade da imaginacio de um
ato criativo instigate, “Pense bem’, diz Abt Vogler
sobre o milagre andlogo do misico
Pense bem: cada tom de nossa escala em si é nada;
Estd em toda parte do mundo — alto, suave, e tudo estd
dito
Dé-me, para usé-lo! eu 0 misturo com mais dois em meu
‘pensamento;
Eis ai! Vocés viram e ouviram: pensem e curvem a cabegat
Dé a Coleridge uma palavra vivida de alguma antiga
narrativa; deixe-o misturé-la a outras duas em seu pen-
samento; ¢ entdo (traduzindo termos musicais para
termos literdrios), “a partir de trés sons ele formard ndo
‘um quarto som, mas uma estrela.” ,
JOHN LIVINGSTONE LowES?
Houve um perfodo do cinema soviético em que se proclamava que a montagem era
“tudo”. Agora estamos no final de um periodo no qual a montagem foi considerada
como “nada”, Considerando a montagem nem como nada, nem como tudo, acho
oportuno neste momento lembrar que a montagem é um componente tao indis-
pensdvel da produgio cinematogréfica quanto qualquer outro elemento eficaz do
cinema. Depois da tempestade “a favor da montagem” ¢ da batalha “contra a
montagem’, devemos voltar a abordar esse problema com a maior simplicidade.
Isto € ainda mais necessdtio quando se considera que, no periodo de “negagio” da
montagem, seu aspecto mais inquestiondvel, o tinico clemento realmente imune ao,
desafio, também foi repudiado. A questio € que os criadores de numerosos filmes,
nos tiltimos anos, “descartaram” a montagem a tal ponto que esqueceram até de seu
objetivo e fungio fundamentais: o papel que toda obra de arte se impSe, a necesti-
dade da exposigio coerente e organica do tema, do material, da trama, da asao, do
movimento interno da seqiténcia cinematogrfica ¢ de sua ago dramética como
B14 O sentido do filme
um todo. Sem falar no aspecto emaocional da histéria, ou mesmo de sua Idgica €
continuidade, o simples ato de narrar uma histéria coesa foi freqiientemente omi-
tido nas obras de alguns proeminentes mestres do cinema, que realizam virios
géneros de filme. O que precisamos, claro, é nao tanto da critica individual desses
mestres, mas basicamente de um esforgo organizado para recuperar 0 exercicio da
montagem, que tantos abandonaram. Isto é ainda mais necessdrio a partir do
momento em que nossos filmes enfrentam a missio de apresentar nao apenas uma
narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha 0 mdximo de emogio e
de vigor estimulante.
‘A montagem é uma poderosa ajuda na solugao desta tarefa.
Afinal, por que usamos a montagem? Mesmo o mais fandtico inimigo da
montagem concordard que néo a usamos apenas porque o rolo de filme & nossa
disposigao ndo tem um comprimento infinito ¢, conseqiientemente, condenados a
trabalhar com pedagos de comprimento restrito, temos de colocé-los ocasional-
mente,
Os “esquerdistas” da montagem estdo no extremo oposto. Ao brincar com
pedacos de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou
aténitos por muitos anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedagos de
filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma
nova qualidade, que surge da justaposicéo, Esta nao é, de modo algum, uma caracte-
ristica peculiar do cinema, mas um fendmeno encontrado sempre que lidamos com
a justaposicao de dois fatos, dois fendmenos, dois objetos. Estamos acostumados a
fazer, quase que automaticamente, uma sintese dedutiva definida e dbvia quando
quaisquer objetos isolados s40 colocados & nossa frente lado a lado. Por exemplo,
tomemos um ttimulo, justaposto a uma mulher de luto chorando ao lado, e
dificilmente alguém deixard de concluir: wma vitiva. E exatamente neste aspecto da
nossa percepcio que a seguinte minianedota de Ambrose Bierce bascia seu efeito.
‘Trata-se de: “A vitiva inconsolavel”, uma de suas Fébulas fantdsticas:
Uma mulher de luto chorava sobre um tiimulo. “Acalme-se, minha senhora”, disse
um estranho compassivo. “A misericérdia divina é infinita. Em algum lugar h4 um
outro homem, além de seu marido, com quem ainda poderd ser feliz.” “Havia’, ela
solugou — “havia, mas este ¢ 0 seu timulo.”>
Todo o efeito da histéria é constru(do tendo por base o fato de que o timulo
ea mulher enlutada a seu lado levam a inferéncia, devido 4 convengio estabelecida,
de que ela ¢ uma vitiva que chora o marido, quando na realidade 0 homem por
quem chora é seu amante.
‘A mesma circunstancia € freqiientemente encontrada em charadas — por
exemplo, esta do folclore internacional: “O corvo voou enquanto um cachorro
sentou-se em seu rabo, Como isso € poss{vel2” Automaticamente combinamos osPalavra e imagem 15
elementos justapostos ¢ os reduzimos a uma unidade. Como resultado, entende-
mos a pergunta como se 0 cachorro estivesse sentado no rabo do corvo, quando na
realidade a charada contém duas aces ndo-relacionadas: 0 corvo voa, enquanto 0
cachorro senta-se em seu proprio rabo.
Esta tendéncia a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou quali
independentes ¢ muito forte, mesmo no caso de palavras isoladas que caracterizam
diferentes aspectos de um tinico fendmeno.
Um exemplo extremo disso pode set encontrado no inventor da “palavra
portmanteax”, Lewis Carroll. A despretensiosa descricéo que fez de sua invengio, de
“dois significados colocados em uma palavra, como se a palavra fosse uma mala
portmanteau” * conclui a introdugio de seu A capa ao Snark (The Hunting of the
Snark).
lades
Por exemplo, pegue duas palavras, “terrivel” ¢ “horrivel”. Decida que dira as duas
palavras, mas nao decida qual dird primeiro. Agora abra a boca ¢ fale. Se seus
pensamentos se inclinam mesmo sé um pouco em direcio a “terrivel”, vocé dird
“terrivel-horrivel”; se eles se voltam, até devido a um golpe de ar, em diresao a
“hortivel”, vocé diré “horrivel-terrivel”; mas se vocé tem 0 mais raro dos dons, uma
mente perfeitamente equilibrada, dird “torrivel”.>
E claro que neste caso nZo ganhamos um novo conceito, ou uma nova
qualidade. O encanto deste efeito “portmanteau” & constru{do com base na sensa-
go de dualidade que existe na palavra formada arbitrariamente. Todo idioma tem
seu profissional de “portmanteau” — o norte-americano tem seu Walter Winchell.
Obviamente, a manipulagio maxima da palavra portmanteau & encontrada em
Finnegans Wake.
Por isso, o método de Carroll é essencialmente uma parédia de um fendmeno
natural, uma parte de nossa percepgao habitual — a formagao de unidades qualita-
tivamente novas; em conseqiiéncia, é um método bisico para se obterem efeitos
cémicos.
Este efeito cémico é conseguido através da percepgio tanto do novo resultado
quanto de suas duas partes independentes — ao mesmo tempo. Os exemplos deste
tipo de engenho sao inumerdveis. Citarei aqui apenas trés exemplos que se podem
encontrar em Freud:
Durante a guerra entre a Turquia ¢ os Estados balcinicos, em 1912, Punch retratou 0
papel desempenhado pela Roménia (Roumania) representando-a como um ladrao de
estrada assaltando membros da Alianga Balcdnica. A caricatura foi intitulada: Klepto-
roumania.
‘A malicia européia rebatizou um ex-potentado, Leopold, de Cleopold, por causa
de sua relagio com uma dama chamada Cle: