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Rafael Carneiro Tibo

MONTAGEM, IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NAS NARRATIVAS

LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA

Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Letras

Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários

Belo Horizonte – Fevereiro de 2007


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Rafael Carneiro Tibo

MONTAGEM, IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NAS NARRATIVAS

LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras: Estudos Literários da

Faculdade de Letras da Universidade Federal de

Minas Gerais como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos

Literários.

Área de Concentração: Teoria da Literatura

Linha de Pesquisa: Literatura e Outros Sistemas

Semióticos

Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Brandão Santos

Belo Horizonte
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Faculdade de Letras da UFMG - 2007

Agradecimentos

À CAPES, pelo apoio financeiro.

Ao Leopoldo Comitti. Primeira luz no caminho das letras. Mistura encantadora

entre arte, teoria e vida. “O desencontro no tempo que o presente espacifica”.

Ao Luis Alberto Brandão Santos, meu orientador, pela confiança nas minhas idéias,

pela paciência em vê-las nascer (mais de uma vez) e por tê-las ensinado a caminhar.

Ao Tio Ib, por velar meus sonos e meus sonhos.

À Carla Soraya Gil Carneiro, minha tia, por ter me ajudado com seus conselhos e

ações.

Ao Moal Paráclito, meu avô, pelos livros que hoje são uma partezinha de mim

(nunca esquecerei vô), e à minha avó, por ser quem ela é.

À Mariana Carneiro Tibo, minha poeta, a quem dedico essa dissertação.

À Daniela Carneiro Tibo, Vinícius Perdigão Rosa e Maria Tereza Tibo Perdigão

Rosa, que me ajudaram das formas mais variadas.

Ao Sr. Tárcio de Souza Tibo e à Sra. Sandra Miroslawa Gil Carneiro Tibo, meus

pais, a quem pertencem minha dedicação, amor e gratidão eterna.

À Bartira Gotelipe Gomes Batista, minha mulher, por transformar a minha vida

numa história que também é mais bonita do que a de Robson Crusoé.


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Sumário

Página
Resumo _________________________________________________________ 05
Abstract__________________________________________________________06
Introdução________________________________________________________08

Capítulo I – Preliminares acerca da montagem _________________________13

1.1 – Montagem _________________________________________________________13


1.2 – Nota sobre a relação entre tecnologia e montagem __________________________14
1.3 – As carnes desalmadas ________________________________________________17
1.4 – Caminhos para uma narrativa __________________________________________23
1.5– Um início de evolução ________________________________________________26
1.6 – A lógica da linearização _______________________________________________35

Capítulo II – Griffith, Eisenstein: contribuições das escolas americana e


soviética no processo de evolução da narrativa _______________________________41

2.1 – David Wark Griffith: a narrativa vitoriana e o desenvolvimento da montagem


cinematográfica _________________________________________________________41
2.2 – A montagem eisensteiniana ___________________________________________ 49

Capítulo III – Problemas da Imagem e da Representação ________________58

3.1 – Apontamentos sobre a historicidade do conceito de imagem __________________58


3.2 – A imagem na era da representação ______________________________________69
3.3 – Limites da representação e novas formulações da imagem ____________________74

Capítulo IV – A montagem na Era Moderna ___________________________84

4.1 – O grito ____________________________________________________________84


4.2 – O discurso e o método de montagem _____________________________________87
4.3 – O conflito e a imagem ________________________________________________95
4.4 – A terceira imagem: conclusões e apontamentos à teoria da montagem voltada ao
estudo da literatura ______________________________________________________104

Capítulo V – Considerações finais ___________________________________114

Bibliografia ______________________________________________________120
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Resumo

Esta dissertação apresenta um estudo sobre montagem nas narrativas da literatura e

do cinema, através de uma abordagem dos conceitos de imagem e de representação. Tais

conceitos são pormenorizados levando-se em conta a sua inserção epistêmica nas épocas e

escolas que os utilizaram. O processo de narratização dos primórdios do cinema é

apresentado e discutido. A montagem fílmica é proposta de acordo com os entendimentos

acerca do assunto de Sergei Eisenstein, através da análise e da explanação dos conceitos de

orgânico e patético. Ao apresentar tais conceitos em Eisenstein, surgem os problemas da

imagem e sua relação com a representação. A imagem é, então, proposta e discutida através

da filosofia vigente, desde a Idade Clássica até a Idade Moderna. A partir de um

esclarecimento da imagem e sua relação com a representação, a dissertação passa a

pormenorizar as conseqüências dos postulados imagéticos da Idade Clássica no processo de

espacialização temporal do discurso literário na Era Moderna. O conceito de montagem tem

sua relação com a imagem e com a representação esclarecido e é abordado como operador

teórico na literatura e no cinema. A dissertação ainda se ocupa em discutir a relação binária

da montagem eisensteiniana, através da inserção de uma nova qualidade da imagem. Esta

nova qualidade é fornecida pela teoria dos signos de Charles Sanders Peirce. O objetivo é o

de atribuir à montagem de Eisenstein uma maior pluralidade conceitual e a possibilidade de

se relacionar mais precisamente com a literatura.


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Abstract

This thesis presents a research on montage in the narratives of literature and cinema,

based on a careful study of the concepts of image and representation. Such concepts are

examined taking into account their epistemic insertion in the schools and time they appear.

The process of developing a narrative in the early years of cinema is presented and

discussed. Montage, however, has its definition proposed in agreement with the work of

Sergei Eisenstein, through the analysis and explanation of the concepts of organic and

pathetic. While presenting such concepts in Eisenstein, there appear the problems of image

and its relation to representation. The concept of image is, then, proposed and discussed

considering the philosophies in force from the Classic Age up to the Modern Age. As a

clear definition of image and its relation to representation emerges, the study moves on to

detailing the consequences of the postulates from the Classic Age in the process of

spacializing time in the literary speech of Modern Era. The concept of montage has its

relation to image and representation explained and is, afterwards, applied as a theoretical

tool in the study of literature and cinema. The dissertation also aims at discussing the

binary relation presented by the Eisensteinian montage, through the insertion of a new

quality of image. This new quality is supplied by the Theory of the Signs of Charles

Sanders Peirce, which gives Eisensteinian montage broader conceptual plurality and the

possibility of being connected more precisely with literature.


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“A literatura, no sentido rigoroso e sério da

palavra, não seria mais do que essa linguagem

iluminada, imóvel e fraturada que, hoje, temos

que pensar.”

Michel Foucault
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Introdução

Poucos trabalhos acadêmicos na área dos estudos literários utilizam a montagem

como operador teórico. Houve dificuldades em encontrar trabalhos semelhantes que

pudessem servir de baliza aos esforços teóricos aqui desenvolvidos. A montagem, quando

direcionada à literatura, recebe amiúde uma caracterização de colagem, interpolação

narrativa e encadeamento de metáforas distintas.

Modesto Carone Netto, teórico que precede a presente pesquisa com seu livro

Metáfora e montagem, relembra que o termo já fora utilizado nas análises sobre John Dos

Passos, Alfred Döblin e Jean Paul Sartre, tido como coeficiente que visa “caracterizar a

simultaneidade de ação e justaposição funcional de fragmentos da narrativa” (1974, p. 100).

Ele alvitra que:

“O que vale exclusivamente para o cinema, contudo, passou a ser aplicado ao


estudo da literatura, mormente quando se tentou descrever uma técnica emergente nas
modalidades contemporâneas de representação, onde o fragmento passou a inesperado
primeiro plano nas formas de elaboração literária. Nesse caso, o dicionário especializado
informa que a designação foi transposta para o romance, a poesia e a peça de teatro com o
objetivo de dar um nome à justaposição inusitada “estranhante” (sic) não só de níveis de
realidade, como também de palavras, pensamentos e frases de procedências diferentes”
(1974, p. 102).

No entanto, o conceito de montagem não tem apenas essa função dentro do

arcabouço metodológico desta pesquisa. O que aqui se busca é uma ampliação desse

conceito, seguida de uma maior calibragem de sua utilização. Aqui, uma primeira defesa se
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faz necessária: a montagem, no processo de criação, não precisa necessariamente ser

consciente, até porque não se pode exigir de nenhum autor que trabalhe ou reconheça qual a

nomenclatura correta e atualizada de sua forma de criar. O que se defenderá é que a

montagem é um processo de criação e é, ao mesmo tempo, resultado dessa criação.

Theodor W. Adorno 1 entende que “a justaposição descontínua de imagens, na

poesia surrealista, tem o caráter de montagem” (citado por Carone, 1974, p. 102). Ele

aponta para o fato de que a premissa na qual se apóiam os surrealistas e seu projeto de

atingir a sintonia do inconsciente com as mãos que traçam no papel a escrita é pouco

razoável, pois o que de fato se opera é a montagem das imagens suscitadas por essa

pretensa ligação. Mas o interessante para nós é extrair da colocação de Adorno que a

montagem é elemento presente na criação e que pode ser tida como a junção de imagens

descontínuas, e que essa descontinuidade é a base e premissa maior da montagem.

Valemo-nos, neste trabalho, principalmente dos postulados de Sergei Eisenstein, o

teórico e cineasta soviético, considerado, por muitos, um dos maiores pensadores sobre o

assunto. Contudo, antes de nos atermos às suas premissas, é mister que refaçamos

parcialmente a evolução do conceito de montagem em sua tradição cinematográfica, pois

não só a montagem, enquanto coeficiente teórico para análise narrativa, será aqui focada,

mas também a sua história e consolidação na série fílmica como elemento de criação e de

narração. Esse processo demonstra ser fonte, produtiva e frutífera ainda não esgotada, de

elucubrações teóricas. Enfim, este trabalho é um estudo sobre a montagem cinematográfica

enquanto elemento de criação e traço constituinte da narrativa literária vista sob a luz da

semiótica.

1
Noten zur literatur I: Rückblickend auf den surrealismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1965, p. 156.
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Nos primórdios do cinema, uma difícil questão se apresentou aos produtores e ao

público em geral, os quais lidavam com a então grande novidade tecnológica e lingüística.

O problema era que não se sabia como encadear as imagens de forma que elas

constituíssem uma linguagem capaz de carregar em si mesma os elementos necessários para

a sua compreensão. Em outras palavras, o cinema não sabia contar histórias. Diversas

técnicas foram criadas através das mais variadas pesquisas em prol de uma narratização

dessa nova linguagem. A montagem se apresentou como um grande coeficiente mediador

capaz de inserir elementos compreensíveis ao espectador e possibilidades criativas aos

realizadores. Nesta pesquisa busco demonstrar quais foram as principais dificuldades que

tiveram que ser transpostas pelo cinema na tentativa de instaurar códigos imagéticos

legíveis e conseqüentemente de formular as regras e os direcionamentos necessários para a

criação de uma estrutura narrativa sólida. Essa é uma grande oportunidade para se pesquisar

a estrutura narrativa de forma genérica, pois, ao passo que podemos acompanhar o

nascimento e a evolução das técnicas da narrativa numa série específica, podemos também

perceber toda a relação entre a demanda e a solução dos problemas que uma nova forma de

narrar apresenta. Tal ocorrência pode nos fornecer elementos importantes para a análise das

questões narrativas da literatura.

No decorrer do primeiro capítulo, analiso a formação dessa nova mídia. Apresento

uma breve leitura de sua relação com a tecnologia e com a arte, apresentando a diferença

entre a utilização do aparato de captura de imagens pela comunidade científica e pela

comunidade estética. O objetivo é demonstrar de qual forma cada uma dessas comunidades

influiu na constituição do código narrativo consolidado e utilizado até os dias de hoje.

No segundo capítulo, apresento uma pormenorização do conceito de montagem.

Analiso a sua formação prática e teórica nos primeiros anos do século XX, dando ênfase às
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contribuições de David W. Griffith e Sergei Eisenstein. Ao abordar a teoria eisensteiniana

da montagem, um problema se apresenta, qual seja, o problema da imagem. Eisenstein

divide o filme em dois níveis distintos: o orgânico, que resumidamente seria a parte física

ou sensível do filme e as suas inter-relações, e o patético, que seria a relação entre os

espectadores e as emoções despertadas pelo filme. Essa divisão acarreta uma outra divisão,

dessa vez dos níveis da montagem. Para explicar essa segunda divisão, o teórico formula os

conceitos de imagem-representação e imagem-conceito (нзображение e образ).

A imagem, para Eisenstein, como veremos mais atentamente, é um construto

composto por um conjunto de representações que são inter-relacionadas e que se encontram

sob o mesmo jugo de desencadeamento no plano sensível. Assim sendo, o processo fílmico

e literário de criação particular de imagens pode ser descrito através das fases:

leitura/decodificação de representações do plano material; assimilação das representações

pós-decodificadas que desencadeiam outras representações constituintes do ser e suscitação

das imagens. Contudo, esse postulado não é colocado pelo teórico de uma forma clara e

distinta, podendo ser encontradas, no seu discurso, controvérsias e aporias.

Aquilo que Eisenstein conceitua como imagem encontra-se desenvolvido na teoria

peirciana de forma mais atenta e pormenorizada. Contudo, a questão da imagem ainda

merece uma maior pormenorização antes que a Teoria dos Signos seja abordada. Assim, no

terceiro capítulo refaço o caminho da tradição filosófica desde a Idade Clássica até a Idade

Moderna, com o objetivo de limitar ao máximo este conceito, de forma que ele possa servir

da maneira mais ímpar e fornecer ao leitor o máximo de precisão conceitual nesse aspecto.

Para tanto, sigo os passos de Jean Paul Sartre em seu texto “A imaginação” (1936), no qual

o filósofo salienta alguns dos postulados mais contundentes a respeito da imagem,

presentes na tradição filosófica, e os de Michel Foucault, em sua obra As palavras e as


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coisas (1966), na qual o teórico explica a sua visão epistêmica e arqueológica dos períodos

estudados nesta pesquisa.

A partir dessa pormenorização, apresento ao leitor as conseqüências da mudança

epistêmica notada entre a Idade Clássica e a Moderna para a Narratologia. A conclusão que

se chegará, no quarto capítulo, é a de que a separação da imagem e da representação, no

jogo da distribuição do espaço dos saberes, apresenta conseqüência tardias, culminando e

coincidindo com as experimentações e teorizações a cerca da montagem no início do século

vistas no primeiro capítulo.


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Capítulo I – Preliminares acerca da montagem

1.1 – Montagem

O termo montagem requer pormenorização. Alguns teóricos, como Arlindo

Machado (2002), consideram a montagem cinematográfica já presente em alguns filmes de

Meliès de 1895. Por outro lado, há uma corrente que só considera a montagem presente em

filmes realizados a partir dos anos 10 do século XX. Maria Fátima Augusto, a respeito dos

filmes anteriores a esse período, defende que: “Não se pode falar ainda de montagem, já

que os filmes eram compostos de um só plano, de uma só tomada. A montagem aparecerá

mais tarde, quando o cinema atingir um certo grau de evolução e quando a câmera se tornar

móvel” (Augusto, 2004, p. 26).

Aqui há de se pôr a pergunta: o que é montagem? Porém, antes de respondê-la,

precisamos deliberar sobre os possíveis caminhos que tomarão as respostas. Em primeiro

lugar, o conceito de montagem será aqui abordado em dois níveis primordiais, quais sejam,

o nível da montagem nas artes em geral – o que incluiria por exemplo a montagem em um

só plano, ou tomada, por entender que o próprio cenário foi estabelecido a partir de técnicas

de montagem –, e o nível da montagem cinematográfica enquanto elemento constituinte da

narrativa fílmica. Dois níveis secundários do conceito de montagem serão analisados sob a

luz das teorias eisensteinianas que separam o filme nas instâncias do orgânico e do patético,

separando conseqüentemente a montagem pertencente a cada uma dessas instâncias.

Contudo, há de se atentar que, além disso, a montagem receberá, em certo ponto do

trabalho, uma conceituação mais dinâmica, uma vez que o nosso foco maior é a literatura, e

não o cinema. O conceito de montagem aos poucos ganhará mais e mais características e
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constituições literárias, até o ponto no qual se possa tê-lo como auxílio intersemiótico na

análise do literário.

1.2 – Nota sobre a relação entre tecnologia e montagem

Antes de se falar nas teorias da montagem no cinema, há de se ter em mente que a

questão da montagem remete a primórdios que não tinham necessariamente como objetivo

final a obra de valor estético: pelo contrário, objetivavam mormente a incrementação de um

aparato técnico-científico que se encontrava em fase de desenvolvimento. A câmera era

utilizada para aprimorar a visão humana, servindo como ferramenta para ampliar, congelar

e interferir na velocidade dos movimentos dos objetos que eram analisados, etc. Isso

equivale a dizer que ao se concentrar na tecnologia dos equipamentos do cinema não se

progride muito no estudo da formação e do desenvolvimento da montagem enquanto

elemento narrativo. Por outro lado, muitas das evoluções no terreno da narrativa só se

tornaram possíveis graças a essas pesquisas.

A respeito do cronofotógrafo – aparelho de disparos de fotografias cronometradas –,

pode se dizer que seu criador, o fisiologista francês Etienne-Jules Marey, jamais teve como

fim a recriação natural dos movimentos dos animais que estudava; ao contrário, o objetivo

era o de ver o movimento fragmentado para a análise posterior. Afinal, uma vez na posse de

documentos gráficos separados do movimento dos animais, o fisiologista podia estudá-los

em suas filigranas. Não faria nenhum sentido reagrupá-los depois para assisti-los. Se assim

fosse, não seria mais fácil analisar o próprio animal in natura, como observou Jacques

Deslandes (In: Machado, 2002)?


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Outro que validou a premissa de que a simples reprodução visual oriunda dos

aparatos de captura de imagens em movimento não teria valor científico, pelo fato de não

alterarem a visão do espectador, foi Albert Londe (fotógrafo que trabalhou com Charcot na

captura de imagens de seus pacientes). Ele somente creditava ao aparato valor científico em

caso de alteração do ponto de vista do espectador através de processos de atraso ou

aceleração da imagem, ou ainda através da ampliação ou combinação de edição das

imagens em períodos intercalados de tempo.

“Atrasando a velocidade do aparelho de síntese, consegue-se tornar visível (sic)


aos olhos movimentos que normalmente lhes escapam (...) Inversamente, certos
movimentos não se dão a ver em virtude de sua extrema lentidão, como é o caso do
crescimento das plantas e dos animais. Tomando séries de fotografias com os intervalos
convenientemente afastados, podemos expô-los aos olhos rapidamente e reproduzir num
instante o fenômeno no seu conjunto” (Londe, citado por Machado, 2002, p. 17)

Destarte, para a ciência e seus representantes, a montagem cinematográfica só

apresentava sentido em sua primeira etapa, qual seja, a decomposição dos elementos do

movimento e sua análise partida. Para esses homens, não havia nenhuma motivação em

prol da recriação do movimento capturado, fato que rebaixa a montagem aos seus mais

primitivos campos. Ora, observando o exemplo de Londe, do crescimento das plantas,

podemos sim falar em montagem. Contudo, não podemos perder de vista o seu caráter

extremamente objetivo, isto é, que esse tipo de montagem se concentra tão somente numa

representação natural, embora fragmentada e reconfigurada temporalmente, dos fatos

sensíveis do mundo, e que não possuía outro objetivo senão essa representação. Além

disso, não podemos esquecer do fato de que, no caso de Londe, os “intervalos

convenientes” propostos não são automáticos e nem delimitados cronometricamente pelo

próprio aparelho de captura; pelo contrário, eles são subjugados à vontade subjetiva do
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fotógrafo. Como a intenção na época era a captação visual sintomática das crises histéricas

dos pacientes de Charcot, no hospital Salpêtriére de Paris, (Machado, 2002, p. 18), é

plausível dizer que a captação de um diagrama analítico dessas crises podia variar de

acordo com o fotógrafo que manuseasse o aparelho. Animar ou re-animar esses instantes

capturados das crises não apresentaria nenhuma vantagem para a ciência, pois a presença de

intervalos tão distantes e subjetivos resultaria em algo dessemelhante ao próprio fenômeno

analisado. Tal fato levava à utilização desses instantes apenas como gráficos ilustrativos e

independentes em revistas e livros científicos.

Sem dúvida, a ciência instaurou uma estrutura de estudo e identificação através da

linguagem visual, obtida pelos processos de captura de imagens. Contudo, isso se restringia

à utilização própria de uma comunidade independente, e que objetivava tão somente sua

utilização restrita e fragmentada de análise. Assim, não podemos creditar méritos

excessivos a essas descobertas numa análise estritamente estética. Portanto, somos levados

a concluir que não foram as invenções consecutivas de aparelhagem de captura de imagens,

tais como o cronofotógrafo ou o fuzil fotográfico, os principais responsáveis pela evolução

dos constitutivos próprios da montagem estética, mas sim uma comunidade preocupada

com a utilização não científica dessa aparelhagem. Obviamente, foram as invenções que

tornaram possíveis quaisquer mudanças que ocorreriam; porém, há de se atentar que a

tecnologia sozinha não cria revoluções, e que essa mesma tecnologia fora utilizada com fins

bastante divergentes entre si, e, ainda, que dentre esses fins podemos encontrar aqueles que

nada acrescentaram, no momento mesmo de sua utilização, para uma evolução das

características teóricas e sociais da linguagem imagética.


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1.3 – As carnes desalmadas

Em um artigo de 1923 Béla Balázs defende que: “No momento, uma nova

descoberta, uma nova máquina, trabalha no sentido de devolver, à atenção dos homens,

uma cultura visual, e dar-lhes novas faces. Essa máquina é a câmera cinematográfica”

(1983, p. 77). Podemos analisar com mais cuidado essa frase e dizer que não é a máquina

quem trabalha para devolver a linguagem visual ao homem, mas sim que o próprio homem

é quem o faz. A diferença pode parecer terminológica, mas na verdade não é. Dizer que

uma invenção humana trabalha em prol de algo é esquecer no mínimo duas importantes

questões, qual sejam: (1) a de que havia comunidades que se utilizavam desta mesma

invenção e que não trabalhavam no intuito de “devolver” a linguagem visual ao homem, e

sim em desenvolver métodos estritamente científicos de análises das mais variadas áreas da

pesquisa, como a comunidade científica apresentada acima; e (2) a de que a comunidade

que supostamente trabalhava na referida empreitada era constituída de uma minoria de

ilusionistas e industriais que buscavam sobretudo lucro sobre as exibições que o aparelho

cinematográfico possibilitava. Assim, quando se diz que uma máquina trabalha em prol da

humanidade, ou seja, quando se retira toda a racionalidade, desejo e vontade desse ser que

trabalha, acaba-se por desatualizar toda uma gama de discursos provenientes justamente

desses seres, nada desprovidos de vontade, que de fato movimentaram esse chamado

retorno de uma cultura visual perdida. Em outras palavras, trata-se de uma cultura

particular e subjetiva gerindo um aparato tecnológico.

A grande diferença entre homens da ciência, como Londe e Marey, e um George

Méliès, por exemplo, fica caracterizada não pela utilização do aparato cinematográfico em

sua primeira instância, i. e., pela captura e decomposição das imagens, mas sim por sua
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utilização a posteriori em busca de outros resultados, que não os puramente

decompositórios. Contudo, não podemos nos deixar levar, como queria Balázs, pela

incorporeidade discursiva deste aparato. Mesmo que não se tenha em vista a análise do

discurso de cada um desses empreendedores do cinema em separado (tais como Edison ou

Lumière), não se pode subtrair de tais figuras a sua identidade política, cultural e subjetiva

no momento mesmo de sua atuação como realizadores.

Apesar deste ponto de seu artigo, Balázs nos é esclarecedor:

“No momento, o cinema está prestes a abrir um novo caminho para a nossa
cultura. Milhões de pessoas freqüentam o cinema todas as noites e unicamente através da
visão vivenciam acontecimentos, personagens, emoções, estados de espírito e até
pensamentos, sem necessidade de muitas palavras. Pois as palavras não atingem o
conteúdo espiritual das imagens e são meros instrumentos passageiros de formas de arte
ainda não desenvolvidas. A humanidade ainda está aprendendo a linguagem rica e
colorida do gesto, do movimento e da expressão facial. Esta não é uma linguagem de
signos substituindo as palavras, como seria a linguagem-signo do surdo-mudo – é um
meio de comunicação visual sem a mediação de almas envoltas em carne. O homem
tornou-se novamente visível” (1983, p. 79).

No trecho acima podemos perceber como o autor classificava a linguagem

cinematográfica: como “rica” e “colorida”. O segundo adjetivo é o mais surpreendente,

uma vez que foi escrito durante um período no qual o filme a cores era apenas um sonho

distante. Obviamente, não está se tratando aqui das cores propriamente ditas da película

cinematográfica obtidas através de processos fotoquímicos, mas sim das qualidades de uma

pluralidade gestual em movimento impressa numa nova série de transmissão estética.

Classificar a linguagem do gesto como colorida é o mesmo que elevar o seu nível de

complexidade e de possibilidade de comunicação, a qual exigia, naturalmente, uma nova

gama de requisitos internos ao espectador, para que ele pudesse extrair sentido desta recém
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mídia. Não que a linguagem visual fosse novidade aos seres, que o ser humano não

utilizasse gestos para se comunicar antes do cinema; a novidade estava no fato de não ser

exatamente uma comunicação entre humanos, e sim entre humanos e seres sem “almas

envoltas em carne”. É aí que se encontram todas as cores de uma nova interação, uma

interação entre seres reais e seres animados artificialmente.

Durante os seus dez ou vinte primeiros anos, o cinema quase não apresentou

complexidades narrativas e enredos elaborados. Isso se deveu a uma série de fatos, dentre

os quais podemos destacar a novidade do código de expressão da mídia, o local de

exibição, o curto tempo dos filmes exibidos (que variava geralmente de um a cinco

minutos) e a dificuldade do espectador inexperiente em perceber, num enquadramento,

quais eram e quais não eram as informações necessárias para se acompanhar a trama

proposta. Como descreve Arlindo Machado: “O cinema, mesmo o cinema stricto sensu, ou

seja, o cinema que se constitui a partir do cinematógrafo de Leroy, Ediso, Paul,

Akladanowky e dos Lumière, não era ainda, nos seus primórdios, o que hoje chamamos de

cinema” (Machado, 2002, p. 76). Isso ocorria porque o cinema era antes de tudo uma

reunião de vários tipos de espetáculos pertencentes às formas culturais populares, “como o

circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações,

etc” (Machado, 2002, p.76). O cinema formava, assim, um mundo paralelo ao mundo da

“cultura oficial”, um mundo marginal, no qual o realismo grotesco prevalecia sobre

qualquer forma de elevação intelectual contemplativa.

“A cultura oficial, sempre associada aos interditos, às restrições e à violência


sanadora, não podia ver qualquer progresso nessas caretas e macaquices que remetiam
sempre ao motivo carnavalesco da máscara, nessas palhaçadas em geral obscenas com
que se gozava a seriedade intimidatória das instituições oficiais. Com o advento do
capitalismo e das ideologias protestantes em que este se apoiava, ficava cada vez mais
difícil para a cultura “respeitável” conviver com formas de espetáculos populares
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francamente ofensivas às suscetibilidades éticas e estéticas, já que a nova civilização


dependia, entre outras coisas, do ascetismo, da crença numa sinistra Providência, do papel
dirigente jogado por categorias como o pecado, o sofrimento e a redenção pelo trabalho”
(Machado, 2002, p. 77).

Como não era logística ou politicamente viável uma interdição direta a essas

manifestações culturais, ditas “vulgares”, o que acabou por acontecer foi um processo de

marginalização, que resultou no confinamento de tais práticas aos guetos e periferias

industriais. Durante um longo período de tempo, os filmes foram exibidos como atrações

conjugadas com peças de teatro, como atrativos para as portas das barracas de museus de

cera, números de circo, lutas livres, etc., em feiras de variedades realizadas nesses cordões

industriais e guetos. Assim, o cinema era apenas mais uma atração entre tantas outras

oferecidas nessas feiras, não possuindo nunca o caráter de atração principal.

Com o advento dos Nickelodeons, salas de cinema que, em seus primórdios, não

passavam de galpões adaptados e pouco confortáveis, além de sujos e inseguros, o cinema

começa a ter seu caráter de exclusividade atrativa explorado. Contudo, seu papel

econômico no cenário comercial de filmes era quase insignificante se comparado às feiras

de variedades. A referência à moeda de níquel cobrada para a entrada nesses galpões

acabava por atrair o mesmo público das feiras, o que ainda impedia que a sociedade da

“cultura oficial” voltasse sua atenção a essa forma de espetáculo. Os filmes exibidos nessas

salas continham ainda a mesma formatação das atrações de entreato das feiras, ou seja,

eram filmes bastante curtos, que duravam em média três minutos, e mostravam geralmente

paisagens, imagens eróticas e truques ilusórios. A montagem cinematográfica nessa época

era extremamente limitada e primava sobretudo por esse tipo de exibição de entendimento

visual imediato, filmado em apenas um plano.


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“No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições do cinematógrafo dos
Lumière) até meados na primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam
compreendiam registros dos próprios números de vaudeville [feiras de variedades], ou
então atualidades reconstituídas, gags de comicidade popular, contos de fadas,
pornografia e prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os
filmes produzidos como “paisagens”, “notícias”, “tomadas de vaudeville”, “incidentes”,
“quadros mágicos”, “teasers” (eufemismo para designar pornografia) etc. O sistema de
representação que podemos identificar como específico desse período deriva não tanto
das formas artísticas eruditas (teatro, ópera, literatura) dos séculos XVII e XIX, mas
principalmente das formas populares de cultura provenientes da Idade Média ou de
épocas imediatamente posteriores” (Machado, 2002, p. 80).

Todas essas representações cinematográficas destacadas por Arlindo Machado

possuíam algo em comum: eram caracterizadas, mormente, por tomadas simples captadas

num único plano, ou seja, a câmera era como a memória de um espectador estático que

podia ser reproduzida. A câmera não se movia, apenas capturava as imagens que se

sucediam à sua frente. Fato que compendiava a questão da montagem imensamente. A

questão da montagem anda de braços dados com o problema narratológico do cinema. Com

efeito, os filmes em pauta não tinham a pretensão de narrar histórias, pois não derivavam

diretamente das artes eruditas e por natureza narrativas. Assim, o que se nota como

características gerais do cinema, nos seus primeiros vinte anos é que ele resumia suas

tomadas ao plano único, não constituía uma prática narrativa corrente, não era a atração

principal quando exibido ao público e entretinha, sobretudo, as camadas marginais da

sociedade burguesa do entre-século de sua criação.

A narrativa cinematográfica foi introduzindo-se aos poucos, por diversos meios e

razões. “Elevar” o cinema às camadas favorecidas da cultura “oficial” e, conseqüentemente,

aumentar os lucros da produção cinematográfica foram algumas das razões que

favoreceram a instauração de uma narrativa no cinema. Para tanto, algumas posturas foram

tomadas na época. Um dos primeiros passos foi a censura. Em 1908 criou-se uma agência

de controle nos EUA, a MPPC (Motion Pictures Patents Company). Contudo, como bem
22

ressalta Machado (2002), ela apenas censurava o que não se podia fazer, sem no entanto

apontar para aquilo que se deveria, então, fazer.

O primeiro modelo em relevância na história, adotado em larga escala de produção e

aceitação de filmes produzidos na segunda metade da primeira década do século XX, foi a

recriação fílmica de obras românticas dos séculos XVIII e XIX. Assim, a moral e os bons

costumes eram tematizados de forma a permitir o ingresso da cultura oficial no mundo do

cinema. Porém, o cinema ainda não tinha formas nem modelos nos quais se abalizar para

contar essas histórias. O cinema teria que aprender a fazê-lo.

Assim:

“a literatura dos séculos XVIII e XIX, mais precisamente o seu modelo


dominante (o drama tipo Diderot e o romance de tipo balzaquiano ou zolesco), com seu
sistema de mascaramento da escritura e seu esforço descritivo no sentido de “fotografar”
a cena doméstica, constituía a fonte ideal de inspiração para toda uma geração de
realizadores preocupada com a inscrição civilizatória do cinema no âmbito das belas
artes” (Machado, 2002, p. 85).

E há de se notar, como destaca Machado, que o cinema ainda possuía uma

surpreendente “vantagem” sobre a literatura realista, qual seja, a sua base de registro

imagético ou fotográfico da realidade ela mesma. Assim, o coeficiente de realidade ficava

mais claro e evidente ao espectador do que ao leitor. Não é à toa que as primeiras incursões

narrativas dos realizadores foram justamente as reconstituições e atualizações de fatos

ocorridos, como o célebre The great traim robbery (1903), de Edwin Porter e uma série de

outros que reproduziam nas telas os acontecimentos de crimes, processos, batalhas e outros

fatos históricos. Esses filmes foram os primeiros a embasar a prática narrativa dos filmes

que buscavam na literatura a sua fonte de inspiração para uma tentativa de socialização do

cinema.
23

1.4 – Caminhos para uma narrativa

Imaginemos o seguinte: há um drama sendo encenado numa praça central de uma

grande cidade. O figurino dos atores é exatamente igual aos trajes cotidianamente utilizados

pelas outras pessoas que ali transitam e não são atores. Os atores não estão num palco, eles

se encontram dispersos na multidão. O espectador é informado que há um drama se

desenvolvendo naquele momento naquela praça. Ele está parado de pé no meio do

movimento de pessoas. A ele não foi informado quais pessoas fazem parte do elenco e

quais são apenas transeuntes da praça. O grande problema deste espectador é, obviamente,

que ele não sabe para onde deve convergir a sua atenção. Se por acaso ele presencia um

assalto, sua atenção vai ser deslocada para esse acontecimento, o que pode levá-lo a pensar

que está diante da verdadeira trama montada na praça. Contudo, se essa ação não tiver

desenvolvimento, ou, se o tiver, ele não se conectar a uma outra ação que o justifique, o

espectador perderá o interesse e dirigirá sua atenção a outro foco. Da mesma maneira,

centenas de outras atrações, como anúncios, ruídos, pessoas, sinais, discussões, beijos, etc,

podem atrair a atenção do espectador, levando-o a às vezes acompanhar parte do drama

encenado e às vezes parte da vida mesma de outras pessoas. Por outro lado, se ele fosse

informado de que tais e tais pessoas constituem o elenco da peça, seu problema se

dissolveria. Ele seria capaz de acompanhar plenamente o desenvolvimento da ação e a

evolução das personagens e de seus laços dramáticos; enfim, estaria apto a acompanhar o

evolver narrativo da peça, tornando-se hábil, posteriormente, a relatar a outras pessoas os

fatos mais importantes e a organização geral da trama.


24

O maior problema que o cinema enfrentaria em sua nova modalidade – a

modalidade narrativa – seria exatamente o problema levantado no exemplo acima. Como

“mostrar” ao espectador destreinado quais eram e quais não eram os elementos

constitutivos da trama? Como contar uma história e lidar com a facilidade de dispersão da

atenção do espectador por vários motivos, como a própria novidade de se ver figuras

humanas se movendo numa tela? Em outras palavras, o problema era o de como dar ordem

a um caos de imagens e de micronarrativas em potencial que dentro do quadro serviam às

imaginações presentes das formas mais variadas. “As primeiras imagens cinematográficas

eram consideradas “confusas” demais para um público viciado no discurso linear e

organizado do teatro e do romance romântico/realista” (Machado, 2002, p. 91). A solução

para tal problema foi a de se adotar a presença de um conferencista que, através da sua voz,

moralizava o olhar do espectador. A função desse conferencista era basicamente a de

explicar aos espectadores o que estava acontecendo no filme e para onde eles deveriam

dirigir a sua atenção. Não obstante, a figura do conferencista representava também o

discurso civilizatório que o cinema carecia para atingir a burguesia instruída nos princípios

religiosos e morais da época, sendo inclusive obrigatória por lei em alguns estados norte-

americanos.

Assim, como ressalta Hugo Munsterberg em artigo publicado em 1916, “A mera

percepção das pessoas e do fundo, da profundidade e do movimento, fornece apenas o

material de base” (Munsterberg, 1983, p. 27). Era preciso criar sobre esse material a

corrente narrativa da obra. É interessante notar que esse material de base já constituía, em si

mesmo, a maior das novidades, não somente em termos técnico-científicos, como também

em termos de linguagem. Era aquilo que Balázs chamou de interação entre seres humanos e

seres sem almas envoltas em carne – o que realça a presença de elementos fantásticos na
25

atmosfera discursiva que envolvia o aparato cinematográfico. Se o cinema precisava se

tornar narrativo para melhorar o “nível” de seus espectadores, para isso ele precisaria fazer

funcionar o canal de comunicação entre esses seres possuidores de almas e os outros que

não a possuíam. Apenas um suporte verbal e sonoro poderia fazer com que essa ponte de

comunicação fosse completada, uma vez que os espectadores que freqüentavam as feiras de

variedades eram em sua grande maioria analfabetos, o que desarticulava a utilização plena

de letreiros no filme. Assim, a presença do conferencista assumia uma função

extremamente necessária dentro da estrutura narrativa dos filmes. Uma grande parte dos

filmes produzidos com o intuito de narratividade na primeira década do século XX era

formulada nos estúdios já com o emprego da estrutura narrativa destinada ao conferencista.

Eram escolhidas as suas falas, os momentos de sua atuação e de quais problemas de

comunicação da estrutura narrativa ele deveria dar conta. No entanto, há de se imaginar o

efeito negativo que a presença de um senhor em terno e gravata, com ares tutoriais,

conduzindo as vontades e desejos dos espectadores, era capaz de fornecer à magia da

interação do espetáculo.

Ainda seguindo as proposições de Arlindo Machado (2002), devemos nos perguntar

agora: quais eram as particularidades dos filmes que geravam a confusão aos espectadores?

Para entendermos tal questão, devemos nos ater à estrutura geral dos filmes produzidos no

início do séc. XX. De antemão podemos dizer que, de uma forma genérica, a câmera

cinematográfica nunca se movia. Ela ficava inerte na posição frontal da ação. Assim, os

quadros desse cinema eram fixos e toda a ação se desenrolava de modo semelhante ao

teatro. A câmera era, então, a visão privilegiada do espectador teatral. Cada quadro desses

possuía autonomia, e o filme era uma reunião desses quadros autônomos, separados por

cartazes onde se inscrevia o título ou a explicação do quadro subseqüente. O problema aqui


26

era que a qualidade de definição da película utilizada era muito baixa, o que dificultava ao

espectador identificar as fisionomias dos personagens e consecutivamente entender as

relações mantidas por eles durante o filme. O fato de a câmera não se mover e de se

enquadrar a ação sempre mais ou menos no plano geral trazia no mínimo dois problemas de

entendimento. O primeiro problema era o de se identificar no quadro quem era e quem não

era importante para a estrutura narrativa. O segundo era a baixa qualidade do filme. Mesmo

quando o espectador conhecia de antemão a trama, lhe era penoso acompanhá-la devido às

confusões suscitadas pela dificuldade de identificação visual das personagens na tela.

1.5 – Um início de evolução

A evolução do cinema no terreno da narrativa se deu através de duas formas

principais, em acedência com as duas principais questões que contribuíam para a confusão

do espectador. O cinema evoluiu através da mobilidade da câmera, que respondia

mormente ao problema da estrutura geral da história e identificação física dos personagens,

e através da montagem, que respondia, genericamente, ao problema da identificação das

funções dos personagens dentro da história.

Sobre o movimento da câmera, podemos dizer que ele resolvia, ou ajudava a

resolver o problema da identificação dos personagens através das técnicas de aproximação

do olhar do espectador. Com o advento do primeiro plano e do close-up, a percepção mais

aguçada de personagens e de seus estados mentais se fez possível, pois agora o produtor

seria capaz de selecionar um detalhe, como um aperto de mão, uma lágrima de tristeza, um

sorriso revelador etc., e “mostrá-lo” ao público convenientemente, lhe oferecendo assim o

acesso à estrutura narrativa da história do filme.


27

Sobre a montagem, podemos dizer que ela ajudava a solucionar os problemas de

ordem dramática dos filmes. Através dela o produtor poderia escolher quais eram os

detalhes mais importantes da história que deveriam ser vistos pelo espectador e quando isso

deveria acontecer, atraindo a sua atenção para uma série de acontecimentos que,

encadeados, geravam a trama do filme. Obviamente isso não era coisa simples de se fazer,

uma vez que a linguagem era ainda uma grande novidade, não apenas para os espectadores,

mas também para os realizadores. Como nota Hugo Munsterberg, o espectador não podia

assistir passivamente ao filme, ele deveria se dedicar ao trabalho mental de fazê-lo:

“Devemos acompanhar as cenas que vemos com a cabeça cheia de idéias. Elas
devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de
experiências anteriores, mobilizar sentimentos e emoções, atiçar a sugestionalidade, gerar
idéias e pensamentos, aliar-se mentalmente à continuidade da trama e conduzir
permanentemente a atenção para um elemento importante e essencial – a ação”
(Munsterberg, 1983, p. 27).

A questão da atenção, ou a questão da direção da atenção para a ação fílmica com

vistas a seu enredo é desenvolvido pelo psicólogo Hugo Munsterberg, em seu artigo “A

Atenção”, publicado em 1916. Os postulados desse psicólogo possuem um interesse

particular para nós, uma vez que foram escritos por alguém que apenas teve contato com as

primeiras evoluções da técnica de montagem e de narratologia cinematográfica em geral.

Munsterberg, falecido em 1916, não chegou a assistir Intolerância, de Griffith, por exemplo

(Xavier, 1983). Nesse artigo – presente no livro Photoplay: a psycological study –, ele

defende que o trabalho de direção da atenção tem dois lados, um deles de responsabilidade

do realizador e o outro do espectador. Ao montar (o termo vai destacado, pois ainda não

foram determinadas profundamente, neste trabalho, as suas propriedades) uma obra de arte
28

qualquer, o autor pressupõe que ela será assistida, ouvida ou lida por alguém, mesmo que

seja ele próprio seu único público.

Assim, é natural que se suponha que há, entre a obra e o seu público, um elo

comum de linguagem. Nas artes narrativas, como o teatro, a ópera e a literatura, o autor

pretende passar algo premeditado ao espectador, e para tanto precisa lançar mão das suas

contigüidades expressivas. Por outro lado, o espectador precisa também se deixar levar pelo

autor – crítica ou não criticamente – para que se feche o ciclo da interação entre autor, obra

e leitor/espectador. É bom ressaltar que estamos tratando aqui do nível mais primordial da

comunicação, aquele que se resume à linguagem, sem vistas àquilo que ela carrega como

discurso. Em outras palavras, estamos diante da pura narratologia, da linguagem montada e

transmitida, sem levar em conta as suas formulações discursivas, institucionais ou políticas.

Analisar a questão da interação tripartida entre autor/obra/leitor sob o viés da montagem

requer que abdiquemos, ao menos por hora, de questões referentes às análises dos discursos

contidos nas três partes dessa transação.

Segundo Munsterberg:

“A atenção é, de todas as funções internas que criam o significado do mundo


exterior, a mais fundamental. Selecionando o que é significativo e relevante, fazemos
com que o caos das impressões que nos cercam se organize em um verdadeiro cosmos de
experiências. (...) Tudo o que entra no foco da atenção se destaca e irradia significado no
desenrolar dos acontecimentos” (1983, p. 28).

A questão aqui é a de perceber que o foco ao qual Munsterberg se refere pode ser

de dois tipos distintos. Por exemplo, num filme, ou num romance, o espectador/leitor pode

dirigir o foco de sua atenção aleatoriamente – desde os mais ínfimos detalhes de cena ou

diálogos triviais de saudação até estruturas mais elaboradas de combinações de ações


29

dentro da narrativa. Por outro lado, há certas escolhas que o espectador, e o leitor não

podem fazer. Por exemplo quando Mellvile escreve em seu Moby-Dick; or, The Whale:

“Pode me chamar de Ishmael. Alguns anos atrás – não importa quantos precisamente –

numa época que eu tinha pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em terra firme que

pudesse me despertar o interesse, pensei que era hora de navegar um pouco e ver a parte

aquosa do mundo” (1948, p. 1). 2 O leitor não pode decidir se a sua atenção captará ou não o

nome da personagem, ou o fato de ele ter pouco ou nenhum dinheiro no bolso, mesmo que

esse leitor se preste a ler a obra de trás pra frente ou se concentrando apenas em filigranas

da paisagem. Essas informações, embora não possam ser ignoradas pelo leitor, podem cair

para o segundo plano de sua atenção, ficando a cargo do autor a tarefa de assinalar, realçar

ou repetir as informações que considera importantes.

Ainda de acordo com Munsterberg, a atenção se divide em duas formas principais: a

atenção voluntária e a involuntária. Ela é considerada voluntária quando dirigimos a

atenção propositalmente a um objeto, e, quando o fazemos, levamos juntamente com nossa

atenção toda uma gama de conceitos subjetivos e a priori, que servem como constituintes

moralizadores que selecionam, no ato de análise, o que deve e o que não deve ser levado

em conta em tal objeto.

“A observação do objeto fica então impregnada de interesse pessoal, de idéias próprias. A


escolha prévia do objeto de atenção leva-nos a ignorar tudo o que não satisfaça aquele
interesse específico. A atenção voluntária controla toda a nossa atividade. Cientes de
antemão do objeto que queremos atingir, subordinamos tudo o que encontramos à sua
energia seletiva. Nessa busca, só aceitamos o que vem de fora na medida em que
contribui para nos dar o que estamos procurando” (Munsterberg, 1983, p. 28).

2
“Call me Ishmael. Some years ago – never mind how long precisely – having little or no money in my purse,
and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of
the world” (tradução nossa).
30

Na atenção involuntária acontece o inverso, a influência seletiva e diretiva que guia

a atenção não é intrínseca e subjetiva, mas sim extrínseca. Nesse caso, o que impera é a lei

do mais brilhoso e barulhento, mas também a lei do mais belo, do mais feio etc. O que

Munsterberg nos diz é que existem estímulos exteriores que são capazes por si mesmos de

roubar-nos a atenção, e que, se esses agentes se encontram além da nossa possibilidade de

controle, esse tipo de atenção só pode ser involuntária. No caso de algo externo – como

uma notícia triste estampada numa banca de revistas por exemplo – nos chamar a atenção

involuntariamente, e depois disso passarmos a dedicar mais atenção a esse anúncio, ainda

assim devemos classificar esse tipo de atenção como involuntária, pois para o psicólogo a

questão primordial é saber qual é a origem do deslocamento da atenção: se é interna ao

sujeito, voluntária; ou se externa a esse sujeito, involuntária.

“Sem dúvida, o poder de motivação das percepções impostas à atenção


involuntária pode advir das nossas próprias reações. Tudo o que mexe com os instintos
naturais, tudo o que provoca esperança, medo, entusiasmo, indignação, ou qualquer outra
emoção forte assume o controle da atenção. Mas, embora este circuito passe pelas nossas
respostas emocionais, seu ponto de partida fica fora de nós, o que caracteriza a atenção de
tipo involuntário” (Munsterberg, 1983, p. 29).

A conclusão à qual Munsterberg chega é que, numa peça de teatro, a atenção do

espectador é involuntária, pois é toda sugerida pela intenção dos produtores. Obviamente,

como ressalta o próprio autor, um espectador pode muito bem se dirigir ao teatro e não se

deixar levar pela atenção involuntária, concentrando-se em pontos aleatórios à peça,

escolhidos pela sua atenção voluntária. Porém, isso não caracterizaria a interação necessária

para que se dissesse que o espectador foi ao teatro e que plenamente assistiu à peça. Esse
31

postulado é bem defendido, uma vez que até mesmo no teatro épico brechtiano a atenção se

classificaria como involuntária, pois tudo aquilo que o espectador de Brecht recebia como

subsídios de idéias politizadas era exterior a ele (ao espectador) e portanto se caracterizaria,

na forma de pensar de Munsterberg, como atenção involuntária. É importante que se

perceba que o involuntarismo do público, o qual Brecht tentava ultrapassar em seu teatro,

não se encontra no mesmo nível de conceituação das propostas teóricas de Munsterbeg. A

classificação entre os tipos de atenção é algo medido na relação do espectador com a obra

em seus aspectos superficiais e sensíveis, i. e., em suas relações psíquicas e biológicas, não

levando em conta – como Brecht o faria – suas cargas discursivas e políticas.

O teatro era, naquele contexto, uma instituição consolidada e não apresentava

problemas de entendimento ao público. A montagem de uma peça não apresentava desafio

algum – excedendo-se os desafios próprios que impõe qualquer trabalho artístico que se

propõe com seriedade – no quesito de compreensibilidade do todo narrativo. No palco, não

faltavam meios de se atrair a atenção da platéia: com a voz, com gestos, movimentos

coreografados etc. Contudo, no cinema, como vimos, as técnicas eram ainda

demasiadamente primitivas. Assim, o problema principal do texto de Munsterberg é posto:

“de que forma o cinema garante o deslocamento necessário da atenção?” (Munsterberg,

1983, p. 30). E mais adiante:

“É evidente que à exceção das palavras, nenhum meio de atrair a atenção válido
para o palco se perde no cinema. A influência exercida pelos movimentos dos atores
torna-se ainda mais relevante na tela, uma vez que, na falta da palavra, toda a atenção
passa a convergir para a expressão do rosto e das mãos” (Munsterberg, 1983, p. 31).

Mas como poderia a linguagem cinematográfica dar conta de focalizar a atenção

da platéia, de acordo com sua conveniência narrativa nos seus primeiros anos, se a sua
32

linguagem ainda era tão nova e deficiente? A resposta é: através do movimento da câmera e

da montagem, como citado acima. Contudo, não bastava trazer uma mão apreensiva ou um

olhar lacrimejoso ao primeiro plano para se obter sucesso na transmissão da narrativa. Pelo

contrário, isso traria ainda mais confusão aos espectadores, que não saberiam dizer a quem

pertence aquele olho e qual a razão de ele estar tão “volumoso” na tela. “O grande

problema para representar com naturalidade a transição do plano geral e objetivo para o

plano aproximado e subjetivo, era a inexistência ainda de codificação dos deslocamentos de

mirada, segundo conceitos de continuidade que serão formulados só mais tarde” (Augusto,

2004 p. 34). O grande desafio era o de como conciliar as semelhanças e ligações lógicas

entre os pontos de vistas da câmera, da personagem e do espectador.

Munsterberg ressalta quatro principais fatores ligados à atenção que, na sua

opinião, explicariam o procedimento pelo qual o cinema seria capaz de capturar a atenção

das mentes da platéia e conduzi-las linearmente através de um todo narrativo, e, por assim

dizer, resolver o problema lógico da interação dos pontos de vista envolvidos no processo

fílmico. O primeiro fator é o da nitidez que assume o objeto focalizado pela atenção. “Tudo

o que atrai a atenção via qualquer um dos sentidos – visão ou audição, tato ou olfato –

certamente fica mais nítido e claro na consciência” (Munsterberg, 1983, p. 32). Porém,

ressalta ele, esse processo não tem nada a ver com processos de intensidade. Se no caso de

uma luz tênue chamar-nos a atenção, ela permanecerá tênue em nossa visão, não se

transformará num raio forte de luz, ela apenas ganhará mais vivacidade, seus contornos

ficarão mais perceptíveis e sua presença muito mais marcante em nossa consciência.

“Agora ela tem mais poder sobre nós ou, metaforicamente, introduziu-se no âmago da

nossa consciência” (Munsterberg, 1983, p. 32).


33

Um segundo aspecto ressaltado é que quando esse fenômeno acontece, i. e.,

quando a nossa atenção privilegia um dado objeto, conseguintemente todos os outros

perdem qualidade em nitidez e a sua presença fica mais distante de nós. “Enquanto a

impressão privilegiada se torna mais nítida, todas as outras se tornam menos definidas,

claras, distintas, detalhadas. Deixamos de reparar nelas. Elas perdem a força, desaparecem”

(Munsterberg, 1983, p. 32-33). O psicólogo defende que, por exemplo, quando lemos um

romance e nos encontramos totalmente absortos pela leitura, deixamos de dar notícias sobre

nossos arredores, esquecemos do resto das coisas que nos cercam e dedicamos

exclusivamente a nossa atenção à leitura. Destarte, tudo aquilo que não se encontra focado

pela atenção, no caso o livro, perde tanto o interesse que passa a não mais existir enquanto

realidade consciente dos indivíduos.

O terceiro fator é o da adaptação física de nossos corpos ao objeto de nossa

atenção. “A cabeça se movimenta na tentativa de escutar o som, os olhos se fixam num

ponto externo. Todos os músculos se tencionam para receber dos órgãos sensoriais a

impressão mais plena possível. A lente do olho se ajusta com exatidão à distância correta”

(Munsterberg, 1983, p. 33). Isso quer dizer que a nossa identidade corpórea é dotada da

capacidade de busca da plenitude da impressão. Tal fato nos leva ao quarto fator proposto:

o de que o nosso corpo e a nossa mente se dedicam em comum acordo ao objeto

selecionado pela nossa atenção.

Notadamente, esses quatro fatores destacados por Munsterberg não agem de

forma isolada, mas formam um conjunto estrutural pelo qual a atenção funcionaria como

processo. Esse processo é sugerido pelo psicólogo como o viés mais propício para que a

lógica das imagens na tela atinja a lógica interior da platéia. Em outras palavras, um filme,

para ser inteligível, necessitaria de obedecer à coerência subjetiva pela qual funcionam os
34

mecanismo da atenção. Seguindo-se esse postulado, a atenção dos espectadores poderia ser

atingida da seguinte forma:

1 – Se tudo aquilo que nos chama a atenção ganha vivacidade e nitidez, e se tudo

aquilo que não é foco da nossa atenção desaparece da nossa vista, basta ao cinema adotar a

mesma estratégia, através das técnicas de ampliação da imagem na tela, trazendo para nós o

objeto e excluindo aquilo que não importa para a trama.

2 – Se o nosso corpo e a nossa mente estão preparados para assimilar em comum

acordo, através da atenção involuntária, o que lhes é sugerido, fica então a cargo do

produtor do filme selecionar as cenas que nos guiarão através da trama desenrolada no

filme.

“Começa aqui a arte do cinema. A mão nervosa que agarra febrilmente a arma
mortífera pode súbita e momentaneamente crescer e ocupar toda a tela, enquanto tudo
mais literalmente some na escuridão. O ato de atenção que se dá dentro da mente
remodelou o próprio ambiente. O detalhe em destaque torna-se de repente o conteúdo
único da encenação; tudo o que a mente quer ignorar foi subitamente subtraído à vista e
desapareceu. As circunstâncias externas se curvam às exigências da consciência. Os
produtores de cinema chamam a isso de close-up” (Munsterberg, 1983, p 34).

O que Munsterberg propôs foi uma forma pela qual o cinema deveria funcionar

se quisesse ser compreendido. Essa forma deveria se forjar a partir do nosso ato de atenção.

Contudo, haveria ainda um problema a ser transposto pelo cinema para que esse postulado

surtisse efeito. Como utilizar os atos de atenção, que são internos aos sujeitos, de uma

maneira exteriorizada, e ao mesmo tempo dar conta a eles de que essa operação está sendo

executada? Como atrair externamente a atenção da platéia e ao mesmo tempo deixar

transparecer que essa forma de atrair a atenção também lhe é interna? Qual a sutileza

necessária para se contar uma história utilizando a mesma estrutura das atenções objetivas e
35

subjetivas, e no mesmo andamento, deixar dimanar, da narrativa, os códigos necessários ao

seu entendimento?

1.6 – A lógica da linearização

O problema de entendimento presente nos primeiros filmes narrativos era

decorrente do fato de que tudo se dava de maneira simultânea dentro do plano, como

exemplifica Arlindo Machado através do filme Tom Tom the piper’s son 3 . No quadro de

abertura desse filme é apresentado ao espectador o plano geral de uma feira cheia de

pessoas que circulam de um lado para o outro no plano. Uma mulher ocupa boa parte da

cena fazendo acrobacias numa corda bamba, algumas senhoras conversam do lado

esquerdo, há ainda um malabarista e uma briga ocorrendo enquanto um porco é roubado na

parte inferior do plano. De todos esses elementos, o único que interessa à narrativa é o

roubo do porco, que “explica” o plano seguinte, no qual a polícia persegue os ladrões.

Arlindo Machado questiona:

“Como ter garantias de que os olhos do espectador não iriam se ‘distrair’, movendo-se em
direção a detalhes não necessariamente importantes para o desenvolvimento da intriga? O
que fazer para que o espectador visse forçosamente o roubo do porco, com tantos outros
elementos atrativos dentro do quadro? Como, enfim, dirigir o olhar apenas para os pontos
de interesse da narrativa, evitando que o espectador, por força de algum detalhe perverso
ou mal controlado, fizesse uma “leitura” do quadro diferente daquela que a história
exigia? (2002, p. 100).

Em outras palavras, o que se coloca é o problema da atenção de Munsterberg. O

problema do olhar é o problema da atenção; assim, o olhar da câmera e o olhar do

3
Tom Tom the piper’s son, Billy Bitzer, 1905.
36

espectador são ao mesmo tempo a atenção da câmera e a atenção do espectador. Como

dirigi-los? Eis a pergunta que a narrativa cinematográfica deveria responder para avançar

na narratologia. Para nós, espectadores modernos, a resposta parece tão óbvia que nos é

difícil imaginar tal coisa como problemática, tamanha a nossa familiaridade com o método

então desenvolvido. Para nós, parece que o processo é extremamente natural e lógico; no

entanto, foi necessário que se constituísse uma linguagem arbitrária, a qual se consolidou

com o passar dos anos. Da mesma forma como se precisa de alfabetização para se

compreender a linguagem escrita, houve também a necessidade de uma espécie de

alfabetização pra se compreender a linguagem fílmica.

Machado compara a linguagem escrita ao cinema ainda sob um outro ponto de

vista, a saber, o da linearização. Para que, na linguagem escrita, se comuniquem fatos

ocorridos simultaneamente, é inevitável que se linearize o processo. Assim, se retomarmos

o exemplo do quadro inicial de Tom Tom the piper’s son, desta vez na linguagem escrita,

seria necessário separamos os acontecimentos e personagens numa linha lógica que

fornecesse ao leitor o todo constituinte do quadro, como na sentença que se segue: “Numa

feira, onde diversas pessoas transitavam, no momento no qual uma mulher vestida de

collant fazia acrobacias numa corda bamba, um grupo de senhoras conversava, uma briga

se desenrolava e um malabarista se apresentava, houve o roubo de um porco”. Por mais

imediatos e simultâneos que forem os acontecimentos, nos é impossível transmiti-los ao

mesmo tempo através da escrita ou da fala. Assim, se Tom Tom ... fosse refilmado numa

linguagem moderna, se apresentaria primeiro um plano geral da feira, o que situaria o

espectador no local da ação; segundo, se mostrariam separadamente os fatos e personagens

da cena; e finalmente o roubo do porco num plano que privilegiasse a ação. Como se pode
37

notar, essa linguagem obedece de certo modo os moldes de exposição proposicional da

linguagem escrita.

Há ainda mais um ponto ressaltado por Arlindo Machado a respeito da

linearização. Além de uma similaridade com a linguagem escrita acerca da espacialização

do conteúdo simultâneo numa linha temporal, a linearização atende também a uma outra

função: a demonstrativa. O teórico cita um exemplo de The man who knew too much 4 . Há

uma cena nesse filme em que um assassino recebe ordens de matar um embaixador no

exato momento em que soarem os címbalos durante um concerto sinfônico. A única pessoa

presente que sabia do plano era uma mulher cujo filho se encontrava sob poder dos

bandidos; como conseqüência disso não podia avisar a polícia da presença do assassino. A

peça que a orquestra apresentava continha apenas um toque de címbalos. Hitchcock nos

deixa entender que o momento do assassinato se aproxima mostrando-nos a partitura dos

pratos, a qual trazia a única e fatal nota. A mulher, durante a aproximação do desfecho da

ação, entra em crise por não saber que atitude tomar: se salva o filho não se manifestando

ou se evita o homicídio do embaixador denunciando o assassino à polícia. No momento

exato em que os címbalos se chocam, a mulher solta um grito de desespero que assusta o

atirador, que perde a precisão do disparo, conseguindo somente ferir o embaixador em um

dos braços.

Se esse trecho fosse desenvolvido nas premissas fílmicas do início do cinema, ele

seria mostrado através de uma câmera fixa que enquadraria o plano geral do teatro no qual

a ação se deu, captando todos os seus elementos simultaneamente. Ninguém seria capaz de

entender exatamente o que aconteceu, pois o que há nessa cena para ser apreendido se

encontra na relação entre seus fatos – o assassino só errou o tiro porque a mulher gritou, e o

4
The man who knew too much, Alfred Hitchcock, 1956.
38

tiro só não matou o embaixador porque quem disparou foi assustado, no momento do

disparo, pelo grito. Quem prestasse atenção no assassino não perceberia que a mulher

estava gritando; quem prestasse atenção nela não perceberia que o embaixador estava sendo

alvejado; quem prestasse atenção na orquestra não veria nem a mulher desesperando-se

nem o assassino disparando, etc. Mais importante do que isso, ninguém perceberia que fora

por causa da aproximação do toque dos címbalos que a mulher se desesperava, nem que

fora por causa de seu grito que o assassino perdera a precisão da mira, e nem que fora por

causa disso que ele havia errado o alvo.

Hitchcock propõe uma forma de colocar esse enunciado que demonstra e explicita

essa relação. Ele espacializa a informação em uma linha de proposições imagéticas.

Primeiro ele mostra a mulher gritando, depois o assassino disparando meio desconcertado

pelo grito e desaprovando o resultado do disparo, então mostra o percursionista tocando os

pratos, e só depois disso o embaixador e sua comitiva assustados. Dessa forma podemos

compreender as relações existentes no interior da cena. “A sucessão dos planos é montada

como as premissas e conclusões de um teorema, a ordem dos fatores determinando o

produto. Essa lógica que subjaz à sucessão foi uma das descobertas mais remotas dos

primeiros cineastas e um fator determinante na tendência rumo à linearização narrativa”

(Machado, 2002, p. 103). Assim, a mobilidade da câmera e a aproximação de objetos e

expressões ao espectador não podem ser entendidas apenas como explicitação de algo

difícil de ser visto num plano geral, mas também como um coeficiente regulador de causa e

efeito dentro da narrativa. Posto de outra maneira, o que se começa a buscar é uma

“fragmentação da história em unidades elementares de sentido” (Machado, 2002, p. 104).

Contudo, cineastas e público demoraram bastante tempo para compreender o

funcionamento e dominar a linguagem desse tipo de montagem linear. Só com muito vagar
39

é que se percebeu que as cenas ganhariam maior compreensibilidade se fossem

desmembradas em unidades menores e mais carregadas de sentido.

O interessante é notar que, ao passo que se avança na partição do plano geral em

unidades menores de sentido, vê-se também obrigado a avançar no campo diegético da

narrativa. Pois, à medida que se extraem mais informações de uma cena, tem-se em mãos

mais informações para inserir na estrutura sintagmática da trama. Assim, o cinema começa

a ganhar certa complexidade na narrativa, ao recortar, selecionar, inserir e exibir ao

espectador os detalhes necessariamente importantes para a compreensão da trama. Em

outras palavras, o cinema aprendeu a contar histórias a partir do momento em que foi capaz

de capturar e selecionar planos para juntá-los em seqüências lógicas aos espectadores; a

partir do momento em que foi capaz de capturar o sentimento das personagens através de

seus gestos em primeiro plano e inseri-los novamente no contínuo do filme, atualizando

seus traços interiores e compondo a complexidade possível da lógica do filme; a partir do

momento em que foi capaz de dividir a informação confusa do plano geral em unidades

menores de sentido; e de dispô-las numa linha temporal de maneira adequada para que elas

fossem capazes de suscitar sentido aos espectadores.

É bom ressaltar que, embora esse processo pareça demasiado natural aos nossos

olhos de espectadores modernos, foram necessários vários anos para que ele se

aperfeiçoasse e se tornasse o modelo dominante de fácil assimilação que recebemos hoje

nas salas de cinema. Foram cometidos diversos erros e falhas de continuidade nos filmes

em nome das experiências necessárias para a consolidação desse modelo. Esse processo só

foi possível graças aos esforços de diversos realizadores e a uma sedimentação de técnicas

e experimentos que aos poucos foram constituindo uma tradição. Alguns nomes se

destacaram durante esse processo evolutivo, merecendo uma maior pormenorização, acerca
40

de suas contribuições, o nome de David Wark Griffith, tido pela grande maioria dos

realizadores, teóricos, pesquisadores e filósofos do cinema (dentre eles Sergei Eisenstein,

Ismail Xavier, Nöel Burch e Gilles Deleuze), como o mais inventivo dos cineastas do

período da evolução da narrativa cinematográfica.

O que vimos até agora foi como o cinema, enquanto tecnologia e linguagem,

evoluiu e formulou-se como um construto inteligível. Acompanhamos sua evolução – de

forma bastante resumida e de forma alguma totalizante – até o ponto no qual ele foi capaz

de contar histórias baseado no modelo de montagem linear, o que ocorreu mais ou menos

entre os anos de 1897 (data considerada por Arlindo Machado como significativa pelas

primeiras experiências de montagem de Georges Mélliès) até a segunda metade dos anos de

1910, quando já se podiam enumerar algumas experiências em torno de um outro tipo mais

complexo de montagem: a montagem paralela.


41

Capítulo II – Griffith e Eisenstein: contribuições das escolas americana e russa no

processo de evolução da narrativa

2.1 – David Wark Griffith: a narrativa vitoriana e o desenvolvimento da montagem

cinematográfica

Em seu célebre ensaio “Dickens, Griffith e nós”, Serguei Eisenstein utiliza-se de

alguns trechos de um texto de autoria de Stefan Zweig. Em um desses trechos podemos ler:

“Se alguma vez um homem teve o dom da visão – e não apenas da visão, mas da
audição e do olfato –, e a faculdade de lembrar com precisão microscópica os detalhes de
tudo já visto ou ouvido, ou provado, cheirado ou sentido, este homem foi Charles
Dickens... Podemos ver, ouvir, tocar, provar e cheirar tudo o que ele descreve,
exatamente como acontece ao nos depararmos com algo na vida real, e é de tal modo
vívida sua descrição que se torna positivamente fantástico.
(...) Sua psicologia começou com o visível; ele chegou à compreensão do
personagem pela observação do exterior – a mais delicada e mínima minúcia da aparência
externa, suas extremas sutilezas que apenas os olhos que se tornam agudos devido a uma
imaginação superlativa podem perceber. Como os filósofos ingleses, ele não começa com
hipóteses e suposições, mas com características... Através de traços, ele revela tipos:
Creakle não tinha voz, falava num sussurro; o esforço, ou a consciência de que tinha
dificuldade de falar fazia com que seu rosto zangado ficasse muito mais zangado, e suas
grossas veias muito mais grossas. Quando lemos a descrição, o terror que os meninos
sentiam à aproximação desse homem irascível se manifesta em nós também. As mãos de
Uriah Heep são úmidas e frias; sentimos horror da criatura logo no início, como se nos
defrontássemos com uma cobra. Pequenas coisas? Detalhes externos? Sim, mas que
invariavelmente são capazes de repercutir na alma” (Zweig, citado por Eisenstein, 2002,
p. 186).

Como podemos perceber no texto de Zweig, a questão da leitura infantil tem

correlação imediata com a leitura adulta, e o que ele defende é que, assim como as crianças,

os adultos também se deixam levar pelos detalhes exteriores dos personagens da obra de

Dickens. Ora, como bem observa Eisenstein, é aí que também se concentra o brilhantismo

de Griffith. Segundo Eisenstein (2002): Dickens e Griffith “sabiam utilizar admiravelmente


42

os traços infantis de seu público”, defendendo que a funcionalidade estrutural da narrativa

de Griffith advém justamente de sua simplicidade, de sua superficialidade exterior. Esta

ligação entre infantil e adulto passa por alguns níveis de leitura no texto de Eisenstein, tais

como as ligações entre velho e novo, passado e presente, inocência e não inocência e,

principalmente, entre o provinciano e o moderno. Vejamos a seguir de qual forma essas

relações são fundamentadas por ele e quais suas razões.

“A chaleira começou...”, assim abre Dickens o seu The cricket on the earth e

assim também abre Eisenstein seu artigo “Dickens, Griffith e nós”, defendendo que “do

romance vitoriano, brotam os primeiros rebentos da estética do cinema norte-americano,

para sempre vinculada ao nome de David Wark Griffith” (Eisenstein, 2002, p. 176). Mas

como – pergunta Eisenstein – podemos ligar esses dois grandes nomes ignorando as suas

preclaras diferenças temporais e paradigmáticas? Como conciliar as idéias distintas de uma

Londres bucólica e pacata com uma Nova York predial e agitada? Nas palavras do teórico:

“que possível identidade há entre o Moloch da indústria moderna, o ritmo vertiginoso das

cidades e dos metrôs, o bramido da competição, o furacão das transações na bolsa de

valores, de um lado, e... a pacífica e patriarcal Londres vitoriana dos romances de Dickens,

de outro?” (Eisenstein, 2002, p. 177). Eisenstein trabalha inicialmente com um postulado de

desmistificação do ritmo proposto dentro da sociedade moderna americana. Ele coloca

que:

“No que diz respeito à velocidade do tráfego, não se pode ser subjugado por ela nas
ruas da metrópole pelo simples fato de que esta velocidade não pode existir lá. Esta
desconcertante contradição reside no fato de que os automóveis super-rápidos ficam tão
presos nos engarrafamentos que não podem se movimentar muito mais rápido do que
lesma arrastando-se de quarteirão a quarteirão, parando em cada cruzamento não devido
apenas à multidão de pedestres, mas devido ao tráfego que atravessa, rastejando à sua
frente” (Eisenstein, 2002, p. 177).
43

A partir desse argumento, Eisenstein aponta uma série de congruências que vê

entre os mundos de Dickens e Griffith. Diz, por exemplo, que os arranha-céus não passam

de casas provincianas empilhadas umas sobre as outras, que é bastante comum transpormos

uma esquina do centro comercial de prédios enormes e depararmo-nos com casas do estilo

colonial, e que muitas vezes basta seguirmos um caminho numa mesma direção para

encontrarmos a falta completa de vestígios da grande metrópole barulhenta e adentrarmos a

atmosfera de ruas quase desertas de um ambiente semi-rural.

“Freqüentemente atravessam-se regimentos de arranha-céus, que penetram muito


no país, tecendo suas densas redes de estradas de ferro à sua volta; mas, na mesma
proporção, o provinciano setor agrário dos Estados Unidos parece ter transbordado para
tudo, exceto os centros das grandes cidades; de vez em quando se dobra a esquina de um
arranha-céu e se dá de cara com uma casa em estilo colonial, aparentemente transladada
das distantes savanas da Luisiana ou do Alabama para o próprio centro da cidade febril”
(Eisenstein, 2002, p. 178).

Assim, o que o autor coloca é que havia uma onda de provincianismo que

impregnava as cidades, para além de exemplos isolados como casas destoantes e igrejas

coloniais nos centros da metrópole. “Este bom e velho provincianismo se insinuou nos

apartamentos, aninhando-se em bando ao redor das lareiras, nas macias cadeiras do vovô e

nos paninhos de renda que cobrem os milagres da técnica moderna: refrigeradores,

máquinas de lavar, e rádios” (Eisenstein, 2002, p. 178). A imagem dos paninhos cobrindo

os aparelhos eletrônicos é particularmente sugestiva. Porém, como se é de imaginar, tal fato

não podia parar na superfície sensível das coisas: “é-se surpreendido principalmente com a

abundância de elementos provincianos e patriarcais na vida e nas normas de conduta das

camadas médias da cultura norte-americana” (Eisenstein, 2002, p. 178). Ora, não seria

justamente essa camada que o cinema buscava atingir com seu desenvolvimento narrativo,

como destacado por Arlindo Machado nas páginas acima? Não seria exatamente essa a

camada detentora do registro “oficial” da cultura a qual o cinema deveria atingir, e que,
44

para tanto, precisaria primeiramente aprender a contar histórias? Ao que parece, Eisenstein

foi um dos primeiros a perceber que a ligação entre Dickens e Griffith ultrapassava os

limites da narratologia e se estendia aos terrenos culturais de criação e assimilação da obra

estética.

“Para entender Griffith, deve-se visualizar uns Estados Unidos composto de mais
do que visões de automóveis velozes, trens aerodinâmicos, fios de telégrafo, inexoráveis
correias de transmissão. É-se obrigado a compreender este segundo rosto dos Estados
Unidos também – os Estados Unidos tradicionais, patriarcais, provincianos. E então se
ficará consideravelmente menos espantado com esta vinculação entre Griffith e Dickens”
(Eisenstein, 2002, p. 178).

Contudo, há de se notar que, segundo Eisenstein, não é através de uma negação

do moderno e do tecnológico que a narrativa de Griffith se baseia na de Dickens, ao criar

uma estética cinematográfica compreensível e admirada pela cultura “oficial”. De acordo

com o teórico, isto acontece através de uma relação simbiótica entre as duas formas

ontológicas e culturais da América do Norte: a provinciana e a citadina. Posto em outras

palavras, não é apenas sobre o caráter provinciano de emissão e reconhecimento de códigos

dickensoniano que Griffith constrói sua narrativa. Ela é construída ao mesmo tempo sobre o

caráter moderno e dinâmico da obra do escritor. “O mais curioso é que Dickens parece ser

a fonte de ambas as linhas do estilo de Griffith, que refletem as duas faces dos Estados

Unidos: os Estados Unidos Provincianos e os Estados Unidos Superdinâmicos” (Eisenstein,

2002, p. 178). Parece que é bastante plausível e compreensível a colocação de Eisenstein a

respeito do modo como Griffith foi influenciado por Dickens sob o paradigma da

provincialidade de sua narrativa. Essa proposição pode ser descrita através da seguinte

sentença: os espectadores reconheciam, gostavam e compreendiam a narrativa do cineasta

por viverem, de certa forma, sobre os mesmos preceitos provincianos dos quais ambas as
45

narrativas eram carregadas. Assim, pode-se dizer que a utilização e o reconhecimento dos

elementos narrativos de uma tradição vitoriana no cinema pelos espectadores de Griffith foi

fundamental para que o cinema como um todo avançasse no terreno, até então hostil, da

narração fílmica.

Mas como compreender a segunda idéia defendida por Eisenstein de que não é

somente nos elementos vitorianos e realistas da obra do escritor que o cineasta baseou a sua

narrativa? Onde encontrar em Dickens os fundamentos de uma narrativa dinâmica e

moderna, representante da América do Norte automobilística e febril, que comprovem essa

teoria? A resposta apontada por ele estaria em: “A chaleira começou...”, de The Cricket on

the Earth. Essa chaleira representa para Eisenstein o típico primeiro plano de Griffith: “um

primeiro plano saturado da atmosfera típica de Dickens, com a qual Griffith, com igual

mestria, sabe envolver a dura vida em No Oeste Distante 5 , e a face moral gelada de seus

personagens”, por exemplo (Eisenstein, 2002). Ainda que Eisenstein cite um exemplo

tardio da obra do cineasta, os primeiros planos narrativos já estão presentes nos seus filmes

desde o início da década de 1910, embora ainda de forma bastante experimental. Arlindo

Machado afirma que em 1915 já havia sido consolidado o processo de desenvolvimento de

um modelo fílmico baseado nas montagens lineares e paralelas capaz de ser inteligível ao

espectador (Machado, 2002, p. 99).

Eisenstein exemplifica o desenvolvimento do segundo lado de Griffith citando

Linda Arvidson Griffith, a respeito de uma discussão ocorrida na pré-produção de Enoch

Arden 6 :

5
Título original: Way Down East, realizado por Griffith, Estados Unidos da América, 1920.
6
Na verdade há duas versões desse filme, After Many Years, filmado em três dias, entre setembro e outubro
de 1908 e baseado no poema “Enoch Arden”, de Alfred Tennyson, realizado por Frank Woods; e Enoch
46

“Quando o Sr. Griffith sugeriu que a cena de Annie Lee esperando pela volta do
marido fosse seguida de uma cena de Enoch naufragado numa ilha deserta, foi mesmo
muito perturbador. ‘Como pode contar uma história indo e vindo desse jeito? As pessoas
não vão entender o que está acontecendo.’
‘Bem’, disse o Sr. Griffith, ‘Dickens não escreve desse modo?’
‘Sim, mas isso é Dickens, este é um modo de se escrever um romance; é diferente’
‘Oh, não tanto; escrevemos romances com imagens; não é tão diferente’” (Linda
Griffith citada por Eisenstein, 2002, p. 180).

O próprio Griffith dá testemunho da influência decisiva de Dickens em sua obra,

numa entrevista a A. B. Walkey, do jornal The Times londrino, em 26 de abril de 1922.

Walkey escreveu:

“Ele (Griffith) é um pioneiro, ele próprio admite, em vez de inventor. Isto quer
dizer que ele abriu novos caminhos na terra do cinema, tendo como guia idéias fornecidas
a ele. Suas melhores idéias, parece, surgiram a partir de Dickens, que sempre foi seu autor
favorito... Dickens inspirou o Sr. Griffith com uma idéia, e seus empregadores (meros
homens de negócio) ficaram horrorizados; mas diz o Sr. Griffith, ‘fui para casa, reli um
dos romances de Dickens, e voltei no dia seguinte para dizer-lhes que poderiam ou usar a
minha idéia ou despedir-me’” (A. B. Walkey, citado por Eisenstein, 2002, p. 183).

Contudo, não seria correto afirmar que apenas nas obras desse escritor em

particular encontram-se os elementos da narrativa que despertaram no diretor as suas idéias.

Mas qual foram afinal as contribuições desse cineasta para a narratologia do cinema? O

filósofo francês Gilles Deleuze, em seu livro L’Image mouvement, destaca três formas

principais de montagem criadas por Griffith. Segundo ele, Griffith considera a montagem

“como uma organização, um organismo, uma grande unidade orgânica” 7 (1983, p. 47). E

dentro desse organismo, o cineasta separa, numa relação binária, as partes significantes que

formarão o conflito no processo de montagem. “O organismo é, a princípio, uma unidade

Arden, baseado no mesmo poema e realizado por Griffith três anos mais tarde. Essa versão era bipartida, cada
parte com 11 minutos de projeção. (N. Sergei Eisenstein).
7
Griffith concebe a montagem “comme une organisation, un organisme, une grande unité organique”
(Tradução nossa)
47

que se divide, isto é, um conjunto de partes distintas: existem os homens e as mulheres, os

ricos e os pobres, o urbano e o rural, o norte e o sul, os interiores e os exteriores, etc.” 8

(Deleuze, 1983, p. 47). Essas partes distintas são os blocos da narrativa binária que

constituem a primeira forma de montagem griffithiana destacada por Deleuze: montage

alterné parallèle. A montagem paralela é caracterizada pelo encadeamento de trechos

distintos de narrativa que se alternam segundo o ritmo proposto pelo realizador.

Essa alternância das dimensões narrativas é seguida de uma outra inovação por

parte do cineasta, a saber, o uso do primeiro plano como elemento constituinte da

montagem, o que levará, ao conjunto fílmico objetivo, certa subjetividade. Tal

subjetividade tem como meta a extração de efeitos dramáticos através do ângulo da

câmera, que foca o conjunto da cena e posteriormente filigranas físicas dos atores, como

lágrimas, movimentos das mãos ou sorrisos. O clássico exemplo da utilização desse tipo de

montagem é uma cena do filme Intolerância, na qual a mulher ouve a sentença de morte do

marido, pelo crime que ele não havia cometido. Nessa cena nunca vemos a figura da atriz

por completo, apenas uma alternância em primeiros planos de suas mãos e rosto.

“É instrutivo notar que o plano aproximado aparece na obra de Griffith justamente


nos filmes dramáticos e intimistas, pois a caracterização de estados psicológicos
semelhantes àqueles que se poderiam ler nos romances exigiam que se pudessem
observar os protagonistas de perto, isolar uma face transformada de dor, tornar visível
uma mão que se contorce num gesto nervoso” (Machado , 2002, p. 110).

8
“L’organisme est d’abord une unité dans le divers, c’est-à-dire un ensemble de parties différenciées: il y a
les hommes et les femmes, les riches et les pauvres, la ville et les campagne, le Nord et le Sud, les intérieurs
et les extérieurs, etc (tradução nossa)
48

Fotogramas de Intolerância mostram a seqüência de alternância de primeiros planos de Griffith

A terceira forma de montagem inaugurada por Griffith, na visão de Deleuze, é a

chamada montage concourant ou convergent. Como o próprio nome sugere, esse tipo de

montagem é baseada na alternância de ações que convergem para um mesmo fim.

“É a terceira figura de montagem, montagem convergente ou de convergência, a


qual faz alternar os momentos de duas ações que vão se encontrar. E quanto mais as ações
convergem, quanto mais se aproxima o seu encontro, mais rápida é a alternância
(montagem acelerada)” 9 (Deleuze, 1983, p. 49).

Com estas três formas distintas de montagem, Deleuze propõe que o cinema

americano como um todo absorveu da obra de Griffith um modelo sólido e característico,

baseado numa narrativa orgânica, representacional e conjuntiva, que se dirige a um fim,

induzida pelas vias de um duelo convergente de ações. “A montagem americana é

orgânico-ativa” 10 (Deleuze, 1983, p. 49), isto é, ela é baseada em um sistema orgânico no

qual as partes menores são constitutivas e funcionais, e essas partículas são baseadas

sobretudo na ação. Assim, o filósofo defende que é “enganoso censurar ele [Griffith] de ser

subordinado ao processo de narração; de fato o que se nota é o contrário, é a narratividade

9
“C’est la troisième figure du montage, montage concourant ou convergent, qui fait alterner les moments de
deux actions qui vont se rejoindre. Et plus les actions convergent, plus la jonction approche, plus l’alternance
est rapide (montage accéléré). (tradução nossa).
10
“Le montage américain est organico-actif” (tradução nossa).
49

que surge de sua concepção de montagem” 11 (1983, p. 49). Ou seja, a narratologia

griffithiana – e junto com ela uma narratologia do cinema burguês americano – só se torna

possível devido ao fato de se ter conseguido formular, através do processo de montagem,

um código específico capaz de fazer insurgir de si mesmo a imagem indireta do tempo, ou,

se preferirem, capaz de emanar a idéia geral da narrativa.

2.2 – A montagem eisensteiniana

As inovações práticas da montagem griffithiana ganhariam, pouco mais tarde,

proposições teóricas igualmente inovadoras por parte do cineasta e teórico russo Sergei

Eisenstein. Este engenheiro, filho de família aristocrática, se firmou no meio intelectual e

artístico com notável rapidez e precisão, já tendo sido comparado por alguns pesquisadores

de peso com um meteoro ou uma explosão. No prefácio do livro Eisenstein e o

construtivismo russo, de autoria de François Albera, Luiz Renato Martins destaca que:

“Eisenstein na verdade não se forma, mas explode como cineasta e teórico. Apresenta, na

virada dos trinta anos, em 1928-9, já um conjunto ímpar de realizações cinematográficas,

de reflexões escritas e de intervenções em debates que lhe granjeiam a atenção mundial”

(2002, p. 11). Interessante notar que Eisenstein aparece num momento no qual

borbulhavam as proposições e conflitos formalistas em torno do literário, da Estética e da

Filosofia e Ciência da Linguagem, proposições que, de uma forma genérica, sempre

testavam os limites entre a teoria e a prática, fossem elas políticas, formais ou estéticas. O

11
“il est faux de lui reprocher de s’être subordonné à la narration; c’est le contraire, c’est la narrativité qui
découle de cette conception du montage” (tradução nossa).
50

que se tem com Griffith – a extração de formulações e técnicas de montagem de uma série

consolidada, com vistas à criação de uma narratologia geral da forma fílmica – pode-se ver

amplificado e ramificado, em Eisenstein, para outras áreas da arte que não apenas o cinema.

A teoria eisensteiniana é pluralista no que diz respeito ao ângulo de alcance de sua

envergadura semiótica.

O objetivo da condução que, neste trabalho, veio desde os cientistas que usavam

o aparato cinematográfico em suas experiências, passando as vistas pela curta e complexa

história da narratividade do filme, não é outro senão o de contextualizar o surgimento e a

teoria eisensteiniana da montagem. Eisenstein, embora tido como um intelectual de vulto

preclaro no meio teórico, não surgiu do nada. Ele deve seus acertos, mais do que seus erros,

a essa curta tradição que o precedeu. Esta breve atualização nos servirá não apenas nos

entendimentos vindouros acerca do teórico, mas também na transposição semiótica dos

conceitos que se operará mais adiante. A relação entre Griffith e Eisenstein ainda gerará

frutos, pois aquele é tido para este como influência primordial de seus trabalhos.

Pode-se dizer que a produção escrita de Eisenstein sobre a montagem é bipartida,

sendo a primeira fase, a que vai de 1923 a 1930, executada sob o paradigma do cinema sem

áudio, e a segunda, a que vai de 1930 a 1940, já sob o prisma do cinema sonoro. “O período

de 1923 a 1926 é marcado pelo cineasta pela célebre montagem de atrações. [Na qual] no

decorrer de um espetáculo teatral ou cinematográfico, a inserção de um item exterior à ação

tem a finalidade de abalar a platéia” (Augusto, 2004, p. 64). Esse período da criação

eisensteiniana nos vai ser de pouca serventia, primeiro porque é uma teoria que apresenta

diversos problemas, além de ser datada e fincada num lugar histórico e geográfico assaz

próprio; em segundo lugar, por ter sido suplantada pelo advento de novas teorias, como a
51

montagem intelectual 12 , formuladas por Eisenstein na segunda fase de sua criação. Não que

não haja falhas e controvérsias nessa próxima fase, a que se inicia em 1930; contudo, essas

são mormente de caráter instrumental, passíveis de reajustes através da teoria peirciana,

como veremos adiante.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Sergei Eisenstein apregoava, mais que

nunca, a necessidade de se dedicar à montagem fílmica um tratamento especial, tendo em

vista primordialmente as questões de produção e recepção de efeitos psicologizantes. O

motivo dessa preocupação é bastante claro para quem acompanhou de algum modo a

criação teórico-prática deste cineasta: é extremamente político. O que Eisenstein buscava

através da montagem, no período da guerra, era fazer “uma narrativa que cont[ivesse] o

máximo de emoção e de vigor estimulante (Eisenstein, 2002, p. 14).

O que ele acabou criando com isso foi um robusto e ágil corpo teórico que pode

fundamentar metodologias e orientar ideários em diversas áreas do saber.

Em um artigo intitulado “Imagem e palavra”, Eisenstein expõe o caráter sintético da

sua visão de montagem. Ele inicia o texto dizendo que a montagem não é uma

particularidade do cinema, e que pode ser encontrada na metodologia da criação de todas as

séries artísticas. Na epígrafe desse texto podemos ler uma citação de John Livingstone

Lowes, que diz:

“Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi transformada, pela intensidade
da imaginação de um ato criativo instigante. ‘Pense bem’, diz Abt Vogler sobre o milagre
análogo do músico:
Pense bem: cada tom de nossa escala em si é nada; está em toda parte do mundo
– alto, suave, e está tudo dito. Dê-me, para usá-lo! Eu o misturo com mais dois em meu
pensamento; eis aí! Vocês viram e ouviram: pensem e curvem a cabeça!

12
Embora a Montagem Intelectual seja também desenvolvida na primaira parte da criação eisensteiniana, é
sobre a abordagem dada a ela na segunda fase que este trabalho se concentra.
52

Dê a Coleridge uma palavra vívida de alguma antiga narrativa; deixe-o misturá-


la a outras duas em seu pensamento; e então (traduzindo termos musicais para termos
literários), a partir de três sons ele não formará um quarto som, mas uma estrela”. (Lowes,
citado por Eisenstein, 2002, p. 13).

A alusão à música abre um problema temporal para a literatura. Em termos

musicais, podemos, utilizando dois ou mais tons, formar melodias ou harmonias. A melodia

é o encadeamento dos tons numa linha temporal, a harmonia é a união deles numa execução

simultânea. A dúvida que fica é se podemos falar em montagem harmônica na literatura ou

se devemos ficar circunscritos à montagem melódica. Esse problema não foi levantado por

Eisenstein; por isso, num primeiro instante vamos entender a epígrafe escolhida pelo

teórico como aludindo à composição linear da música, i.e., à composição melódica, para

retornarmos ao problema da harmonia mais adiante.

Eisenstein, revendo a sua própria teoria da montagem, afirma que:

“Trabalhando desde o início este material e estes fatos [montagem e síntese], era
natural especular principalmente sobre as potencialidades da justaposição. Foi dada
menor atenção à análise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atenção não
teria sido suficiente por si mesma. A história provou que este tipo de atenção, dirigida
apenas ao conteúdo de planos isolados, na prática levou o declínio da montagem ao nível
de “efeitos especiais”, “seqüências de montagem”, etc., com todas as suas
conseqüências” (Eisenstein, 2002, p. 17).

O teórico defende que a ênfase dada, no início da especulação teórica sobre a

montagem no cinema, se concentrou, erroneamente, apenas no ato e no resultado da

justaposição de cenas. E que: “teria sido necessário voltar à base fundamental que

determina igualmente todo o conteúdo dos planos isolados quanto a justaposição

compositiva dos conteúdos independentes entre si, isto é, voltar ao conteúdo do todo, das

necessidades gerais e unificadoras” (Eisenstein, 2002, p. 17). Em outras palavras, teria sido

necessário se buscar um aperfeiçoamento da metodologia de um porquê consciente da ação


53

de justaposição de fragmentos fílmicos. “Deveríamos ter-nos preocupado mais em

examinar a natureza do próprio princípio unificador”. (Eisenstein, 2002, pág. 17). O que

Eisenstein diz é que a atenção se voltou aos casos paradoxais nos quais o resultado da

junção fílmica se encontra à mercê do acaso, do não esperado. Assim, preocupar-se com o

princípio unificador é preocupar-se com as formas de premeditar, ou predeterminar um

efeito geral e consciente da ação de justaposição.

Essa concepção de montagem considera que cada fragmento deixa de ser um

elemento independente e passa a ser uma representação particular do tema geral da obra. É

através desses elementos que a imagem, a ser captada pelo espectador, surge. Os elementos,

os fragmentos utilizados na montagem perdem seu caráter individual e passam a ser

encarados como representações importantes e constituintes daquilo que o filme quer

mostrar. Cada um deles assume uma função estrutural no conjunto fílmico, e não apenas

para suscitar efeitos psicologizantes, como as seqüências de montagem e os efeitos

especiais citados por Eisenstein. Assim, a montagem eisensteiniana abdica do trabalho com

fragmentos para trabalhar com representações, e se recusa a buscar a criação de efeitos,

para buscar uma imagem.

Esses dois conceitos, imagem e representação, são pormenorizados por Eisenstein

através de uma alusão ao relógio, como se segue:

“Usaremos um exemplo para demonstração. Tomemos um disco branco de


tamanho médio e superfície lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes é
colocado um número na ordem consecutiva de 1 a 12. No centro do disco são fixadas
duas varas de metal, que se movem livremente sobre sua extremidade fixa, pontudas nas
extremidades livres, uma do tamanho do raio do disco, a outra um pouco mais curta.
Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcar o número 12, e a mais
curta, consecutivamente apontar para os números 1, 2, 3 e assim por diante, até o número
12. Isso implicará uma série de representações geométricas de relações consecutivas das
duas varas de metal, expressadas nas dimensões 30, 60, 90 graus, e assim, até 360 graus”
(Eisenstein, 2002, p. 19).
54

Interessante notar como o teórico descreve o relógio minuciosamente em seus

termos físicos. Ao contrário disso poderia ter dito: “imaginemos um relógio analógico”.

Contudo, não o fez. Motivo disso é que Eisenstein não está descrevendo um relógio, mas

como é representado, ou como representa. Assim, se colocarmos nesse aparato descrito um

mecanismo que movimente os ponteiros, obedecendo determinada cadência, poderemos

extrair dele uma imagem: a imagem do tempo. A representação, então, é o conflito dos

ponteiros, a sua montagem, que gera determinada imagem dependendo da forma com a

qual foram montados. Para que isso aconteça é preciso a presença de um leitor, que tem o

papel de re-ver a montagem apresentada e dela extrair sua imagem.

Assim como nesse próximo exemplo, citado por Eisenstein, do romance Ana

Karênina, de Tolstoi : “Quando Vronsky olhou para seu relógio, na varanda dos Karenin,

estava tão preocupado, que olhou para os ponteiros no mostrador do relógio e não viu as

horas”. (Tolstoi citado por Eisenstein, 2002, p. 19). O que se nota é que ao personagem não

surge a imagem do tempo. Seu olhar foi confinado, pela aflição que vivia no momento,

apenas ao plano da representação geométrica das horas, formada pela disposição dos

ponteiros na plataforma codificada. Não é suficiente apenas ver, algo mais precisa

acontecer com a representação para que ela se despoje de seu caráter geométrico e passe a

ser percebida como imagem de algo particular, a qual, embora dependa da matéria para se

manifestar, é elemento de uma outra ordem conjuntiva. No exemplo provido por Tolstoi,

pudemos ver o que acontece quando esse processo de se ler representação/imagem não

acontece.

Mas o que viria a ser esse processo na visão de Eisenstein? O autor explica que

“uma determinada ordem de ponteiros no mostrador do relógio suscita um grupo de


55

representações associadas ao tempo, que correspondem à hora determinada” (Eisenstein,

2002, p. 19). Conforme esse pensamento, podemos dizer que quando olhamos no relógio e

vemos que são cinco horas da tarde, “nossa imaginação está treinada para responder a esse

número recordando cenas de todos os tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora”

(Eisenstein, 2002, p. 19). Assim, é natural que alguns se lembrem do sabor do café, outros

do tempo que falta para deixarem o local de trabalho, outros da amenização da temperatura,

ou talvez da particular composição celeste própria deste horário. Mas o que interessa

destacar é que, em qualquer caso, cenas (representações) são desencadeadas pela

representação geométrica das cinco horas.

Assim, o que forma a imagem são representações que desencadeiam representações.

A imagem é um conjunto das representações que são inter-relacionadas e que se encontram

sob o mesmo jugo de desencadeamento no plano sensível.

Destarte, o processo de criação particular de imagens fílmico e literário, segundo

Eisenstein, pode ser descrito através das fases: leitura/decodificação de representações do

plano material; assimilação das representações pós-decodificadas e desencadeamento das

outras representações constituintes do ser; suscitamento das imagens. A fase do meio tende

a se escamotear com a automatização dos sentidos. Eisenstein chama isso de “as leis de

economia da energia psíquica” (Eisenstein, 2002, p. 20). Ele defende que: “Ocorre uma

‘condensação’no interior do processo acima descrito: a cadeia de vínculos intermediários

desaparece e se estabelece uma conexão instantânea entre o número e a percepção do tempo

ao qual corresponde”, e que, se por algum motivo precisarmos “estabelecer as conexões

entre uma representação e a imagem a ser suscitada por ela na consciência e nos

sentimentos, somos inevitavelmente impelidos a recorrer novamente a uma cadeia de

representações intermediárias que, juntas, formam a imagem” (Eisenstein, 2002, p. 20).


56

Outro exemplo: Eisenstein, numa temporada em Nova York, diz ter achado

extremamente difícil formar imagens das ruas e avenidas da capital, e crê que esta

dificuldade se deveu, em suma, ao fato de que as ruas e avenidas da cidade eram

identificadas por números (quinta avenida, rua 42, etc.) e não por nomes, forma com a qual

o autor se sentia mais familiarizado. Assim, ele comenta que, para produzir as imagens das

ruas, teve que interiorizar em sua memória as características arquitetônicas de cada uma

delas, de forma que seu cérebro passou a reagir de forma diferente aos sinais numéricos. O

sinal 42 fazia surgir em sua mente um conjunto de características distintas do sinal 45, por

exemplo. Em um primeiro momento, o número 42 fazia surgir, não sem esforço, na mente

do teórico, uma série de características físicas, tais como bancos, lojas, teatros, mas,

segundo ele, isso por si ainda não lhe oferecia uma verdadeira percepção da rua, uma vez

que estes elementos ainda não se consolidavam num todo imagético e nem eram suscitados

de forma simultânea, mas sim através de uma cadeia fragmentária. Em um segundo

momento, todos esses elementos passam a ser convocados em sua unidade

instantaneamente após a menção do sinal 42. O que Eisenstein parece querer ressaltar aqui

é justamente o processo de minimalização do segundo estágio da representação. Se, num

primeiro momento, ele precisava se esforçar para lembrar as características de uma rua –

através de uma cadeia de rememorização –, após ter sido exposto à sua representação

numérica; num segundo momento, quando ele já se encontrava mais familiarizado, essas

características surgiam em sua mente instantaneamente e de forma simultânea, formando o

conjunto de representações o qual ele conceitualiza como: Imagem.

Assim: “A imagem da rua começa a emergir e a viver na percepção exatamente

como, durante a criação de uma obra de arte, sua imagem total, única, reconhecível, é

gradualmente formada por seus elementos”. Ele continua: “Em ambos os casos – seja uma
57

questão de memorização, ou o processo de percepção da obra de arte –, o método de

entrada na consciência ou nos sentimentos, através do todo, e no todo, através da imagem,

permanece fiel a esta lei” (Eisenstein, 2002, p. 21). Importante notar: a imagem é montada,

em nossa percepção e consciência, como uma imagem total que contém ou acumula todos

os elementos isolados.

Pudemos notar que alguns conceitos foram postulados através daquilo que

Eisenstein chamou de processo de lembrança, no exemplo das ruas nova-iorquinas.

Notamos que, no primeiro estágio de assimilação das características urbanas, presenciamos

uma ação mental de reunião das representações; no segundo, de um resultado dessa

reunião. A conseqüência deste resultado, como vimos, é o gradual esvaecimento do

processo de rememoração das representações na nossa mente, automatizando o

reconhecimento da imagem.

O conceito de imagem será doravante pormenorizado. Com o intuito de abrir as

possibilidades de apreensão do termo, e das possibilidades de escolha acerca de sua melhor

forma estrutural para este trabalho, ele será revisto de acordo com a sua relação com o

conceito de representação, desde o final do século XVI, período no qual se nota um

entrelaçamento dos dois em função de uma episteme que governava os saberes e os dizeres.
58

Capítulo III – Problemas da Imagem e da Representação

3.1 – Apontamentos sobre a historicidade do conceito de imagem

A distinção entre imagem e representação sofreu inúmeras alterações no curso do

século XVI até hoje. Para se compreender a montagem proposta pelos teóricos do cinema

no século XX, a diferenciação entre estes dois conceitos deve ser bastante clara. E, para

tanto, deve se ter em mente que eles são móveis e passíveis de alterações temporais e

culturais. Assim, proponho que reconstruamos esta época através dos trabalhos de alguns

teóricos, nossos contemporâneos, a fim de abordar com mais eficácia esses dois conceitos e

seus desdobramentos no século XX.

No capítulo “Representar”, de As palavras e as coisas, Michel Foucault se refere ao

Dom Quixote como o negativo do mundo do Renascimento, aludindo-se à mudança

epistemológica ocorrida no final deste período, no qual

“a escrita cessou de ser a prosa do mundo; as semelhanças e os signos romperam


sua antiga aliança; as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio; as coisas
permanecem obstinadamente na sua identidade irônica; não são mais do que o são; as
palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhanças para preenchê-las; não marcam
mais as coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira. (...) A erudição, que
lia como um texto único a natureza e os livros é reconduzida às suas quimeras:
depositados nas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem não têm
como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam. A escrita e as coisas não
se assemelham mais. Entre elas, Dom Quixote vagueia ao sabor da aventura” (Foucault,
2002, p. 65-6).

Não que a linguagem se torne impotente; antes disso, ela recebe novos poderes

intrínsecos. A linguagem deixa de ser referência imediata das coisas e passa a representar

as coisas. Como exemplo disso, Foucault ressalta a relação das duas partes constituintes do
59

romance de Cervantes em questão. Na primeira parte, Dom Quixote, influenciado por sua

vasta leitura de romances de cavalaria, parte em busca das realizações que encontrava

nessas obras. Essa busca é, na verdade, um limiar conflitante entre duas épocas distintas, as

quais Foucault denomina: Renascimento e Idade Clássica. O Cavaleiro da Triste Figura

encarna as novas relações presentes no jogo entre a semelhança e os signos, tentando

sempre ver o mundo através da sua similitude numa era onde tal forma não mais se encaixa;

ao contrário, o conduz ao erro e às ilusões. A Dom Quixote cabe a tarefa de provar que os

livros dizem a verdade e são a linguagem mesma do mundo, e sua aventura nada mais é do

a decifração do mundo; do que a busca incessante de figuras corroborantes aos livros. A ele

cabe “transformar a realidade em signos. Em signo de que os signos da linguagem são

realmente conformes às próprias coisas” (Foucault, 2002, p. 64).

O caminho de Dom Quixote da busca das similitudes é a refração da episteme

renascentista, na qual se lia o mundo através do ato de se despertar as analogias dos signos

adormecidos. Até quando a prova se dava contra essa leitura, a culpa recaía ainda mais

veemente em favor do Mesmo. Pois, ainda que as ovelhas, lavadeiras e estalagens não eram

vistas por todos como exércitos, princesas e castelos, ele achava explicação para esse fato –

como já era previsto nos livros que lera – através do encantamento. E esse encanto era mais

um motivo de crença na veracidade dos signos, mais um motivo para se crer na legível

verdade das semelhanças.

A segunda parte do romance assume o papel que as obras lidas pelo Fidalgo

possuíam na primeira. Nessa segunda metade, Dom Quixote reencontra personagens que

leram a primeira metade, e que reconhecem nele a figura de herói do livro. Essa parte, lida

pelos personagens, não pode ser lida pelo cavaleiro, uma vez que ele era a história, ele era a

própria ação e personagem desempenhante. Agora Dom Quixote assume a sua realidade.
60

Realidade/palavra, realidade/linguagem: realidade/herói. Doravante, ele não deve mais

seguir os passos de cavaleiros ulteriores, mas sim, seus próprios passos, reafirmar as suas

próprias verdades e feitos. Ele é, não em relação ao mundo, mas em relação às marcas

verbais consigo mesmas. Assim, as palavras se acham cerradas na sua natureza de signos, a

exemplo de Dom Quixote: “longo grafismo magro como uma letra, [que] acaba de escapar

diretamente da fresta dos livros” (Foucault, 2002, p. 63).

Para Foucault:

“Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel
das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes:
pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa
soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que
aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação”
(Foucault, 2002, p. 67).

Quando similitude e signos se vêm desconectados, duas experiências se apresentam

e duas figuras aparecem. A primeira é a do louco, posto não como doente, mas como

construto desviado e mantido como o alienado na analogia. É aquele que “toma as coisas

pelo que não são e as pessoas umas pelas outras; ignora os amigos, reconhece os estranhos;

crê desmascarar e impõe uma máscara” (Foucault, 2002, p. 67). Para Foucault, de acordo

com a visão que se teve do louco até o final do século XVIII, ele só era diferente na medida

em que não reconhecia a diferença, constatando semelhanças e sinais da semelhança em

toda parte. A segunda figura é a do poeta, que é aquele que “por sob as diferenças

nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas,

suas similitudes dispersadas” (Foucault, 2002, p. 67-8). Do poeta emana um outro discurso,

esse para além, e apesar, da afirmação dos signos; um discurso que remonta o tempo no

qual as palavras reluziam na semelhança genérica das coisas.


61

Entre essas duas figuras surge um espaço epistêmico onde as identidades e

diferenças superam as similitudes no jogo de se conhecer e de se dizer o mundo. É a

conhecida relação entre loucura e poesia, não a de caráter platônico da inspiração delirante,

mas de uma nova fronteira entre a linguagem e as coisas. A similitude perde terreno, passa

a ser tida como caminho para o erro.

Outro teórico que de certa maneira se dedica aos problemas do século XVII é Stuart

Hall (2005), ao defender seus preceitos do sujeito iluminista. O ponto de vista dele nos é

particularmente interessante por possibilitar um diálogo didático e esclarecedor, que torna

mais claras as idéias de Foucault a partir do contraste entre duas teorias. Se para Foucault o

homem do século XVII possui certas características intrínsecas, para Hall ele possui outras.

É necessário nos determos nos esclarecimentos desse período para que não corramos o

risco de, mais tarde, nos distanciarmos demasiadamente da realidade epistêmica de cada

época, e por conta disso lermos os textos, aí produzidos, com olhares desviados pela

distância temporal, cultural e ontológica.

Não há de se perder de vista que os empreendimentos aos quais se lançaram Hall e

Foucault têm caráter dessemelhantes; contudo, há, no cerne das duas questões, bastantes

semelhanças.

Se, por um lado, a identidade cultural do sujeito do Iluminismo defendida por Hall

tenta explicar algumas das características principais da constituição interior desse sujeito,

por outro lado ela acaba por expor os movimentos que esse interior impelia ao exterior,

delimitando um conjunto universal das relações limitantes, das quais se extraíam todas as

possibilidades relacionais. Se a identidade cultural apresenta um viés categoricamente

limitante das relações possíveis, hão de se ver incluídas também nesses limites as relações
62

de conhecimento. Tal fato já nos autoriza uma aproximação cautelosa entre os conceitos de

episteme e identidade cultural

Se para Hall o Iluminismo caracteriza uma identidade cultural do sujeito como

sendo algo de ordem plana, de uma mutabilidade concentrada na imutabilidade, nossa

tarefa passa a ser a de identificar em Foucault uma caracterização mais aprofundada dessa

malha política e cultural que envolvia essa identidade centrada. Segundo Roberto Machado,

em seu livro Foucault, a filosofia e a literatura, uma das teses centrais de As palavras e as

coisas é a de que apenas nas sociedades modernas – e isso quer dizer do final do século

XVIII e início do XIX até os dias atuais – se pensou o homem como problema específico.

“Não existe, rigorosamente falando, saberes do homem na Grécia antiga, na Idade Média,

no Renascimento ou mesmo no Classicismo” (Machado, 2000, p. 85). Ele aponta também

para a clareza da influência nietzschiana deste postulado, uma vez que teria sido Nietzsche

o primeiro filósofo a situar, na filosofia de Kant e seu projeto de limitação do conhecimento

do homem, na separação da ciência positiva da teologia, na Revolução Francesa e seu

ideário, no romantismo e sua simpatia pelo doentio, etc., o marco da aparição do homem

pela primeira vez como cerne dos saberes, dividindo-se na dupla posição de objeto de

conhecimento e de sujeito que conhece.

Desta forma, o primeiro desafio que Foucault nos apresenta, e que não parece ser

percebido em Hall, é o de transpormos as mentes à episteme clássica, em um trabalho

especificamente arqueológico. Ele defende que há um abismo de diferenças entre as formas

pelas quais nós enxergamos a nós mesmos e àqueles que séculos atrás experienciavam e

conheciam o mundo. Talvez seja essa a diferenciação crucial que deva ser feita entre as

visões do sujeito iluminista e o classicista, inseridos cada qual no seu postulado teórico. Se

Stuart Hall nos apresenta a faceta simplista de um sujeito do passado, nos indica que possui
63

uma preocupação extremamente internalista do problema, ao contrário de Foucault, e ainda

que, quando passa a tratar do sujeito pós-moderno, se esqueça de projetar, para as suas

premissas fundacionais, um dispositivo conector capaz de fazer a transação entre os

problemas internalistas do sujeito iluminista e os problemas externalistas do sujeito pós-

moderno. Mesmo levando-se em conta a relação internalista/externalista do sujeito

sociológico com a modernidade, defendida por Hall em seu texto, a ponte não se completa

– o que acaba por levar as concepções de um sujeito iluminista aos confins de um passado

inacessível, condenando-o, assim, ao seu eterno simplimorfismo, tornando-o cada vez mais

invisível e incógnito ao homem moderno, e ainda mascarando-o com uma falsa

simplicidade, só achada através das lentes embaçadas de uma mirada direta e sem filtros

externos do presente ao passado.

Foucault, por sua vez, é extremamente detalhista ao postular sua visão da Idade

Clássica em As palavras e as coisas, e aponta para uma preocupação mais aparente entre

externalismo e internalismo através do seu, assim chamado, método arqueológico. Isso fica

claro em As palavras e as coisas, por partir em uma busca pela episteme de cada época, e

por apontar os possíveis limites de cada uma. A busca da episteme é um trabalho de

reconstituição das evidências destruídas, que procura por uma ordem intrínseca, ou por uma

lógica interna que possibilite o conhecimento.

Quais seriam, na visão de Foucault, as principais características apresentadas na

Idade Clássica que tanto se diferenciam, em profundidade, da identidade cultural do sujeito

iluminista posto de uma forma genérica? Para ele, a episteme clássica se baseia sobretudo

na representação. Como sintetiza Roberto Machado, “o saber clássico não produz

propriamente um conhecimento empírico; é uma ordenação de signos que pretende

construir um quadro, uma imagem, uma representação do mundo” (Machado, 2000, p. 86).
64

Descartes aparece de maneira esclarecedora logo no início do capítulo

“Representar”, de As palavras e as coisas, no qual o racionalismo do filósofo vem

substituir a ordem anterior que se baseava mormente nas similitudes. A ordem das coisas,

elas mesmas, através de suas representações, ganha terreno e aos poucos assume

configurações da complexa episteme clássica defendida por Foucault.

Descartes inaugura a noção de conhecimento como ordenação das complexidades e

simplificidades do ideário presente na episteme clássica, através de uma mathesis e de uma

taxionomia. A semelhança, antes vigente como sistema, toma agora ares de exclusão e de

ponto analítico. É excluída de seu caráter primeiro de comparação e analisada e dividida em

sua diferença e semelhança. Como diz Foucault:

“A crítica cartesiana da semelhança é de outro tipo. Não é mais o pensamento do


século XVI inquietando-se diante de si mesmo e começando a se desprender de suas mais
familiares figuras; é o pensamento clássico excluindo a semelhança como experiência
fundamental e forma primeira do saber, denunciando nela um misto confuso que cumpre
analisar em termos de identidade e de diferenças, de medida e de ordem” (Foucault, 2002,
p. 71).

Tal fato leva a Idade Clássica, ao contrário da Idade Moderna, a não separar em

diferentes níveis os saberes da história natural, da gramática geral e a análise das riquezas –

são todos eles saberes analíticos, ou seja, são todos eles ordenações de idéias, de

pensamentos: de representações. Daí se extrai, por exemplo, que o homem não podia

aparecer como problema na Idade Clássica porque ele se encontrava por trás da malha

representacional. “No pensamento clássico, aquele para quem a representação existe, e que

nela se representa a si mesmo, aí se reconhecendo por imagem ou reflexo, aquele que trama

todos os fios entrecruzados da “representação em quadro” –, esse jamais se encontra lá

presente.” (Foucault, 2002, p. 424).


65

Se voltarmos a Descartes, encontraremos um esclarecimento dessa idéia. O engano

possível de uma visão internalista por parte de uma mente moderna ao perceber o cogito

como sendo o núcleo do homem que é negado em As palavras e as coisas se dá pelo fato de

se negligenciar um fator importante na transição da coisa pensante à sua representação

inserida dentro de um discurso próprio e exclusivo da Idade Clássica. “A passagem do ‘eu

sou’ para o ‘eu penso’ realizava-se sob a luz da evidência no interior de um discurso cujo

domínio e cujo funcionamento consistiam por inteiro em articular, um ao outro, o que se

representa e o que se é” (Machado, 2000, p. 92). Assim, não podemos questionar – se

estivermos compromissados com embates externalistas e internalistas, e se quisermos

respeitar a ordem intrínseca do pensamento da Idade Clássica – se há um ser genérico

contido nesse pensamento, da mesma forma que não podemos questionar se esse ser

específico (posto pelo ‘eu sou’) não foi objeto de análise de si próprio.

O próprio termo cartesiano pensar já pode nos desviar de um entendimento mais

estreito da Idade Clássica, pois, para aquele que via o mundo pelo paradigma da

representação, a linguagem e a proposição, a imagem e o pensamento, são a mesma e única

coisa. Descartes se reportava ao conceito de mente, no latim como mens e no francês como

esprit, referindo-se ao eu pensante ou consciente. Como diz na quarta parte do Discurso do

Método: “compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste

apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer

coisa material”. (Descartes, 1999, p. 62). Passado algum tempo, ele acaba por desenvolver

melhor tal concepção, quando, a propósito das Meditações, ele alvitra: “Mas o que sou eu,

então? Eu sou a rigor somente uma coisa que pensa (res cogitans), isto é, sou uma mente ou

inteligência ou intelecto ou razão” (mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio)

(Descartes, 1999 p. 263).


66

Posto isso, percebemos a quê o filósofo chama a mente, a saber, pensamentos.

Contudo, o termo é empregado de forma muito diferente daquela comumente utilizada hoje

em dia. Se seguirmos a recomendação de Russel, podemos evitar confusões se

substituirmos o termo por “fenômenos mentais”. “Antes de se chegar ao que chamaríamos

ordinariamente de raciocínio, há ocorrências mais elementares, que aparecem sob os títulos

de “sensação” e “percepção”. (...) A sensação e a percepção não contariam, na maneira de

falar comum, como pensamentos” (Russel, 1958, p. 133). Deste modo, o pensamento

cartesiano é o próprio ser pensante, a res cogitans. E esses movimentos mentais sutis e

todas as suas extensões, sejam elas corpóreas ou sociais, não podiam ser entendidos, na

Idade Clássica, como o homem e sim como sua representação.

O que se nota na Idade Clássica, desta maneira, é basicamente uma divisão

tripartida da forma de obtenção e ordenação do conhecimento, o que possibilita cada vez

mais uma organização em torno das idéias e dos pensamentos, que por sua vez poderiam

ser ordenados de tal forma a constituírem diferenças e identidades, certezas e enganos. Na

Idade Clássica o potencial de abrangência do racional limita a infinitude das semelhanças

do século XVI.

“Agora, uma enumeração completa se tornará possível: quer sob a forma de um


recenseamento exaustivo de todos os elementos que constitui o conjunto visado; quer sob
a forma de uma colocação em categorias que articula na sua totalidade o domínio
estudado; quer sob a forma de uma análise de certo número de pontos, em número
suficiente, tomados ao longo da série” (Foucault, 2002, p.76).

A comparação na Idade Clássica atinge uma certeza perfeita, dentro da cadeia

representacional que se movimenta, podendo acusar a qualquer momento qual é o elo da

corrente representacional que apresenta discordância lógica ou verossímil com o restante


67

das representações. Assim, a atividade do espírito será não mais a de aproximar as coisas

entre si sob o jugo das semelhanças, mas antes a de

“discernir: isto é, em estabelecer as identidades, depois a necessidade da


passagem a todos os graus que dela se afastam. Nesse sentido, o discernimento impõe à
comparação a busca primeira e fundamental da diferença: obter pela intuição uma
representação distinta das coisas e apreender claramente a passagem necessária de um
elemento da série àquele que se lhe sucede imediatamente” (Foucault, 2002, p. 76).

Ao receber a incumbência de discernir na Idade Clássica, o homem se põe atrás das

cortinas da representação e de lá movimenta todas as relações, incluindo-se nelas como

reflexo de si, através de uma passagem ontológica. Passagem essa que, segundo Foucault,

só será desfeita na Era Moderna, quando “a passagem ontológica que o verbo ser

assegurava entre falar e pensar acha-se rompida” (Foucault, 2002, p. 409).

O ponto mais claro ao qual se chega é que mesmo que os conceitos de identidade

cultural iluminista e de episteme clássica pareçam servir a um propósito mais ou menos

semelhante, o que se constata é que Hall e Foucault têm entendimentos conflitantes no que

diz respeito às suas respectivas definições do sujeito do século XVII. Hall coloca que

“Descartes postulou duas substâncias distintas – a substância espacial (matéria) e a

substância pensante (mente)” (Hall, 2005, p. 27). Contudo, essa relação se apresenta

extremamente confusa, e levou o filósofo racionalista a concluir que a imagem mental é

algo da ordem do material. Estamos diante de uma das doutrinas mais controvertidas de

Descartes: distinção e relação entre mente e corpo (res cogitans e res extensans).

Para John Cottingham, a tese da incorporalidade da mente se encontra dentre as

mais notáveis do filósofo, porquanto não seja correto afirmar que esteja dentre as mais bem

formuladas.

“Embora pareça ter inúmeras razões para chegar a essa tese, seus argumentos
puramente metafísicos para sustentá-la são fracos. Em primeiro lugar, sugere que sua
capacidade de duvidar que tenha um corpo, enquanto lhe é impossível duvidar que
68

existe, mostra que “ele é uma substância cuja essência ou natureza é pensar, e que
não necessita de local ou coisa material para existir, e que não deixaria de ser o que é
mesmo se o corpo não existisse” (Cottingham 1995, p. 115).
Tal argumento não pode ser convincente, já que “a capacidade que tenho de

imaginar-me sem um corpo pode dever-se unicamente à ignorância de minha verdadeira

natureza”. (Cottingham 1995, p. 115). O próprio Descartes reconheceu a fraqueza do

argumento no Discurso...; porém, ao que parece, apenas foi capaz de sofisticá-lo um pouco

mais nas Meditações, onde encontramos a concepção do eu como coisa pensante sem

extensão, e do corpo como coisa extensa sem pensamento.

A grande diferença entre Michel Foucault e Stuart Hall, em suas concepções do

sujeito, é que Hall não dá atenção ao fato de o problema cartesiano ser um problema

estritamente movido no âmbito da representação. Em outras palavras, Hall consegue

enxergar uma diferenciação entre a coisa pensante sem extensão e a coisa extensa sem

pensamento como sendo um problema contemporâneo, ao passo que Foucault se detém

ante essa informação, considerando-a como um problema formulado dentro de uma

episteme que só fazia unir representacionalmente as coisas, sejam elas extensas ou

pensantes.

Segundo Hall:

“Descartes colocou o sujeito individual no centro da mente, constituído por sua


capacidade para raciocinar e pensar. “Cogito, ergo sum” era a palavra de ordem de
Descartes: “Penso, logo existo” (ênfase minha) [sic]. Desde então, esta concepção do
sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, tem sido
conhecida como o ‘sujeito cartesiano’ (Hall, 2005, p. 27).

Defender que Descartes colocou o sujeito individual no centro da mente é esquecer

a lição de Foucault. Se tomarmos o juízo de As palavras e as coisas, diremos que o sujeito

individual nunca esteve no centro da mente, a não ser por representação, assim como todo o

resto das coisas que eram postas em evidência pelo sujeito. O discurso mantido por
69

Descartes não poderia pôr o homem no centro do conhecimento, pois, como vimos, era ele

que de trás das cortinas mexia todos os fios da representação, se enxergando também na

condição de representação.

Portanto, o postulado rarefeito de Hall acaba por ignorar um problema intrínseco

à própria colocação cartesiana do sujeito, qual seja, o problema do centro. Foucault

surpreende o sujeito clássico fora do centro proposto por Hall. Assim, enquanto um vê com

simplicidade um sujeito centrado, o outro vê uma série de fios entrecruzados de uma cadeia

representacional. Enquanto um vê o sujeito, o outro vê apenas o seu reflexo no espelho.

3.2 – A imagem na era da representação

As proposições teóricas acerca da imagem formuladas entre a primeira metade do

século XVII ao final do século XVIII não podem ser abordadas fora do contexto da

representação. Elas foram criadas em um período no qual havia uma passagem ontológica

do pensamento à representação, a qual não pode ser ignorada, sob pena de mau

entendimento conceitual.

Destarte, avaliaremos como evolveu o conceito de imagem a partir de Descartes e

como tal conceito interage frente a uma dicotomia entre espírito e matéria. Assim, se para

Eisenstein a montagem de uma obra de arte pode ser descrita através do processo de

organizar imagens no sentimento e na mente do espectador, é mister buscar o maior

entendimento possível acerca desse conceito da imagem. Descartes, Espinosa e Leibniz

formularam proposições sobre a imagem; contudo, mais especificamente neste último

filósofo encontraremos elementos esclarecedores ao nosso trabalho. Os três sistemas

desenvolvidos apresentam problemas; não obstante, trazem também soluções, sendo que
70

cabe à disciplina filosófica julgá-los e caracterizá-los, e a nós, apontar suas relações com o

pensamento estético moderno.

Os três principais problemas apontados por Cottingham na filosofia cartesiana são:

a validade da argumentação entorno da diferenciação substancial entre mente e corpo; a

conciliação desta distinção; a estrutura das transações psicofísicas envolvidas no processo

de interação. Tal fato não nos leva a concluir que Descartes ignorava as relações entre

mente e corpo, mas sim que não foi capaz de formular uma estruturação convincente dessa

relação, como mostra o trecho que se segue:

“A natureza me ensina, também por intermédio dos sentimentos de dor, fome, sede
etc., que não apenas estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que,
além disso, estou a ele vinculado muito estreitamente e de tal maneira confundido e
misturado que formo com ele um único todo. Porque, se assim não fosse, se meu corpo é
ferido, eu não sentiria dor alguma, eu que sou apenas uma coisa pensante, e só perceberia
esse ferimento por entendimento, como o piloto percebe pela vista se acontece alguma
avaria em seu navio. (...) Pois, com efeito, todos esses sentimentos de fome, de sede, de
dor etc. não passam de formas confusas de pensar que procedem e dependem da união
entre o espírito e o corpo”. (Descartes, 1999 pág. 323 - 324).

É através dessa confusa e pouco confiável explanação acerca da relação entre corpo

e mente que Descartes configura sua conceituação sobre a imagem. Segundo Sartre, uma

das maiores preocupações cartesianas, frente a uma tradição escolástica, é sem dúvida a

tentativa de separar com exatidão mecanismo e pensamento, no que se segue a redução do

corpóreo ao nível do puro mecanicismo.

“A imagem é uma coisa corporal, é o produto da ação dos corpos exteriores sobre
nosso próprio corpo por intermédio dos sentidos e dos nervos. Matéria e consciência
excluindo-se uma à outra, a imagem, a medida em que é desenhada materialmente em
alguma parte do cérebro, não poderia ser animada de consciência. Ela é um objeto, tanto
quanto o são os objetos exteriores. É, exatamente, o limite da exterioridade.”. (Sartre,
1978: pág. 39).

Assim, o conhecimento da imagem é obtido através do entendimento, ou seja, é o

entendimento voltado à impressão material surgida no cérebro que nos traz a imagem. É
71

bom lembrar que a doutrina cartesiana quer, nesse ponto, desabilitar um pensamento

escolástico sobre a imagem, o qual, segundo Descartes, e de uma forma resumida, a

concebia como pequenas figuras formadas na cabeça que estimulam a mente a idealizar

objetos. Nessa linha de raciocínio, ele propõe que a imagem surge na mente através de

algum tipo de representação codificada “que permite a certos traços de um objeto serem

mapeados na superfície interior do cérebro”, de onde extrai que “a configuração resultante

corresponderá, ainda que muitas vezes de modo indireto e codificado, à estrutura do objeto

original”. E ainda que: “quando a mente ou alma inspeciona essa configuração, terá, em

decorrência disso, a consciência sensorial do objeto” (Descartes citado por Cottingham,

1995, p. 81).

Mas isso não é apresentado de maneira clara e distinta pelo filósofo. Essas

representações codificadas são entendidas, ou exemplificadas por Descartes como sendo

signos, pois, segundo ele: “nossas mentes podem ser estimuladas por muitas outras coisas

além das imagens – signos e palavras por exemplo – que de modo algum se assemelham às

coisas que significam”. (Descartes, citado por Cottingham, 1995, p. 80). Porém, ao não se

aprofundar na questão do signo e ao não explicitar como há na mente a consciência desse

signo – o que remete ao infinito a possibilidade de transação entre consciência e objetos –,

ele parece consentir com aquilo que Sartre apontou como sendo uma certa materialidade da

alma cartesiana ou certa espiritualidade na imagem material do mundo exterior. Tal fato

nos traz dificuldades em apreendermos como “o entendimento se aplica a essa realidade

corporal muito particular que é a imagem, e, inversamente, como no pensamento pode

haver intervenção da imaginação e do corpo, uma vez que, segundo Descartes, mesmo os

corpos são apreendidos pelo entendimento puro”. (Sartre, 1978, p. 39).


72

A concepção de uma formulação imagética oriunda do entendimento é também, e

mais claramente, defendida por Espinosa, que, assim como Descartes, separa a teoria da

imagem da teoria do conhecimento, indicando ser a primeira advinda das afecções

corporais. O problema da infinitude potencial relacionada à transação entre mente, corpo e

objeto é por Espinosa explicado pelo acaso e pelo hábito, que seriam os responsáveis pela

ligação entre as imagens e a lembrança. As imagens são ressurreições materiais produzidas

pela mecânica do corpo e o construto ideário da experiência é um resultado imagético

confuso de mesma natureza material. Ficam separados a imaginação, ou a aquisição de

imagens, e o entendimento, opondo-se idéias claras de um lado e imagens de outro, as quais

são incapazes de apresentar a verdade sem obscuridades e confusões, e propícias à

formação de idéias falsas.

Há de se notar, entretanto, que mesmo ao se opor à idéia clara, a imagem divide

com ela a mesma qualidade conceitual de idéia. Embora seja uma idéia confusa, oriunda de

um nível mais baixo e distorcido do pensamento, funciona seguindo as mesmas ligações

comuns ao entendimento, o que nos leva a rever a profunda divisão entre imaginação e

entendimento proposta acima. Pois, se as essências envolvidas nas imagens, na qualidade

de idéias, podem ser desenvolvidas pelo entendimento, é sinal de que uma relação entre os

dois é notavelmente concebível, e que a divisão entre eles na verdade não é assim tão

profunda como se pode julgar inicialmente. Há ao mesmo tempo uma ligação e um corte.

“A imagem tem em Espinosa um duplo aspecto: é profundamente distinta da idéia, é o

pensamento do homem enquanto modo finito, e, no entanto, é idéia e fragmento do homem

infinito, que é o conjunto das idéias”. (Sartre, 1978, p. 40).

Assim sendo, o que se nota é que Espinosa separa, como Descartes, imagem e

pensamento, ao passo que a confunde com o pensamento, posto que o mundo da


73

imaginação proposto por ele (Espinosa) como mundo das relações mecânicas não se

encontra desvirtuado do mundo inteligível. Ele apontava, assim, que o problema da imagem

não podia ser resolvido no âmbito da própria imagem, mas apenas no nível do

entendimento, mesmo que ela seja uma afecção corporal.

Leibniz, de acordo com Sartre, também descreve o mundo da imagem através de seu

mecanismo puro. Contudo, seu associacionismo não é mais fisiológico: é na alma que as

imagens se mantêm e são interligadas. Para ele, somente a ligação das idéias claras, postas

pela razão, possui relações imperativas. A inter-relação das imagens se dava por vias

inconscientes. Elas faziam o papel de auxiliares do pensamento, eram signos. Leibniz

explica o signo como sendo uma expressão. A expressão é, na verdade, uma relação de

ordem, é uma correspondência na qual compartilham as suas características a imagem e o

objeto de qual ela é imagem. Aqui, Leibniz parece contar com uma relação natural das

coisas, se esquecendo de que essa relação pode ser arbitrária.

Contudo, o que importa em sua teoria da imagem é o fato de ela ser posta como o

construto inconsciente da soma de fatores de ligação, em oposição ao pensamento, que

seria a análise consciente das semelhanças e diferenças. A imagem é constituída de

elementos inconscientes que em si mesmo são racionais, ou que, pelo menos, podem vir a

ser racionalizados. Esse pensamento impõe uma noção estranha a ele mesmo: a de

inconsciente. Há elementos internos ao pensamento que não são acessíveis à consciência, e,

no entanto, formam a faceta opaca da imagem, que quando requisitada pela ação consciente

reaparecem como se nunca tivessem existido fora da consciência. Entretanto, o modelo de

imagem como soma das impressões não percebidas pela razão forja um conceito que seria

amplamente difundido pelas teorias vindouras.


74

É importante relembrar que estas filosofias da imagem eram baseadas, elas mesmas,

no sistema das representações. Todo construto teórico imagético proposto era

fundamentado no sistema de análise das diferenças e das semelhanças. Assim, mesmo os

elementos constituintes da imagem leibniziana já eram, antes de qualquer coisa,

representações à mente que as unia. Assim, a imagem contida na teoria de Eisenstein, como

colocaremos mais adiante, não pode ser confundida com a de Leibniz, pois a primeira é

constituída de representações, e a segunda, de representações da representação constituinte

da imagem.

A representação em Eisenstein apresenta atributos modernos, os quais podem ser

mais bem apreendidos em contraponto à imagem da Idade Clássica. O estudo da imagem

em Leibniz e Descartes tem o objetivo de trazer para esta pesquisa o contraste teórico, o

qual, através da definição negativa, prepara o terreno para definição e limitação positiva do

termo.

3.3 – Limites da representação e novas formulações da imagem

Segundo Erza Pound, uma imagem é um construto intelectual e emocional num

instante temporal. (Pound, 1986). É importante notar que a imagem não é considerada

como uma reprodução pictórica, mas como a união de sensações e idéias num complexo

suscitado num instante de tempo. Para que se chegasse a esta definição, fora necessário

uma transformação do quadro de análise das diferenças e das semelhanças, em vigor no

pensamento do século XVII, e que essa transformação abrisse espaço para uma nova

maneira de se entender e dizer o mundo.


75

Foucault defende que os últimos anos do século XVIII foram rompidos por um corte

epistêmico semelhante àquele notado no início do século XVII. Ele demonstra que a partir

daí o espaço geral do saber não vai mais se organizar em torno do quadro das identidades e

das diferenças; nem da máthesis do não mensurável; nem da taxionomia geral. Antes, se

arranjará num espaço feito de organizações, isto é, “de relações internas entre elementos,

cujo conjunto assegura uma função; (...) essas organizações são descontínuas, não formam,

pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas” (Foucault, 2002, p. 299). Neste período

a analogia e a sucessão vêm substituir a identidade entre os elementos e instaurar uma

identidade da relação dentre os elementos. A visibilidade perde sua função e as relações de

identidade passam a ser mantidas fora do âmbito do visível, pois a função assume agora

papel decisivo. Assim, se estas relações por ventura vierem a se apresentar próximas umas

das outras, não será mais pelo fato de seguirem a lógica da corrente das semelhanças, não

será mais porque ocupam lugares próximos num espaço de classificações; antes disso,

porque foram formadas ao mesmo tempo no devir das sucessões.

Ao contrário da Idade Clássica, as semelhanças não serão mais tidas como formas

depositadas e fixadas de analogia em analogia. Neste ponto, “a História dá lugar às

organizações analógicas, assim como a Ordem abria o caminho das identidades e das

diferenças sucessivas” (Foucault, 2002, p. 300). Contudo, Foucault ressalta que a História

não deve ser apreendida aqui como a coleta temporalizada dos fatos, mas como o modo de

ser próprio das empiricidades. Este período é datado por Foucault entre os anos de 1775 a

1825. Não obstante, o próprio teórico admite a possível imprecisão cronológica e

matemática das mudanças ocorridas. Três principais elementos são por ele destacados nessa

transição, a saber: a medida do trabalho, a organização dos seres e a flexão das palavras.

Nesta pesquisa, concentrar-nos-emos mormente sobre este último elemento.


76

Em relação à medida do trabalho, Foucault escreve:

“Afirma-se facilmente que Adam Smith fundou a economia política moderna –


poder-se-ia dizer a economia simplesmente – introduzindo o conceito de trabalho num
domínio de reflexão que ainda não o conhecia: de imediato, todas as velhas análises da
moeda, do comércio e da troca teriam sido remetidas a uma idade pré-histórica do saber –
com exceção talvez unicamente da fisiocracia, à qual se concede o mérito de ter tentado
ao menos a análise da produção agrícola” (Foucault, 2002, p. 304).

E argumenta:

“É verdade que Adam Smith refere, logo de início, a noção de riqueza à de


trabalho, (...), é também verdade que Smith reporta o ‘valor de uso’ das coisas à
necessidade dos homens, e o ‘valor em troca’ à quantidade de trabalho aplicada em
produzi-lo. (...) De fato, a diferença entre as análises de Smith e as de Turgot ou Cantillon
[na Idade Clássica] é menor do que se crê; ou, antes, não reside lá onde se imagina. Desde
Cantillon e antes dele já se distinguiam perfeitamente o valor de uso e o valor da troca;
desde Cantillon igualmente, utilizava-se a quantidade de trabalho para medir este último.
Mas a quantidade de trabalho inscrita no preço das coisas não passava de um instrumento
de medida, ao mesmo tempo relativo e redutível” (Foucault, 2002, p. 304).

O que Foucault coloca é que Smith não inventou o trabalho como termo econômico,

pois ele já existia antes na obra de outros pensadores, tampouco o aplicou de forma nova,

pois sua medida continua sendo o valor de troca. Contudo, ele o desloca. Mesmo

conservando-lhe o caráter funcional de análise das riquezas, o trabalho deixa de ser o puro

representandun da caracterização do comércio como ação primeira da troca e da

necessidade. A partir daí, as riquezas não mais estabelecerão uma ordem interna de

equivalências daquilo que se troca, nem uma estimação intrínseca da representação da

necessidade: “elas se decomporão segundo as unidades de trabalho que realmente as

produziram”. Assim, “as riquezas são sempre elementos representativos que funcionam:

mas o que representam finalmente não é mais o objeto de desejo, é o trabalho” (Foucault,

2002, p. 305).

Destarte, a reflexão sobre o conceito de trabalho acaba por extravasar seus limites

anteriores. Ele deixa de se encaixar na análise das representações para entrar em dois
77

domínios: põe em evidência a finitude do homem, pois o liga ao trabalho a ao seu desgaste;

ao tempo e à conseqüente iminência da morte, e ainda, por outro lado, põe à vista todo um

sistema possível de uma economia política que nega o jogo das representações e que se

funda primordialmente na troca pura das riquezas.

Um outro aspecto da transição demarcada por Foucault no final do século XVIII é

caracterizado por uma nova organização das Ciências Naturais. Segundo ele, a questão da

finalidade da classificação não é posta em evidência. Ainda se pretende determinar o

caráter que agrupe ou reúna as espécies em grupos distintos, que determine a diferença

destes grupos, e que, por fim, possibilite uma inter-relação capaz de formatar um quadro,

no qual todos os indivíduos e espécies possam encontrar o seu lugar bem definido. O que

muda é a técnica que permite se estabelecer tal caráter.

Assim como, em Adam Smith, o que muda são as relações da necessidade ou do

preço, na nova organização dos seres o que muda são também as relações, desta vez, entre

o que é visível e o que não é. Durante toda a Idade Clássica, o que se notou, na composição

do quadro das representações baseados no discernimento das semelhanças e das diferenças,

foi uma classificação baseada sobretudo na comparação dos caracteres visíveis daquilo que

deveria ser classificado. Em outras palavras, se escolhia o elemento homogêneo como base

para a classificação, pois, assim, dependendo do princípio ordenador escolhido, ele podia

representar todos os outros.

“A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’ Azyr, o caráter, ou antes, a


transformação da estrutura em caráter vai basear-se num princípio estranho ao domínio
do visível – um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco das representações. Esse
princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização”
(Foucault, 2002, p. 311).
78

Existem quatro modos diferentes pelos quais podemos dizer que a organização

interfere na taxinomia. Primeiramente podemos dizer que há uma espécie de hierarquia dos

caracteres. Foucault coloca que, em uma primeira instância, não se aproximam as espécies

em sua maior diversidade, delimita-se o campo de investigação pelos vastos agrupamentos

que a evidência impõe. Assim, percebe-se que alguns caracteres são absolutamente

constantes, e que são capazes de isolar os peixes, os vermes, as aves, etc. em agrupamentos

reconhecíveis. Contudo, existem aqueles caracteres que, embora sejam muito freqüentes

numa família, não possuem o mesmo nível de freqüência; são, segundo Foucault, os

“caracteres secundários subuniformes”. Existem também aqueles caracteres que ora são

constantes ora variáveis; estes não são capazes de formar certezas acerca da formação de

grupos maiores, e são chamados de “terciários semi-uniformes”. Essa hierarquia dos

caracteres traz a questão da importância das funções classificatórias e funcionais dos

mesmos. Assim, se a reprodução for tida como a função mais importante de um ser, surgem

daí caracterizações baseadas neste requisito, o que possibilita, por exemplo, se classificar os

vegetais entre acotilédones, monocotilédones e dicotilédones. O que se percebe é que o

caráter já não é mais extraído da forma visível, nem de sua presença ou ausência naquilo

que é classificado, e sim com bases nas funções que são importantes ao ser vivo, e que não

possuem mais fundamento somente na descrição.

Portanto, os caracteres são relacionados por suas funções. Contudo, a importância

das funções não é medida pela maior ou menor freqüência de tal elemento na composição

estrutural de um ser, e sim, de acordo com a sua posição funcional. Fato que leva o

pensamento do final do século XVIII a inverter a ordem da classificação, pois: não é mais

por ser freqüente que um caráter é importante, é por ser funcionalmente importante que ele

aparece com freqüência. Esse fato leva pesquisadores como Vicq d’ Azyr a fazerem
79

ligações estratégicas entre os dentes do animal carnívoro, seus membros, unhas, língua,

estômago e intestino, com vistas em suas composições inseridas na função da alimentação.

“O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si

mesmo, não é mais do que a saliência visível de uma organização complexa e

hierarquizada, em que a função desempenha um papel essencial de comando e de

determinação” (Foucault, 2002, p. 313).

Em terceiro lugar, existe a mudança da relação entre o que é visível e o que não é,

como método de avaliação das classificações. Foucault cita o exemplo de Lamarck, que diz,

no seu Système des animaux sans vertèbres:

“A consideração das articulações do corpo e dos membros dos crustáceos fez


com que todos os naturalistas os olhassem como verdadeiros insetos, e eu próprio,
durante muito tempo, segui a opinião comum a esse respeito. Mas, como é reconhecido
que a organização é a mais essencial de todas as considerações para guiar numa
distribuição metódica e natural dos animais, assim como para determinar entre eles as
verdadeiras relações, resulta daí que os crustáceos, respirando unicamente por brânquias,
à maneira dos moluscos e, tendo como eles, um coração muscular, devem ser localizados
imediatamente após eles, antes dos aracnídeos e dos insetos, que não têm uma semelhante
organização” (Lamarck, citado por Foucault, 2002, p. 315).

Neste trecho de Lamarck, podemos perceber a diferença do pensamento anterior ao

seu, o qual, segundo ele próprio, o incluiu durante muito tempo, e a nova forma de se

organizar a vida. Anteriormente, os crustáceos mantinham uma posição inferior na

classificação dos seres em geral, pois a forma pela qual foram classificados se concentrava

no apontamento de seus dados visíveis, e não de suas funções internas. Quando as funções

internas dos crustáceos passaram a entrar no jogo da classificação, segundo Lamarck, eles

não mais poderiam ser postos ao mesmo nível que os insetos, deveriam “ganhar” posição

mais elevada, adjacente aos moluscos, que também possuem um sistema respiratório e

circulatório mais desenvolvido. Assim, o ato de classificar não será mais o ato de reportar o

visível, enquanto unidade de representação, a outros elementos visíveis. Doravante, a


80

classificação reportará o visível ao invisível, de forma a buscar o seu lugar funcional na

estrutura, e, depois disso, refazer o caminho, do interior ao exterior, e apontar na superfície

visível os seus sinais manifestos. O caráter passa a ser o sinal visível que aponta para uma

dimensão oculta, e não mais um parâmetro de representação a outros caracteres.

Esta relação entre o visível e o invisível nos leva à quarta característica da

modificação da taxinomia proposta por Foucault. Como a classificação na Idade Clássica

era uma montagem progressiva que se encaixava no espaço do visível, a delimitação dos

elementos e a sua denominação podiam se realizar paralelamente: onde se está, é o que se é

para o sistema das representações. Nas palavras de Foucault, “o problema do nome e o

problema do gênero eram isomorfos” (Foucault, 2002, p. 316). Nesta nova forma de

organização, o ato de distinguir não é constituído a partir dos mesmos traços que o ato de

denominar, uma vez que o primeiro ato vai se formular em profundidade, i.e., vai buscar as

relações mais profundas de um órgão visível com os mais ocultos, e, a partir daí, traçar

outras relações referentes à sua função. Por outro lado, o ato de denominar se manterá no

espaço plano do quadro, pois é constituído a partir da classificação visível dos elementos.

Há, assim, uma quebra destes dois espaços do quadro das classificações, que antes se

formulavam paralelamente: eles não mais se acham numa relação de representação mútua.

Doravante, eles serão “perpendiculares um ao outro; e no seu ponto de junção encontra-se o

caráter manifesto, que indica, em profundidade, uma função e permite, na superfície,

encontrar um nome” (Foucault, 2002, p. 316).

Estes dois acontecimentos, o da economia e o da organização dos seres, vão

encontrar paralelo nas análises da linguagem. Durante toda a Idade Clássica a linguagem

foi entendida e refletida como discurso, i. e., ela era a análise automática da representação.

Dentre todas as forma de saberes, a linguagem era a mais profundamente ligada à


81

representação, por ser quase que seu representante direto no saber: era a forma mesma do

saber. Por isso, a mudança que se operou na linguagem foi muito mais discreta e lenta do

que nas demais formas do conhecimento. Para que fosse possível ocorrer mudanças no

âmbito da linguagem, foi necessária a desestabilização do próprio sistema das

representações. Foucault ressalta que até o início do século XIX, as análises da linguagem

quase não haviam sido modificadas. As palavras foram sempre abordadas de acordo com o

valor representativo, como se fossem constituintes virtuais do discurso, o qual lhes era

análogo ontológico.

Até a chegada dos últimos quinze anos do século XVIII, as línguas só eram

comparadas através de suas semelhanças e diferenças oriundas de sons e grafias que

deviam remeter a um tronco comum e perdido no tempo. Era uma busca pelo radical

babélico esquecido. O que se buscava era sempre os conteúdos representativos e a sua

relação com uma língua primitiva e comum. A partir de certo momento deste período,

começa-se a confrontar também os núcleos invariantes de significação. Contudo, ainda se

mantinha a comparação nos mesmos preceitos da gramática geral da Idade Clássica. Ainda

se apostava na língua comum, fornecedora inicial das raízes. Não obstante, os resultados

desta operação deixaram frutos e abriram novos problemas e soluções para a questão da

linguagem.

Os fenômenos flexionais da linguagem já eram conhecidos dos gramáticos. Porém,

da mesma maneira que os conceitos de trabalho e de organização já se faziam presentes nas

análises da economia e da história natural, antes de Smith e de Lamarck, a flexão da

linguagem ganharia novas aplicações no final do século XVIII. Foucault ressalta os

trabalhos de Coeurdoux e de William Jones, os quais perceberam que a relação de

constância das línguas não se dava a partir da raiz; pelo contrário; era a raiz que variava e
82

as flexões é que eram análogas. Percebeu-se que “a série sânscrita asmi, asi, asti, stha,

santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est,

sumus, estis, sunt” (Foucault, 2002, p. 323). O que passa a acontecer, após esta descoberta,

é que o jogo da linguagem se transfere, do plano das representações, para uma relação mais

complexa e profunda entre as modificações da raiz e as funções gramaticais. A Gramática

Geral inicia sua mudança de configuração. Passa a ser constituída por subsídios formais,

engendrados em sistema, o qual tem como característica principal não ditar às letras e sons

o regime das representações.

Assim, as línguas deixam de ser comparadas através daquilo que suas palavras

representam, e passam a ser aproximadas através de sua estrutura intrínseca capaz de ligar

as representações entre si. O pensamento, a proposição e a representação assumem papel

diverso daquele que mantinham na Idade Clássica, quando o discurso só fazia articulá-los

em função da linguagem; daí para frente, eles se desprendem da linguagem. Enfim,

discurso e linguagem iniciam a sua separação, a qual, mantida durante a Idade Clássica, foi

a responsável pela possibilidade da episteme da representação, da taxionomia e a da

máthesis.

Somente a partir desse fato é que podemos falar em imagem desprendida do

conceito de representação, uma vez que, até então, a imagem era a representação de si

mesma dentro de um sistema que só fazia com que estes conceitos se reflexionassem. A

imagem, após o fenômeno da separação da proposição e da linguagem, do pensamento e da

língua, assume também novas formas de ser percebida e sentida no mundo. A partir dessa

separação de conceitos, a imagem ganha novos atributos e possibilidades de apreensão, os

quais mantêm resíduos até os dias de hoje. Somente após esta explanação, podemos

retomar a frase de Pound (1986) que diz que “uma imagem é um construto intelectual e
83

emocional num instante temporal”, sem corrermos o risco de atribuir a ela falso

entendimento. O que se nota é uma inter-relação da mudança epistêmica com a mudança

estética, na qual a primeira imprime conseqüências cruciais à segunda. Neste ponto,

podemos ponderar sobre uma ruptura de ordem estética. A imagem, como tida para Pound,

na literatura, só podia ser construída após a mudança da organização dos saberes

responsável pela separação entre o discurso e a linguagem.

A partir disso, o código estético baseado na representação pôde ser alterado. Se o

discurso, na era da representação, devia seguir as leis do encadeamento racional dos

saberes, próprias de seu estatuto, este discurso mantinha estreita relação com a forma

estética da linguagem, a qual, por sua vez, deveria reproduzir este modo de encadeamento

das idéias. Uma vez que a relação direta entre os dois é rompida, abre-se o caminho para a

quebra temporal, a interpolação, o conflito e a montagem não-sequencial da linguagem.


84

Capítulo IV – A montagem na Era Moderna

4.1 – O grito

Com base nos dados levantados, sobre a mudança epistêmica e sobre as relações

entre a imagem e a representação, podemos dizer que, na Era Moderna, surge um complexo

imagético-discursivo que não funciona de acordo com as leis da linguagem (ou vice-versa).

Veremos como a poesia e o romance moderno alteraram a antiga formulação da imagem, a

qual remonta ao texto de Lessing, Laocoonte: ou sobre as fronteiras entre a pintura e a

poesia (1998), do final da Idade Clássica. A visão da imagem proposta por Pound (1986) é

ponto contrário à forma levantada por Lessing, pois, para Pound a imagem é um construto

intelectual oriundo das sensações provocadas pelo mundo exterior, independentemente do

meio semiótico que as provoque. Lessing defende que a literatura e as artes plásticas

trabalham por diferentes meios da sensibilidade, e, por conta disso, possuem diferentes leis

que regem a sua criação, e ainda que a pintura utiliza cores no espaço, e a literatura utiliza a

articulação dos sons no tempo. Lessing argumenta que não importa o quão viva possa ser

uma descrição, ela nunca conseguirá superar a visão do objeto que descreve, e que nunca a

concatenação de figuras, pinturas ou esculturas poderá superar o poder da linguagem

narrativa ao descrever os vários estágios de uma ação.

No capítulo XVI, de seu Laocoonte..., Lessing expõe a sua tese central, a qual pode

ser notada resumidamente nos três parágrafos seguintes:

"Eis aqui o meu raciocínio: se é verdade que a pintura se vale, para suas imitações,
de meios ou signos totalmente diferentes dos da poesia, posto que os seus são formas e
85

cores cujo domínio é o espaço, e os da poesia, sons articulados cujo domínio é o tempo;
se é indiscutível que os signos devem ter com o objeto a relação conveniente ao
significado, é evidente que os signos, dispostos uns ao lado dos outros no espaço, só
podem representar objetos ou suas partes que existam uns ao lado dos outros; e, do
mesmo modo que os signos que se sucedem no tempo, só podem expressar objetos
sucessivos ou objetos de partes sucessivas. (...).

Porém os corpos não existem unicamente no espaço, mas também no tempo.


Todos têm uma duração e podem, a cada instante dela, mostrar-se sob novas aparências e
novas relações. Cada uma destas aparências, cada uma destas relações momentâneas é
efeito de uma aparência e relação anteriores, e pode ser causa, por sua vez, de
subseqüentes aparências e relações, podendo ser considerada, portanto, como o centro de
uma ação. Logo, a pintura pode imitar também ações, porém, somente por via indireta,
sugerindo-as por meio dos corpos.

Por outro lado, as ações não podem subsistir por si mesmas, mas devem referir-
se a seres determinados. Como estes seres são corpos em realidade ou podem ser
considerados como tais, pode-se dizer que a poesia também os representa, porém, só
indiretamente, através das ações" (Lessing, 1998)

Na Idade Moderna, os limites colocados entre literatura e artes plásticas se tornam

mais rarefeitos. A questão da objetividade e eficácia de cada série ao lidar com a natureza

do seu meio começa a apresentar problemas, se tornando difícil dizer que a literatura dará

conta com mais destreza da narrativa e que a pintura se sairá melhor ao reproduzir imagens

pictóricas correspondentes aos objetos representados. Lessing utiliza, como ponto de

partida de sua discussão, a análise da escultura grega do Laocoonte e sua relação com as

narrativas de Virgílio, na Eneida, e de Sófocles, no Filoctetes. O autor pondera sobre o

controle da emoção causada pela dor no Laocoonte representado pela estátua e seu

descontrole – o qual resulta em um forte e extraordinário grito – no Laocoonte

representado pela narrativa. O grito, na visão de Lessing, impõe uma violência deformadora

à escultura. Violência esta que se apresenta como o inverso do que se buscava: a

harmonização das linhas, dos volumes e do movimento com o belo – ou, como para Hegel,

a perfeita sintonia entre matéria sensível e o Espírito Absoluto. Por conta disso, o grito teria
86

sido excluído da composição da estátua, e por conseqüência, banido da formulação estética

das artes plásticas desde a Grécia Antiga até a contemporaneidade lessinginiana.

O conjunto constituído por quatro telas intituladas “O Grito”, de Edvard Munch,

compostas no final do século XIX, é ponto esclarecedor da mudança estética oriunda da

passagem do sistema das representações da Idade Clássica para a Idade Moderna, se

tomada em contraponto às elucubrações de Lessing sobre os limites entre as séries

artísticas. Esta obra de Munch é habitualmente percebida pelo espectador, como uma cadeia

de ondas, provocada pelo grito de um sujeito, que se irradia até as bordas do quadro.

Contudo, pode ser apreendida também em seu inverso, como uma série de ondas do

exterior que invadem o sujeito apresentando-lhe a consciência do grito da própria natureza.

O que é o mesmo que dizer que não é o grito de uma personagem individual que emana

para os limites de um quadro, mas sim, que o grito, há tanto banido, invade e envolve o

quadro com toda a carga secular do recalcado, retornando, com toda a violência

deformadora e contrária aos códigos estéticos das congruências discursivas e linguais, ao

seu lugar de elemento transgressor na composição estética. O grito, doravante, assume a

posição de possibilidade criativa, rejeita a sua negação na série plástica e insere na pintura o

elemento deformador responsável pela separação do ideal do belo e a beleza que tem como

função o representar. Munch abre espaço para os gritos de Picasso, Siqueiros e Bacon, e

ainda para os de Brecht, Antonioni e outros célebres representantes do teatro e do cinema.

Assim, os limites entre a pintura e a poesia não podem mais ser facilmente postos.

O grito é apenas um dos muitos vieses pelos quais se pode analisar esta mudança. O

importante é perceber como a separação da imagem e sua representação movimentam a

configuração de uma nova maneira de se fazer e pensar a arte. Maneira esta que possibilita

a inserção do conceito de montagem na literatura, de justaposição na pintura e de


87

deformação na escultura. A partir da Idade Moderna, a linguagem e o discurso tomam

caminhos distintos, e a conseqüência disto é a impossibilidade de um texto como o

Laocoonte..., de Lessing, dar conta de atribuir limites precisos às séries artísticas. A fruteira

foi finalmente quebrada por Cézanne e já era tarde para se impor limites ao trabalho de (re-)

montagem.

4.2 – O discurso e o método de montagem

A literatura também teve suas fronteiras invadidas; ao contrário do grito e do horror

na pintura, a literatura foi assaltada pelo silêncio. Através de técnicas de temporalização e

fragmentação da narrativa, a literatura pôde interromper a linha de seu discurso, utilizando

o silêncio e a não-informação como recurso estético. Sobra para o leitor a tarefa de se

inserir neste texto que opta por não dizer agora para dizer depois, que suspende uma

narrativa para iniciar outra, que mescla, interpola e fragmenta.

Para T. S. Elliot (2004), a qualidade distinta da natureza da poesia consiste na sua

capacidade de formar new wholes, de fundir, numa unidade orgânica, as idéias que se

encontram disseminadas no mundo e no espírito.

São dois os problemas principais que esse tipo de concepção traz imediatamente à

criação poética. Primeiro: como incluir mais de uma imagem num poema sem comprometer

a eficácia de cada uma delas? Se a característica maior da imagem é fundir idéias e

sentimentos simultaneamente num dado momento, a encadeação dessas imagens faria,

naturalmente, com que o poder de cada uma delas fosse se esvaindo. Segundo: o todo do

poema pode ser encarado como uma única e genérica imagem? Nesse caso, seria necessário
88

que se frustrasse a expectativa linear no leitor, obrigando-o a perceber os elementos do

poema de forma justaposta, ao invés do natural desdobrar-se em fatos da narrativa linear.

Desde as primeiras linhas de Prufrock, de Elliot, o que se nota é a quebra de uma

expectativa linear em prol de uma criação imagética genérica, a qual é obtida através do

processo de justaposição dos elementos em detrimento da construção temporalizada das

estruturas lingüísticas.

Let us go then, you and I,

When the evening is spread out against the sky

Like a patient etherised upon a table... (Eliot, 2004, p. 48).

Nesse poema o leitor se vê obrigado a colher e juntar todos os fragmentos que

descrevem o dilema emocional de Prufrock, e a organizá-los a posteriori em sua mente. O

que se nota é a não utilização de uma estrutura baseada na seqüência sintática, e sim a de

uma outra estrutura, baseada na dependência da percepção das relações entre diferentes

grupos de palavras. Para que esses grupos de palavras possam ser compreendidos

apropriadamente, eles precisam ser justapostos e percebidos simultaneamente. Quando esse

fato ocorre, pode-se perceber que eles não mantêm uma relação de dependência temporal

linear. Assim, a forma estética da poesia de Elliot, Pound e, de forma genérica, de toda

poesia moderna, é baseada numa estruturação espaço-lógica.

Esse tipo de lógica temporal da escrita pode ser também percebido no romance

moderno, como ressalta Joseph Frank (1991), através de exemplos dos romances de

Flaubert e Joyce. Destaquemos um exemplo desse primeiro escritor: há uma cena, em

Madame Bovary, na qual três níveis de ação ocorrem simultaneamente. Para falar nos
89

moldes do cinema: na parte inferior do plano aparece a confusa massa humana misturada ao

gado trazido para exposição; na altura média do plano aparecem os oficiais gesticulando e

vociferando seus discursos; na parte superior desse plano se encontram Emma e Rodolfo,

que, de uma janela, acompanham o espetáculo e trocam confidências amorosas.

Segundo o próprio Flaubert, nessa cena “tudo deve soar simultaneamente, o leitor

deve ouvir o murmurinho da multidão, os suspiros dos amantes e a retórica dos oficiais ao

mesmo tempo” (1947 p. 75). Porém, como a linguagem procede sob o jugo de suas próprias

leis temporais, se torna impossível transmitir tais acontecimentos simultaneamente. Apenas

com a quebra premeditada da relação temporal da linguagem é que se pode conseguir um

efeito de simultaneidade. A técnica de Flaubert se concentra na dissolução da seqüência

narrativa nas idas e vindas do material narrado, formulando o encontro e o desencontro das

informações, as quais, vagarosamente, num crescendo, tomam forma na mente do leitor. O

papel reservado ao leitor é o de montar na sua mente todas as informações fragmentadas e,

a partir disso, perceber, através de um processo de justaposição, a imagem ditada

simultaneamente.

Essa cena de Madame Bovary ilustra bem aquilo que Joseph Frank entende por

espacialização da forma no romance. Durante a descrição da cena, o tempo fluido da

narrativa é suspenso; a atenção se concentra na inter-relação das partes dessa área

imobilizada. Essa inter-relação é justaposta à revelia do progresso da narrativa, e sua

completa acepção só poderá ser adquirida através de um processo reflexivo de reintegração

de suas unidades de significado. Contudo, diferentemente da poesia, o significado geral do

que se descreve é passível de uma clara exegese, devido à maior extensão de suas unidades

de significado. Na poesia de Pound ou de Elliot, a espacialização resulta na perda

momentânea da coerência devido à curta duração de cada unidade significante. Não


90

obstante, o paralelo entre as duas formas de espacialização ainda se faz válido, pois, nos

dois casos, só se obtém uma compreensão apropriada quando se fundem, reflexivamente,

todas as unidades num instante temporal.

A cena descrita, em Madame Bovary, tem pouca importância se considerado o todo

narrativo do romance. Logo que ela acaba, o texto retoma sua estrutura narrativa originária.

Contudo, o método utilizado por Flaubert deixou legados que seriam mais tarde

amplificados e utilizados em escala maior, como por exemplo, em James Joyce no seu

Ulysses. Como resultado dessa expansão da técnica de Flaubert, tem-se que o leitor se vê

obrigado a ler o romance da mesma maneira como leria a poesia moderna, i. e., mantendo e

justapondo fragmentos na sua mente, até que, por uma referência reflexiva, ele seja capaz

de apreender o todo descrito: a imagem.

Segundo Frank, o mesmo principio de composição pode ser encontrado em Marcel

Proust, de uma maneira ainda mais viva e preclara do que em Flaubert e Joyce. Na obra Em

busca do tempo perdido, o narrador é constantemente levado a ligar o passado com o

presente. A passagem entre eles é fornecida por pequenos detalhes materiais e sensitivos

que despertam sua mente para a ligação pura dos tempos. Conforme Frank, Proust chamava

esses detalhes de celestial nourishment, que consiste em algum som, odor, ou outro

estímulo sensorial que possa ser percebido simultaneamente no presente e no passado. Mas

por que celestial? De acordo com Frank, Proust observa que:

“A imaginação ordinariamente só pode operar no passado; assim, o material


apresentado à imaginação é carente de sensações imediatas. Não obstante, em certos
momentos a sensação física do passado retorna como uma inundação e se funde com o
presente; e Proust acredita que nestes momentos ele capta uma realidade ‘real que não é a
do presente momentâneo, que é ideal, mas não abstrata’. É apenas nestes momentos que
ele concentra sua mais estimada ambição – ‘a de cortar, isolar, imobilizar pela duração de
91

um relâmpago’ aquilo de outra forma ele não poderia apreender, ‘a saber: um fragmento
de tempo em seu estado puro’” 13 (Frank, citando Proust, 1991, p. 23).

Frank defende que a significação dessa experiência no romance Em busca do tempo

perdido só se torna explícita em suas páginas finais, as quais descrevem as ações

derradeiras do narrador na recepção da princesa de Guermantes. É nessa cena que ele

decide registrar toda a narrativa em uma obra de arte. E é a criação dessa obra de arte o

próprio monumento da sua conquista pessoal do tempo. Seu romance se torna o veículo

pelo qual ele conduz sua visão – e a experiência concreta dessa visão – expressa de uma

forma que convida o leitor à re-experimentar o efeito vivido por Proust em sua

sensibilidade.

Nessa recepção na casa da princesa, após longa temporada num sanatório, o

narrador se esforça para reconhecer os amigos, os quais, no seu modo de ver, usavam

máscaras esculpidas pelo tempo. Até que, abordado por um jovem de forma bastante

respeitosa, percebe que ele também usava a máscara esculpida pelo tempo: a de um velho

cavalheiro. Assim, ele passa a entender que para lhe nascer a consciência do tempo, fora

necessária sua ausência do meio ao qual estava acostumado, e, mais tarde, seu retorno a

este meio. Ao fazer isso, ele se acha em poder de duas imagens, a do mundo que ele

conhecia anteriormente e a do mundo transformado pelo tempo. Quando essas duas

imagens são justapostas, o narrador descobre que a passagem do tempo pode ser apreendida

através de seus efeitos visíveis.

13
“Imagination ordinarily can operate only in the past; the material presented to imagination thus lacks any
sensuous immediacy. At certain moments, however, the physical sensations of the past come flooding back to
fuse with the present; and Proust believes that in these moment he grasped a reality ‘real without being of the
present moment, ideal but not abstract.’ Only in these moments did he attain his most cherished ambition – ‘to
seize, isolate, immobilize for the duration of a lightning flash’ what otherwise he could not apprehend,
‘namely: a fragmente of time in its pure state” [tradução nossa].
92

Quando o narrador descobre esse método de objetivação correlativa de apreensão

temporal, ele decide transformá-lo em um romance. Contudo, como já foi mencionado, essa

compreensão só se dá no final do próprio romance que ele decide escrever, no momento

exato no qual o leitor finda seu processo de leitura. Em outras palavras, o leitor assume a

posição do narrador antes da escrita do romance, conjeturando, junto com ele, todo o

processo descrito no livro.

Joseph Frank defende que:

“Todo leitor logo nota que Proust não segue continuadamente nenhum de seus
personagens através do curso narrativo de seu romance, ao contrário, eles aparecem e
reaparecem em vários estágios de suas vidas. As vezes, centenas de páginas separam a
última vez que eles apareceram até a hora de sua reaparição, e, quando eles reaparecem, a
passagem do tempo os transformou de alguma forma clara e decisiva. Ao invés de ser
submetido ao contínuo do tempo e intuir um personagem progressivamente, numa linha
contínua de desenvolvimento, o leitor é confrontado com vários snapshots dos
personagens imóveis num momento da visão tirados em diferentes estágios das suas
vidas; e ao justapor essas imagens, ele experimenta os efeitos da passagem do tempo,
exatamente como o narrador experimentou.” 14 ” (1991, p. 16).

Destarte, Proust indica que, para experienciar a passagem do tempo é necessário que

se apreenda o passado e o presente simultaneamente num dado momento temporal. A este

momento Proust chama “tempo puro”. Sobre este conceito Frank alvitra: “Tempo puro,

obviamente, não é tempo propriamente dito – é uma percepção num dado momento do

tempo, ou seja, espaço 15 ” (1991, p. 27). O que acaba acontecendo, como nota Frank, é que

Proust atribui ao tempo um valor que na verdade pertence ao espaço. O que Proust faz, em

14
.“Every reader soon notices that Proust does not follow any of his characters continuously through the whole
course of his novel, instead, they appear and reappear in various stages of their lives. Hundred of pages some
times go by between the time they are last seen and the time they reappear; and when they do turn up again,
the passage of time has invariably changed them in some decisive way. Rather than being submerged in the
stream of time and intuiting a character progressively, in a continuous line of development, the reader is
confronted with various snapshots of the characters ‘motionless in a moment of vision’ taken at different
stages in their lives; and in juxtaposing these images he experiences the effects of the passage of time exactly
as the narrator has done” [tradução nossa].
15
“pure time, obviously, is not time at all – it is perception in a moment of time, that is to say, space. [tradução
nossa].
93

sua obra, é obrigar o leitor a justapor diferentes imagens espacialmente, num momento

temporal, de forma que a experiência do tempo é assim comunicada à sua sensibilidade.

Nesse ponto, a relação entre o método proustiano e a pintura de Cézanne ganha um

sentido interessante, se tomada na acepção de que o pintor não misturava as cores em sua

paleta, mas sim as inseria na tela numa relação conflituosa, que só ganha sentido através do

olhar do espectador. Assim como o leitor de Proust, o admirador de Cézanne é obrigado a

justapor as cores espacializadas na tela com seu olhar. O trabalho de construção e união das

unidades de sentido não é dado a priori pelo autor, é resultado obtido a posteriori pelo

leitor/espectador.

Em seu prefácio ao livro de François Albera, Eisenstein e o construtivismo russo,

Luiz Renato Martins defende que:

“Entre o final do Duecento e o início do Trecento, Cavallini, Cimabue e Giotto


atualizaram a pintura à luz do talhe humanista da escultura gótica, introduzindo os
primeiros fatores de uma nova racionalidade pictórica. Já no início do Quattrocento, ao
cabo de um processo não linear de modificações e desenvolvimento das bases por eles
lançadas, Brunelleschi e Alberti formularam a teoria da arte, que articulava geometria,
retórica e elementos da filosofia plotiniana ou neoplatônica, reconcebendo a partir daí a
prática pictórica não mais em suas bases empíricas, mas como ofício liberal. Forjou-se
assim a matriz, de cunho metafísico, do sistema pictórico e estético que perduraria por
mais de quatro séculos” (2002, p. 9-10).

Esse fato nos serve de paralelo histórico para a compreensão do papel exercido por

Cézanne, e seu processo de espacialização conflituosa das cores, nas artes em geral do

século XX. O método do pintor se aproxima ao do narrador proustiano ao instaurar o

procedimento de apreensão estética, ao mesmo tempo, como metodologia da criação e

como chave de leitura/apreciação da obra. Essa é a nova matriz instaurada por Cézanne no

séc. XIX, aquela que, despojada das relações metafísicas da filosofia plotiniana e das

incumbências visuais estéticas lessinginianas, instaura a arte como um procedimento duplo

e universal das consciências do autor e do leitor/observador. Segundo Martins, “a


94

mobilização da consciência, destinada agora a enxergar na tela o seu duplo, decorre de

fatores materiais: da dissonância ciente das pinceladas e das inter-relações cromáticas, da

exposição da constituição pictórica como um tecido de fragmentos” (2002 p. 22). E, mais

adiante:

“Em Cézanne, a forma se oferece sempre incompleta em razão dos limites da


pincelada, da disposição fragmentária da cor ou das linhas desequilibradas, quebradas e
interrompidas. O observador, diante disso, é induzido por um mecanismo fisiológico
ótico, já descoberto pelos escultores gregos e utilizado para despertar a sensação de
movimento, a completar a sensação perdida e a preencher a lacuna” (2002, p. 22).

A tarefa atribuída, por Cézanne, a seu espectador contemporâneo não causou boa

impressão. O observador, antes acostumado com o produto artístico dado diretamente à

consciência, i. e., acostumado à pintura enquanto trabalho final e pronto para a apreciação,

sem que fosse necessária nenhuma ação de sua parte como o preenchimento de vazios, ou a

justaposição das cores e formas, não podia compreender aquela nova matriz artística. Assim

como para o leitor de Proust, era tarefa árdua acumular todas as unidades significantes em

sua mente, para depois justapô-las, extraindo daí seu sentido mais completo.

A figura de Cézanne nos é importante pelo fato de ter inaugurado uma fusão que

abriu caminho para as várias experimentações de vanguarda na modernidade, a saber, a

fusão entre teoria e prática: a arte processual. Ainda falando da Era Moderna, mas

aprofundando-nos em outra série artística, esta arte processual de Cézanne encontra

equivalência na obra do cineasta Sergei Eisenstein, o qual pode nos ajudar a aprofundar a

discussão das imagens na metodologia da literatura.

Até aqui, vimos que o duplo processo de criação e recepção das obras de Cézanne,

Proust e Elliot se baseava num método, mais ou menos semelhante, que pregava, sobretudo,
95

a justaposição como elemento e processo artístico. Em Eisenstein, este mesmo processo

pode ser notado em sua definição do conceito de montagem.

4.3 – O conflito e a imagem

Como já foi dito no capítulo primeiro desta dissertação, a imagem para Eisenstein

era o construto resultante da soma das representações produzidas pelo autor com as

representações desencadeadas no espectador ao experienciar a obra estética. Agora

podemos entender estes dois conceitos de forma mais precisa. Na Idade Moderna, ao

contrário da Idade Clássica, estes conceitos estão separados, e este fato nos leva a um outro

nível de elucubrações, a saber, as conseqüências desta separação para as teorias e práticas

da narratologia literária. A conseqüência dessa separação entre a imagem e a representação

pode ser percebida pela busca estética de estruturas narrativas compostas por técnicas que

não são imediatamente representativas do conteúdo discursivo que a obra apresenta. Como

exemplos, já vimos a paralelização dos acontecimentos simultâneos em Flaubert, a

fragmentação pictórica da beleza natural em Cézanne, o advento do grito na pintura de

Munch, a espacialização da poesia em Eliot e a experiência temporal em Proust. Na teoria

eisensteiniana esta separação é concebida através dos conceitos de orgânico e patético

(pathos).

Eisenstein coloca duas qualidades da faceta orgânica de uma obra. A primeira é

definida pelo fato de que toda a obra fechada e completa possui uma lei de estrutura que

subordina as partes ao todo; caso contrário, esta obra não possuiria unidade e

conseqüentemente não poderia ser tida como um produto artístico fechado e completo. Ele

cita uma frase de Lênin que diz: “O particular só existe na relação que leva ao geral. O
96

geral só existe no particular, através do particular” (citado por Eisenstein, 2002, p. 148).

Assim, o princípio de qualidade orgânica é, para Eisenstein, aquilo que une as diversas

células particulares ao todo, e que, vice-versa, representa o todo através de suas diversas

células particulares.

A segunda qualidade orgânica da obra se refere, não à relação entre o particular e o

geral, mas sim à própria lei que rege esta relação. Esta lei aparece em congruência com a lei

que rege os fenômenos naturais:

“O segundo tipo de qualidade orgânica de uma obra é apresentado não apenas


com base no princípio de qualidade orgânica, mas também com a própria lei de acordo
com a qual os fenômenos naturais são constituídos. Isto pode ser chamado de qualidade
orgânica de um tipo particular ou excepcional” (Eisenstein, 2002, p. 149).

Eisenstein postula que a platéia é parte constituinte da natureza orgânica da obra,

uma vez que ela está sob o jugo desta lei, a qual, ao reger a obra, rege também o

entendimento da platéia e a possibilita entender o que se passa na narrativa. Assim, a

qualidade orgânica de uma obra pode ser apreendida de duas maneiras, uma estática e outra

dinâmica. A qualidade estática é o orgânico propriamente dito, e a qualidade dinâmica é o

patético. Para tornar mais clara essa idéia, o teórico analisa o seu filme O encouraçado

Potemkin (1925). A lei orgânica deste filme é a lei estrutural da tragédia tal como

formulada por Aristóteles. O encouraçado... é dividido em cinco atos, e, de acordo com o

autor, segue todas as formulações clássicas de encadeamento narrativo da tragédia,

constituindo, assim, a forma estática de apreensão do orgânico: aquela que – como estrutura

interior responsável pelo suporte geral da obra – não pode variar, ficando sempre imutável,

como a estrutura de concreto que sustenta um edifício.

Já a forma dinâmica da qualidade orgânica pode ser definida, de acordo com

Eisenstein, como o patético. Neste ponto a platéia se torna ponto de referência do conceito,
97

uma vez que é no movimento da platéia – ou da sociedade, de uma forma genérica –

causado pela obra que se encontra a explicação da qualidade orgânica em sua forma

dinâmica: o patético. Segundo Eisenstein:

“Para a ilustração mais primitiva, façamos uma descrição simples dos sinais
superficiais de comportamento externo de um espectador atraído pelo pathos.
Mas esses sinais são tão sintomáticos que, imediatamente, nos levam ao centro da
questão. O pathos mostra seu efeito – quando o espectador é compelido a pular da
cadeira. Quando é compelido a tombar quando estiver de pé. Quando ele é compelido a
aplaudir, a berrar. Quando seus olhos são compelidos a brilhar de satisfação, antes de
derramar lágrimas de satisfação... Em resumo – quando o espectador é forçado a ‘sair de
si mesmo’. Para usar um termo mais bonito, deveríamos dizer que o efeito de uma obra
patética consiste no que quer que seja que ‘leve’ o espectador ao êxtase” (Eisenstein,
2002, p. 153).

Assim, o patético é conceituado como a reação do espectador para com a obra,

notando que, segundo o teórico, as leis orgânicas que regem a obra são as mesmas que

regem a reação do espectador. A partir disso pode se dizer que, em primeira mão, ao ver

uma cena triste, o espectador deve se sentir triste, ao ver uma cena de triunfo, o espectador

deve se sentir entusiasmado, e assim por diante. Como podemos notar, esta formulação

eisensteiniana nada apresenta de novo se posta em relação com a nossa conclusão da

conseqüência da separação dos conceitos de imagem e representação na estética da

narrativa; pelo contrário, ela é um retorno à forma clássica, na qual o discurso e a estrutura

que o veiculava se achavam em congruência.

Contudo, este postulado abre espaço para novas premissas e pensamentos em prol

de uma teoria que consiga unir a intenção do autor em extrair de sua platéia determinada

reação, com a desarticulação do simples jogo da pobreza, da derrota, da saudade, etc.

representando a tristeza; da riqueza, da vitória, do reencontro, etc. representando a alegria, e

assim por diante. Pois, enquanto Lessing, no final da Idade Clássica, se perguntava qual

seria a forma mais sublime de congruência entre a matéria sensível de cada série artística
98

com o seu modo de recepção, Eisenstein se pergunta como extrair do espectador uma

reação esperada através da combinação dos sentimentos presentes na lei orgânica de uma

obra com aqueles suscitados, no espectador, através da lei patética da obra. O problema foi

transposto da relação da obra com a sua matéria e com a sua recepção, para a relação da

obra para com ela mesma e para com a sua recepção. É claro que a vitória do inimigo não

pode trazer alegria, e nem que a sua derrota possa trazer tristeza, e é a partir disso que o

teórico começa a dar os primeiros passos para a fragmentação discursiva da montagem.

Os primeiros resultados podem ser notados a partir do conflito que Eisenstein

empregava em seus filmes. O cineasta caracterizava como unidade mínima o lugar de

articulação entre os fotogramas, e não entre os planos, como comumente se fazia. Assim,

podia montar sucessões de fotogramas com grau de diferença mínima (F1 + F2 + F3 e

assim por diante) ou com grau maior (F1 + F2 + F10 + F20...). Contudo, sua grande

contribuição para o nosso estudo foi a concatenação de fotogramas distintos (A1 + C20 +

D4...), a qual desestabiliza a relação linear da imagem percebida na tela com aquela surgida

na mente do espectador, fragmentando e intelectualizando o processo fílmico, assim como

os demais exemplos citados das outras séries artísticas. Eisenstein, assim, propõe a

diferença entre a imagem-representação e imagem-conceito, instaurando de vez a separação

entre o discurso e a linguagem no cinema. Ele elaborou um esquema 16 no qual:

16
Extraído do texto original anexo em Albera 2002.
99

A soma de: É igual a:

Ощущение1

Ощущение2 Впечатление

Впечатление1

Впечатление2 Представление

Представление1

Представление2 Понятие

Do qual se lê 17 :

A soma de: É igual a:

Impressão/gravura1

Impressão/gravura2 Impressão mental

Impressão mental 1

Impressão mental 2 Representação/idéia

(imagem-representação)

Representação/idéia 1 Conceito

Representação/idéia 2 (imagem-conceito)

Este tipo de esquema rendeu a Eisenstein a alcunha de psicoengenheiro, ou

psicoconstrutor, pela forma com a qual o cineasta renegava a criação por intuição emotiva

em prol de uma construção racional de elementos emotivos, chegando a comparar o seu

17
(tradução nossa)
100

método ao da indústria metalúrgica, no seu artigo “Cinema soviético”, de 1928 18 . Nesse

esquema podemos perceber a diferença que o teórico postula entra as formas da imagem.

Como vimos, para ele, uma imagem é o construto gerado a partir da soma das

representações desencadeadas pela leitura/decodificação das qualidades sensíveis de uma

obra. Destarte, a imagem-representação seria aquela primeira e imediata impressão que o

espectador/leitor manifesta ao se deparar com o objeto estético. Seriam ainda

representações celulares, distintas entre si e constituintes de algo maior: a imagem-

conceito. Por sua vez, a imagem conceito seria a soma das imagens-representação, a qual só

se torna completa na morte da obra estética. Este tipo de imagem precisa, necessariamente,

do término da apreciação para se formar completamente. Contudo, ela se faz presente no

decorrer da leitura, se modificando e se transformando na percepção do leitor.

Eisenstein cita um exemplo da montagem no Bel ami, de Maupassant. A cena citada

narra a espera de George Duroy por Suzanne, que havia concordado em fugir com ele à

meia noite. Segundo o teórico, Maupassant utiliza os preceitos da montagem para transmitir

ao leitor, através da imagem-representação, a imagem-conceito do tempo e seu significado.

A função da imagem-representação, neste caso, é, por um lado, orgânica, porque

representa, através das constantes badaladas dos diferentes relógios das igrejas próximas ao

ponto de encontro das duas personagens, o passar do tempo da narrativa; e, por outro,

patética, porque vai criando no leitor a sensação de inquietação. Eis o trecho referido:

“Tornou a sair às onze horas, errou durante algum tempo, tomou um fiacre e
mandou parar na Place de la Concorde, junto às escadas do ministério da marinha. De vez
em quando acendia um fósforo, para olhar a hora no relógio. Quando viu aproximar-se a
meia-noite, sua impaciência tornou-se febril. A todo instante punha a cabeça na
portinhola para olhar. Um relógio distante deu doze badaladas, depois um outro mais
perto, depois dois juntos, depois um último, muito longe. Quando esse acabou de tocar,
pensou: ‘Acabou-se. Deu tudo errado. Ela não virá.’ Estava entretanto resolvido a ficar,
até de manhã. Nestes casos é preciso ser paciente. Escutou ainda tocar um quarto, depois

18
O referido artigo se encontra em: FREEMAN, J. Voices of octuber. Londres: Dennis Dobson, 1968.
101

meia hora, depois três quartos; e todos relógios repetiram a ‘uma’, tal como tinham
anunciado a meia noite 19 ” (citado por Eisenstein, 2002, p. 23)

De acordo com a montagem eisensteiniana, este trecho da narrativa de Maupassant

pretende gravar, na consciência (imagem-representação) e na sensação (imagem-conceito)

do leitor, a qualidade emocional da meia-noite; caso contrário, o autor teria apenas se

limitado a dizer que Duroy havia esperado Suzanne desde a meia-noite até uma hora da

manhã. Esse trecho de Bel ami ilustra, de uma forma bem primária e elementar, a

formulação de Eisenstein sobre as qualidades da imagem e suas relações com o orgânico e

o patético. Contudo, o poder da montagem foi ainda mais explorado na literatura do século

XX, quando o próprio texto entra no jogo de espacialização e montagem. Como vimos na

pequena narrativa de Maupassant, a linguagem ainda mantém a sua estruturação linear.

Um exemplo mais completo pode ser encontrado em Palmeiras Selvagens, de

William Faulkner. Este livro já é em si uma ode à montagem, uma vez que é constituído

por duas histórias distintas que se intercalam, uma sob o título homônimo da obra,

“Palmeiras selvagens”, e a outra intitulada “O velho”. Nas primeiras páginas do livro o

leitor é surpreendido com acontecimentos que só serão explicados no final do romance, a

história é invertida. Um médico desce as escadas de sua casa, à noite, por causa de batidas

em sua porta. Quem está batendo é Harry, o protagonista da obra, mas ainda não se pode

saber disso. O livro começa da seguinte forma:

“A batida soou outra vez, ao mesmo tempo discreta e peremptória, enquanto o


médico descia as escadas, o facho de luz da lanterna projetando-se à sua frente pela
escada manchada de marrom, iluminando o lambri macho e fêmea, manchado de marrom,
do vestíbulo. Era uma casa de praia, embora tivesse dois andares, iluminada por lampiões
de querosene – ou por um lampião de querosene, que sua mulher tinha levado pra cima
quando subiram depois do jantar. E o médico usava um camisolão de dormir, não um
pijama, pela mesma razão por que fumava cachimbo, coisa de que nunca conseguira e,
sabia, nunca conseguiria gostar, entremeado com os charutos ocasionais que os pacientes
lhe presenteavam entre um domingo e outro, quando fumava os três charutos que podia

19
Tradução brasileira: Clóvis Ramalhete. São Paulo: Livraria Martins, 1953.
102

comprar por conta própria, embora fosse proprietário da casa da praia e também da casa
vizinha e da outra, a moradia com eletricidade e paredes revestidas de gesso no povoado,
a quatro milhas de distância. Porque ele estava agora com quarenta e oito anos e tinha
dezesseis e dezoito e vinte na época em que seu pai lhe dizia (e ele acreditava) que
cigarros e pijamas eram coisas de almofadinhas e mulheres” (Faulkner, 2003, p.5).

Ao ler esse primeiro parágrafo até o final, o leitor quase que se esquece que há

alguém à porta esperando para ser atendido no meio da noite. Somente oito páginas adiante,

após uma série de digressões do pensamento do médico, se pode ler: “A batida soou

novamente” (Faulkner, 2003, p. 13). Dois parágrafos ainda separam essa frase de quando o

médico, enfim, abre a porta, e encontra Harry pedindo ajuda. O médico se desloca,

juntamente com Harry, para a casa vizinha, onde a mulher dele se encontra, precisando

urgentemente dos serviços do doutor. Quando lá chegam, Harry entra num quarto, o casal

inicia uma briga e a mulher se queixa de fortes dores. O médico aguarda na sala para saber

o que está havendo, e finalmente, na página 21, Harry autoriza a entrada do médico no

quarto. Na página seguinte, pode se ler o início da segunda história: “Uma vez (no

Mississipi, em maio, no ano da enchente de 1927) havia dois condenados. Um deles tinha

perto de vinte e cinco anos, alto, magro, sem barriga, o rosto queimado de sol (...)”

(Faulkner, 2003, p.23).

O leitor se vê obrigado a suprimir a sua tensão e curiosidade em saber o que há de

errado com a mulher e principiar a leitura de uma outra história, a qual se inicia do modo

mais calmo e fabuloso, “Era uma vez...”. A seqüência de urgência é bruscamente

interrompida. E o interessante é que quando a história de Charlotte e Harry é mais uma vez

retomada, já na página 31, ela diz o seguinte: “Quando o homem chamado Harry conheceu

Charlotte Rittenmeyer, ele era um estudante de medicina fazendo a sua residência em

regime interno num hospital de Nova Orleans” (Faulkner, 2003, p. 31).


103

Os princípios de montagem eisensteinianos podem comentar esse tipo de narrativa

pelo seu viés micro e macro. Pelo viés micro, o conflito se faz presente no momento no

qual o médico desce as escadas e passa a divagar sobre as questões morais de sua época,

enquanto as batidas sonoras na porta são apresentadas ao leitor. Num sentido macro, o

conflito aparece na intercalação das histórias, uma excitante e outra plácida. As histórias

mantêm sempre essa relação intercambiante no romance. Assim, as células conflituosas,

utilizadas na montagem, podem possuir diversos tamanhos, desde a menor sentença, até

capítulos inteiros de uma obra.

No caso específico do trecho lido até agora, a intercalação das duas frases análogas:

“A batida soou outra vez” , primeira frase do romance, com “A batida soou novamente”,

oito páginas adiante, tem como objetivo orgânico a informação do tempo médio

transcorrido, desde que a leitura começara até quando o médico abre a porta; e como

objetivo patético, o de causar a sensação de expectativa no leitor. Em outras palavras, as

frases apresentam a função de imagem-representação, quando são captadas pelo leitor que

as armazena; e de imagem-conceito, quando são reunidas em sua percepção, lhe oferecendo

a sensação de suspense ou expectativa. Contudo, essas duas frases, postas no primeiro

capítulo, acompanharão o leitor durante toda a leitura do romance, uma vez que só no final

do livro a explicação para o fato de Harry ter pedido ajuda é dada. Isso é montagem: uma

célula orgânica e patética inserida intencionalmente no texto, mantendo relação conflituosa

com as demais células da obra.

Segundo Eisenstein, esse é o princípio de montagem utilizado pelos autores quando

querem transmitir uma imagem ao leitor. O problema que se apresenta é a disposição do

teórico ao defender que a imagem criada pelos autores é fielmente reconstruída na mente

dos leitores, levando-os a presenciarem a exata sensação prevista na criação do texto.


104

4.4 – A terceira imagem: conclusões e apontamentos à teoria da montagem

voltada ao estudo da literatura

Até agora vimos como a narrativa do cinema caminhou para a sua consolidação;

como a transição dos conceitos de imagem e de representação da Idade Clássica para a

Moderna influíram esteticamente na narratologia literária e como a separação do discurso e

da linguagem resultou em teorias da imagem mais abrangentes e intelectualizantes. O

resultado disso, nesta pesquisa, foram as elucubrações finais da imagem-conceito

eisensteiniana.

Eisenstein é bastante criticado, não pela formulação da imagem-conceito, mas pelo

seu dogmatismo ao defender que a imagem-conceito é veículo fiel da idéia que o autor

pretende transmitir:

“Diante da visão interna, diante da percepção do autor, paira uma


determinada imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com a
qual ele se defronta é transformar esta imagem em algumas representações parciais
básicas que, em sua combinação e justaposição, evocarão na consciência e nos
sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte a mesma imagem geral inicial que
originalmente pairou diante do artista criador” (Eisenstein, 2002, 28).

Defende ainda que:

“A força do método [de montagem] reside também no fato de que o espectador é


arrastado para o ato criativo no qual sua individualidade não está subordinada à
individualidade do autor, mas se manifesta através do processo de fusão com a
intenção do autor, (grifo meu) exatamente como a individualidade de um grande ator
se funde com a individualidade de um grande dramaturgo na criação de uma imagem
cênica clássica. Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a
seu próprio modo, e a partir de sua própria experiência - a partir das entranhas de sua
fantasia, a partir da urdidura e trama de suas associações, todas condicionadas pelas
premissas de seu caráter, hábitos e condição social -, cria uma imagem de acordo
com a orientação plástica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema
do autor. É a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, ao
mesmo tempo, também é criada pelo próprio espectador.”( Eisenstein, 2002, pág 29).
105

O cineasta e teórico russo Andrei Arsensevich Tarkovski pensa diferente:

“Uma vez em contato com a pessoa que o vê, o filme se separa do autor, começa a
viver a sua própria vida, passa por mudanças de forma e significado. (...). Não aceito os
princípios do ‘cinema de montagem’ porque eles não permitem que o filme se prolongue
para além dos limites da tela, assim como não permitem que se estabeleça uma relação
entre a experiência pessoal do espectador e o filme projetado diante dele.” (2002, pág.
140).

Tarkovski aponta para a existência de um elemento que se encontra fora da relação

binária, proposta por Eisenstein entre a imagem proporcionada pelo autor e a imagem

apreendida pelo espectador. Ao defender que os princípios de montagem eisensteinianos

impossibilitam o filme de se prolongar para além dos limites da tela, Tarkovski indica que

talvez as transações da imagem do autor para o espectador não sejam na verdade um

processo de desencadeamento, mas sim um processo de espelhamento, no qual a imagem

do autor não é reconstituída na mente do espectador, mas imposta como um signo

arbitrário. Assim, a questão levantada é a da aparição de um terceiro elemento, por sua vez

imensurável, que resida no cerne da transição das imagens e que não represente,

obrigatoriamente, a imagem da obra.

Tarkovski percebe esse ponto fraco da teoria de Eisenstein:

Vejamos, por exemplo, a batalha sobre o gelo em Alexandre Nevsky. Ignorando a


necessidade de preencher os quadros com um tempo de tensão adequada, ele se esforça
para obter a dinâmica interna da batalha mediante uma seqüência de tomadas breves - por
vezes excessivamente breves. No entanto, apesar do ritmo acelerado com que mudam os
fotogramas, os espectadores (pelo menos aqueles de mente aberta, que ainda não foram
convencidos de que se trata de um filme “clássico”, e de um “clássico” exemplo de
montagem, tal como ensinada no Instituto Estatal de Cinema) são tomados pela sensação
de que tudo o que se passa na tela é lerdo e artificial. (...) A sensação que o diretor
pretendia transmitir nunca chega ao espectador, pois ele não teve a preocupação de
impregnar o quadro com a verdadeira percepção do tempo da legendária batalha.”
(Tarkovski, 2002, pág, 142).
106

Embora o teórico perceba a incongruência da transmissão de imagens na obra de

Eisenstein e aponte para a existência de um terceiro elemento, para além da significação,

não chega a formular uma questão em prol da identificação do problema. A teoria peirciana

dos signos parece dar conta desse terceiro elemento.

Segundo Peirce, existem três qualidades dos signos: a qualidade material, a

aplicação pura e a função demonstrativa. Ele cita, como exemplo da qualidade material, a

palavra homem, “que consiste em cinco letras num quadro, ela é achatada e não tem

relevo” (Peirce, 2005, p. 270). Essa qualidade material do signo é a própria palavra em si,

sua propriedade gráfica, física. A aplicação demonstrativa pura do signo é a conexão do

signo com seu objeto – não importando aí se ela se dá de forma imediata ou através de

outro signo. E a função representativa é aquela que faz menção à relação do signo com o

pensamento, independente de sua qualidade material e de sua relação real com o objeto.

Assim, a qualidade material é relacionada à “matéria”, a aplicação pura do signo é a

demonstração associativa dessa matéria, e a função representativa é a representação

subjetiva.

Saindo do plano sígnico e transpondo-se para o plano mental, Peirce defende que

uma sensação é o mesmo que uma hipótese (2005, p. 273), e que a hipótese “pode ser

definida como um argumento que se desenvolve a partir da suposição de que um caráter do

qual se sabe que envolve necessariamente uma certa quantidade de outros caracteres, pode

ser provavelmente predicado de qualquer objeto possuidor de todos os caracteres que se

sabe envolvidos por esse caráter” (2005, p. 264). Assim, a sensação é (como a hipótese) um

predicado simples que assume o lugar de um complexo. Como Peirce explica, o predicado

complexo é o argumento que conclui algo através de outros argumentos em conjunto, que

são por sua vez os argumentos simples (2005, p. 262). Destarte, sensações (simples)
107

surgem de impressões no plano sensível e vão se acumulando e criando outras sensações

(compostas) num plano inconsciente. Daí se extrai que se a sensação nada mais é do que o

substrato sensível de algo oculto, posto que no momento exato de sua ação ela não pode ser

apreendida pelo pensamento, pode sim ser reconstituída a posteriori; e, aí já desprovida de

seu caráter primordial constituinte, ela não pode ser representação, mas apenas sua

qualidade material.

Peirce atribui aos signos mentais as mesmas qualidades dos signos materiais:

“Temos, no pensamento, três elementos: primeiro: a função representativa que o


torna uma representação; segundo, a aplicação puramente denotativa, ou conexão real,
que põe um pensamento em relação com um outro; e, terceiro, a qualidade material, ou a
maneira pela qual ele é sentido, que dá ao pensamento a sua qualidade” (Peirce, 2005, p.
273).

Sobre a qualidade material do pensamento, ele propõe que cada pensamento possui

a sua qualidade particular e que essa qualidade não é mensurável. Pois, no momento no

qual o pensamento se faz presente ele é absolutamente único, e não pode ser percebido

como pensamento. “Todo pensamento, por mais artificial e complexo, é, na medida que

está imediatamente presente, mera sensação sem as partes e, portanto, em si mesmo, não

tem similaridade com qualquer outro, sendo incomparável com qualquer outro e

absolutamente sui generis 20 ” (Peirce, 2005, p. 272). Obviamente, se pode fazer o caminho

inverso e imaginar um pensamento passado no intuito de se compará-lo com outro.

Contudo, essa ação será sempre fruto de uma força maior que une dois pensamentos

distintos, e, essa força maior assume o caráter de pensamento único no momento mesmo de

sua atuação, a qual, por sua vez, é única e sui generis.

20
Nota de Charles Sanders Peirce: “Observe-se que digo em si mesmo. Não sou tão insensato ao ponto de
negar que minha sensação de vermelho, hoje, é semelhante à minha sensação de vermelho de ontem. Digo
apenas que a similaridade pode consistir apenas na força psicológica por trás da consciência – o que me leva a
dizer que reconheço este sentimento como o mesmo sentimento anterior, não consistindo, portanto, numa
comunidade de sensações” (Peirce, 2005, p. 272).
108

“Nunca podemos pensar ‘isto está em mim’, visto que, antes que tenhamos
tempo para a reflexão, a sensação já passou e, por outro lado, uma vez passada, nunca
podemos trazer de volta a qualidade do sentimento tal como ele era em e para si mesmo
ou saber como ele era em si mesmo, ou mesmo descobrir a existência desta qualidade,
exceto através de um corolário a partir de nossa teoria geral de nós mesmos, e nesse caso
não em sua idiossincrasia mas apenas como algo presente” (Peirce, 2005, p. 272).

Uma sensação, como já foi dito, é a soma de uma multiplicidade de impressões, as

quais, por sua vez, são sensações simples, ou pelo menos mais simples do que as sensações

que suscitam. Segundo Peirce, “o princípio geral de que tudo aquilo a que tal e tal sensação

pertence tem tais e tais séries complicadas de predicados não é um princípio determinado

pela razão, mas sim um princípio de natureza arbitrária” (2005, p.279). Em outras palavras,

um indivíduo não pode escolher o que vai sentir em determinada situação, há uma lei geral

que rege a sensação. Assim, a sensação é representação de algo, de acordo com cognições

prévias, as quais determinam que deverá haver uma sensação e qual deva ser esta sensação.

Contudo, como a sensação é apenas um sentimento isolado e singular, a sua existência não

pode ser atrelada à representação, pois a lei que rege esta representação funciona à revelia

do sentimento, o qual só a caracteriza através de sua qualidade material. “A sensação é um

mero sentimento de uma espécie particular, só é determinada por um poder inexplicável,

oculto; e enquanto tal, não é uma representação, mas apenas a qualidade material de uma

representação” (Peirce, 2005, p. 273).

Peirce desabilita a discussão entre Tarkovski e Eisenstein ao propor a

imensurabilidade da qualidade material do signo mental de acordo com a sua relação

idiossincrática. Pois, além de cada sensação ser única num dado momento temporal, ela

também é única para aquele que a sente. O leitor, no momento em que se dedica à

literatura, e extrai sentido lógico da narrativa, através da utilização arbitrária das qualidades

dos signos materiais e mentais, acumula sensações. Estas sensações são chamadas por
109

Eisenstein de Imagem, e todo seu postulado gira, de certa forma, em torno delas, através de

seus desdobramentos em imagens-conceito e imagens-representação. Peirce não propõe que

essas imagens não existam, ele propõe que elas existem num dado momento e só podem ser

sentidas, mas nunca compreendidas, na totalidade de suas qualidades pelo leitor no

momento imediato de sua ação. A qualidade material do signo mental é, para Peirce, um

elemento que não mantém relação com a representação do sentimento, é o próprio

sentimento na forma mesma em que é experienciado. Assim, ele corta a ligação direta entre

a representação e a imagem, tal como fora proposta por Eisenstein, encerrando a discussão

inicial sobre a relação idiossincrática entre a imagem formulada pelo autor e aquela

recebida pelo leitor/espectador.

A contradição, notada em Eisenstein, aparece quando o teórico se esquece de

formular um conceito que dê conta de explicar o sentimento enquanto puro sentimento. Ao

ligar de forma imediata o sentimento, de acordo com a sua qualidade dinâmica da obra de

arte, ou, simplesmente, o patético, à imagem-representação, o teórico cai no engano de

atribuir a semelhança da imagem criada pelo autor, àquela apreendida pelo

leitor/espectador. Assim, a teoria de montagem cinematográfica só pode ser bem aplicada

ao estudo da literatura, se este fator particular for anulado. O caminho sugerido é o da união

da teoria de montagem eisensteiniana com os postulados semióticos de Peirce, atribuindo à

imagem de Eisenstein um caráter de representação mediada – e não imediata, como quis o

teórico –, através da inserção da qualidade representativa do signo mental e a sua aplicação

puramente denotativa.

Se retomarmos o comentário da montagem no romance de Faulkner, podemos ter

um esclarecimento dessa idéia. “A batida soou outra vez...” De acordo com as leis

eisensteinianas da montagem, essa frase trabalha em dois sentidos ou níveis, o do orgânico


110

e o do patético e como imagem-representação e imagem-conceito. De acordo com as leis

orgânicas, a frase situa o leitor espacialmente e temporalmente, informando-o sobre as

premissas básicas da narrativa e o lugar de cada uma delas no conjunto narrativo. Em outras

palavras, funciona como uma imagem-representação, a qual será armazenada pelo leitor,

que, no decorrer da leitura, a fundirá com outras imagens-representação, obtendo-se, assim,

a imagem-conceito. Neste caso específico, a intercalação temporal das duas frases análogas,

“A batida soou outra vez” e “a batida soou novamente”, separadas por oito páginas, foi

entendida como elemento de montagem que causa no leitor o sentimento de suspense ou

expectativa.

Assim, podemos dizer que, para Eisenstein, existe um elemento-chave que significa

diretamente aquilo que representa, sem, no entanto, carregar nenhuma outra qualidade ou

função que não sejam as de pura representação e a de conexão com outras representações.

O que seria o mesmo que dizer que a partícula significante, ou imagem-representação, só

apresenta duas qualidades básicas, e conseqüentemente, duas funções relacionadas a elas: a

primeira é a que une uma imagem-representação à outra, e a segunda a que relaciona a

imagem-representação com a sua representação pura.

Após a primeira frase do romance, “A batida soou outra vez” , o que se nota é uma

apresentação das características morais e sociais do médico que caminha até a porta. Em

contrapartida, são também ressaltadas as qualidades do homem que espera para ser

atendido. A relação entre os dois, como o texto informa antes que a porta seja aberta, é a de

proprietário e inquilino. Muitas das características de um são invertidas no outro. Sobre o

médico, pode-se ler

“usava um camisolão de dormir, não um pijama, pela mesma razão por que
fumava cachimbo, coisa de que nunca conseguira e, sabia, nunca conseguiria gostar,
entremeado com os charutos ocasionais que os pacientes lhe presenteavam entre um
111

domingo e outro, quando fumava os três charutos que podia comprar por conta própria,
embora fosse proprietário da casa da praia e também da casa vizinha e da outra, a moradia
com eletricidade e paredes revestidas de gesso no povoado, a quatro milhas de distância.
Porque ele estava agora com quarenta e oito anos e tinha dezesseis e dezoito e vinte na
época em que seu pai lhe dizia (e ele acreditava) que cigarros e pijamas eram coisas de
almofadinhas e mulheres” (Faulkner, 2003, p.5).

A partir dessa descrição, a personagem é apresentada com todas as nuanças

pequeno-burguesas da sociedade norte-americana. Ainda que o elemento de suspense

perdure na mente do leitor, essas novas informações, que vão se acumulando, essas novas

imagens-representação apresentam um sentido que não pode ser totalmente previsto na

montagem. Não obstante, são partes constituintes da montagem, as quais posteriormente se

transformarão em imagens-conceito. Contudo, a subjetividade começa a ganhar terreno,

distanciando e ramificando os possíveis resultados oriundos de sua formulação.

O médico havia sido informado sobre seus novos inquilinos pelo corretor de

imóveis que alugara a casa ao casal. O corretor diz ao médico:

“– Ela está de calças. Quero dizer, não estas calças de mulher, mas calças de
homem mesmo! Quero dizer, são justas demais para ela bem naqueles lugares que
qualquer homem gostaria de vê-las justas, mas que mulher nenhuma gostaria, a não ser
que as tivessem usando também. Para mim, Dona Martha (mulher do médico) não vai
gostar muito.
– Para mim tudo estará bem se pagarem o aluguel em dia – disse o médico.
– Não precisa de preocupar – retrucou o corretor. – Já providenciei. Não é à toa que estou
neste negócio há tanto tempo. Eu falei logo: – Vai ter que ser adiantado –, e ele disse: –
Está bem. Está bem. Quanto? –, como se fosse um Vanderbilt ou um graudão enfiado
naquelas calças imundas de pescador, só de camiseta debaixo do paletó. (...) se quer
minha opinião, ele não está interessado em móveis e sim em quatro paredes onde se
enfiar e uma porta para fechar em seguida” (Faulkner, 2003, p. 8 – 9).

A conversa entre o médico e o corretor, enquanto imagem-representação, suscita no

leitor uma imagem-conceito, a qual possui dois níveis, o primeiro é o da relação de

representação que mantém a imagem-representação, o segundo a relação que ela mantém

com outras imagens-conceito desencadeadas pela obra. No entanto, o diálogo ainda remete

a uma outra relação da imagem-conceito, desta vez com ela mesma. Pois, no momento
112

exato de sua aparição na consciência do leitor, ela desperta um sentimento, que, como

vimos através da leitura de Peirce, é único e inexplicável. É único porque não pode ser

reconstituído sem que se perca seu caráter primordial, e é inexplicável porque, uma vez que

é único, não pode ser posto em comparação com nenhum outro elemento, e por

conseqüência não pode ser apreendido através de nenhuma organização de saberes. Em

outras palavras, é oculto.

O próprio jogo de montagem com as frases análogas referentes às batidas na porta

no início do romance, o qual aparenta uma referência clara à criação do suspense, apresenta

uma faceta oculta. No plano do orgânico estático, a sonoridade da primeira batida é

imagem-representação, e se posta em relação com a imagem-representação da segunda

batida, se transporta para o plano do orgânico dinâmico e cria uma imagem-conceito, a

qual, no momento exato de sua criação, faz surgir no leitor um sentimento que desencadeia

o suspense. Contudo, quando se pensa esta terceira fase, a do sentimento, toda a malha da

relação entre as imagens anteriores fica invisível e a lógica das representações se esvai,

restando apenas a qualidade material do sentimento suscitado, ou a qualidade material da

imagem. Ao passo que a qualidade material da imagem possui caráter imprevisível, tudo

que a análise pode apontar é a sua possível existência, e não o seu possível resultado no

leitor. Portanto, a montagem, enquanto operador da análise dessa passagem de Faulkner,

pode demonstrar como, no texto, a organização das unidades significantes foi posta pelo

autor, e até apontar para uma leitura da possível intenção dele na narrativa; contudo, não

pode prever a eficácia da congruência da transmissão de imagens do autor para o leitor.

Assim, os trechos citados de Palmeiras Selvagens apresentam três, e não dois,

níveis de montagem que devem ser levados em conta em sua análise. Os dois primeiros, em

concordância com a teoria eisensteiniana, são os níveis do orgânico e do patético. O


113

terceiro, o nível puramente material da imagem, mantém uma relação oculta com os outros

dois, e, portanto, não é passível de previsão. Deste modo, a imagem-conceito passa a

trabalhar em dois níveis distintos, no patético e no puramente material, uma vez que ela é

sentimento oriundo do orgânico e, não obstante, é puro sentimento na mente do leitor. E

passa a ter três qualidades inerentes, a de ser representada pela imagem-representação, a de

possuir uma sintaxe capaz de fornecer-lhe relações com outras imagens-conceito e a

qualidade material, que faz com ela seja, em relação a ela mesma, um puro acontecimento.

A montagem, se vista por este prisma tripartido, permite que o filme se estenda para

além dos limites da tela, como colocou Tarkovski, e que a literatura se estenda para além

das páginas dos livros, pois atribui à imagem-conceito um elemento novo capaz de remeter

ao infinito as possibilidades discursivas de uma obra: a qualidade material da imagem-

conceito. A qualidade material, segundo Peirce, não pode ser medida de acordo com

comparações, uma vez que ela é sempre única; contudo, essa qualidade pode ser

identificada e isolada. Tal fato impõe limites ao conceito de montagem, transformando-o

num operador teórico mais preciso na análise da narrativa literária. Conseqüentemente, a

qualidade material da imagem-conceito se apresenta, por um lado, como um termo que

atribui maior precisão à utilização da montagem na literatura; por outro, como campo vasto

de teorizações acerca da recepção.


114

Capítulo V – Considerações finais

Esta dissertação buscou apresentar e discutir os conceitos de imagem e

representação, e suas nuanças desde a Idade Clássica ao início do século XX, em prol de

um aperfeiçoamento da utilização desses conceitos no estudo intersemiótico da literatura,

mais especificamente, nas relações das narratologias fílmica e literária, através do conceito

de montagem.

O primeiro tópico abordado foi o do início da evolução da estrutura fílmica,

enquanto código capaz de ser objeto estético e veículo inteligível de proposições de caráter

narrativo. Em outras palavras, a primeira parte do presente texto se ocupou em dissertar

sobre os problemas e soluções que apareceram nos primórdios do cinema, quando a então

novidade científica e estética ainda não era capaz de carregar, em seu corpo discursivo, os

elementos necessários para se fazer compreender e, ao mesmo tempo, encantar. A

montagem foi apontada como um dos elementos responsáveis pela consolidação de um

código narrativo, o qual se faz presente até os dias de hoje.

Atualmente, com o advento de novas tecnologias e ambientes virtuais, a questão parece

ser posta novamente. O arcabouço teórico dessa dissertação, ao abordar a influência

recíproca das narrativas cinematográfica e literária, indicou que existe uma relação entre o

pensamento teórico e as tecnologias vigentes. A questão que se abre é a de se pensar qual é

a relação entre teoria e tecnologia nos dias de hoje. O percurso da narratização do cinema

foi traçado no intuito de discutir um problema recente do estudo da narrativa. As técnicas e

tecnologias foram abordadas e referenciadas de acordo o pensamento da época; contudo,


115

oferecem material para se debater essas mesmas questões na atualidade. O problema

parece, mais uma vez, se pôr no horizonte, pois a cada dia surgem novos meios

tecnológicos, trazendo consigo os mesmos desafios de se atribuir sentido e beleza ao objeto

estético. Além disso, representam novas ligações com os moldes da criação e da teoria

literária.

Ao longo desta dissertação, a ciência, a filosofia e a arte andaram juntas. Delas tentou-

se extrair os fatores mais importantes referentes ao estudo da narratologia. O intuito maior

foi o de buscar a inserção, no pensamento vigente, das qualidades e conceitos estudados. A

preocupação geral foi a de se trabalhar os termos abordados sempre em congruência

temporal e epistêmica, com maior observação aos conceitos de imagem e de representação

– os quais exerceram papel fundamental na dissertação –, por serem os responsáveis pelos

pilares das elucubrações, aqui propostas, sobre a narrativa e suas pontes temporais e

semióticas.

A pesquisa procurou mostrar como os conceitos de imagem e de representação

apresentam variações de acordo com a época e escola que os utilizam, o que significa,

portanto, enfatizar que possuem uma história. No âmbito da Teoria da Literatura, estes

conceitos proporcionam diversos caminhos pelos quais se podem discutir os problemas

suscitados. Neste trabalho, buscou-se a inserção deles na episteme própria da Idade

Clássica – proposta por Michel Foucault como tendo lugar entre os séculos XVII e XVIII –,

período descrito como a idade da representação. Esta representação tem como característica

maior o ato de representar a si mesma, transformando o espaço dos saberes num quadro

relativo às semelhanças e diferenças, do qual o homem se abstém enquanto problema e se

coloca enquanto representação.


116

O quadro de Velásquez “Las meninas” é paradigma desta afirmação. “Com efeito

ele intenta representar-se a si mesmo em todos os seus elementos, como suas imagens, os

olhares aos quais ele se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que fazem nascer”

(Foucault, 2002, p. 20). O quadro coloca o problema da representação, e, por conseqüência,

coloca também o problema da imagem, pois, de fato, não seria correto ponderar sobre a

imagem separadamente se se tem a confiança de que tal conceito foi erigido através de um

estatuto articulado entorno da representação. Implicação disto seria tomarmos a imagem

refletida em um espelho pela própria imagem e lermos cada atributo seu inversamente, o

que nos levaria incondicionalmente ao erro.

A imagem e a representação sofreram mudanças nos períodos que envolveram a

Idade Clássica e a Moderna. O que se atentou, nesta pesquisa, foi, primeiramente, apontar

quais teriam sido estas mudanças no plano da organização dos saberes e das epistemes,

para, posteriormente, apontar seus resultados estéticos na criação e no estudo da literatura.

A alteração epistêmica mais importante, ressaltada neste trabalho, foi a separação entre o

discurso e a linguagem, notada com o advento da Idade Moderna. Essa alteração

proporcionou novas fronteiras para os limites entre as séries artísticas, possibilitou uma

maior fragmentação das narrativas e atribuiu mais sentido em se abordar a literatura através

do conceito de montagem.

A pesquisa tentou demonstrar sob quais parâmetros a tradição filosófica da Idade

Clássica tratou o tema da imagem. Através das figuras de Leibniz, Espinosa e Descartes, tal

conceito foi posto em análise. O objetivo maior foi o de evidenciar como foi decisiva a

influência da representação na construção do pensamento acerca da imagem. Como a

representação moldava os saberes e dirigia as consciências para uma categorização da

imagem que era sempre tida em prol de seu reflexo. Isso ocorria porque todo o pensamento
117

clássico carregava a relação ontológica do cogito cartesiano, a qual traduzia todos os

problemas do homem em problemas da representação.

O presente trabalho também buscou mostrar como, em todos os filósofos analisados, a

imagem era sempre polarizada, mantendo estreitas e ambíguas relações com o pensamento

e com a matéria, com o espírito e com o organismo biológico, respeitando-se sua intrínseca

relação com a representação. A imagem só pôde receber um estudo particular e específico

quando o homem abriu as cortinas da representação e se pôs como objeto de estudo e

reflexão. A partir desse fato, a imagem se despoja de seu caráter representacional e passa a

funcionar sob o jugo de uma outra episteme, a qual não faz mais a categorização incessante

das palavras e das coisas através de um quadro geral de representações.

A pesquisa tentou demonstrar como estes pensamentos acerca da imagem eram

baseados, eles próprios, no sistema das representações. Toda teoria imagética proposta era

fundamentada no preceito de análise das diferenças e das semelhanças. Portanto, até as

noções constituintes da imagem clássica já eram, antes de qualquer coisa, representações ao

pensamento que as unia. A imagem presente na teoria de Eisenstein é de outro tipo, e, como

foi colocado, não pode ser entendida como as proposições da Idade Clássica, pois a

primeira é constituída de representações, e a segunda, de representações da representação

constituinte da imagem.

Fato importante que a dissertação buscou ressaltar foi o de que a representação em

Eisenstein é carregada de atributos modernos, os quais são mais bem apreendidos se postos

em contraponto à imagem da Idade Clássica. O estudo da imagem em Leibniz e Descartes

teve como um dos objetivos o de trazer para a pesquisa o contraste teórico, o qual, através

da definição negativa, preparou o terreno para definição e limitação positiva do termo.


118

A partir disso, difundiram-se as proposições modernas sobre a imagem, sem que se

corresse o risco de ignorar a tradição do pensamento acerca do conceito, podendo-se, assim,

apresentar a imagem enquanto construto emocional e intelectual, e relacioná-lo com a

representação de forma bem mais clara e eficaz. A imagem, na literatura, só podia ser

erigida após a apresentação da alteração do código estético baseado na representação. Se o

discurso, na era da representação, precisava seguir as regras do encadeamento racional dos

saberes, compatíveis com seu estatuto, este discurso matinha direta relação com o formato

estético da linguagem, o qual, por sua vez, deveria refletir o modo de encadeamento das

idéias. A partir do momento em que a relação direta entre os dois é rompida, abre-se o

caminho para a quebra temporal, a interpolação, o conflito e a estruturação não-sequencial

da linguagem, abrindo, conseqüentemente, o caminho para o estudo da montagem na

literatura.

Os postulados de montagem eisensteinianos funcionaram, nesta dissertação, como

adequado coeficiente teórico da literatura, ainda que apresentem pontos polêmicos em seu

corpo conceitual. A montagem de Eisenstein se oferece para a leitura das mais diversas

obras, pertencentes às mais diversas escolas e épocas. Os conceitos de imagem-

representação e imagem-conceito foram abordados de forma que se pudesse erigir uma

transação eficaz entre a literatura e o cinema. A título de exemplificação do pensamento

eisensteiniano de montagem voltada à literatura, a pesquisa apresentou comentários e

análises de trechos de obras significativas da série literária, como Flaubert, Eliot, Joyce e

Faulkner.

Não obstante, a teoria eisensteiniana da montagem, ao ser tomada em relação à

literatura, apresentou um ponto polêmico, qual seja, o da congruência entre as imagens

criadas pelo autor e aquelas apreendidas pelo leitor. O presente trabalho buscou demonstrar
119

como o teórico lida com as questões da representação e da imagem de uma maneira

polarizada ou bipartida, levando a relação entre a imagem e a representação presente em

uma obra qualquer possuir relação direta com a imagem suscitada em sua apreciação. Para

equacionar tal problema, a dissertação aponta para a necessidade de se atribuir um terceiro

elemento a essa relação, o qual foi proporcionado pela Teoria dos Signos de Charles

Sanders Peirce.

O terceiro elemento indicado foi a qualidade material do signo mental, proposta por

Peirce. Através dessa qualidade, o sentimento oriundo da obra estética recebe uma nova

caracterização, a qual não pode ser medida, por não se relacionar diretamente com nenhum

outro elemento na estrutura funcional do pensamento. “A sensação é um mero sentimento

de uma espécie particular, só é determinada por um poder inexplicável, oculto; e enquanto

tal, não é uma representação, mas apenas a qualidade material de uma representação”

(Peirce, 2005, p. 273). Ao instituir uma qualidade isolada ao signo mental, a qual não

mantém relação direta com a representação e nem com outros signos-pensamento, o autor

formula uma teoria mais eficaz ao estudo da literatura, pois insere um corte e impõe limites

à representação.

Assim, além do corpo teórico dissertativo, esta pesquisa procurou apontar questões

referentes a uma composição teórica mais apropriada em prol do estudo da montagem na

literatura: àquela composta pela união das teorias de Peirce e Eisenstein. Tal trabalho pode

ser desenvolvido de forma mais abrangente, explorando os caminhos abertos no âmbito

específico da Teoria Literária atual.


120

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