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LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA
Faculdade de Letras
LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA
Literários.
Semióticos
Belo Horizonte
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Agradecimentos
Ao Luis Alberto Brandão Santos, meu orientador, pela confiança nas minhas idéias,
pela paciência em vê-las nascer (mais de uma vez) e por tê-las ensinado a caminhar.
À Carla Soraya Gil Carneiro, minha tia, por ter me ajudado com seus conselhos e
ações.
Ao Moal Paráclito, meu avô, pelos livros que hoje são uma partezinha de mim
À Daniela Carneiro Tibo, Vinícius Perdigão Rosa e Maria Tereza Tibo Perdigão
Ao Sr. Tárcio de Souza Tibo e à Sra. Sandra Miroslawa Gil Carneiro Tibo, meus
À Bartira Gotelipe Gomes Batista, minha mulher, por transformar a minha vida
Sumário
Página
Resumo _________________________________________________________ 05
Abstract__________________________________________________________06
Introdução________________________________________________________08
Bibliografia ______________________________________________________120
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Resumo
conceitos são pormenorizados levando-se em conta a sua inserção epistêmica nas épocas e
imagem e sua relação com a representação. A imagem é, então, proposta e discutida através
sua relação com a imagem e com a representação esclarecido e é abordado como operador
nova qualidade é fornecida pela teoria dos signos de Charles Sanders Peirce. O objetivo é o
Abstract
This thesis presents a research on montage in the narratives of literature and cinema,
based on a careful study of the concepts of image and representation. Such concepts are
examined taking into account their epistemic insertion in the schools and time they appear.
The process of developing a narrative in the early years of cinema is presented and
discussed. Montage, however, has its definition proposed in agreement with the work of
Sergei Eisenstein, through the analysis and explanation of the concepts of organic and
pathetic. While presenting such concepts in Eisenstein, there appear the problems of image
and its relation to representation. The concept of image is, then, proposed and discussed
considering the philosophies in force from the Classic Age up to the Modern Age. As a
clear definition of image and its relation to representation emerges, the study moves on to
detailing the consequences of the postulates from the Classic Age in the process of
spacializing time in the literary speech of Modern Era. The concept of montage has its
relation to image and representation explained and is, afterwards, applied as a theoretical
tool in the study of literature and cinema. The dissertation also aims at discussing the
binary relation presented by the Eisensteinian montage, through the insertion of a new
quality of image. This new quality is supplied by the Theory of the Signs of Charles
Sanders Peirce, which gives Eisensteinian montage broader conceptual plurality and the
que pensar.”
Michel Foucault
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Introdução
pudessem servir de baliza aos esforços teóricos aqui desenvolvidos. A montagem, quando
Modesto Carone Netto, teórico que precede a presente pesquisa com seu livro
Metáfora e montagem, relembra que o termo já fora utilizado nas análises sobre John Dos
Passos, Alfred Döblin e Jean Paul Sartre, tido como coeficiente que visa “caracterizar a
arcabouço metodológico desta pesquisa. O que aqui se busca é uma ampliação desse
conceito, seguida de uma maior calibragem de sua utilização. Aqui, uma primeira defesa se
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consciente, até porque não se pode exigir de nenhum autor que trabalhe ou reconheça qual a
poesia surrealista, tem o caráter de montagem” (citado por Carone, 1974, p. 102). Ele
aponta para o fato de que a premissa na qual se apóiam os surrealistas e seu projeto de
atingir a sintonia do inconsciente com as mãos que traçam no papel a escrita é pouco
razoável, pois o que de fato se opera é a montagem das imagens suscitadas por essa
pretensa ligação. Mas o interessante para nós é extrair da colocação de Adorno que a
montagem é elemento presente na criação e que pode ser tida como a junção de imagens
teórico e cineasta soviético, considerado, por muitos, um dos maiores pensadores sobre o
assunto. Contudo, antes de nos atermos às suas premissas, é mister que refaçamos
não só a montagem, enquanto coeficiente teórico para análise narrativa, será aqui focada,
mas também a sua história e consolidação na série fílmica como elemento de criação e de
narração. Esse processo demonstra ser fonte, produtiva e frutífera ainda não esgotada, de
enquanto elemento de criação e traço constituinte da narrativa literária vista sob a luz da
semiótica.
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Noten zur literatur I: Rückblickend auf den surrealismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1965, p. 156.
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público em geral, os quais lidavam com a então grande novidade tecnológica e lingüística.
O problema era que não se sabia como encadear as imagens de forma que elas
a sua compreensão. Em outras palavras, o cinema não sabia contar histórias. Diversas
técnicas foram criadas através das mais variadas pesquisas em prol de uma narratização
realizadores. Nesta pesquisa busco demonstrar quais foram as principais dificuldades que
tiveram que ser transpostas pelo cinema na tentativa de instaurar códigos imagéticos
criação de uma estrutura narrativa sólida. Essa é uma grande oportunidade para se pesquisar
nascimento e a evolução das técnicas da narrativa numa série específica, podemos também
perceber toda a relação entre a demanda e a solução dos problemas que uma nova forma de
narrar apresenta. Tal ocorrência pode nos fornecer elementos importantes para a análise das
uma breve leitura de sua relação com a tecnologia e com a arte, apresentando a diferença
comunidade estética. O objetivo é demonstrar de qual forma cada uma dessas comunidades
Analiso a sua formação prática e teórica nos primeiros anos do século XX, dando ênfase às
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divide o filme em dois níveis distintos: o orgânico, que resumidamente seria a parte física
espectadores e as emoções despertadas pelo filme. Essa divisão acarreta uma outra divisão,
dessa vez dos níveis da montagem. Para explicar essa segunda divisão, o teórico formula os
sob o mesmo jugo de desencadeamento no plano sensível. Assim sendo, o processo fílmico
e literário de criação particular de imagens pode ser descrito através das fases:
das imagens. Contudo, esse postulado não é colocado pelo teórico de uma forma clara e
merece uma maior pormenorização antes que a Teoria dos Signos seja abordada. Assim, no
terceiro capítulo refaço o caminho da tradição filosófica desde a Idade Clássica até a Idade
Moderna, com o objetivo de limitar ao máximo este conceito, de forma que ele possa servir
da maneira mais ímpar e fornecer ao leitor o máximo de precisão conceitual nesse aspecto.
Para tanto, sigo os passos de Jean Paul Sartre em seu texto “A imaginação” (1936), no qual
coisas (1966), na qual o teórico explica a sua visão epistêmica e arqueológica dos períodos
epistêmica notada entre a Idade Clássica e a Moderna para a Narratologia. A conclusão que
1.1 – Montagem
Meliès de 1895. Por outro lado, há uma corrente que só considera a montagem presente em
filmes realizados a partir dos anos 10 do século XX. Maria Fátima Augusto, a respeito dos
filmes anteriores a esse período, defende que: “Não se pode falar ainda de montagem, já
mais tarde, quando o cinema atingir um certo grau de evolução e quando a câmera se tornar
lugar, o conceito de montagem será aqui abordado em dois níveis primordiais, quais sejam,
o nível da montagem nas artes em geral – o que incluiria por exemplo a montagem em um
só plano, ou tomada, por entender que o próprio cenário foi estabelecido a partir de técnicas
narrativa fílmica. Dois níveis secundários do conceito de montagem serão analisados sob a
luz das teorias eisensteinianas que separam o filme nas instâncias do orgânico e do patético,
trabalho, uma conceituação mais dinâmica, uma vez que o nosso foco maior é a literatura, e
não o cinema. O conceito de montagem aos poucos ganhará mais e mais características e
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constituições literárias, até o ponto no qual se possa tê-lo como auxílio intersemiótico na
análise do literário.
questão da montagem remete a primórdios que não tinham necessariamente como objetivo
utilizada para aprimorar a visão humana, servindo como ferramenta para ampliar, congelar
e interferir na velocidade dos movimentos dos objetos que eram analisados, etc. Isso
elemento narrativo. Por outro lado, muitas das evoluções no terreno da narrativa só se
pode se dizer que seu criador, o fisiologista francês Etienne-Jules Marey, jamais teve como
fim a recriação natural dos movimentos dos animais que estudava; ao contrário, o objetivo
era o de ver o movimento fragmentado para a análise posterior. Afinal, uma vez na posse de
em suas filigranas. Não faria nenhum sentido reagrupá-los depois para assisti-los. Se assim
fosse, não seria mais fácil analisar o próprio animal in natura, como observou Jacques
Outro que validou a premissa de que a simples reprodução visual oriunda dos
aparatos de captura de imagens em movimento não teria valor científico, pelo fato de não
alterarem a visão do espectador, foi Albert Londe (fotógrafo que trabalhou com Charcot na
captura de imagens de seus pacientes). Ele somente creditava ao aparato valor científico em
apresentava sentido em sua primeira etapa, qual seja, a decomposição dos elementos do
movimento e sua análise partida. Para esses homens, não havia nenhuma motivação em
prol da recriação do movimento capturado, fato que rebaixa a montagem aos seus mais
podemos sim falar em montagem. Contudo, não podemos perder de vista o seu caráter
extremamente objetivo, isto é, que esse tipo de montagem se concentra tão somente numa
sensíveis do mundo, e que não possuía outro objetivo senão essa representação. Além
próprio aparelho de captura; pelo contrário, eles são subjugados à vontade subjetiva do
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fotógrafo. Como a intenção na época era a captação visual sintomática das crises histéricas
plausível dizer que a captação de um diagrama analítico dessas crises podia variar de
acordo com o fotógrafo que manuseasse o aparelho. Animar ou re-animar esses instantes
capturados das crises não apresentaria nenhuma vantagem para a ciência, pois a presença de
analisado. Tal fato levava à utilização desses instantes apenas como gráficos ilustrativos e
linguagem visual, obtida pelos processos de captura de imagens. Contudo, isso se restringia
à utilização própria de uma comunidade independente, e que objetivava tão somente sua
excessivos a essas descobertas numa análise estritamente estética. Portanto, somos levados
dos constitutivos próprios da montagem estética, mas sim uma comunidade preocupada
com a utilização não científica dessa aparelhagem. Obviamente, foram as invenções que
tecnologia sozinha não cria revoluções, e que essa mesma tecnologia fora utilizada com fins
bastante divergentes entre si, e, ainda, que dentre esses fins podemos encontrar aqueles que
nada acrescentaram, no momento mesmo de sua utilização, para uma evolução das
Em um artigo de 1923 Béla Balázs defende que: “No momento, uma nova
descoberta, uma nova máquina, trabalha no sentido de devolver, à atenção dos homens,
uma cultura visual, e dar-lhes novas faces. Essa máquina é a câmera cinematográfica”
(1983, p. 77). Podemos analisar com mais cuidado essa frase e dizer que não é a máquina
quem trabalha para devolver a linguagem visual ao homem, mas sim que o próprio homem
é quem o faz. A diferença pode parecer terminológica, mas na verdade não é. Dizer que
uma invenção humana trabalha em prol de algo é esquecer no mínimo duas importantes
questões, qual sejam: (1) a de que havia comunidades que se utilizavam desta mesma
sim em desenvolver métodos estritamente científicos de análises das mais variadas áreas da
ilusionistas e industriais que buscavam sobretudo lucro sobre as exibições que o aparelho
cinematográfico possibilitava. Assim, quando se diz que uma máquina trabalha em prol da
humanidade, ou seja, quando se retira toda a racionalidade, desejo e vontade desse ser que
trabalha, acaba-se por desatualizar toda uma gama de discursos provenientes justamente
desses seres, nada desprovidos de vontade, que de fato movimentaram esse chamado
retorno de uma cultura visual perdida. Em outras palavras, trata-se de uma cultura
Méliès, por exemplo, fica caracterizada não pela utilização do aparato cinematográfico em
sua primeira instância, i. e., pela captura e decomposição das imagens, mas sim por sua
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decompositórios. Contudo, não podemos nos deixar levar, como queria Balázs, pela
incorporeidade discursiva deste aparato. Mesmo que não se tenha em vista a análise do
Lumière), não se pode subtrair de tais figuras a sua identidade política, cultural e subjetiva
“No momento, o cinema está prestes a abrir um novo caminho para a nossa
cultura. Milhões de pessoas freqüentam o cinema todas as noites e unicamente através da
visão vivenciam acontecimentos, personagens, emoções, estados de espírito e até
pensamentos, sem necessidade de muitas palavras. Pois as palavras não atingem o
conteúdo espiritual das imagens e são meros instrumentos passageiros de formas de arte
ainda não desenvolvidas. A humanidade ainda está aprendendo a linguagem rica e
colorida do gesto, do movimento e da expressão facial. Esta não é uma linguagem de
signos substituindo as palavras, como seria a linguagem-signo do surdo-mudo – é um
meio de comunicação visual sem a mediação de almas envoltas em carne. O homem
tornou-se novamente visível” (1983, p. 79).
uma vez que foi escrito durante um período no qual o filme a cores era apenas um sonho
distante. Obviamente, não está se tratando aqui das cores propriamente ditas da película
cinematográfica obtidas através de processos fotoquímicos, mas sim das qualidades de uma
Classificar a linguagem do gesto como colorida é o mesmo que elevar o seu nível de
gama de requisitos internos ao espectador, para que ele pudesse extrair sentido desta recém
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mídia. Não que a linguagem visual fosse novidade aos seres, que o ser humano não
utilizasse gestos para se comunicar antes do cinema; a novidade estava no fato de não ser
exatamente uma comunicação entre humanos, e sim entre humanos e seres sem “almas
envoltas em carne”. É aí que se encontram todas as cores de uma nova interação, uma
Durante os seus dez ou vinte primeiros anos, o cinema quase não apresentou
complexidades narrativas e enredos elaborados. Isso se deveu a uma série de fatos, dentre
exibição, o curto tempo dos filmes exibidos (que variava geralmente de um a cinco
quais eram e quais não eram as informações necessárias para se acompanhar a trama
proposta. Como descreve Arlindo Machado: “O cinema, mesmo o cinema stricto sensu, ou
Akladanowky e dos Lumière, não era ainda, nos seus primórdios, o que hoje chamamos de
cinema” (Machado, 2002, p. 76). Isso ocorria porque o cinema era antes de tudo uma
etc” (Machado, 2002, p.76). O cinema formava, assim, um mundo paralelo ao mundo da
Como não era logística ou politicamente viável uma interdição direta a essas
manifestações culturais, ditas “vulgares”, o que acabou por acontecer foi um processo de
industriais. Durante um longo período de tempo, os filmes foram exibidos como atrações
conjugadas com peças de teatro, como atrativos para as portas das barracas de museus de
cera, números de circo, lutas livres, etc., em feiras de variedades realizadas nesses cordões
industriais e guetos. Assim, o cinema era apenas mais uma atração entre tantas outras
Com o advento dos Nickelodeons, salas de cinema que, em seus primórdios, não
começa a ter seu caráter de exclusividade atrativa explorado. Contudo, seu papel
acabava por atrair o mesmo público das feiras, o que ainda impedia que a sociedade da
“cultura oficial” voltasse sua atenção a essa forma de espetáculo. Os filmes exibidos nessas
salas continham ainda a mesma formatação das atrações de entreato das feiras, ou seja,
eram filmes bastante curtos, que duravam em média três minutos, e mostravam geralmente
era extremamente limitada e primava sobretudo por esse tipo de exibição de entendimento
“No período que vai de 1895 (data das primeiras exibições do cinematógrafo dos
Lumière) até meados na primeira década do século seguinte, os filmes que se faziam
compreendiam registros dos próprios números de vaudeville [feiras de variedades], ou
então atualidades reconstituídas, gags de comicidade popular, contos de fadas,
pornografia e prestidigitação. Os catálogos dos produtores da época classificavam os
filmes produzidos como “paisagens”, “notícias”, “tomadas de vaudeville”, “incidentes”,
“quadros mágicos”, “teasers” (eufemismo para designar pornografia) etc. O sistema de
representação que podemos identificar como específico desse período deriva não tanto
das formas artísticas eruditas (teatro, ópera, literatura) dos séculos XVII e XIX, mas
principalmente das formas populares de cultura provenientes da Idade Média ou de
épocas imediatamente posteriores” (Machado, 2002, p. 80).
possuíam algo em comum: eram caracterizadas, mormente, por tomadas simples captadas
num único plano, ou seja, a câmera era como a memória de um espectador estático que
podia ser reproduzida. A câmera não se movia, apenas capturava as imagens que se
questão da montagem anda de braços dados com o problema narratológico do cinema. Com
efeito, os filmes em pauta não tinham a pretensão de narrar histórias, pois não derivavam
diretamente das artes eruditas e por natureza narrativas. Assim, o que se nota como
características gerais do cinema, nos seus primeiros vinte anos é que ele resumia suas
tomadas ao plano único, não constituía uma prática narrativa corrente, não era a atração
favoreceram a instauração de uma narrativa no cinema. Para tanto, algumas posturas foram
tomadas na época. Um dos primeiros passos foi a censura. Em 1908 criou-se uma agência
de controle nos EUA, a MPPC (Motion Pictures Patents Company). Contudo, como bem
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ressalta Machado (2002), ela apenas censurava o que não se podia fazer, sem no entanto
aceitação de filmes produzidos na segunda metade da primeira década do século XX, foi a
recriação fílmica de obras românticas dos séculos XVIII e XIX. Assim, a moral e os bons
cinema. Porém, o cinema ainda não tinha formas nem modelos nos quais se abalizar para
Assim:
surpreendente “vantagem” sobre a literatura realista, qual seja, a sua base de registro
mais claro e evidente ao espectador do que ao leitor. Não é à toa que as primeiras incursões
ocorridos, como o célebre The great traim robbery (1903), de Edwin Porter e uma série de
outros que reproduziam nas telas os acontecimentos de crimes, processos, batalhas e outros
fatos históricos. Esses filmes foram os primeiros a embasar a prática narrativa dos filmes
que buscavam na literatura a sua fonte de inspiração para uma tentativa de socialização do
cinema.
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grande cidade. O figurino dos atores é exatamente igual aos trajes cotidianamente utilizados
pelas outras pessoas que ali transitam e não são atores. Os atores não estão num palco, eles
movimento de pessoas. A ele não foi informado quais pessoas fazem parte do elenco e
quais são apenas transeuntes da praça. O grande problema deste espectador é, obviamente,
que ele não sabe para onde deve convergir a sua atenção. Se por acaso ele presencia um
assalto, sua atenção vai ser deslocada para esse acontecimento, o que pode levá-lo a pensar
que está diante da verdadeira trama montada na praça. Contudo, se essa ação não tiver
desenvolvimento, ou, se o tiver, ele não se conectar a uma outra ação que o justifique, o
espectador perderá o interesse e dirigirá sua atenção a outro foco. Da mesma maneira,
centenas de outras atrações, como anúncios, ruídos, pessoas, sinais, discussões, beijos, etc,
encenado e às vezes parte da vida mesma de outras pessoas. Por outro lado, se ele fosse
informado de que tais e tais pessoas constituem o elenco da peça, seu problema se
evolução das personagens e de seus laços dramáticos; enfim, estaria apto a acompanhar o
constitutivos da trama? Como contar uma história e lidar com a facilidade de dispersão da
atenção do espectador por vários motivos, como a própria novidade de se ver figuras
humanas se movendo numa tela? Em outras palavras, o problema era o de como dar ordem
imaginações presentes das formas mais variadas. “As primeiras imagens cinematográficas
para tal problema foi a de se adotar a presença de um conferencista que, através da sua voz,
explicar aos espectadores o que estava acontecendo no filme e para onde eles deveriam
discurso civilizatório que o cinema carecia para atingir a burguesia instruída nos princípios
religiosos e morais da época, sendo inclusive obrigatória por lei em alguns estados norte-
americanos.
material de base” (Munsterberg, 1983, p. 27). Era preciso criar sobre esse material a
corrente narrativa da obra. É interessante notar que esse material de base já constituía, em si
mesmo, a maior das novidades, não somente em termos técnico-científicos, como também
em termos de linguagem. Era aquilo que Balázs chamou de interação entre seres humanos e
seres sem almas envoltas em carne – o que realça a presença de elementos fantásticos na
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tornar narrativo para melhorar o “nível” de seus espectadores, para isso ele precisaria fazer
funcionar o canal de comunicação entre esses seres possuidores de almas e os outros que
não a possuíam. Apenas um suporte verbal e sonoro poderia fazer com que essa ponte de
comunicação fosse completada, uma vez que os espectadores que freqüentavam as feiras de
variedades eram em sua grande maioria analfabetos, o que desarticulava a utilização plena
extremamente necessária dentro da estrutura narrativa dos filmes. Uma grande parte dos
efeito negativo que a presença de um senhor em terno e gravata, com ares tutoriais,
interação do espetáculo.
agora: quais eram as particularidades dos filmes que geravam a confusão aos espectadores?
Para entendermos tal questão, devemos nos ater à estrutura geral dos filmes produzidos no
início do séc. XX. De antemão podemos dizer que, de uma forma genérica, a câmera
cinematográfica nunca se movia. Ela ficava inerte na posição frontal da ação. Assim, os
quadros desse cinema eram fixos e toda a ação se desenrolava de modo semelhante ao
teatro. A câmera era, então, a visão privilegiada do espectador teatral. Cada quadro desses
possuía autonomia, e o filme era uma reunião desses quadros autônomos, separados por
era que a qualidade de definição da película utilizada era muito baixa, o que dificultava ao
relações mantidas por eles durante o filme. O fato de a câmera não se mover e de se
enquadrar a ação sempre mais ou menos no plano geral trazia no mínimo dois problemas de
entendimento. O primeiro problema era o de se identificar no quadro quem era e quem não
era importante para a estrutura narrativa. O segundo era a baixa qualidade do filme. Mesmo
quando o espectador conhecia de antemão a trama, lhe era penoso acompanhá-la devido às
principais, em acedência com as duas principais questões que contribuíam para a confusão
aguçada de personagens e de seus estados mentais se fez possível, pois agora o produtor
seria capaz de selecionar um detalhe, como um aperto de mão, uma lágrima de tristeza, um
ordem dramática dos filmes. Através dela o produtor poderia escolher quais eram os
detalhes mais importantes da história que deveriam ser vistos pelo espectador e quando isso
deveria acontecer, atraindo a sua atenção para uma série de acontecimentos que,
encadeados, geravam a trama do filme. Obviamente isso não era coisa simples de se fazer,
uma vez que a linguagem era ainda uma grande novidade, não apenas para os espectadores,
mas também para os realizadores. Como nota Hugo Munsterberg, o espectador não podia
“Devemos acompanhar as cenas que vemos com a cabeça cheia de idéias. Elas
devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de
experiências anteriores, mobilizar sentimentos e emoções, atiçar a sugestionalidade, gerar
idéias e pensamentos, aliar-se mentalmente à continuidade da trama e conduzir
permanentemente a atenção para um elemento importante e essencial – a ação”
(Munsterberg, 1983, p. 27).
vistas a seu enredo é desenvolvido pelo psicólogo Hugo Munsterberg, em seu artigo “A
particular para nós, uma vez que foram escritos por alguém que apenas teve contato com as
Munsterberg, falecido em 1916, não chegou a assistir Intolerância, de Griffith, por exemplo
(Xavier, 1983). Nesse artigo – presente no livro Photoplay: a psycological study –, ele
defende que o trabalho de direção da atenção tem dois lados, um deles de responsabilidade
do realizador e o outro do espectador. Ao montar (o termo vai destacado, pois ainda não
foram determinadas profundamente, neste trabalho, as suas propriedades) uma obra de arte
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qualquer, o autor pressupõe que ela será assistida, ouvida ou lida por alguém, mesmo que
Assim, é natural que se suponha que há, entre a obra e o seu público, um elo
comum de linguagem. Nas artes narrativas, como o teatro, a ópera e a literatura, o autor
pretende passar algo premeditado ao espectador, e para tanto precisa lançar mão das suas
contigüidades expressivas. Por outro lado, o espectador precisa também se deixar levar pelo
autor – crítica ou não criticamente – para que se feche o ciclo da interação entre autor, obra
e leitor/espectador. É bom ressaltar que estamos tratando aqui do nível mais primordial da
comunicação, aquele que se resume à linguagem, sem vistas àquilo que ela carrega como
requer que abdiquemos, ao menos por hora, de questões referentes às análises dos discursos
Segundo Munsterberg:
A questão aqui é a de perceber que o foco ao qual Munsterberg se refere pode ser
de dois tipos distintos. Por exemplo, num filme, ou num romance, o espectador/leitor pode
dirigir o foco de sua atenção aleatoriamente – desde os mais ínfimos detalhes de cena ou
dentro da narrativa. Por outro lado, há certas escolhas que o espectador, e o leitor não
podem fazer. Por exemplo quando Mellvile escreve em seu Moby-Dick; or, The Whale:
“Pode me chamar de Ishmael. Alguns anos atrás – não importa quantos precisamente –
numa época que eu tinha pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em terra firme que
pudesse me despertar o interesse, pensei que era hora de navegar um pouco e ver a parte
aquosa do mundo” (1948, p. 1). 2 O leitor não pode decidir se a sua atenção captará ou não o
nome da personagem, ou o fato de ele ter pouco ou nenhum dinheiro no bolso, mesmo que
esse leitor se preste a ler a obra de trás pra frente ou se concentrando apenas em filigranas
da paisagem. Essas informações, embora não possam ser ignoradas pelo leitor, podem cair
para o segundo plano de sua atenção, ficando a cargo do autor a tarefa de assinalar, realçar
atenção toda uma gama de conceitos subjetivos e a priori, que servem como constituintes
moralizadores que selecionam, no ato de análise, o que deve e o que não deve ser levado
2
“Call me Ishmael. Some years ago – never mind how long precisely – having little or no money in my purse,
and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of
the world” (tradução nossa).
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a atenção não é intrínseca e subjetiva, mas sim extrínseca. Nesse caso, o que impera é a lei
do mais brilhoso e barulhento, mas também a lei do mais belo, do mais feio etc. O que
Munsterberg nos diz é que existem estímulos exteriores que são capazes por si mesmos de
controle, esse tipo de atenção só pode ser involuntária. No caso de algo externo – como
uma notícia triste estampada numa banca de revistas por exemplo – nos chamar a atenção
involuntariamente, e depois disso passarmos a dedicar mais atenção a esse anúncio, ainda
assim devemos classificar esse tipo de atenção como involuntária, pois para o psicólogo a
espectador é involuntária, pois é toda sugerida pela intenção dos produtores. Obviamente,
como ressalta o próprio autor, um espectador pode muito bem se dirigir ao teatro e não se
escolhidos pela sua atenção voluntária. Porém, isso não caracterizaria a interação necessária
para que se dissesse que o espectador foi ao teatro e que plenamente assistiu à peça. Esse
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postulado é bem defendido, uma vez que até mesmo no teatro épico brechtiano a atenção se
classificaria como involuntária, pois tudo aquilo que o espectador de Brecht recebia como
subsídios de idéias politizadas era exterior a ele (ao espectador) e portanto se caracterizaria,
perceba que o involuntarismo do público, o qual Brecht tentava ultrapassar em seu teatro,
classificação entre os tipos de atenção é algo medido na relação do espectador com a obra
em seus aspectos superficiais e sensíveis, i. e., em suas relações psíquicas e biológicas, não
algum – excedendo-se os desafios próprios que impõe qualquer trabalho artístico que se
faltavam meios de se atrair a atenção da platéia: com a voz, com gestos, movimentos
“É evidente que à exceção das palavras, nenhum meio de atrair a atenção válido
para o palco se perde no cinema. A influência exercida pelos movimentos dos atores
torna-se ainda mais relevante na tela, uma vez que, na falta da palavra, toda a atenção
passa a convergir para a expressão do rosto e das mãos” (Munsterberg, 1983, p. 31).
da platéia, de acordo com sua conveniência narrativa nos seus primeiros anos, se a sua
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linguagem ainda era tão nova e deficiente? A resposta é: através do movimento da câmera e
da montagem, como citado acima. Contudo, não bastava trazer uma mão apreensiva ou um
olhar lacrimejoso ao primeiro plano para se obter sucesso na transmissão da narrativa. Pelo
contrário, isso traria ainda mais confusão aos espectadores, que não saberiam dizer a quem
pertence aquele olho e qual a razão de ele estar tão “volumoso” na tela. “O grande
problema para representar com naturalidade a transição do plano geral e objetivo para o
mirada, segundo conceitos de continuidade que serão formulados só mais tarde” (Augusto,
2004 p. 34). O grande desafio era o de como conciliar as semelhanças e ligações lógicas
opinião, explicariam o procedimento pelo qual o cinema seria capaz de capturar a atenção
das mentes da platéia e conduzi-las linearmente através de um todo narrativo, e, por assim
dizer, resolver o problema lógico da interação dos pontos de vista envolvidos no processo
fílmico. O primeiro fator é o da nitidez que assume o objeto focalizado pela atenção. “Tudo
o que atrai a atenção via qualquer um dos sentidos – visão ou audição, tato ou olfato –
certamente fica mais nítido e claro na consciência” (Munsterberg, 1983, p. 32). Porém,
ressalta ele, esse processo não tem nada a ver com processos de intensidade. Se no caso de
uma luz tênue chamar-nos a atenção, ela permanecerá tênue em nossa visão, não se
transformará num raio forte de luz, ela apenas ganhará mais vivacidade, seus contornos
ficarão mais perceptíveis e sua presença muito mais marcante em nossa consciência.
“Agora ela tem mais poder sobre nós ou, metaforicamente, introduziu-se no âmago da
perdem qualidade em nitidez e a sua presença fica mais distante de nós. “Enquanto a
impressão privilegiada se torna mais nítida, todas as outras se tornam menos definidas,
claras, distintas, detalhadas. Deixamos de reparar nelas. Elas perdem a força, desaparecem”
(Munsterberg, 1983, p. 32-33). O psicólogo defende que, por exemplo, quando lemos um
romance e nos encontramos totalmente absortos pela leitura, deixamos de dar notícias sobre
nossos arredores, esquecemos do resto das coisas que nos cercam e dedicamos
exclusivamente a nossa atenção à leitura. Destarte, tudo aquilo que não se encontra focado
pela atenção, no caso o livro, perde tanto o interesse que passa a não mais existir enquanto
ponto externo. Todos os músculos se tencionam para receber dos órgãos sensoriais a
impressão mais plena possível. A lente do olho se ajusta com exatidão à distância correta”
(Munsterberg, 1983, p. 33). Isso quer dizer que a nossa identidade corpórea é dotada da
capacidade de busca da plenitude da impressão. Tal fato nos leva ao quarto fator proposto:
forma isolada, mas formam um conjunto estrutural pelo qual a atenção funcionaria como
processo. Esse processo é sugerido pelo psicólogo como o viés mais propício para que a
lógica das imagens na tela atinja a lógica interior da platéia. Em outras palavras, um filme,
para ser inteligível, necessitaria de obedecer à coerência subjetiva pela qual funcionam os
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mecanismo da atenção. Seguindo-se esse postulado, a atenção dos espectadores poderia ser
1 – Se tudo aquilo que nos chama a atenção ganha vivacidade e nitidez, e se tudo
aquilo que não é foco da nossa atenção desaparece da nossa vista, basta ao cinema adotar a
mesma estratégia, através das técnicas de ampliação da imagem na tela, trazendo para nós o
acordo, através da atenção involuntária, o que lhes é sugerido, fica então a cargo do
produtor do filme selecionar as cenas que nos guiarão através da trama desenrolada no
filme.
“Começa aqui a arte do cinema. A mão nervosa que agarra febrilmente a arma
mortífera pode súbita e momentaneamente crescer e ocupar toda a tela, enquanto tudo
mais literalmente some na escuridão. O ato de atenção que se dá dentro da mente
remodelou o próprio ambiente. O detalhe em destaque torna-se de repente o conteúdo
único da encenação; tudo o que a mente quer ignorar foi subitamente subtraído à vista e
desapareceu. As circunstâncias externas se curvam às exigências da consciência. Os
produtores de cinema chamam a isso de close-up” (Munsterberg, 1983, p 34).
O que Munsterberg propôs foi uma forma pela qual o cinema deveria funcionar
se quisesse ser compreendido. Essa forma deveria se forjar a partir do nosso ato de atenção.
Contudo, haveria ainda um problema a ser transposto pelo cinema para que esse postulado
surtisse efeito. Como utilizar os atos de atenção, que são internos aos sujeitos, de uma
maneira exteriorizada, e ao mesmo tempo dar conta a eles de que essa operação está sendo
transparecer que essa forma de atrair a atenção também lhe é interna? Qual a sutileza
necessária para se contar uma história utilizando a mesma estrutura das atenções objetivas e
35
seu entendimento?
decorrente do fato de que tudo se dava de maneira simultânea dentro do plano, como
exemplifica Arlindo Machado através do filme Tom Tom the piper’s son 3 . No quadro de
abertura desse filme é apresentado ao espectador o plano geral de uma feira cheia de
pessoas que circulam de um lado para o outro no plano. Uma mulher ocupa boa parte da
cena fazendo acrobacias numa corda bamba, algumas senhoras conversam do lado
parte inferior do plano. De todos esses elementos, o único que interessa à narrativa é o
roubo do porco, que “explica” o plano seguinte, no qual a polícia persegue os ladrões.
“Como ter garantias de que os olhos do espectador não iriam se ‘distrair’, movendo-se em
direção a detalhes não necessariamente importantes para o desenvolvimento da intriga? O
que fazer para que o espectador visse forçosamente o roubo do porco, com tantos outros
elementos atrativos dentro do quadro? Como, enfim, dirigir o olhar apenas para os pontos
de interesse da narrativa, evitando que o espectador, por força de algum detalhe perverso
ou mal controlado, fizesse uma “leitura” do quadro diferente daquela que a história
exigia? (2002, p. 100).
3
Tom Tom the piper’s son, Billy Bitzer, 1905.
36
dirigi-los? Eis a pergunta que a narrativa cinematográfica deveria responder para avançar
na narratologia. Para nós, espectadores modernos, a resposta parece tão óbvia que nos é
difícil imaginar tal coisa como problemática, tamanha a nossa familiaridade com o método
então desenvolvido. Para nós, parece que o processo é extremamente natural e lógico; no
entanto, foi necessário que se constituísse uma linguagem arbitrária, a qual se consolidou
com o passar dos anos. Da mesma forma como se precisa de alfabetização para se
o exemplo do quadro inicial de Tom Tom the piper’s son, desta vez na linguagem escrita,
fornecesse ao leitor o todo constituinte do quadro, como na sentença que se segue: “Numa
feira, onde diversas pessoas transitavam, no momento no qual uma mulher vestida de
collant fazia acrobacias numa corda bamba, um grupo de senhoras conversava, uma briga
mesmo tempo através da escrita ou da fala. Assim, se Tom Tom ... fosse refilmado numa
da cena; e finalmente o roubo do porco num plano que privilegiasse a ação. Como se pode
37
linguagem escrita.
do conteúdo simultâneo numa linha temporal, a linearização atende também a uma outra
função: a demonstrativa. O teórico cita um exemplo de The man who knew too much 4 . Há
uma cena nesse filme em que um assassino recebe ordens de matar um embaixador no
exato momento em que soarem os címbalos durante um concerto sinfônico. A única pessoa
presente que sabia do plano era uma mulher cujo filho se encontrava sob poder dos
bandidos; como conseqüência disso não podia avisar a polícia da presença do assassino. A
peça que a orquestra apresentava continha apenas um toque de címbalos. Hitchcock nos
pratos, a qual trazia a única e fatal nota. A mulher, durante a aproximação do desfecho da
ação, entra em crise por não saber que atitude tomar: se salva o filho não se manifestando
exato em que os címbalos se chocam, a mulher solta um grito de desespero que assusta o
dos braços.
Se esse trecho fosse desenvolvido nas premissas fílmicas do início do cinema, ele
seria mostrado através de uma câmera fixa que enquadraria o plano geral do teatro no qual
a ação se deu, captando todos os seus elementos simultaneamente. Ninguém seria capaz de
entender exatamente o que aconteceu, pois o que há nessa cena para ser apreendido se
encontra na relação entre seus fatos – o assassino só errou o tiro porque a mulher gritou, e o
4
The man who knew too much, Alfred Hitchcock, 1956.
38
tiro só não matou o embaixador porque quem disparou foi assustado, no momento do
disparo, pelo grito. Quem prestasse atenção no assassino não perceberia que a mulher
estava gritando; quem prestasse atenção nela não perceberia que o embaixador estava sendo
alvejado; quem prestasse atenção na orquestra não veria nem a mulher desesperando-se
nem o assassino disparando, etc. Mais importante do que isso, ninguém perceberia que fora
por causa da aproximação do toque dos címbalos que a mulher se desesperava, nem que
fora por causa de seu grito que o assassino perdera a precisão da mira, e nem que fora por
Hitchcock propõe uma forma de colocar esse enunciado que demonstra e explicita
Primeiro ele mostra a mulher gritando, depois o assassino disparando meio desconcertado
pratos, e só depois disso o embaixador e sua comitiva assustados. Dessa forma podemos
produto. Essa lógica que subjaz à sucessão foi uma das descobertas mais remotas dos
expressões ao espectador não podem ser entendidas apenas como explicitação de algo
difícil de ser visto num plano geral, mas também como um coeficiente regulador de causa e
efeito dentro da narrativa. Posto de outra maneira, o que se começa a buscar é uma
funcionamento e dominar a linguagem desse tipo de montagem linear. Só com muito vagar
39
narrativa. Pois, à medida que se extraem mais informações de uma cena, tem-se em mãos
mais informações para inserir na estrutura sintagmática da trama. Assim, o cinema começa
outras palavras, o cinema aprendeu a contar histórias a partir do momento em que foi capaz
partir do momento em que foi capaz de capturar o sentimento das personagens através de
momento em que foi capaz de dividir a informação confusa do plano geral em unidades
menores de sentido; e de dispô-las numa linha temporal de maneira adequada para que elas
É bom ressaltar que, embora esse processo pareça demasiado natural aos nossos
olhos de espectadores modernos, foram necessários vários anos para que ele se
nas salas de cinema. Foram cometidos diversos erros e falhas de continuidade nos filmes
em nome das experiências necessárias para a consolidação desse modelo. Esse processo só
foi possível graças aos esforços de diversos realizadores e a uma sedimentação de técnicas
e experimentos que aos poucos foram constituindo uma tradição. Alguns nomes se
destacaram durante esse processo evolutivo, merecendo uma maior pormenorização, acerca
40
de suas contribuições, o nome de David Wark Griffith, tido pela grande maioria dos
Ismail Xavier, Nöel Burch e Gilles Deleuze), como o mais inventivo dos cineastas do
O que vimos até agora foi como o cinema, enquanto tecnologia e linguagem,
forma bastante resumida e de forma alguma totalizante – até o ponto no qual ele foi capaz
de contar histórias baseado no modelo de montagem linear, o que ocorreu mais ou menos
entre os anos de 1897 (data considerada por Arlindo Machado como significativa pelas
primeiras experiências de montagem de Georges Mélliès) até a segunda metade dos anos de
1910, quando já se podiam enumerar algumas experiências em torno de um outro tipo mais
cinematográfica
alguns trechos de um texto de autoria de Stefan Zweig. Em um desses trechos podemos ler:
“Se alguma vez um homem teve o dom da visão – e não apenas da visão, mas da
audição e do olfato –, e a faculdade de lembrar com precisão microscópica os detalhes de
tudo já visto ou ouvido, ou provado, cheirado ou sentido, este homem foi Charles
Dickens... Podemos ver, ouvir, tocar, provar e cheirar tudo o que ele descreve,
exatamente como acontece ao nos depararmos com algo na vida real, e é de tal modo
vívida sua descrição que se torna positivamente fantástico.
(...) Sua psicologia começou com o visível; ele chegou à compreensão do
personagem pela observação do exterior – a mais delicada e mínima minúcia da aparência
externa, suas extremas sutilezas que apenas os olhos que se tornam agudos devido a uma
imaginação superlativa podem perceber. Como os filósofos ingleses, ele não começa com
hipóteses e suposições, mas com características... Através de traços, ele revela tipos:
Creakle não tinha voz, falava num sussurro; o esforço, ou a consciência de que tinha
dificuldade de falar fazia com que seu rosto zangado ficasse muito mais zangado, e suas
grossas veias muito mais grossas. Quando lemos a descrição, o terror que os meninos
sentiam à aproximação desse homem irascível se manifesta em nós também. As mãos de
Uriah Heep são úmidas e frias; sentimos horror da criatura logo no início, como se nos
defrontássemos com uma cobra. Pequenas coisas? Detalhes externos? Sim, mas que
invariavelmente são capazes de repercutir na alma” (Zweig, citado por Eisenstein, 2002,
p. 186).
correlação imediata com a leitura adulta, e o que ele defende é que, assim como as crianças,
os adultos também se deixam levar pelos detalhes exteriores dos personagens da obra de
Dickens. Ora, como bem observa Eisenstein, é aí que também se concentra o brilhantismo
ligação entre infantil e adulto passa por alguns níveis de leitura no texto de Eisenstein, tais
como as ligações entre velho e novo, passado e presente, inocência e não inocência e,
“A chaleira começou...”, assim abre Dickens o seu The cricket on the earth e
assim também abre Eisenstein seu artigo “Dickens, Griffith e nós”, defendendo que “do
para sempre vinculada ao nome de David Wark Griffith” (Eisenstein, 2002, p. 176). Mas
como – pergunta Eisenstein – podemos ligar esses dois grandes nomes ignorando as suas
Londres bucólica e pacata com uma Nova York predial e agitada? Nas palavras do teórico:
“que possível identidade há entre o Moloch da indústria moderna, o ritmo vertiginoso das
valores, de um lado, e... a pacífica e patriarcal Londres vitoriana dos romances de Dickens,
que:
“No que diz respeito à velocidade do tráfego, não se pode ser subjugado por ela nas
ruas da metrópole pelo simples fato de que esta velocidade não pode existir lá. Esta
desconcertante contradição reside no fato de que os automóveis super-rápidos ficam tão
presos nos engarrafamentos que não podem se movimentar muito mais rápido do que
lesma arrastando-se de quarteirão a quarteirão, parando em cada cruzamento não devido
apenas à multidão de pedestres, mas devido ao tráfego que atravessa, rastejando à sua
frente” (Eisenstein, 2002, p. 177).
43
entre os mundos de Dickens e Griffith. Diz, por exemplo, que os arranha-céus não passam
de casas provincianas empilhadas umas sobre as outras, que é bastante comum transpormos
uma esquina do centro comercial de prédios enormes e depararmo-nos com casas do estilo
colonial, e que muitas vezes basta seguirmos um caminho numa mesma direção para
Assim, o que o autor coloca é que havia uma onda de provincianismo que
impregnava as cidades, para além de exemplos isolados como casas destoantes e igrejas
coloniais nos centros da metrópole. “Este bom e velho provincianismo se insinuou nos
apartamentos, aninhando-se em bando ao redor das lareiras, nas macias cadeiras do vovô e
máquinas de lavar, e rádios” (Eisenstein, 2002, p. 178). A imagem dos paninhos cobrindo
não podia parar na superfície sensível das coisas: “é-se surpreendido principalmente com a
camadas médias da cultura norte-americana” (Eisenstein, 2002, p. 178). Ora, não seria
justamente essa camada que o cinema buscava atingir com seu desenvolvimento narrativo,
como destacado por Arlindo Machado nas páginas acima? Não seria exatamente essa a
camada detentora do registro “oficial” da cultura a qual o cinema deveria atingir, e que,
44
para tanto, precisaria primeiramente aprender a contar histórias? Ao que parece, Eisenstein
foi um dos primeiros a perceber que a ligação entre Dickens e Griffith ultrapassava os
estética.
“Para entender Griffith, deve-se visualizar uns Estados Unidos composto de mais
do que visões de automóveis velozes, trens aerodinâmicos, fios de telégrafo, inexoráveis
correias de transmissão. É-se obrigado a compreender este segundo rosto dos Estados
Unidos também – os Estados Unidos tradicionais, patriarcais, provincianos. E então se
ficará consideravelmente menos espantado com esta vinculação entre Griffith e Dickens”
(Eisenstein, 2002, p. 178).
com o teórico, isto acontece através de uma relação simbiótica entre as duas formas
dickensoniano que Griffith constrói sua narrativa. Ela é construída ao mesmo tempo sobre o
caráter moderno e dinâmico da obra do escritor. “O mais curioso é que Dickens parece ser
a fonte de ambas as linhas do estilo de Griffith, que refletem as duas faces dos Estados
respeito do modo como Griffith foi influenciado por Dickens sob o paradigma da
provincialidade de sua narrativa. Essa proposição pode ser descrita através da seguinte
por viverem, de certa forma, sobre os mesmos preceitos provincianos dos quais ambas as
45
narrativas eram carregadas. Assim, pode-se dizer que a utilização e o reconhecimento dos
elementos narrativos de uma tradição vitoriana no cinema pelos espectadores de Griffith foi
fundamental para que o cinema como um todo avançasse no terreno, até então hostil, da
narração fílmica.
Mas como compreender a segunda idéia defendida por Eisenstein de que não é
somente nos elementos vitorianos e realistas da obra do escritor que o cineasta baseou a sua
teoria? A resposta apontada por ele estaria em: “A chaleira começou...”, de The Cricket on
the Earth. Essa chaleira representa para Eisenstein o típico primeiro plano de Griffith: “um
primeiro plano saturado da atmosfera típica de Dickens, com a qual Griffith, com igual
mestria, sabe envolver a dura vida em No Oeste Distante 5 , e a face moral gelada de seus
personagens”, por exemplo (Eisenstein, 2002). Ainda que Eisenstein cite um exemplo
tardio da obra do cineasta, os primeiros planos narrativos já estão presentes nos seus filmes
desde o início da década de 1910, embora ainda de forma bastante experimental. Arlindo
um modelo fílmico baseado nas montagens lineares e paralelas capaz de ser inteligível ao
Arden 6 :
5
Título original: Way Down East, realizado por Griffith, Estados Unidos da América, 1920.
6
Na verdade há duas versões desse filme, After Many Years, filmado em três dias, entre setembro e outubro
de 1908 e baseado no poema “Enoch Arden”, de Alfred Tennyson, realizado por Frank Woods; e Enoch
46
“Quando o Sr. Griffith sugeriu que a cena de Annie Lee esperando pela volta do
marido fosse seguida de uma cena de Enoch naufragado numa ilha deserta, foi mesmo
muito perturbador. ‘Como pode contar uma história indo e vindo desse jeito? As pessoas
não vão entender o que está acontecendo.’
‘Bem’, disse o Sr. Griffith, ‘Dickens não escreve desse modo?’
‘Sim, mas isso é Dickens, este é um modo de se escrever um romance; é diferente’
‘Oh, não tanto; escrevemos romances com imagens; não é tão diferente’” (Linda
Griffith citada por Eisenstein, 2002, p. 180).
Walkey escreveu:
“Ele (Griffith) é um pioneiro, ele próprio admite, em vez de inventor. Isto quer
dizer que ele abriu novos caminhos na terra do cinema, tendo como guia idéias fornecidas
a ele. Suas melhores idéias, parece, surgiram a partir de Dickens, que sempre foi seu autor
favorito... Dickens inspirou o Sr. Griffith com uma idéia, e seus empregadores (meros
homens de negócio) ficaram horrorizados; mas diz o Sr. Griffith, ‘fui para casa, reli um
dos romances de Dickens, e voltei no dia seguinte para dizer-lhes que poderiam ou usar a
minha idéia ou despedir-me’” (A. B. Walkey, citado por Eisenstein, 2002, p. 183).
Contudo, não seria correto afirmar que apenas nas obras desse escritor em
Mas qual foram afinal as contribuições desse cineasta para a narratologia do cinema? O
filósofo francês Gilles Deleuze, em seu livro L’Image mouvement, destaca três formas
principais de montagem criadas por Griffith. Segundo ele, Griffith considera a montagem
“como uma organização, um organismo, uma grande unidade orgânica” 7 (1983, p. 47). E
dentro desse organismo, o cineasta separa, numa relação binária, as partes significantes que
Arden, baseado no mesmo poema e realizado por Griffith três anos mais tarde. Essa versão era bipartida, cada
parte com 11 minutos de projeção. (N. Sergei Eisenstein).
7
Griffith concebe a montagem “comme une organisation, un organisme, une grande unité organique”
(Tradução nossa)
47
(Deleuze, 1983, p. 47). Essas partes distintas são os blocos da narrativa binária que
Essa alternância das dimensões narrativas é seguida de uma outra inovação por
câmera, que foca o conjunto da cena e posteriormente filigranas físicas dos atores, como
lágrimas, movimentos das mãos ou sorrisos. O clássico exemplo da utilização desse tipo de
montagem é uma cena do filme Intolerância, na qual a mulher ouve a sentença de morte do
marido, pelo crime que ele não havia cometido. Nessa cena nunca vemos a figura da atriz
por completo, apenas uma alternância em primeiros planos de suas mãos e rosto.
8
“L’organisme est d’abord une unité dans le divers, c’est-à-dire un ensemble de parties différenciées: il y a
les hommes et les femmes, les riches et les pauvres, la ville et les campagne, le Nord et le Sud, les intérieurs
et les extérieurs, etc (tradução nossa)
48
chamada montage concourant ou convergent. Como o próprio nome sugere, esse tipo de
Com estas três formas distintas de montagem, Deleuze propõe que o cinema
qual as partes menores são constitutivas e funcionais, e essas partículas são baseadas
sobretudo na ação. Assim, o filósofo defende que é “enganoso censurar ele [Griffith] de ser
9
“C’est la troisième figure du montage, montage concourant ou convergent, qui fait alterner les moments de
deux actions qui vont se rejoindre. Et plus les actions convergent, plus la jonction approche, plus l’alternance
est rapide (montage accéléré). (tradução nossa).
10
“Le montage américain est organico-actif” (tradução nossa).
49
griffithiana – e junto com ela uma narratologia do cinema burguês americano – só se torna
um código específico capaz de fazer insurgir de si mesmo a imagem indireta do tempo, ou,
proposições teóricas igualmente inovadoras por parte do cineasta e teórico russo Sergei
artístico com notável rapidez e precisão, já tendo sido comparado por alguns pesquisadores
construtivismo russo, de autoria de François Albera, Luiz Renato Martins destaca que:
“Eisenstein na verdade não se forma, mas explode como cineasta e teórico. Apresenta, na
(2002, p. 11). Interessante notar que Eisenstein aparece num momento no qual
testavam os limites entre a teoria e a prática, fossem elas políticas, formais ou estéticas. O
11
“il est faux de lui reprocher de s’être subordonné à la narration; c’est le contraire, c’est la narrativité qui
découle de cette conception du montage” (tradução nossa).
50
que se tem com Griffith – a extração de formulações e técnicas de montagem de uma série
consolidada, com vistas à criação de uma narratologia geral da forma fílmica – pode-se ver
amplificado e ramificado, em Eisenstein, para outras áreas da arte que não apenas o cinema.
envergadura semiótica.
O objetivo da condução que, neste trabalho, veio desde os cientistas que usavam
preclaro no meio teórico, não surgiu do nada. Ele deve seus acertos, mais do que seus erros,
a essa curta tradição que o precedeu. Esta breve atualização nos servirá não apenas nos
conceitos que se operará mais adiante. A relação entre Griffith e Eisenstein ainda gerará
frutos, pois aquele é tido para este como influência primordial de seus trabalhos.
sendo a primeira fase, a que vai de 1923 a 1930, executada sob o paradigma do cinema sem
áudio, e a segunda, a que vai de 1930 a 1940, já sob o prisma do cinema sonoro. “O período
de 1923 a 1926 é marcado pelo cineasta pela célebre montagem de atrações. [Na qual] no
tem a finalidade de abalar a platéia” (Augusto, 2004, p. 64). Esse período da criação
eisensteiniana nos vai ser de pouca serventia, primeiro porque é uma teoria que apresenta
diversos problemas, além de ser datada e fincada num lugar histórico e geográfico assaz
próprio; em segundo lugar, por ter sido suplantada pelo advento de novas teorias, como a
51
montagem intelectual 12 , formuladas por Eisenstein na segunda fase de sua criação. Não que
não haja falhas e controvérsias nessa próxima fase, a que se inicia em 1930; contudo, essas
motivo dessa preocupação é bastante claro para quem acompanhou de algum modo a
através da montagem, no período da guerra, era fazer “uma narrativa que cont[ivesse] o
O que ele acabou criando com isso foi um robusto e ágil corpo teórico que pode
sua visão de montagem. Ele inicia o texto dizendo que a montagem não é uma
séries artísticas. Na epígrafe desse texto podemos ler uma citação de John Livingstone
“Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi transformada, pela intensidade
da imaginação de um ato criativo instigante. ‘Pense bem’, diz Abt Vogler sobre o milagre
análogo do músico:
Pense bem: cada tom de nossa escala em si é nada; está em toda parte do mundo
– alto, suave, e está tudo dito. Dê-me, para usá-lo! Eu o misturo com mais dois em meu
pensamento; eis aí! Vocês viram e ouviram: pensem e curvem a cabeça!
12
Embora a Montagem Intelectual seja também desenvolvida na primaira parte da criação eisensteiniana, é
sobre a abordagem dada a ela na segunda fase que este trabalho se concentra.
52
musicais, podemos, utilizando dois ou mais tons, formar melodias ou harmonias. A melodia
é o encadeamento dos tons numa linha temporal, a harmonia é a união deles numa execução
se devemos ficar circunscritos à montagem melódica. Esse problema não foi levantado por
Eisenstein; por isso, num primeiro instante vamos entender a epígrafe escolhida pelo
teórico como aludindo à composição linear da música, i.e., à composição melódica, para
“Trabalhando desde o início este material e estes fatos [montagem e síntese], era
natural especular principalmente sobre as potencialidades da justaposição. Foi dada
menor atenção à análise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atenção não
teria sido suficiente por si mesma. A história provou que este tipo de atenção, dirigida
apenas ao conteúdo de planos isolados, na prática levou o declínio da montagem ao nível
de “efeitos especiais”, “seqüências de montagem”, etc., com todas as suas
conseqüências” (Eisenstein, 2002, p. 17).
justaposição de cenas. E que: “teria sido necessário voltar à base fundamental que
compositiva dos conteúdos independentes entre si, isto é, voltar ao conteúdo do todo, das
necessidades gerais e unificadoras” (Eisenstein, 2002, p. 17). Em outras palavras, teria sido
examinar a natureza do próprio princípio unificador”. (Eisenstein, 2002, pág. 17). O que
Eisenstein diz é que a atenção se voltou aos casos paradoxais nos quais o resultado da
junção fílmica se encontra à mercê do acaso, do não esperado. Assim, preocupar-se com o
elemento independente e passa a ser uma representação particular do tema geral da obra. É
através desses elementos que a imagem, a ser captada pelo espectador, surge. Os elementos,
mostrar. Cada um deles assume uma função estrutural no conjunto fílmico, e não apenas
especiais citados por Eisenstein. Assim, a montagem eisensteiniana abdica do trabalho com
termos físicos. Ao contrário disso poderia ter dito: “imaginemos um relógio analógico”.
Contudo, não o fez. Motivo disso é que Eisenstein não está descrevendo um relógio, mas
extrair dele uma imagem: a imagem do tempo. A representação, então, é o conflito dos
ponteiros, a sua montagem, que gera determinada imagem dependendo da forma com a
qual foram montados. Para que isso aconteça é preciso a presença de um leitor, que tem o
Assim como nesse próximo exemplo, citado por Eisenstein, do romance Ana
Karênina, de Tolstoi : “Quando Vronsky olhou para seu relógio, na varanda dos Karenin,
estava tão preocupado, que olhou para os ponteiros no mostrador do relógio e não viu as
horas”. (Tolstoi citado por Eisenstein, 2002, p. 19). O que se nota é que ao personagem não
surge a imagem do tempo. Seu olhar foi confinado, pela aflição que vivia no momento,
apenas ao plano da representação geométrica das horas, formada pela disposição dos
ponteiros na plataforma codificada. Não é suficiente apenas ver, algo mais precisa
acontecer com a representação para que ela se despoje de seu caráter geométrico e passe a
ser percebida como imagem de algo particular, a qual, embora dependa da matéria para se
manifestar, é elemento de uma outra ordem conjuntiva. No exemplo provido por Tolstoi,
pudemos ver o que acontece quando esse processo de se ler representação/imagem não
acontece.
Mas o que viria a ser esse processo na visão de Eisenstein? O autor explica que
2002, p. 19). Conforme esse pensamento, podemos dizer que quando olhamos no relógio e
vemos que são cinco horas da tarde, “nossa imaginação está treinada para responder a esse
número recordando cenas de todos os tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora”
(Eisenstein, 2002, p. 19). Assim, é natural que alguns se lembrem do sabor do café, outros
do tempo que falta para deixarem o local de trabalho, outros da amenização da temperatura,
ou talvez da particular composição celeste própria deste horário. Mas o que interessa
outras representações constituintes do ser; suscitamento das imagens. A fase do meio tende
a se escamotear com a automatização dos sentidos. Eisenstein chama isso de “as leis de
economia da energia psíquica” (Eisenstein, 2002, p. 20). Ele defende que: “Ocorre uma
entre uma representação e a imagem a ser suscitada por ela na consciência e nos
Outro exemplo: Eisenstein, numa temporada em Nova York, diz ter achado
extremamente difícil formar imagens das ruas e avenidas da capital, e crê que esta
identificadas por números (quinta avenida, rua 42, etc.) e não por nomes, forma com a qual
o autor se sentia mais familiarizado. Assim, ele comenta que, para produzir as imagens das
ruas, teve que interiorizar em sua memória as características arquitetônicas de cada uma
delas, de forma que seu cérebro passou a reagir de forma diferente aos sinais numéricos. O
sinal 42 fazia surgir em sua mente um conjunto de características distintas do sinal 45, por
exemplo. Em um primeiro momento, o número 42 fazia surgir, não sem esforço, na mente
do teórico, uma série de características físicas, tais como bancos, lojas, teatros, mas,
segundo ele, isso por si ainda não lhe oferecia uma verdadeira percepção da rua, uma vez
que estes elementos ainda não se consolidavam num todo imagético e nem eram suscitados
instantaneamente após a menção do sinal 42. O que Eisenstein parece querer ressaltar aqui
primeiro momento, ele precisava se esforçar para lembrar as características de uma rua –
através de uma cadeia de rememorização –, após ter sido exposto à sua representação
numérica; num segundo momento, quando ele já se encontrava mais familiarizado, essas
como, durante a criação de uma obra de arte, sua imagem total, única, reconhecível, é
gradualmente formada por seus elementos”. Ele continua: “Em ambos os casos – seja uma
57
permanece fiel a esta lei” (Eisenstein, 2002, p. 21). Importante notar: a imagem é montada,
em nossa percepção e consciência, como uma imagem total que contém ou acumula todos
os elementos isolados.
Pudemos notar que alguns conceitos foram postulados através daquilo que
reconhecimento da imagem.
forma estrutural para este trabalho, ele será revisto de acordo com a sua relação com o
entrelaçamento dos dois em função de uma episteme que governava os saberes e os dizeres.
58
século XVI até hoje. Para se compreender a montagem proposta pelos teóricos do cinema
no século XX, a diferenciação entre estes dois conceitos deve ser bastante clara. E, para
tanto, deve se ter em mente que eles são móveis e passíveis de alterações temporais e
culturais. Assim, proponho que reconstruamos esta época através dos trabalhos de alguns
teóricos, nossos contemporâneos, a fim de abordar com mais eficácia esses dois conceitos e
Não que a linguagem se torne impotente; antes disso, ela recebe novos poderes
intrínsecos. A linguagem deixa de ser referência imediata das coisas e passa a representar
as coisas. Como exemplo disso, Foucault ressalta a relação das duas partes constituintes do
59
romance de Cervantes em questão. Na primeira parte, Dom Quixote, influenciado por sua
vasta leitura de romances de cavalaria, parte em busca das realizações que encontrava
nessas obras. Essa busca é, na verdade, um limiar conflitante entre duas épocas distintas, as
sempre ver o mundo através da sua similitude numa era onde tal forma não mais se encaixa;
ao contrário, o conduz ao erro e às ilusões. A Dom Quixote cabe a tarefa de provar que os
livros dizem a verdade e são a linguagem mesma do mundo, e sua aventura nada mais é do
a decifração do mundo; do que a busca incessante de figuras corroborantes aos livros. A ele
renascentista, na qual se lia o mundo através do ato de se despertar as analogias dos signos
adormecidos. Até quando a prova se dava contra essa leitura, a culpa recaía ainda mais
veemente em favor do Mesmo. Pois, ainda que as ovelhas, lavadeiras e estalagens não eram
vistas por todos como exércitos, princesas e castelos, ele achava explicação para esse fato –
como já era previsto nos livros que lera – através do encantamento. E esse encanto era mais
um motivo de crença na veracidade dos signos, mais um motivo para se crer na legível
A segunda parte do romance assume o papel que as obras lidas pelo Fidalgo
possuíam na primeira. Nessa segunda metade, Dom Quixote reencontra personagens que
leram a primeira metade, e que reconhecem nele a figura de herói do livro. Essa parte, lida
pelos personagens, não pode ser lida pelo cavaleiro, uma vez que ele era a história, ele era a
própria ação e personagem desempenhante. Agora Dom Quixote assume a sua realidade.
60
seguir os passos de cavaleiros ulteriores, mas sim, seus próprios passos, reafirmar as suas
próprias verdades e feitos. Ele é, não em relação ao mundo, mas em relação às marcas
verbais consigo mesmas. Assim, as palavras se acham cerradas na sua natureza de signos, a
exemplo de Dom Quixote: “longo grafismo magro como uma letra, [que] acaba de escapar
Para Foucault:
“Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel
das identidades e das diferenças desdenhar infinitamente dos signos e das similitudes:
pois que aí a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa
soberania solitária donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que
aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação”
(Foucault, 2002, p. 67).
e duas figuras aparecem. A primeira é a do louco, posto não como doente, mas como
construto desviado e mantido como o alienado na analogia. É aquele que “toma as coisas
pelo que não são e as pessoas umas pelas outras; ignora os amigos, reconhece os estranhos;
crê desmascarar e impõe uma máscara” (Foucault, 2002, p. 67). Para Foucault, de acordo
com a visão que se teve do louco até o final do século XVIII, ele só era diferente na medida
toda parte. A segunda figura é a do poeta, que é aquele que “por sob as diferenças
suas similitudes dispersadas” (Foucault, 2002, p. 67-8). Do poeta emana um outro discurso,
esse para além, e apesar, da afirmação dos signos; um discurso que remonta o tempo no
conhecida relação entre loucura e poesia, não a de caráter platônico da inspiração delirante,
mas de uma nova fronteira entre a linguagem e as coisas. A similitude perde terreno, passa
Outro teórico que de certa maneira se dedica aos problemas do século XVII é Stuart
Hall (2005), ao defender seus preceitos do sujeito iluminista. O ponto de vista dele nos é
mais claras as idéias de Foucault a partir do contraste entre duas teorias. Se para Foucault o
homem do século XVII possui certas características intrínsecas, para Hall ele possui outras.
É necessário nos determos nos esclarecimentos desse período para que não corramos o
risco de, mais tarde, nos distanciarmos demasiadamente da realidade epistêmica de cada
época, e por conta disso lermos os textos, aí produzidos, com olhares desviados pela
Foucault têm caráter dessemelhantes; contudo, há, no cerne das duas questões, bastantes
semelhanças.
Se, por um lado, a identidade cultural do sujeito do Iluminismo defendida por Hall
tenta explicar algumas das características principais da constituição interior desse sujeito,
por outro lado ela acaba por expor os movimentos que esse interior impelia ao exterior,
delimitando um conjunto universal das relações limitantes, das quais se extraíam todas as
limitante das relações possíveis, hão de se ver incluídas também nesses limites as relações
62
de conhecimento. Tal fato já nos autoriza uma aproximação cautelosa entre os conceitos de
tarefa passa a ser a de identificar em Foucault uma caracterização mais aprofundada dessa
malha política e cultural que envolvia essa identidade centrada. Segundo Roberto Machado,
em seu livro Foucault, a filosofia e a literatura, uma das teses centrais de As palavras e as
coisas é a de que apenas nas sociedades modernas – e isso quer dizer do final do século
XVIII e início do XIX até os dias atuais – se pensou o homem como problema específico.
“Não existe, rigorosamente falando, saberes do homem na Grécia antiga, na Idade Média,
para a clareza da influência nietzschiana deste postulado, uma vez que teria sido Nietzsche
ideário, no romantismo e sua simpatia pelo doentio, etc., o marco da aparição do homem
pela primeira vez como cerne dos saberes, dividindo-se na dupla posição de objeto de
Desta forma, o primeiro desafio que Foucault nos apresenta, e que não parece ser
pelas quais nós enxergamos a nós mesmos e àqueles que séculos atrás experienciavam e
conheciam o mundo. Talvez seja essa a diferenciação crucial que deva ser feita entre as
visões do sujeito iluminista e o classicista, inseridos cada qual no seu postulado teórico. Se
Stuart Hall nos apresenta a faceta simplista de um sujeito do passado, nos indica que possui
63
que, quando passa a tratar do sujeito pós-moderno, se esqueça de projetar, para as suas
sociológico com a modernidade, defendida por Hall em seu texto, a ponte não se completa
– o que acaba por levar as concepções de um sujeito iluminista aos confins de um passado
inacessível, condenando-o, assim, ao seu eterno simplimorfismo, tornando-o cada vez mais
simplicidade, só achada através das lentes embaçadas de uma mirada direta e sem filtros
Foucault, por sua vez, é extremamente detalhista ao postular sua visão da Idade
Clássica em As palavras e as coisas, e aponta para uma preocupação mais aparente entre
externalismo e internalismo através do seu, assim chamado, método arqueológico. Isso fica
claro em As palavras e as coisas, por partir em uma busca pela episteme de cada época, e
reconstituição das evidências destruídas, que procura por uma ordem intrínseca, ou por uma
iluminista posto de uma forma genérica? Para ele, a episteme clássica se baseia sobretudo
construir um quadro, uma imagem, uma representação do mundo” (Machado, 2000, p. 86).
64
substituir a ordem anterior que se baseava mormente nas similitudes. A ordem das coisas,
elas mesmas, através de suas representações, ganha terreno e aos poucos assume
taxionomia. A semelhança, antes vigente como sistema, toma agora ares de exclusão e de
Tal fato leva a Idade Clássica, ao contrário da Idade Moderna, a não separar em
diferentes níveis os saberes da história natural, da gramática geral e a análise das riquezas –
são todos eles saberes analíticos, ou seja, são todos eles ordenações de idéias, de
pensamentos: de representações. Daí se extrai, por exemplo, que o homem não podia
aparecer como problema na Idade Clássica porque ele se encontrava por trás da malha
representacional. “No pensamento clássico, aquele para quem a representação existe, e que
nela se representa a si mesmo, aí se reconhecendo por imagem ou reflexo, aquele que trama
possível de uma visão internalista por parte de uma mente moderna ao perceber o cogito
como sendo o núcleo do homem que é negado em As palavras e as coisas se dá pelo fato de
sou’ para o ‘eu penso’ realizava-se sob a luz da evidência no interior de um discurso cujo
contido nesse pensamento, da mesma forma que não podemos questionar se esse ser
específico (posto pelo ‘eu sou’) não foi objeto de análise de si próprio.
estreito da Idade Clássica, pois, para aquele que via o mundo pelo paradigma da
coisa. Descartes se reportava ao conceito de mente, no latim como mens e no francês como
Método: “compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste
apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer
coisa material”. (Descartes, 1999, p. 62). Passado algum tempo, ele acaba por desenvolver
melhor tal concepção, quando, a propósito das Meditações, ele alvitra: “Mas o que sou eu,
então? Eu sou a rigor somente uma coisa que pensa (res cogitans), isto é, sou uma mente ou
inteligência ou intelecto ou razão” (mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio)
Contudo, o termo é empregado de forma muito diferente daquela comumente utilizada hoje
falar comum, como pensamentos” (Russel, 1958, p. 133). Deste modo, o pensamento
cartesiano é o próprio ser pensante, a res cogitans. E esses movimentos mentais sutis e
todas as suas extensões, sejam elas corpóreas ou sociais, não podiam ser entendidos, na
mais uma organização em torno das idéias e dos pensamentos, que por sua vez poderiam
do século XVI.
das representações. Assim, a atividade do espírito será não mais a de aproximar as coisas
reflexo de si, através de uma passagem ontológica. Passagem essa que, segundo Foucault,
só será desfeita na Era Moderna, quando “a passagem ontológica que o verbo ser
O ponto mais claro ao qual se chega é que mesmo que os conceitos de identidade
semelhante, o que se constata é que Hall e Foucault têm entendimentos conflitantes no que
diz respeito às suas respectivas definições do sujeito do século XVII. Hall coloca que
substância pensante (mente)” (Hall, 2005, p. 27). Contudo, essa relação se apresenta
algo da ordem do material. Estamos diante de uma das doutrinas mais controvertidas de
Descartes: distinção e relação entre mente e corpo (res cogitans e res extensans).
mais notáveis do filósofo, porquanto não seja correto afirmar que esteja dentre as mais bem
formuladas.
“Embora pareça ter inúmeras razões para chegar a essa tese, seus argumentos
puramente metafísicos para sustentá-la são fracos. Em primeiro lugar, sugere que sua
capacidade de duvidar que tenha um corpo, enquanto lhe é impossível duvidar que
68
existe, mostra que “ele é uma substância cuja essência ou natureza é pensar, e que
não necessita de local ou coisa material para existir, e que não deixaria de ser o que é
mesmo se o corpo não existisse” (Cottingham 1995, p. 115).
Tal argumento não pode ser convincente, já que “a capacidade que tenho de
argumento no Discurso...; porém, ao que parece, apenas foi capaz de sofisticá-lo um pouco
mais nas Meditações, onde encontramos a concepção do eu como coisa pensante sem
sujeito, é que Hall não dá atenção ao fato de o problema cartesiano ser um problema
enxergar uma diferenciação entre a coisa pensante sem extensão e a coisa extensa sem
pensantes.
Segundo Hall:
individual nunca esteve no centro da mente, a não ser por representação, assim como todo o
resto das coisas que eram postas em evidência pelo sujeito. O discurso mantido por
69
Descartes não poderia pôr o homem no centro do conhecimento, pois, como vimos, era ele
que de trás das cortinas mexia todos os fios da representação, se enxergando também na
condição de representação.
surpreende o sujeito clássico fora do centro proposto por Hall. Assim, enquanto um vê com
simplicidade um sujeito centrado, o outro vê uma série de fios entrecruzados de uma cadeia
século XVII ao final do século XVIII não podem ser abordadas fora do contexto da
representação. Elas foram criadas em um período no qual havia uma passagem ontológica
do pensamento à representação, a qual não pode ser ignorada, sob pena de mau
entendimento conceitual.
como tal conceito interage frente a uma dicotomia entre espírito e matéria. Assim, se para
Eisenstein a montagem de uma obra de arte pode ser descrita através do processo de
desenvolvidos apresentam problemas; não obstante, trazem também soluções, sendo que
70
cabe à disciplina filosófica julgá-los e caracterizá-los, e a nós, apontar suas relações com o
de interação. Tal fato não nos leva a concluir que Descartes ignorava as relações entre
mente e corpo, mas sim que não foi capaz de formular uma estruturação convincente dessa
“A natureza me ensina, também por intermédio dos sentimentos de dor, fome, sede
etc., que não apenas estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que,
além disso, estou a ele vinculado muito estreitamente e de tal maneira confundido e
misturado que formo com ele um único todo. Porque, se assim não fosse, se meu corpo é
ferido, eu não sentiria dor alguma, eu que sou apenas uma coisa pensante, e só perceberia
esse ferimento por entendimento, como o piloto percebe pela vista se acontece alguma
avaria em seu navio. (...) Pois, com efeito, todos esses sentimentos de fome, de sede, de
dor etc. não passam de formas confusas de pensar que procedem e dependem da união
entre o espírito e o corpo”. (Descartes, 1999 pág. 323 - 324).
É através dessa confusa e pouco confiável explanação acerca da relação entre corpo
e mente que Descartes configura sua conceituação sobre a imagem. Segundo Sartre, uma
das maiores preocupações cartesianas, frente a uma tradição escolástica, é sem dúvida a
“A imagem é uma coisa corporal, é o produto da ação dos corpos exteriores sobre
nosso próprio corpo por intermédio dos sentidos e dos nervos. Matéria e consciência
excluindo-se uma à outra, a imagem, a medida em que é desenhada materialmente em
alguma parte do cérebro, não poderia ser animada de consciência. Ela é um objeto, tanto
quanto o são os objetos exteriores. É, exatamente, o limite da exterioridade.”. (Sartre,
1978: pág. 39).
entendimento voltado à impressão material surgida no cérebro que nos traz a imagem. É
71
bom lembrar que a doutrina cartesiana quer, nesse ponto, desabilitar um pensamento
concebia como pequenas figuras formadas na cabeça que estimulam a mente a idealizar
objetos. Nessa linha de raciocínio, ele propõe que a imagem surge na mente através de
algum tipo de representação codificada “que permite a certos traços de um objeto serem
corresponderá, ainda que muitas vezes de modo indireto e codificado, à estrutura do objeto
original”. E ainda que: “quando a mente ou alma inspeciona essa configuração, terá, em
1995, p. 81).
Mas isso não é apresentado de maneira clara e distinta pelo filósofo. Essas
signos, pois, segundo ele: “nossas mentes podem ser estimuladas por muitas outras coisas
além das imagens – signos e palavras por exemplo – que de modo algum se assemelham às
coisas que significam”. (Descartes, citado por Cottingham, 1995, p. 80). Porém, ao não se
ele parece consentir com aquilo que Sartre apontou como sendo uma certa materialidade da
alma cartesiana ou certa espiritualidade na imagem material do mundo exterior. Tal fato
haver intervenção da imaginação e do corpo, uma vez que, segundo Descartes, mesmo os
mais claramente, defendida por Espinosa, que, assim como Descartes, separa a teoria da
objeto é por Espinosa explicado pelo acaso e pelo hábito, que seriam os responsáveis pela
com ela a mesma qualidade conceitual de idéia. Embora seja uma idéia confusa, oriunda de
comuns ao entendimento, o que nos leva a rever a profunda divisão entre imaginação e
de idéias, podem ser desenvolvidas pelo entendimento, é sinal de que uma relação entre os
dois é notavelmente concebível, e que a divisão entre eles na verdade não é assim tão
profunda como se pode julgar inicialmente. Há ao mesmo tempo uma ligação e um corte.
Assim sendo, o que se nota é que Espinosa separa, como Descartes, imagem e
imaginação proposto por ele (Espinosa) como mundo das relações mecânicas não se
encontra desvirtuado do mundo inteligível. Ele apontava, assim, que o problema da imagem
não podia ser resolvido no âmbito da própria imagem, mas apenas no nível do
Leibniz, de acordo com Sartre, também descreve o mundo da imagem através de seu
mecanismo puro. Contudo, seu associacionismo não é mais fisiológico: é na alma que as
imagens se mantêm e são interligadas. Para ele, somente a ligação das idéias claras, postas
pela razão, possui relações imperativas. A inter-relação das imagens se dava por vias
explica o signo como sendo uma expressão. A expressão é, na verdade, uma relação de
objeto de qual ela é imagem. Aqui, Leibniz parece contar com uma relação natural das
Contudo, o que importa em sua teoria da imagem é o fato de ela ser posta como o
elementos inconscientes que em si mesmo são racionais, ou que, pelo menos, podem vir a
ser racionalizados. Esse pensamento impõe uma noção estranha a ele mesmo: a de
no entanto, formam a faceta opaca da imagem, que quando requisitada pela ação consciente
imagem como soma das impressões não percebidas pela razão forja um conceito que seria
É importante relembrar que estas filosofias da imagem eram baseadas, elas mesmas,
representações à mente que as unia. Assim, a imagem contida na teoria de Eisenstein, como
colocaremos mais adiante, não pode ser confundida com a de Leibniz, pois a primeira é
da imagem.
em Leibniz e Descartes tem o objetivo de trazer para esta pesquisa o contraste teórico, o
qual, através da definição negativa, prepara o terreno para definição e limitação positiva do
termo.
instante temporal. (Pound, 1986). É importante notar que a imagem não é considerada
como uma reprodução pictórica, mas como a união de sensações e idéias num complexo
suscitado num instante de tempo. Para que se chegasse a esta definição, fora necessário
pensamento do século XVII, e que essa transformação abrisse espaço para uma nova
Foucault defende que os últimos anos do século XVIII foram rompidos por um corte
epistêmico semelhante àquele notado no início do século XVII. Ele demonstra que a partir
daí o espaço geral do saber não vai mais se organizar em torno do quadro das identidades e
das diferenças; nem da máthesis do não mensurável; nem da taxionomia geral. Antes, se
arranjará num espaço feito de organizações, isto é, “de relações internas entre elementos,
cujo conjunto assegura uma função; (...) essas organizações são descontínuas, não formam,
pois, um quadro de simultaneidades sem rupturas” (Foucault, 2002, p. 299). Neste período
identidade passam a ser mantidas fora do âmbito do visível, pois a função assume agora
papel decisivo. Assim, se estas relações por ventura vierem a se apresentar próximas umas
das outras, não será mais pelo fato de seguirem a lógica da corrente das semelhanças, não
será mais porque ocupam lugares próximos num espaço de classificações; antes disso,
Ao contrário da Idade Clássica, as semelhanças não serão mais tidas como formas
organizações analógicas, assim como a Ordem abria o caminho das identidades e das
diferenças sucessivas” (Foucault, 2002, p. 300). Contudo, Foucault ressalta que a História
não deve ser apreendida aqui como a coleta temporalizada dos fatos, mas como o modo de
ser próprio das empiricidades. Este período é datado por Foucault entre os anos de 1775 a
matemática das mudanças ocorridas. Três principais elementos são por ele destacados nessa
transição, a saber: a medida do trabalho, a organização dos seres e a flexão das palavras.
E argumenta:
O que Foucault coloca é que Smith não inventou o trabalho como termo econômico,
pois ele já existia antes na obra de outros pensadores, tampouco o aplicou de forma nova,
pois sua medida continua sendo o valor de troca. Contudo, ele o desloca. Mesmo
conservando-lhe o caráter funcional de análise das riquezas, o trabalho deixa de ser o puro
necessidade. A partir daí, as riquezas não mais estabelecerão uma ordem interna de
produziram”. Assim, “as riquezas são sempre elementos representativos que funcionam:
mas o que representam finalmente não é mais o objeto de desejo, é o trabalho” (Foucault,
2002, p. 305).
Destarte, a reflexão sobre o conceito de trabalho acaba por extravasar seus limites
anteriores. Ele deixa de se encaixar na análise das representações para entrar em dois
77
domínios: põe em evidência a finitude do homem, pois o liga ao trabalho a ao seu desgaste;
ao tempo e à conseqüente iminência da morte, e ainda, por outro lado, põe à vista todo um
sistema possível de uma economia política que nega o jogo das representações e que se
caracterizado por uma nova organização das Ciências Naturais. Segundo ele, a questão da
caráter que agrupe ou reúna as espécies em grupos distintos, que determine a diferença
destes grupos, e que, por fim, possibilite uma inter-relação capaz de formatar um quadro,
no qual todos os indivíduos e espécies possam encontrar o seu lugar bem definido. O que
preço, na nova organização dos seres o que muda são também as relações, desta vez, entre
o que é visível e o que não é. Durante toda a Idade Clássica, o que se notou, na composição
foi uma classificação baseada sobretudo na comparação dos caracteres visíveis daquilo que
deveria ser classificado. Em outras palavras, se escolhia o elemento homogêneo como base
para a classificação, pois, assim, dependendo do princípio ordenador escolhido, ele podia
Existem quatro modos diferentes pelos quais podemos dizer que a organização
interfere na taxinomia. Primeiramente podemos dizer que há uma espécie de hierarquia dos
caracteres. Foucault coloca que, em uma primeira instância, não se aproximam as espécies
que a evidência impõe. Assim, percebe-se que alguns caracteres são absolutamente
constantes, e que são capazes de isolar os peixes, os vermes, as aves, etc. em agrupamentos
reconhecíveis. Contudo, existem aqueles caracteres que, embora sejam muito freqüentes
numa família, não possuem o mesmo nível de freqüência; são, segundo Foucault, os
“caracteres secundários subuniformes”. Existem também aqueles caracteres que ora são
constantes ora variáveis; estes não são capazes de formar certezas acerca da formação de
mesmos. Assim, se a reprodução for tida como a função mais importante de um ser, surgem
daí caracterizações baseadas neste requisito, o que possibilita, por exemplo, se classificar os
caráter já não é mais extraído da forma visível, nem de sua presença ou ausência naquilo
que é classificado, e sim com bases nas funções que são importantes ao ser vivo, e que não
das funções não é medida pela maior ou menor freqüência de tal elemento na composição
estrutural de um ser, e sim, de acordo com a sua posição funcional. Fato que leva o
pensamento do final do século XVIII a inverter a ordem da classificação, pois: não é mais
por ser freqüente que um caráter é importante, é por ser funcionalmente importante que ele
aparece com freqüência. Esse fato leva pesquisadores como Vicq d’ Azyr a fazerem
79
ligações estratégicas entre os dentes do animal carnívoro, seus membros, unhas, língua,
“O caráter não é portanto estabelecido por uma relação do visível consigo próprio; em si
Em terceiro lugar, existe a mudança da relação entre o que é visível e o que não é,
como método de avaliação das classificações. Foucault cita o exemplo de Lamarck, que diz,
seu, o qual, segundo ele próprio, o incluiu durante muito tempo, e a nova forma de se
classificação dos seres em geral, pois a forma pela qual foram classificados se concentrava
no apontamento de seus dados visíveis, e não de suas funções internas. Quando as funções
internas dos crustáceos passaram a entrar no jogo da classificação, segundo Lamarck, eles
não mais poderiam ser postos ao mesmo nível que os insetos, deveriam “ganhar” posição
mais elevada, adjacente aos moluscos, que também possuem um sistema respiratório e
circulatório mais desenvolvido. Assim, o ato de classificar não será mais o ato de reportar o
visível os seus sinais manifestos. O caráter passa a ser o sinal visível que aponta para uma
era uma montagem progressiva que se encaixava no espaço do visível, a delimitação dos
problema do gênero eram isomorfos” (Foucault, 2002, p. 316). Nesta nova forma de
organização, o ato de distinguir não é constituído a partir dos mesmos traços que o ato de
denominar, uma vez que o primeiro ato vai se formular em profundidade, i.e., vai buscar as
relações mais profundas de um órgão visível com os mais ocultos, e, a partir daí, traçar
outras relações referentes à sua função. Por outro lado, o ato de denominar se manterá no
espaço plano do quadro, pois é constituído a partir da classificação visível dos elementos.
Há, assim, uma quebra destes dois espaços do quadro das classificações, que antes se
formulavam paralelamente: eles não mais se acham numa relação de representação mútua.
encontrar paralelo nas análises da linguagem. Durante toda a Idade Clássica a linguagem
foi entendida e refletida como discurso, i. e., ela era a análise automática da representação.
representação, por ser quase que seu representante direto no saber: era a forma mesma do
saber. Por isso, a mudança que se operou na linguagem foi muito mais discreta e lenta do
que nas demais formas do conhecimento. Para que fosse possível ocorrer mudanças no
representações. Foucault ressalta que até o início do século XIX, as análises da linguagem
quase não haviam sido modificadas. As palavras foram sempre abordadas de acordo com o
valor representativo, como se fossem constituintes virtuais do discurso, o qual lhes era
análogo ontológico.
Até a chegada dos últimos quinze anos do século XVIII, as línguas só eram
deviam remeter a um tronco comum e perdido no tempo. Era uma busca pelo radical
relação com uma língua primitiva e comum. A partir de certo momento deste período,
mantinha a comparação nos mesmos preceitos da gramática geral da Idade Clássica. Ainda
se apostava na língua comum, fornecedora inicial das raízes. Não obstante, os resultados
desta operação deixaram frutos e abriram novos problemas e soluções para a questão da
linguagem.
constância das línguas não se dava a partir da raiz; pelo contrário; era a raiz que variava e
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as flexões é que eram análogas. Percebeu-se que “a série sânscrita asmi, asi, asti, stha,
santi, corresponde exatamente, mas por analogia flexional, à série latina sum, es, est,
sumus, estis, sunt” (Foucault, 2002, p. 323). O que passa a acontecer, após esta descoberta,
é que o jogo da linguagem se transfere, do plano das representações, para uma relação mais
Geral inicia sua mudança de configuração. Passa a ser constituída por subsídios formais,
engendrados em sistema, o qual tem como característica principal não ditar às letras e sons
Assim, as línguas deixam de ser comparadas através daquilo que suas palavras
representam, e passam a ser aproximadas através de sua estrutura intrínseca capaz de ligar
diverso daquele que mantinham na Idade Clássica, quando o discurso só fazia articulá-los
discurso e linguagem iniciam a sua separação, a qual, mantida durante a Idade Clássica, foi
máthesis.
conceito de representação, uma vez que, até então, a imagem era a representação de si
mesma dentro de um sistema que só fazia com que estes conceitos se reflexionassem. A
língua, assume também novas formas de ser percebida e sentida no mundo. A partir dessa
quais mantêm resíduos até os dias de hoje. Somente após esta explanação, podemos
retomar a frase de Pound (1986) que diz que “uma imagem é um construto intelectual e
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emocional num instante temporal”, sem corrermos o risco de atribuir a ela falso
podemos ponderar sobre uma ruptura de ordem estética. A imagem, como tida para Pound,
saberes, próprias de seu estatuto, este discurso mantinha estreita relação com a forma
estética da linguagem, a qual, por sua vez, deveria reproduzir este modo de encadeamento
das idéias. Uma vez que a relação direta entre os dois é rompida, abre-se o caminho para a
4.1 – O grito
Com base nos dados levantados, sobre a mudança epistêmica e sobre as relações
entre a imagem e a representação, podemos dizer que, na Era Moderna, surge um complexo
imagético-discursivo que não funciona de acordo com as leis da linguagem (ou vice-versa).
poesia (1998), do final da Idade Clássica. A visão da imagem proposta por Pound (1986) é
ponto contrário à forma levantada por Lessing, pois, para Pound a imagem é um construto
meio semiótico que as provoque. Lessing defende que a literatura e as artes plásticas
trabalham por diferentes meios da sensibilidade, e, por conta disso, possuem diferentes leis
que regem a sua criação, e ainda que a pintura utiliza cores no espaço, e a literatura utiliza a
articulação dos sons no tempo. Lessing argumenta que não importa o quão viva possa ser
uma descrição, ela nunca conseguirá superar a visão do objeto que descreve, e que nunca a
No capítulo XVI, de seu Laocoonte..., Lessing expõe a sua tese central, a qual pode
"Eis aqui o meu raciocínio: se é verdade que a pintura se vale, para suas imitações,
de meios ou signos totalmente diferentes dos da poesia, posto que os seus são formas e
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cores cujo domínio é o espaço, e os da poesia, sons articulados cujo domínio é o tempo;
se é indiscutível que os signos devem ter com o objeto a relação conveniente ao
significado, é evidente que os signos, dispostos uns ao lado dos outros no espaço, só
podem representar objetos ou suas partes que existam uns ao lado dos outros; e, do
mesmo modo que os signos que se sucedem no tempo, só podem expressar objetos
sucessivos ou objetos de partes sucessivas. (...).
Por outro lado, as ações não podem subsistir por si mesmas, mas devem referir-
se a seres determinados. Como estes seres são corpos em realidade ou podem ser
considerados como tais, pode-se dizer que a poesia também os representa, porém, só
indiretamente, através das ações" (Lessing, 1998)
mais rarefeitos. A questão da objetividade e eficácia de cada série ao lidar com a natureza
do seu meio começa a apresentar problemas, se tornando difícil dizer que a literatura dará
conta com mais destreza da narrativa e que a pintura se sairá melhor ao reproduzir imagens
partida de sua discussão, a análise da escultura grega do Laocoonte e sua relação com as
controle da emoção causada pela dor no Laocoonte representado pela estátua e seu
representado pela narrativa. O grito, na visão de Lessing, impõe uma violência deformadora
harmonização das linhas, dos volumes e do movimento com o belo – ou, como para Hegel,
a perfeita sintonia entre matéria sensível e o Espírito Absoluto. Por conta disso, o grito teria
86
artísticas. Esta obra de Munch é habitualmente percebida pelo espectador, como uma cadeia
de ondas, provocada pelo grito de um sujeito, que se irradia até as bordas do quadro.
Contudo, pode ser apreendida também em seu inverso, como uma série de ondas do
O que é o mesmo que dizer que não é o grito de uma personagem individual que emana
para os limites de um quadro, mas sim, que o grito, há tanto banido, invade e envolve o
quadro com toda a carga secular do recalcado, retornando, com toda a violência
posição de possibilidade criativa, rejeita a sua negação na série plástica e insere na pintura o
elemento deformador responsável pela separação do ideal do belo e a beleza que tem como
função o representar. Munch abre espaço para os gritos de Picasso, Siqueiros e Bacon, e
Assim, os limites entre a pintura e a poesia não podem mais ser facilmente postos.
O grito é apenas um dos muitos vieses pelos quais se pode analisar esta mudança. O
configuração de uma nova maneira de se fazer e pensar a arte. Maneira esta que possibilita
Laocoonte..., de Lessing, dar conta de atribuir limites precisos às séries artísticas. A fruteira
foi finalmente quebrada por Cézanne e já era tarde para se impor limites ao trabalho de (re-)
montagem.
inserir neste texto que opta por não dizer agora para dizer depois, que suspende uma
capacidade de formar new wholes, de fundir, numa unidade orgânica, as idéias que se
São dois os problemas principais que esse tipo de concepção traz imediatamente à
criação poética. Primeiro: como incluir mais de uma imagem num poema sem comprometer
naturalmente, com que o poder de cada uma delas fosse se esvaindo. Segundo: o todo do
poema pode ser encarado como uma única e genérica imagem? Nesse caso, seria necessário
88
expectativa linear em prol de uma criação imagética genérica, a qual é obtida através do
estruturas lingüísticas.
que se nota é a não utilização de uma estrutura baseada na seqüência sintática, e sim a de
uma outra estrutura, baseada na dependência da percepção das relações entre diferentes
grupos de palavras. Para que esses grupos de palavras possam ser compreendidos
fato ocorre, pode-se perceber que eles não mantêm uma relação de dependência temporal
linear. Assim, a forma estética da poesia de Elliot, Pound e, de forma genérica, de toda
Esse tipo de lógica temporal da escrita pode ser também percebido no romance
moderno, como ressalta Joseph Frank (1991), através de exemplos dos romances de
Madame Bovary, na qual três níveis de ação ocorrem simultaneamente. Para falar nos
89
moldes do cinema: na parte inferior do plano aparece a confusa massa humana misturada ao
gado trazido para exposição; na altura média do plano aparecem os oficiais gesticulando e
vociferando seus discursos; na parte superior desse plano se encontram Emma e Rodolfo,
Segundo o próprio Flaubert, nessa cena “tudo deve soar simultaneamente, o leitor
deve ouvir o murmurinho da multidão, os suspiros dos amantes e a retórica dos oficiais ao
mesmo tempo” (1947 p. 75). Porém, como a linguagem procede sob o jugo de suas próprias
narrativa nas idas e vindas do material narrado, formulando o encontro e o desencontro das
simultaneamente.
Essa cena de Madame Bovary ilustra bem aquilo que Joseph Frank entende por
que se descreve é passível de uma clara exegese, devido à maior extensão de suas unidades
obstante, o paralelo entre as duas formas de espacialização ainda se faz válido, pois, nos
narrativo do romance. Logo que ela acaba, o texto retoma sua estrutura narrativa originária.
Contudo, o método utilizado por Flaubert deixou legados que seriam mais tarde
amplificados e utilizados em escala maior, como por exemplo, em James Joyce no seu
Ulysses. Como resultado dessa expansão da técnica de Flaubert, tem-se que o leitor se vê
obrigado a ler o romance da mesma maneira como leria a poesia moderna, i. e., mantendo e
justapondo fragmentos na sua mente, até que, por uma referência reflexiva, ele seja capaz
Proust, de uma maneira ainda mais viva e preclara do que em Flaubert e Joyce. Na obra Em
presente. A passagem entre eles é fornecida por pequenos detalhes materiais e sensitivos
que despertam sua mente para a ligação pura dos tempos. Conforme Frank, Proust chamava
esses detalhes de celestial nourishment, que consiste em algum som, odor, ou outro
estímulo sensorial que possa ser percebido simultaneamente no presente e no passado. Mas
um relâmpago’ aquilo de outra forma ele não poderia apreender, ‘a saber: um fragmento
de tempo em seu estado puro’” 13 (Frank, citando Proust, 1991, p. 23).
decide registrar toda a narrativa em uma obra de arte. E é a criação dessa obra de arte o
próprio monumento da sua conquista pessoal do tempo. Seu romance se torna o veículo
pelo qual ele conduz sua visão – e a experiência concreta dessa visão – expressa de uma
forma que convida o leitor à re-experimentar o efeito vivido por Proust em sua
sensibilidade.
narrador se esforça para reconhecer os amigos, os quais, no seu modo de ver, usavam
máscaras esculpidas pelo tempo. Até que, abordado por um jovem de forma bastante
respeitosa, percebe que ele também usava a máscara esculpida pelo tempo: a de um velho
cavalheiro. Assim, ele passa a entender que para lhe nascer a consciência do tempo, fora
necessária sua ausência do meio ao qual estava acostumado, e, mais tarde, seu retorno a
este meio. Ao fazer isso, ele se acha em poder de duas imagens, a do mundo que ele
imagens são justapostas, o narrador descobre que a passagem do tempo pode ser apreendida
13
“Imagination ordinarily can operate only in the past; the material presented to imagination thus lacks any
sensuous immediacy. At certain moments, however, the physical sensations of the past come flooding back to
fuse with the present; and Proust believes that in these moment he grasped a reality ‘real without being of the
present moment, ideal but not abstract.’ Only in these moments did he attain his most cherished ambition – ‘to
seize, isolate, immobilize for the duration of a lightning flash’ what otherwise he could not apprehend,
‘namely: a fragmente of time in its pure state” [tradução nossa].
92
temporal, ele decide transformá-lo em um romance. Contudo, como já foi mencionado, essa
exato no qual o leitor finda seu processo de leitura. Em outras palavras, o leitor assume a
posição do narrador antes da escrita do romance, conjeturando, junto com ele, todo o
“Todo leitor logo nota que Proust não segue continuadamente nenhum de seus
personagens através do curso narrativo de seu romance, ao contrário, eles aparecem e
reaparecem em vários estágios de suas vidas. As vezes, centenas de páginas separam a
última vez que eles apareceram até a hora de sua reaparição, e, quando eles reaparecem, a
passagem do tempo os transformou de alguma forma clara e decisiva. Ao invés de ser
submetido ao contínuo do tempo e intuir um personagem progressivamente, numa linha
contínua de desenvolvimento, o leitor é confrontado com vários snapshots dos
personagens imóveis num momento da visão tirados em diferentes estágios das suas
vidas; e ao justapor essas imagens, ele experimenta os efeitos da passagem do tempo,
exatamente como o narrador experimentou.” 14 ” (1991, p. 16).
Destarte, Proust indica que, para experienciar a passagem do tempo é necessário que
momento Proust chama “tempo puro”. Sobre este conceito Frank alvitra: “Tempo puro,
obviamente, não é tempo propriamente dito – é uma percepção num dado momento do
tempo, ou seja, espaço 15 ” (1991, p. 27). O que acaba acontecendo, como nota Frank, é que
Proust atribui ao tempo um valor que na verdade pertence ao espaço. O que Proust faz, em
14
.“Every reader soon notices that Proust does not follow any of his characters continuously through the whole
course of his novel, instead, they appear and reappear in various stages of their lives. Hundred of pages some
times go by between the time they are last seen and the time they reappear; and when they do turn up again,
the passage of time has invariably changed them in some decisive way. Rather than being submerged in the
stream of time and intuiting a character progressively, in a continuous line of development, the reader is
confronted with various snapshots of the characters ‘motionless in a moment of vision’ taken at different
stages in their lives; and in juxtaposing these images he experiences the effects of the passage of time exactly
as the narrator has done” [tradução nossa].
15
“pure time, obviously, is not time at all – it is perception in a moment of time, that is to say, space. [tradução
nossa].
93
sua obra, é obrigar o leitor a justapor diferentes imagens espacialmente, num momento
sentido interessante, se tomada na acepção de que o pintor não misturava as cores em sua
paleta, mas sim as inseria na tela numa relação conflituosa, que só ganha sentido através do
justapor as cores espacializadas na tela com seu olhar. O trabalho de construção e união das
unidades de sentido não é dado a priori pelo autor, é resultado obtido a posteriori pelo
leitor/espectador.
Esse fato nos serve de paralelo histórico para a compreensão do papel exercido por
Cézanne, e seu processo de espacialização conflituosa das cores, nas artes em geral do
como chave de leitura/apreciação da obra. Essa é a nova matriz instaurada por Cézanne no
séc. XIX, aquela que, despojada das relações metafísicas da filosofia plotiniana e das
adiante:
A tarefa atribuída, por Cézanne, a seu espectador contemporâneo não causou boa
consciência, i. e., acostumado à pintura enquanto trabalho final e pronto para a apreciação,
sem que fosse necessária nenhuma ação de sua parte como o preenchimento de vazios, ou a
justaposição das cores e formas, não podia compreender aquela nova matriz artística. Assim
como para o leitor de Proust, era tarefa árdua acumular todas as unidades significantes em
sua mente, para depois justapô-las, extraindo daí seu sentido mais completo.
A figura de Cézanne nos é importante pelo fato de ter inaugurado uma fusão que
fusão entre teoria e prática: a arte processual. Ainda falando da Era Moderna, mas
equivalência na obra do cineasta Sergei Eisenstein, o qual pode nos ajudar a aprofundar a
Até aqui, vimos que o duplo processo de criação e recepção das obras de Cézanne,
Proust e Elliot se baseava num método, mais ou menos semelhante, que pregava, sobretudo,
95
Como já foi dito no capítulo primeiro desta dissertação, a imagem para Eisenstein
era o construto resultante da soma das representações produzidas pelo autor com as
podemos entender estes dois conceitos de forma mais precisa. Na Idade Moderna, ao
contrário da Idade Clássica, estes conceitos estão separados, e este fato nos leva a um outro
pode ser percebida pela busca estética de estruturas narrativas compostas por técnicas que
não são imediatamente representativas do conteúdo discursivo que a obra apresenta. Como
(pathos).
definida pelo fato de que toda a obra fechada e completa possui uma lei de estrutura que
subordina as partes ao todo; caso contrário, esta obra não possuiria unidade e
conseqüentemente não poderia ser tida como um produto artístico fechado e completo. Ele
cita uma frase de Lênin que diz: “O particular só existe na relação que leva ao geral. O
96
geral só existe no particular, através do particular” (citado por Eisenstein, 2002, p. 148).
Assim, o princípio de qualidade orgânica é, para Eisenstein, aquilo que une as diversas
células particulares ao todo, e que, vice-versa, representa o todo através de suas diversas
células particulares.
geral, mas sim à própria lei que rege esta relação. Esta lei aparece em congruência com a lei
uma vez que ela está sob o jugo desta lei, a qual, ao reger a obra, rege também o
qualidade orgânica de uma obra pode ser apreendida de duas maneiras, uma estática e outra
patético. Para tornar mais clara essa idéia, o teórico analisa o seu filme O encouraçado
Potemkin (1925). A lei orgânica deste filme é a lei estrutural da tragédia tal como
constituindo, assim, a forma estática de apreensão do orgânico: aquela que – como estrutura
interior responsável pelo suporte geral da obra – não pode variar, ficando sempre imutável,
Eisenstein, como o patético. Neste ponto a platéia se torna ponto de referência do conceito,
97
causado pela obra que se encontra a explicação da qualidade orgânica em sua forma
“Para a ilustração mais primitiva, façamos uma descrição simples dos sinais
superficiais de comportamento externo de um espectador atraído pelo pathos.
Mas esses sinais são tão sintomáticos que, imediatamente, nos levam ao centro da
questão. O pathos mostra seu efeito – quando o espectador é compelido a pular da
cadeira. Quando é compelido a tombar quando estiver de pé. Quando ele é compelido a
aplaudir, a berrar. Quando seus olhos são compelidos a brilhar de satisfação, antes de
derramar lágrimas de satisfação... Em resumo – quando o espectador é forçado a ‘sair de
si mesmo’. Para usar um termo mais bonito, deveríamos dizer que o efeito de uma obra
patética consiste no que quer que seja que ‘leve’ o espectador ao êxtase” (Eisenstein,
2002, p. 153).
notando que, segundo o teórico, as leis orgânicas que regem a obra são as mesmas que
regem a reação do espectador. A partir disso pode se dizer que, em primeira mão, ao ver
uma cena triste, o espectador deve se sentir triste, ao ver uma cena de triunfo, o espectador
deve se sentir entusiasmado, e assim por diante. Como podemos notar, esta formulação
narrativa; pelo contrário, ela é um retorno à forma clássica, na qual o discurso e a estrutura
Contudo, este postulado abre espaço para novas premissas e pensamentos em prol
de uma teoria que consiga unir a intenção do autor em extrair de sua platéia determinada
assim por diante. Pois, enquanto Lessing, no final da Idade Clássica, se perguntava qual
seria a forma mais sublime de congruência entre a matéria sensível de cada série artística
98
com o seu modo de recepção, Eisenstein se pergunta como extrair do espectador uma
reação esperada através da combinação dos sentimentos presentes na lei orgânica de uma
obra com aqueles suscitados, no espectador, através da lei patética da obra. O problema foi
transposto da relação da obra com a sua matéria e com a sua recepção, para a relação da
obra para com ela mesma e para com a sua recepção. É claro que a vitória do inimigo não
pode trazer alegria, e nem que a sua derrota possa trazer tristeza, e é a partir disso que o
articulação entre os fotogramas, e não entre os planos, como comumente se fazia. Assim,
assim por diante) ou com grau maior (F1 + F2 + F10 + F20...). Contudo, sua grande
contribuição para o nosso estudo foi a concatenação de fotogramas distintos (A1 + C20 +
D4...), a qual desestabiliza a relação linear da imagem percebida na tela com aquela surgida
os demais exemplos citados das outras séries artísticas. Eisenstein, assim, propõe a
16
Extraído do texto original anexo em Albera 2002.
99
Ощущение1
Ощущение2 Впечатление
Впечатление1
Впечатление2 Представление
Представление1
Представление2 Понятие
Do qual se lê 17 :
Impressão/gravura1
Impressão mental 1
(imagem-representação)
Representação/idéia 1 Conceito
Representação/idéia 2 (imagem-conceito)
psicoconstrutor, pela forma com a qual o cineasta renegava a criação por intuição emotiva
17
(tradução nossa)
100
esquema podemos perceber a diferença que o teórico postula entra as formas da imagem.
Como vimos, para ele, uma imagem é o construto gerado a partir da soma das
conceito. Por sua vez, a imagem conceito seria a soma das imagens-representação, a qual só
se torna completa na morte da obra estética. Este tipo de imagem precisa, necessariamente,
narra a espera de George Duroy por Suzanne, que havia concordado em fugir com ele à
meia noite. Segundo o teórico, Maupassant utiliza os preceitos da montagem para transmitir
representa, através das constantes badaladas dos diferentes relógios das igrejas próximas ao
ponto de encontro das duas personagens, o passar do tempo da narrativa; e, por outro,
patética, porque vai criando no leitor a sensação de inquietação. Eis o trecho referido:
“Tornou a sair às onze horas, errou durante algum tempo, tomou um fiacre e
mandou parar na Place de la Concorde, junto às escadas do ministério da marinha. De vez
em quando acendia um fósforo, para olhar a hora no relógio. Quando viu aproximar-se a
meia-noite, sua impaciência tornou-se febril. A todo instante punha a cabeça na
portinhola para olhar. Um relógio distante deu doze badaladas, depois um outro mais
perto, depois dois juntos, depois um último, muito longe. Quando esse acabou de tocar,
pensou: ‘Acabou-se. Deu tudo errado. Ela não virá.’ Estava entretanto resolvido a ficar,
até de manhã. Nestes casos é preciso ser paciente. Escutou ainda tocar um quarto, depois
18
O referido artigo se encontra em: FREEMAN, J. Voices of octuber. Londres: Dennis Dobson, 1968.
101
meia hora, depois três quartos; e todos relógios repetiram a ‘uma’, tal como tinham
anunciado a meia noite 19 ” (citado por Eisenstein, 2002, p. 23)
limitado a dizer que Duroy havia esperado Suzanne desde a meia-noite até uma hora da
manhã. Esse trecho de Bel ami ilustra, de uma forma bem primária e elementar, a
o patético. Contudo, o poder da montagem foi ainda mais explorado na literatura do século
XX, quando o próprio texto entra no jogo de espacialização e montagem. Como vimos na
William Faulkner. Este livro já é em si uma ode à montagem, uma vez que é constituído
por duas histórias distintas que se intercalam, uma sob o título homônimo da obra,
história é invertida. Um médico desce as escadas de sua casa, à noite, por causa de batidas
em sua porta. Quem está batendo é Harry, o protagonista da obra, mas ainda não se pode
19
Tradução brasileira: Clóvis Ramalhete. São Paulo: Livraria Martins, 1953.
102
comprar por conta própria, embora fosse proprietário da casa da praia e também da casa
vizinha e da outra, a moradia com eletricidade e paredes revestidas de gesso no povoado,
a quatro milhas de distância. Porque ele estava agora com quarenta e oito anos e tinha
dezesseis e dezoito e vinte na época em que seu pai lhe dizia (e ele acreditava) que
cigarros e pijamas eram coisas de almofadinhas e mulheres” (Faulkner, 2003, p.5).
Ao ler esse primeiro parágrafo até o final, o leitor quase que se esquece que há
alguém à porta esperando para ser atendido no meio da noite. Somente oito páginas adiante,
após uma série de digressões do pensamento do médico, se pode ler: “A batida soou
novamente” (Faulkner, 2003, p. 13). Dois parágrafos ainda separam essa frase de quando o
médico, enfim, abre a porta, e encontra Harry pedindo ajuda. O médico se desloca,
juntamente com Harry, para a casa vizinha, onde a mulher dele se encontra, precisando
urgentemente dos serviços do doutor. Quando lá chegam, Harry entra num quarto, o casal
inicia uma briga e a mulher se queixa de fortes dores. O médico aguarda na sala para saber
o que está havendo, e finalmente, na página 21, Harry autoriza a entrada do médico no
quarto. Na página seguinte, pode se ler o início da segunda história: “Uma vez (no
Mississipi, em maio, no ano da enchente de 1927) havia dois condenados. Um deles tinha
perto de vinte e cinco anos, alto, magro, sem barriga, o rosto queimado de sol (...)”
errado com a mulher e principiar a leitura de uma outra história, a qual se inicia do modo
interrompida. E o interessante é que quando a história de Charlotte e Harry é mais uma vez
retomada, já na página 31, ela diz o seguinte: “Quando o homem chamado Harry conheceu
pelo seu viés micro e macro. Pelo viés micro, o conflito se faz presente no momento no
qual o médico desce as escadas e passa a divagar sobre as questões morais de sua época,
enquanto as batidas sonoras na porta são apresentadas ao leitor. Num sentido macro, o
conflito aparece na intercalação das histórias, uma excitante e outra plácida. As histórias
utilizadas na montagem, podem possuir diversos tamanhos, desde a menor sentença, até
No caso específico do trecho lido até agora, a intercalação das duas frases análogas:
“A batida soou outra vez” , primeira frase do romance, com “A batida soou novamente”,
oito páginas adiante, tem como objetivo orgânico a informação do tempo médio
transcorrido, desde que a leitura começara até quando o médico abre a porta; e como
frases apresentam a função de imagem-representação, quando são captadas pelo leitor que
capítulo, acompanharão o leitor durante toda a leitura do romance, uma vez que só no final
do livro a explicação para o fato de Harry ter pedido ajuda é dada. Isso é montagem: uma
teórico ao defender que a imagem criada pelos autores é fielmente reconstruída na mente
Até agora vimos como a narrativa do cinema caminhou para a sua consolidação;
eisensteiniana.
seu dogmatismo ao defender que a imagem-conceito é veículo fiel da idéia que o autor
pretende transmitir:
“Uma vez em contato com a pessoa que o vê, o filme se separa do autor, começa a
viver a sua própria vida, passa por mudanças de forma e significado. (...). Não aceito os
princípios do ‘cinema de montagem’ porque eles não permitem que o filme se prolongue
para além dos limites da tela, assim como não permitem que se estabeleça uma relação
entre a experiência pessoal do espectador e o filme projetado diante dele.” (2002, pág.
140).
binária, proposta por Eisenstein entre a imagem proporcionada pelo autor e a imagem
impossibilitam o filme de se prolongar para além dos limites da tela, Tarkovski indica que
arbitrário. Assim, a questão levantada é a da aparição de um terceiro elemento, por sua vez
imensurável, que resida no cerne da transição das imagens e que não represente,
não chega a formular uma questão em prol da identificação do problema. A teoria peirciana
aplicação pura e a função demonstrativa. Ele cita, como exemplo da qualidade material, a
palavra homem, “que consiste em cinco letras num quadro, ela é achatada e não tem
relevo” (Peirce, 2005, p. 270). Essa qualidade material do signo é a própria palavra em si,
signo com seu objeto – não importando aí se ela se dá de forma imediata ou através de
outro signo. E a função representativa é aquela que faz menção à relação do signo com o
pensamento, independente de sua qualidade material e de sua relação real com o objeto.
subjetiva.
Saindo do plano sígnico e transpondo-se para o plano mental, Peirce defende que
uma sensação é o mesmo que uma hipótese (2005, p. 273), e que a hipótese “pode ser
qual se sabe que envolve necessariamente uma certa quantidade de outros caracteres, pode
sabe envolvidos por esse caráter” (2005, p. 264). Assim, a sensação é (como a hipótese) um
predicado simples que assume o lugar de um complexo. Como Peirce explica, o predicado
complexo é o argumento que conclui algo através de outros argumentos em conjunto, que
são por sua vez os argumentos simples (2005, p. 262). Destarte, sensações (simples)
107
(compostas) num plano inconsciente. Daí se extrai que se a sensação nada mais é do que o
substrato sensível de algo oculto, posto que no momento exato de sua ação ela não pode ser
seu caráter primordial constituinte, ela não pode ser representação, mas apenas sua
qualidade material.
Peirce atribui aos signos mentais as mesmas qualidades dos signos materiais:
Sobre a qualidade material do pensamento, ele propõe que cada pensamento possui
a sua qualidade particular e que essa qualidade não é mensurável. Pois, no momento no
qual o pensamento se faz presente ele é absolutamente único, e não pode ser percebido
como pensamento. “Todo pensamento, por mais artificial e complexo, é, na medida que
está imediatamente presente, mera sensação sem as partes e, portanto, em si mesmo, não
tem similaridade com qualquer outro, sendo incomparável com qualquer outro e
absolutamente sui generis 20 ” (Peirce, 2005, p. 272). Obviamente, se pode fazer o caminho
Contudo, essa ação será sempre fruto de uma força maior que une dois pensamentos
distintos, e, essa força maior assume o caráter de pensamento único no momento mesmo de
20
Nota de Charles Sanders Peirce: “Observe-se que digo em si mesmo. Não sou tão insensato ao ponto de
negar que minha sensação de vermelho, hoje, é semelhante à minha sensação de vermelho de ontem. Digo
apenas que a similaridade pode consistir apenas na força psicológica por trás da consciência – o que me leva a
dizer que reconheço este sentimento como o mesmo sentimento anterior, não consistindo, portanto, numa
comunidade de sensações” (Peirce, 2005, p. 272).
108
“Nunca podemos pensar ‘isto está em mim’, visto que, antes que tenhamos
tempo para a reflexão, a sensação já passou e, por outro lado, uma vez passada, nunca
podemos trazer de volta a qualidade do sentimento tal como ele era em e para si mesmo
ou saber como ele era em si mesmo, ou mesmo descobrir a existência desta qualidade,
exceto através de um corolário a partir de nossa teoria geral de nós mesmos, e nesse caso
não em sua idiossincrasia mas apenas como algo presente” (Peirce, 2005, p. 272).
quais, por sua vez, são sensações simples, ou pelo menos mais simples do que as sensações
que suscitam. Segundo Peirce, “o princípio geral de que tudo aquilo a que tal e tal sensação
pertence tem tais e tais séries complicadas de predicados não é um princípio determinado
pela razão, mas sim um princípio de natureza arbitrária” (2005, p.279). Em outras palavras,
um indivíduo não pode escolher o que vai sentir em determinada situação, há uma lei geral
que rege a sensação. Assim, a sensação é representação de algo, de acordo com cognições
prévias, as quais determinam que deverá haver uma sensação e qual deva ser esta sensação.
Contudo, como a sensação é apenas um sentimento isolado e singular, a sua existência não
pode ser atrelada à representação, pois a lei que rege esta representação funciona à revelia
oculto; e enquanto tal, não é uma representação, mas apenas a qualidade material de uma
idiossincrática. Pois, além de cada sensação ser única num dado momento temporal, ela
também é única para aquele que a sente. O leitor, no momento em que se dedica à
literatura, e extrai sentido lógico da narrativa, através da utilização arbitrária das qualidades
dos signos materiais e mentais, acumula sensações. Estas sensações são chamadas por
109
Eisenstein de Imagem, e todo seu postulado gira, de certa forma, em torno delas, através de
essas imagens não existam, ele propõe que elas existem num dado momento e só podem ser
momento imediato de sua ação. A qualidade material do signo mental é, para Peirce, um
sentimento na forma mesma em que é experienciado. Assim, ele corta a ligação direta entre
a representação e a imagem, tal como fora proposta por Eisenstein, encerrando a discussão
inicial sobre a relação idiossincrática entre a imagem formulada pelo autor e aquela
ligar de forma imediata o sentimento, de acordo com a sua qualidade dinâmica da obra de
ao estudo da literatura, se este fator particular for anulado. O caminho sugerido é o da união
puramente denotativa.
um esclarecimento dessa idéia. “A batida soou outra vez...” De acordo com as leis
premissas básicas da narrativa e o lugar de cada uma delas no conjunto narrativo. Em outras
palavras, funciona como uma imagem-representação, a qual será armazenada pelo leitor,
a imagem-conceito. Neste caso específico, a intercalação temporal das duas frases análogas,
“A batida soou outra vez” e “a batida soou novamente”, separadas por oito páginas, foi
expectativa.
Assim, podemos dizer que, para Eisenstein, existe um elemento-chave que significa
diretamente aquilo que representa, sem, no entanto, carregar nenhuma outra qualidade ou
função que não sejam as de pura representação e a de conexão com outras representações.
Após a primeira frase do romance, “A batida soou outra vez” , o que se nota é uma
apresentação das características morais e sociais do médico que caminha até a porta. Em
contrapartida, são também ressaltadas as qualidades do homem que espera para ser
atendido. A relação entre os dois, como o texto informa antes que a porta seja aberta, é a de
“usava um camisolão de dormir, não um pijama, pela mesma razão por que
fumava cachimbo, coisa de que nunca conseguira e, sabia, nunca conseguiria gostar,
entremeado com os charutos ocasionais que os pacientes lhe presenteavam entre um
111
domingo e outro, quando fumava os três charutos que podia comprar por conta própria,
embora fosse proprietário da casa da praia e também da casa vizinha e da outra, a moradia
com eletricidade e paredes revestidas de gesso no povoado, a quatro milhas de distância.
Porque ele estava agora com quarenta e oito anos e tinha dezesseis e dezoito e vinte na
época em que seu pai lhe dizia (e ele acreditava) que cigarros e pijamas eram coisas de
almofadinhas e mulheres” (Faulkner, 2003, p.5).
perdure na mente do leitor, essas novas informações, que vão se acumulando, essas novas
O médico havia sido informado sobre seus novos inquilinos pelo corretor de
“– Ela está de calças. Quero dizer, não estas calças de mulher, mas calças de
homem mesmo! Quero dizer, são justas demais para ela bem naqueles lugares que
qualquer homem gostaria de vê-las justas, mas que mulher nenhuma gostaria, a não ser
que as tivessem usando também. Para mim, Dona Martha (mulher do médico) não vai
gostar muito.
– Para mim tudo estará bem se pagarem o aluguel em dia – disse o médico.
– Não precisa de preocupar – retrucou o corretor. – Já providenciei. Não é à toa que estou
neste negócio há tanto tempo. Eu falei logo: – Vai ter que ser adiantado –, e ele disse: –
Está bem. Está bem. Quanto? –, como se fosse um Vanderbilt ou um graudão enfiado
naquelas calças imundas de pescador, só de camiseta debaixo do paletó. (...) se quer
minha opinião, ele não está interessado em móveis e sim em quatro paredes onde se
enfiar e uma porta para fechar em seguida” (Faulkner, 2003, p. 8 – 9).
com outras imagens-conceito desencadeadas pela obra. No entanto, o diálogo ainda remete
a uma outra relação da imagem-conceito, desta vez com ela mesma. Pois, no momento
112
exato de sua aparição na consciência do leitor, ela desperta um sentimento, que, como
vimos através da leitura de Peirce, é único e inexplicável. É único porque não pode ser
reconstituído sem que se perca seu caráter primordial, e é inexplicável porque, uma vez que
é único, não pode ser posto em comparação com nenhum outro elemento, e por
no início do romance, o qual aparenta uma referência clara à criação do suspense, apresenta
qual, no momento exato de sua criação, faz surgir no leitor um sentimento que desencadeia
o suspense. Contudo, quando se pensa esta terceira fase, a do sentimento, toda a malha da
relação entre as imagens anteriores fica invisível e a lógica das representações se esvai,
imagem. Ao passo que a qualidade material da imagem possui caráter imprevisível, tudo
que a análise pode apontar é a sua possível existência, e não o seu possível resultado no
pode demonstrar como, no texto, a organização das unidades significantes foi posta pelo
autor, e até apontar para uma leitura da possível intenção dele na narrativa; contudo, não
níveis de montagem que devem ser levados em conta em sua análise. Os dois primeiros, em
terceiro, o nível puramente material da imagem, mantém uma relação oculta com os outros
trabalhar em dois níveis distintos, no patético e no puramente material, uma vez que ela é
qualidade material, que faz com ela seja, em relação a ela mesma, um puro acontecimento.
A montagem, se vista por este prisma tripartido, permite que o filme se estenda para
além dos limites da tela, como colocou Tarkovski, e que a literatura se estenda para além
das páginas dos livros, pois atribui à imagem-conceito um elemento novo capaz de remeter
conceito. A qualidade material, segundo Peirce, não pode ser medida de acordo com
comparações, uma vez que ela é sempre única; contudo, essa qualidade pode ser
atribui maior precisão à utilização da montagem na literatura; por outro, como campo vasto
representação, e suas nuanças desde a Idade Clássica ao início do século XX, em prol de
mais especificamente, nas relações das narratologias fílmica e literária, através do conceito
de montagem.
enquanto código capaz de ser objeto estético e veículo inteligível de proposições de caráter
sobre os problemas e soluções que apareceram nos primórdios do cinema, quando a então
novidade científica e estética ainda não era capaz de carregar, em seu corpo discursivo, os
recíproca das narrativas cinematográfica e literária, indicou que existe uma relação entre o
a relação entre teoria e tecnologia nos dias de hoje. O percurso da narratização do cinema
parece, mais uma vez, se pôr no horizonte, pois a cada dia surgem novos meios
estético. Além disso, representam novas ligações com os moldes da criação e da teoria
literária.
Ao longo desta dissertação, a ciência, a filosofia e a arte andaram juntas. Delas tentou-
pilares das elucubrações, aqui propostas, sobre a narrativa e suas pontes temporais e
semióticas.
apresentam variações de acordo com a época e escola que os utilizam, o que significa,
portanto, enfatizar que possuem uma história. No âmbito da Teoria da Literatura, estes
Clássica – proposta por Michel Foucault como tendo lugar entre os séculos XVII e XVIII –,
período descrito como a idade da representação. Esta representação tem como característica
maior o ato de representar a si mesma, transformando o espaço dos saberes num quadro
ele intenta representar-se a si mesmo em todos os seus elementos, como suas imagens, os
olhares aos quais ele se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que fazem nascer”
coloca também o problema da imagem, pois, de fato, não seria correto ponderar sobre a
imagem separadamente se se tem a confiança de que tal conceito foi erigido através de um
refletida em um espelho pela própria imagem e lermos cada atributo seu inversamente, o
Idade Clássica e a Moderna. O que se atentou, nesta pesquisa, foi, primeiramente, apontar
quais teriam sido estas mudanças no plano da organização dos saberes e das epistemes,
A alteração epistêmica mais importante, ressaltada neste trabalho, foi a separação entre o
proporcionou novas fronteiras para os limites entre as séries artísticas, possibilitou uma
maior fragmentação das narrativas e atribuiu mais sentido em se abordar a literatura através
do conceito de montagem.
Clássica tratou o tema da imagem. Através das figuras de Leibniz, Espinosa e Descartes, tal
conceito foi posto em análise. O objetivo maior foi o de evidenciar como foi decisiva a
imagem que era sempre tida em prol de seu reflexo. Isso ocorria porque todo o pensamento
117
imagem era sempre polarizada, mantendo estreitas e ambíguas relações com o pensamento
e com a matéria, com o espírito e com o organismo biológico, respeitando-se sua intrínseca
reflexão. A partir desse fato, a imagem se despoja de seu caráter representacional e passa a
funcionar sob o jugo de uma outra episteme, a qual não faz mais a categorização incessante
baseados, eles próprios, no sistema das representações. Toda teoria imagética proposta era
pensamento que as unia. A imagem presente na teoria de Eisenstein é de outro tipo, e, como
foi colocado, não pode ser entendida como as proposições da Idade Clássica, pois a
constituinte da imagem.
Eisenstein é carregada de atributos modernos, os quais são mais bem apreendidos se postos
teve como um dos objetivos o de trazer para a pesquisa o contraste teórico, o qual, através
representação de forma bem mais clara e eficaz. A imagem, na literatura, só podia ser
saberes, compatíveis com seu estatuto, este discurso matinha direta relação com o formato
estético da linguagem, o qual, por sua vez, deveria refletir o modo de encadeamento das
idéias. A partir do momento em que a relação direta entre os dois é rompida, abre-se o
literatura.
adequado coeficiente teórico da literatura, ainda que apresentem pontos polêmicos em seu
corpo conceitual. A montagem de Eisenstein se oferece para a leitura das mais diversas
análises de trechos de obras significativas da série literária, como Flaubert, Eliot, Joyce e
Faulkner.
criadas pelo autor e aquelas apreendidas pelo leitor. O presente trabalho buscou demonstrar
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uma obra qualquer possuir relação direta com a imagem suscitada em sua apreciação. Para
elemento a essa relação, o qual foi proporcionado pela Teoria dos Signos de Charles
Sanders Peirce.
O terceiro elemento indicado foi a qualidade material do signo mental, proposta por
Peirce. Através dessa qualidade, o sentimento oriundo da obra estética recebe uma nova
caracterização, a qual não pode ser medida, por não se relacionar diretamente com nenhum
tal, não é uma representação, mas apenas a qualidade material de uma representação”
(Peirce, 2005, p. 273). Ao instituir uma qualidade isolada ao signo mental, a qual não
mantém relação direta com a representação e nem com outros signos-pensamento, o autor
formula uma teoria mais eficaz ao estudo da literatura, pois insere um corte e impõe limites
à representação.
Assim, além do corpo teórico dissertativo, esta pesquisa procurou apontar questões
literatura: àquela composta pela união das teorias de Peirce e Eisenstein. Tal trabalho pode
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