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Liliane Frey-Rohn
Marie-Louise von Franz
A MORTE A LUZ
DA PSICOLOGIA
O O
O' 0- 0 o C ultrix
A MORTE À LUZ DA PSICOLOGIA
EDITORA CULTRIX
ANIELA JAFFÉ
LILIANE FREY-ROHN
MARIE-LOUISE VON FRANZ
Tradução
ALAYDE MUTZENBECHER
EDITORA CULTRIX
São Paulo
fitu lo do original:
Im Umkreis Des Todes
Edüç&o A no
1-2-8-4-6-6-T-8-B-10 B&-90-81-92-03-84-95
PREFÁCIO.................................................................................. 7
7
o revela especialmente através da narração da própria “vi
vência da morte” de Jung, após o enfarte ocorrido em 1944,
do qual se recuperou. Aniela Jaffé se apóia nas diversas con
ferências pronunciadas por Jung sobre o tema da morte, as
sim como em suas cartas e informações pessoais que se ocu
pam com essa problemática, delineando uma visão abrangen
te sobre o mundo do pensamento e da vivência de Jung no
que se refere ao fenômeno da morte.
A contribuição de Liliane Frey-Rohn, na qual são cita
das algumas experiências pessoais relacionadas com a morte,
assim como o,s diversos sonhos elucidativos de pessoas pres
tes a morrer,! são antes de tudo relatórios sobre “experiên
cias sobre a morte” de pessoas que foram consideradas clini
camente mortas e que, posteriormente, relataram o que sen
tiram e as imagens então vislumbradas. Ela submete essas ex
periências a uma detalhada investigação baseada em conhe
cimentos da psicologia analítica e nas pesquisas acerca do
fenômeno da sincronicidade, relacionando-as com os sonhos
sobre cura dos diversos cultos e com a antiga mística irania
na, assim como as teorias sobre o conceito dos “corpos su
tis”. Liliane Frey-Rohn consegue transmitir não apenas indi
cações sugestivas e interessantes sobre o que as pessoas sen
tem no momento da morte, mas também o interesse hoje
tão evidente de esclarecer essas experiências à luz da psico
logia.
O ensaio de Marie-Louise von Franz trata das “Expe
riências Arquetípicas nas Proximidades da Morte” . Na prá
tica de sua atividade como psicóloga profunda, inúmeras ve
zes ela acompanhou as pessoas em seu caminho rumo à mor
te. Ela narra e interpreta os sonhos e as outras experiências
anímicas que — segundo as condições do consciente de cada
indivíduo — lhes anunciam a aproximação da morte, no in
tuito de ajudá-los no sentido de uma maior conscientização,
a fim de poderem lidar com o fato de ter de morrer. E ela
os ajuda a compreenderem melhor o significado da morte.
Quanto às mais recentes pesquisas na área da Física, Marie-
Louise von Franz discute ainda as formas possíveis de uma
8
dimensão da psique que transcende o tempo e o espaço, e
que independe desses conceitos.
O que todas as três conferências têm em comum é o
fato de considerarem a misteriosa experiência da morte co
mo um processo de mutação para um novo ser. E, apoiada
sobre itens da experiência psicológica, a morte não é com
preendida apenas como o fim, mas também como o come
ço de um Ser “totalmente novo” . Este enfoque converte es
ta publicação num livro que revela novos horizontes, sem
jamais abandonar o terreno da ciência experimental em fa
vor de conjecturas especulativas.
E, finalmente, apesar de toda a luz que possa conver
gir sobre o tema da morte, procedente de suas mais diver
sas facetas, esta continua sendo um mistério. Porém, atra
vés de uma maior conscientização e de novos enfoques, po
demos encarar essa experiência de modo menos tenso.
9
A VISÃO DE C. G. JUNG SOBRE A MORTE
Aniela Jaffé
11
car, se entregar ou não, são os fatores irredutíveis da nossa
decisão.”3
Ainda discutiremos o fato de Jung não ter aceito este
enfoque mais elevado sobre a morte logo de início; ele pre
cisou lutar para aceitá-lo.
A derradeira meta, que a cada momento se aproxima
mais da pessoa que envelhece, é a morte. O homem moder
no, que pode ser considerado um carente de fé religiosa,
em geral vai despreparado ao encontro da morte, e é neste
ponto que se insere a psicologia analítica de C. G. Jung. Ori
ginalmente, Jung havia formulado a psicologia da individua
ção, e o processo de conscientização, como um ponto a ser
confrontado com os conteúdos da psique inconsciente, ten
do em vista o sentido da segunda metade da vida. Portanto,
em essência, grande parte do que ele pensou e escreveu a es
te respeito — mesmo se formulado indiretamente — foi uma
psicologia do envelhecimento. O processo de individuação,
em última análise, não é uma mera escola de vida, mas quan
do bem compreendido, uma preparação para a marte. Neste
caso, não se trata apenas de um auto conhecimento mais pro
fundo; ele não visa somente à compreensão da própria tota
lidade, porém no decorrer do processo se experimenta e se
reconhece no homem um poder que atua a partir do incons
ciente e que pode intervir decisivamente na sua vida, passan
do por cima do desejo do seu Eu. Sabemos o que queremos
e o que almejamos, porém a vontade própria é contínua e
inesperadamente contrariada, até em seu procedimento éti
co, pois, com freqüência, não realizo o bem que desejo, e
sim o mal que detesto. A afirmação de Si-mesmo, o desen
volvimento da personalidade, é uma relativização do Eu sem
levar em conta os interesses pessoais, diante de um desejo
do não-Eu autônomo, que por isso mesmo é vivenciado co
mo numinoso. Não se trata ae uma entrega impotente aos
12
fatos, mas muito mais de um “sim” consciente a essas inten
ções, ou um humilde “ sim” à própria rendição.
Uma intensificação máxima dessa postura exige que
se morra, pois, ao considerá-la do ponto de vista psicológi
co, a morte é o “desapego” total, a anulação do Eu e do mun
do consciente no interior de um não-Eu desconhecido e som
brio. Depois de uma doença grave que o havia levado à beira
da morte, já septuagenário, Jung escreveu o seguinte: “O di
fícil é apenas isto: desprender-se do corpo, ficar nu e vazio
do mundo e do livre-arbítrio. Quando se consegue abrir mão
do furioso desejo de viver, quando se tem a impressão de cair
numa neblina insondável, é então que começa a verdadeira
vida, implicando tudo aquilo que viemos fazer, e que nunca
alcançamos. E algo indescritível, de tão grande!”4 E em ou
tra carta, ele diz: “O aspectus mortis é de uma incrível soli
dão, quando se é privado de todas as coisas na presença de
Deus. A própria totalidade é impiedosamente colocada à pro
va.”5 Alguém que se correspondia habitualmente com Jung
viveu um fato semelhante num sonho sobre morte, que re
presentava uma espécie de caminho da individuação, ao tér
mino do qual uma voz lhe ordenava que pulasse num preci
pício. Desesperado, ele relutava, mas, por fim, obedeceu. Para
sua grande surpresa, não tinha caído no abismo, mas nadava,
radiante, “no azul da Eternidade” .6
Impressionantes sonhos sobre morte são narrados no li
vro “Psique e Morte”7 de E. Herzog. Eles mostram, com gran
de clareza, que a alma inconsciente conhece a morte; e quem
prestar atenção aos sonhos ficará preparado para a morte mui
tos anos antes de morrer.
Sonhos nos quais a própria pessoa morre em geral ocor
rem no momento de uma transição difícil e dolorosa na vida
real. E, justamente por isso, também podem ser interpretados
4. Carta dirigida à dra. Kristine Mann, em 01/02/1945; Cartas I, p. 443.
5. Carta dirigida ao padre Victor White, em 18/12/1946; CartasII, p. 64.
6. Carta dirigida a E. L. Grant Watson, em 25/01/1954; CartasII, p. 367s.
7. Da série de escritos “Estudos do Instituto C. G. Jung”, tomo 9, Zurique,
1960.
13
como uma preparação para a morte; no sentido de uma ne
cessidade de sacrificar o livre-arbítrio não é raro que também
signifiquem uma morte em vida.
Jung formulou seus pensamentos sobre a morte como
concepções pessoais, sem ter provas científicas à sua dispo
sição, e nem as considerou necessárias. Para ele, a questão
não era a validade das afirmações, nem mesmo no que se re
fere às conseqüências lógicas, pois são muitas as contradições
encontradas. Suas idéias foram baseadas em sua própria ex
periência; Jung seguiu o fluxo das imagens da alma. “Meus
ouvidos estão atentos aos fantásticos mitos da alma’5 — são
suas textuais palavras no seu livro de Memórias.8 E a este
“fabular” ele denominou “mitologar” . “Para a razão, o ‘mi-
tologar’ é uma especulação estéril, porém, para o tempera
mento, significa uma atividade que melhora a vida. Jung con
cede à Dasein [existência] um brilho do qual não gostaría
mos de prescindir. Não há tampouco motivo suficiente que
justifique a sua perda.”9 Pois o homem, que crê numa vida
eterna organizada e num ser formulado organizadamente
após a morte, está em sintonia com as imagens arcaicas im
pressas na sua alma. Desse modo, ele está interligado com a
natureza básica da alma, e sua vida toma-se uma unidade
maior, mais plena. Semelhante enfoque com relação ao fu
turo parece de todo modo mais natural na velhice — Jung
afirmava também que era mais higiênico — do que uma insis
tência em ponderações racionais que denigrem, negam ou re
primem aquilo que não se pode comprovar logo de início.
As declarações de Jung sobre a morte baseiam-se numa
concepção de crença na vida, que ele nunca formulou de mo
do tão incisivo como nesse contexto. Ele via a vida como um
setor do Ser que transcende infinitamente os anos vividos.
Por isso, ele chamava o fim da vida de “um segundo nasci-
14
mento [. . .] que, de fora, se parece com uma morte”,10 e que
“a assim chamada vida” é apenas “um breve episódio entre
dois grandes mistérios que, de fato, se resumem em apenas
um” .11 E mais adiante: “Tenho bons motivos para inferir
que as coisas não terminam com a morte. A vida parece ser
um jogo que representa um intervalo numa longa história.
Já existia antes que eu, e é muito provável que continue a
existir quando terminar o intervalo consciente numa exis
tência tridimensional.” 12
Nada sabemos de objetivamente válido sobre o que re
presenta a nossa vida como tal, sobre o que representa este
setor, esse recorte da existência entre eternidade e eternida
de. O mistério do Antes e do Depois também encobre o sen
tido da vida. “Na maioria das vezes, permanecemos na mais
profunda escuridão no que concerne aos motivos e ao senti
do de uma vida individual.” Os acontecimentos de nossa pró
pria Dasein [existência] podem iluminar apenas em parte o
nosso consciente, e “a escuridão encobre o que havia antes
do começo e o que se encontra depois do fim” .13
Apesar de Jung sempre insistir na impossibilidade de dar
uma resposta objetiva quando se levantava a questão sobre
o sentido da vida, ele não se deu por satisfeito com isso. Par
tindo do seu ponto de vista, ele imaginou ou concebeu para
si mesmo um sentido da vida, sabendo muito bem que se tratava
de uma concepção subjetiva, de um mito que, no entanto, lhe
pertencia, e que o comprometia muito profundamente.14 Ele
10. Carta dirigida a Kristine Mann em 01/02/1945; Cartas I, p. 444. Cf. a carta
dirigida a Hanna Oeri em 23/12/1950; Cartas II, p. 205. “Este enfoque da velhice se
ria de fato insuportável se não soubéssemos que nossa alma chega a uma região que
não se prende nem às mudanças de tempo, nem à limitação pelo espaço. Nesta forma
de Ser, nosso nascimento é uma morte, e nossa morte, um nascimento. Os pratos da
balança do Todo estão em equilíbrio.”
11. Carta dirigida a pessoa não identificada, com data de 1947; Cartas II, p. 103.
12. Carta dirigida a pessoa não identificada em 19/11/1947; CartasII, p. 520.
13. Carta dirigida a pessoa não identificada em 05/03/1959; CartasIII, p. 236.
14. Cf. O Mito do Sentido na Obra de C. G. Jung, de A. Jaffé, Ed. Daimon,
Zurique, 1983; Ed. Cultrix, São Paulo, 1988.
15
viu o sentido da vida como uma ampliação crescente da cons
ciência, com todas as suas conseqüências espirituais, religiosas
e éticas. Por esta razão, pode-se também compreender o pro
cesso de surgimento do consciente como uma individuação; é
o mesmo que dizer que cada pessoa tem de trilhar um cami
nho de destino próprio, uma individuação pessoal, para a rea
lização do sentido da sua vida.
Do ponto de vista da vida enquanto individuação, a velhi
ce e o fim da vida podem, de fato, estar imbuídos de um signi
ficado particular, sempre e quando a diminuição de forças não
o obriguem a limitações terríveis. Jung parecia estar visando
um caso ideal quando, aos 69 anos, escreveu: “O olhar [do
velho] abarca distâncias que chegam ao infinito. As últimas
etapas [da vida] são as mais belas e valiosas, pois conduzem
àquela plenitude para a qual nasceu o Ser mais profundo do
homem.” 15
Equiparar a vida com a individuação corresponde a uma
experiência bastante freqüente: a de que a morte ocorre quan
do se atinge a meta desse processo. Jung escreveu também o
seguinte: “Conheci muitas pessoas que morreram ao alcançar
a culminância daquilo de que eram capazes. A medida de suas
vidas foi evidentemente preenchida; tudo foi dito, tudo foi
feito, e não restava mais nada a realizar.” 16
Nunca me esqueço de como Jung, uns três dias antes da
morte de sua mulher, num monólogo em que se dirigia a mim,
tomou a decisão de permitir que lhe administrassem os meios
costumeiros para fazê-la dormir para sempre. Não foram ape
nas as suas dores físicas que o motivaram, pois ele acrescen
tou as palavras: “Conscientemente, ela já fèz o bastante” .
Mais ainda, do ponto de vista da vida como uma indivi
duação a ser atingida, fazem sentido os freqüentes relatos de
avisos em forma de pressentimentos e de incríveis acasos que
salvaram vidas humanas. Nesses casos, a voz popular fala so
bre anjos da guarda. O psicólogo fala do Selbst (do “ Si-mes-
16
mo”) do homem, de sua totalidade consciente e transcen
dente, e levanta a hipótese de que esse poder autônomo que
transcende o destino mantém a vida — em geral, contra to
das as expectativas — enquanto existe uma intenção de vi
ver a vida até o fim e de se curar. Ou, formulando o concei
to de outra maneira, gostaria de acrescentar que as curas mais
imprevisíveis por parte do médico também só podem ocorrer
deo concedente.
Oportunamente, parece que, diante da morte, “o impla
cável confronto com o Si-mesmo” força o homem a comple
tar a parcela de sua individuação que ainda lhe é possível an
tes de morrer. Em Alma e Morte17 Jung cita o exemplo de
uma paciente que ele havia analisado, que sempre pensou
ter sido uma mãe exemplar. No decorrer da doença que a le
varia à morte, seus sonhos fizeram com que tomasse cons
ciência de quanto egoísmo havia por trás de sua postura ma
ternal. Ela só pôde morrer depois dessa sessão de auto-aná-
lise, depois desse aprofundamento do seu consciente. Neste
caso, o consciente nunca deve ser compreendido apenas como
um conhecimento intelectual, pois está muito mais interliga
do a uma transformação interior e a uma transformação da
alma.
A tomada de consciência da própria sombra parece ter
um extraordinário significado para o moribundo. De fato,
isso também esclarece a ampla presença dessa motivação não
apenas nos sonhos como também nos mitos e nas lendas; por
exemplo, como uma imagem do juízo final, como a visão do
diabo que vem em busca da alma do pecador não arrependi
do, assim como nos relatos sobre as almas que continuam
presas à Terra, “circulando”, por não haverem expiado uma
injustiça ou um crime. A noção de um céu como recompen
sa e de um inferno como castigo apontam na mesma dire
ção. Tive uma confirmação a este respeito durante meu tra
balho num asilo para anciãos, quando um homem de mais
de 80 anos, que havia passado muitos anos na prisão, proferiu
17
as seguintes palavras, sérias e comovedoras: “Não devo te
mer a morte, pois eu já expiei as minhas faltas!” Pòde-se com
preender como a fé de um homem que crê em Deus se amplia
diante da consciência de sua libertação do pecado através de
Cristo, ao saber que vai morrer.
A tão propalada idéia a respeito da morte, do reencon
tro com os mortos queridos, é compreendida geralmente co
mo algo ligado ao espiritismo.18 No sentido psicológico, po
rém, essa idéia também faz partè do simbolismo da individua
ção; ela indica a recomposição das unidades da alma que até
então haviam sido projetadas nas pessoas amadas; e essa com
posição aproxima o homem da meta da individuação, da to
talidade.
Esta reunião pode ser vivida de forma muito simples. Du
rante uma investigação pessoal, encontrei um relatório sobre
uma camponesa suíça que, no decorrer da doença que a leva
ria à morte, via seu falecido marido de pé diante da sua ca
ma; ela sabia que só morreria quando pudesse segurar-lhe a
mão.19 Mais raras são as experiências de uniões do eu supe
rior com poderes numinosos num casamento sagrado. Conta
a lenda judaica que no momento da morte do rabino Schimon
ben Jochai seus discípulos ouviram uma voz que os chama
va para o casamento do mestre.20 Aos 69 anos, bem próxi
mo da morte, o próprio Jung teve visões de casamentos que
lhe causaram profunda impressão.21 Ele as viveu numa se
qüência de imagens, como a união das figuras cabalísticas de
Malchuth e de Tipheret, dos deuses Zeus e Hera, como o ca
samento do cordeiro e, finalmente, como o casamento fú
nebre do próprio rabino Schimon ben Jochai. Como ele nar
ra em suas Memórias, no decorrer desse processo não sentiu
18. Cf. a obia de K. Osis, Death Observations by Physicians and Nurses [Mé
dicos e Enfermeiras Observam a Morte], Nova York, 1961.
19. A. Jaffé, Geistererscheinungen und Vorzeichen [Aparições Fantasmagó
ricas e Premonições], 2* ed., Zurique, 1978, p. 58.
20. Der Sohar [O Sohar], organizado por E. Müller em 1932, p. 390.
21. Cf. capítulo “Visões”, das Memórias.. .
18
com clareza qual o seu papel nesse drama. “Em essência,
era eu mesmo” — dizia —, “eu era o casamento. E minha fe
licidade era a que se obtém com um casamento feliz.”
A concepção de Jung sobre a vida como uma tarefa de
individuação, colocada pelo Transcendente, que se realiza
na morte, determinou também seu enfoque a respeito do
suicídio. Com freqüência, ele recebia cartas de pessoas de
sesperadas, que lutavam contra o problema do suicídio e que
solicitavam conselhos. A uma mulher modesta, ele respon
deu: “A idéia do suicídio, por mais compreensível que seja
do ponto de vista humano, não me parece recomendável. Vi
vemos para alcançar o maior grau possível de desenvolvimen
to espiritual, e de conscientização. Enquanto a vida de algum
modo ainda for possível, mesmo no mais ínfimo grau (ou en
quanto se reconhece nela um sentido, por mais diminuto que
seja), devemos nos aferrar a ela de modo a esgotá-la, visan
do a meta da conscientização. Interromper a vida antes do
devido tempo significa impedir uma experiência que não fo
mos nós que estruturamos. Já a estamos realizando, e deve
mos vivê-la até o seu ponto final.”22
Correspondia, no entanto, à humanidade de Jung e ao seu
respeito pela vida como um Todo — que em última instân
cia nós desconhecemos — o fato de ele nunca estabelecer
regras rígidas. Sob certas condições, ele reconheceu que o
suicídio estaria justamente inserido no plano da vida, na ex
periência. De acordo com o que escreveu em certa carta,23
ele conhecia alguns casos “em que seria quase criminoso im
pedir o suicídio, pois todas as provas mostravam que este
correspondia à tendência do inconsciente e, conseqüente
mente, havia base para tal procedimento” . Um observador
de fora nem sempre está em condições de protiunciar um
julgamento. Após a morte de uma mulher que sofria de cân
cer, Jung escreveu o seguinte:24 “Se ela tivesse cometido sui
22. Carta dirigida a pessoa não identificada, em 10/07/1946; Cartas II, p. 44.
23. Carta dirigida à dra. Eleanor Bertine em 25/02/1946; Cartas II, p. 46.
24. Ibidem.
19
cídio sob a pressão das dores insuportáveis, eu teria achado
correto. Como não o fez, penso que estava escrito em seus as
tros que teria de sofrer uma agonia tão atroz, cujos motivos
escapam à nossa compreensão. Nossa vida não é moldada por
nós mesmos.”
Não existe uma certeza a respeito de uma vida após a
morte. Jung nunca conseguiu simpatizar com as respostas
dadas pelo espiritismo; ele só se expressou a respeito com
cautela.
Houve um único pensamento que ele considerou uma
contribuição científica ao problema da vida após a morte.
Ele o deduziu dos fatos parapsicológicos concretos, tais co
mo sonhos premonitórios, pressentimentos e outras percep
ções que ultrapassam os sentidos; pois estes teriam compro
vado que a alma — pelo menos em parte — alcança uma es
fera de relativa ou de absoluta ausência de tempo e de espa
ço. Em seu ensaio intitulado “Alma e Morte” , de 1934,
ele afirmou que “em suas profundezas, a psique faz parte de
uma forma de ser independente do tempo e do espaço, inte
grando então aquilo que é insuficiente e simbolicamente de
nominado de ‘eternidade’ ” . Dessa qualidade de eternidade
parcial da alma não surgirá, de fato, a certeza, mas sim a pos
sibilidade da continuação de uma vida igualmente organizada
após a morte. Jung nunca abriu mão dessa opinião. Aos 83
anos de idade, portanto um quarto de século mais tarde, nu
ma carta, ele retomou a idéia sobre a relativa independência
da psique no que se refere ao tempo e ao espaço ao afirmar
que “isso significa que esses dois elementos — tempo e espa
ço — são pressupostos básicos relativamente insignificantes
para a psique. Em outras palavras: até certo ponto, a alma
não está sujeita à mutação e à transitoriedade. Isto é tudo o
que sabemos. [. . .] Talvez as pessoas que não possuam o dom
da fé possam ser ajudadas pela lembrança de que a própria
ciência aponta para uma possibilidade de continuação da
vida” .25
20
Jung de modo algum deixou de ver o elemento trágico
da morte — nem a brutalidade da morte física, nem tampou
co as coisas ainda incompreensíveis, como, por exemplo, o
fato de que aqueles a quem desejamos uma vida longa são
arrebatados do meio da vida, enquanto outros que de nada
servem, atingem uma idade avançada. “Esta é uma realidade
atroz que não se deve disfarçar.”26
Em oposição às pessoas que morrem quando a medida
de suas vidas é preenchida, há a grande maioria cuja vida nos
parece incompleta, e das quais não se pode falar de uma rea
lização no sentido de uma individuação. Encontramo-nos nas
proximidades do sentimento do trágico, ou mesmo do absur
do. Porém, ainda temos à disposição nossas considerações
humano-subjetivas, considerações que pressupõem como nor
ma uma vida bastante longa e realizada, muito bem vivida.
O que é válido como objetivo de vida sub specie aeternitatis,
o que lhe confere um sentido, não é passível de ser separado
do homem, pois “a resposta à vida humana não fica dentro
das fronteiras da vida” .27
A tristeza de Jung quase nunca se voltava para o mor
to, mas para os sobreviventes. “Não posso ficar de luto por
quem morreu” — escreveu certa vez numa carta “eles per
manecem e nós vamos passando.”28 Sua compaixão dirigia-
se aos sobreviventes, “àqueles que percebem a transitorieda-
de da vida, tendo de suportar as despedidas, os sofrimentos
e a solidão no transverso do tempo.29 Uma pessoa é arreba
tada para longe, e o que resta é o silêncio mortal e gélido” .30
Jung proferiu estas palavras baseado na própria expe
riência, pois ele sofreu profundamente essa solidão e esse
“silêncio gelado” após a morte de sua mulher. Em fevereiro
de 1956, mais ou menos três meses depois da morte da es
posa,, ele escreveu uma carta a Laurens van der Post, na qual
2 6 .Memórias, p. 317.
27. Carta dirigida à sra. L. G. Oppenheim em 12/08/1933; CartasI, p. 169.
28. Carta a um desconhecido, datada de 08/01/1948; CartasI, p. 103.
29. Carta a Hanna Oeri, de 23/12/1950; CartasII, p. 205.
30. Memórias, p. 317.
21
dizia: “Estou contente por haver podido poupar (reconhe
ço que não por mérito próprio) à minha mulher naquilo que
se segue à perda do companheiro de toda uma vida: o silên
cio sem resposta.” Depois de mais três meses ele contou a
van der Post a comovente experiência vivida, de que esse
silêncio lhe havia dado uma resposta: esta viera em forma
de sonho, no qual sua mulher apareceu sobre o palco soli
tário de um teatro escuro e vazio. Ela estava coberta por uma
luz maravilhosa, e estaiva mais bonita do que nunca. Jung não
considerou este sonho como uma aparição espírita, nem co
mo se fosse um espírito da morte, porém mais como uma
realidade da alma, como uma imagem exterior ao tempo,
pois “continha o início do nosso relacionamento, os fatos
ocorridos no decorrer dos 53 anos de nosso casamento, bem
como o final da vida de minha mulher. Diante de uma tal To
talidade, nos calamos, pois mal se pode captá-la” .31
Ao próprio Jung foi concedida a bênção de continuar
criativamente ativo até poucas semanas antes de morrer. (Seu
último ensaio intitulou-se Approaching the Unconscious, da
obra Man and his Symbols. 32) Mas também não lhe foram
poupadas as horas de medo ê depressão diante da perda de
forças e da proximidade do fim. Numa de suas cartas, ele dis
se: “Confesso temer uma doença de longa duração. Creio es
tar pronto para morrer, embora pensamentos ainda vigorosos
resplandeçam como raios numa noite de verão. Porém, estes
não são meus pensamentos; eles pertencem a Deus, como tu
do aquilo que merece ser mencionado.”33
Isso foi escrito por Jung aos 71 anos, e evidencia que a
sua individuação até aquele momento ainda não havia sido to
talmente realizada.
A carta por ele redigida aos 78 anos tem um tom mais
trágico: “Contemplar a natureza eterna me faz sentir doloro
samente a minha fraqueza e transitoriedade, e não encontro
22
nenhum prazer na presunção de uma aequanimitas in conspectu
mortis. Assim como sonhei certa vez, minha vontade de viver
é um daimon incandescente, que por vezes converte a cons
cientização de minha mortalidade em algo infernalmente di
fícil. Como um caseiro infiel, o máximo que eu podia fazer
era manter a honra, e nem sempre o fiz, de modo que o meu
senhor nem sequer teria muito ò que elogiar. Mas o daimon
pouco se importa com isso, pois, no fundo, a vida é foijada
de aço sobre pedra.” 34
Cerca de um ano antes de sua morte essa dor ainda exis
tia, mas já se anunciava a sua superação: “A idade avançada
só tem a metade das vantagens que se costuma supor. Em
todo caso, trata-se de um colapso gradual do corpo, desta
máquina cujo mau funcionamento nos identifica. De fato,
requer um grande esforço — um magnum opus — subtrair-se
a tempo do aperto do seu abraço, e libertar a alma para a vi
são da incrível grandeza de nosso mundo, de um mundo do
qual somos uma parte infinitesimal.” 35
De fato, em seus últimos anos, Jung fez uma espécie de
retirada para dentro de seu reino interior. O que mais chamou
a atenção foi uma mudança iniciada bem cedo da sua percep
ção do tempo: com toda a sua presença lúcida no aqui e no
agora, nosso mundo tomou-se para ele uma realidade cada
vez mais distante, quase inexistente. “A iminência da mor
te e a visão do mundo in conspectu mortis são, de fato, ex
periências únicas: a sensação do presente se espalha trans
cendendo o dia, olhando retrospectivamente para os séculos
passados e prevendo, desbravando futuros que ainda estão
por vir.” 36 Seria como se a alma já estivesse retomando ao
misterioso solo do seu Ser, fora do tempo e do espaço. Ape
sar de todos os momentos depressivos, isso conferia a Jung
uma sensação fundamental de alegria.
Um sonho tão significativo quanto simples que Jung
ainda pôde relatar nos últimos dias de sua vida, e com o qual
34. Carta a Aniela Jaffé em 29/05/1953, CartasH, p. 336.
35. Carta a Eail von Sandwich em 10/08/1960, Cartas III, p. 327.
36. Carta a A. Vischei em 21/03/1951; Cartas U, p. 215.
23
eu gostaria de encerrar esta palestra, trouxe-lhe a certeza e o
consolo de haver concluído a obra da sua vida e de haver al
cançado a meta da individuação. Esse sonho conferiu-lhe a
certeza de que o fim era a sua realização: nele Jung via uma
grande pedra redonda colocada sobre um pedestal elevado,
com a seguinte inscrição: “Como sinal da tua Totalidade e
da tua Unidade.”37
37. Cf. A. Jaffé, Aufsätze zur Phychohgie C. G. Jungs [Ensaios sobre a Psi
cologia de C. G. Jung], Ed. Daimon, 1982, p. 88; Ensaios sobre a Psicologia de C. G.
Jung, Ed. Cultrix, São Paulo, 1988.
24
Dedicado à memória dos companheiros que me
precederam na morte.
Liliane Frey-Rohn
PRIMEIRA PARTE
Introdução
25
um arquétipo que procura restabelecer a Unidade e a Ordem
perdidas.1
Eu gostaria de perguntar o seguinte: poderíamos acaso
compreender de modo análogo o crescente interesse da hu
manidade pelas experiências psíquicas que ocorrem quando
a morte se aproxima? Ou então, formulando a questão de outro
modo: acaso a surpreendente freqüência de livros e de arti
gos escritos sobre a vivência da morte, e a assiduidade igual
mente assombrosa de informações que versam sobre os as
pectos da morte não indicariam, porventura, uma tendên
cia do inconsciente em compensar a incrível tensão sofrida
hoje em dia pelos homens?
O medo da morte parece ter se constelado de modo par
ticularmente elevado na época atual. Nele se evidencia o de
samparo do homem, que perdeu a conexão com seus pode
res numinosos. Deixado por conta própria, o homem se sen
te intimidado, tanto na vida social como na vida íntima. O
homem não sente apenas o medo de uma catástrofe mun
dial, mas é acometido também pelo medo e pela ameaça con
tidos no que constituem as predisposições demoníacas, tais
como a inveja, o ódio, bem como a crueldade da sua própria
alma. A valorização desmedida atribuída, por um lado, ao
poder, ao conhecimento e à fortuna ocasionam, por sua pró
pria natureza, uma desvalorização correspondente dos valo
res espirituais do além. Isso faz com que o indivíduo se dis
tancie das forças normalizadoras da sua própria psique. A
morte torna-se então um fantasma noturno, totalmente es
tranho, que abre brechas ameaçadoras de incríveis dimen
sões e que aniquila a sua personalidade. Não é de estranhar
que, diante do esvaziamento e da despersonalização crescen
te do indivíduo, o inconsciente exerça pressão, procurando
elevar os valores espirituais reprimidos até o consciente atra
vés de projeções. As experiências relativas à morte prestam-se
de modo particular a isso, como projeções portadoras desses
1. C. G. Jung, Ein Moderner Mythus [Um Mito Moderno], Ed. Raschei, Zu
rique, 1958, p. 106, ou no vol. X das Obras Completas.
26
valores, já que parecem abranger não só o mistério do destino
no além, como também podem conter uma ampliação do
espírito que transcende as fronteiras da vida até agora existen
te. A conscientização de ambas as coisas pode levar o indiví
duo de volta ao seu centro, à sua totalidade.
O que me interessa no momento é esclarecer os fenôme
nos que giram em tomo da morte, submetê-los a uma inter
pretação psicológica e, então, a seguir, esquematizar a forma
humana contida no inconsciente. Motivada por essa intenção,
apresentarei em primeiro lugar alguns exemplos de premoni
ções de morte contidos nos sonhos. Depois, mencionarei duas
experiências parapsicológicas que eu mesma vi, para entrar,
então, mais minuciosamente, na experiência propriamente dita
da morte.
27
outro, dependendo do enfoque consciente e do grau de matu
ridade do sonhador. Seria como se, na noite da travessia paxa
uma nova dimensão, a integralização do ponto focal humano
fosse impelida rumo a uma visão mais abrangente.
Entre a multiplicidade de sonhos sobre a morte, eu gostaria
de sublinhar alguns: um jovem saudável, de uns 30 anos, robus
to, talentoso e bem-sucedido profissionalmente, teve o seguinte
sonho durante uma viagem de negócios ao Oriente Médio:
28
Um ancião de mais de 80 anos, que sofria de uma doen
ça incurável e que já havia manifestado algumas dúvidas a
respeito da vida após a morte, sonhou o seguinte um pou
co antes de esta ocorrer:
29
Para esse homem, que só pensava na morte próxima com
amargura, este sonho significou a reconfortante indicação de
um caminho luminoso que ele agora estava prestes a percor
rer. O sonho foi totalmente inesperado e o encheu de alegria
e de confiança.
Sonhos como esses, e outros semelhantes, nos assegu
ram de que é certa a suposição de que a experiência da mor
te está ligada a uma mudança de profundas repercussões no
interior da alma. Só podemos supor o que ocorre nesses mo
mentos quando compartilhamos da experiência de alguém
que está à beira da morte, permitindo que seus efeitos re
percutam em nós. Dizem os alquimistas que na noite povoa
da do medo da morte o homem sente aquele momento do
destino em que ele tem de se apresentar como uma Totali
dade . . . Totum hominem requiret opus [a obra requer o
homem por inteiro]. No comovente sentimento da proxi
midade da morte, é freqüente que irrompa tudo aquilo que
estava cuidadosamente guardado e reprimido até então: Eros,
que ficara oculto sob a casca protetora da ironia e da frie
za, e a bondade da qual o homem se envergonhava. Mas po
de ser também que uma teimosia e uma obstinada resistên
cia se apoderem da alma, e que o agonizante seja arrastado
através do purgatório do medo e do sentimento de culpa. É
como se, em conseqüência da decadência da consciência, o
Ego humano se destacasse da imagem arquetípica do Self,
tendendo continuamente à totalidade, cada vez de um mo
do diferente. Não está excluída a possibilidade de que as ve
lhas imagens que se constelam no sonho preparem a mudan
ça para um mundo no além. No material citado, são sobre
tudo as promessas consoladoras que emergem como com
pensação das profundezas arquetípicas do inconsciente, tais
como o milagroso florescer de uma árvore doente, o trilhar
de um caminho luminoso, ou até o significado redentor do
sofrimento em relação a gerações passadas ou futuras. Em
todo caso, os sonhos dos moribundos apontam para o mis
tério da mudança numa outra dimensão, seja ela aqui ou num
“outro mundo”.
30
Duas Experiências Parapsicolôgicas nos Umbrais da Morte
31
minha vizinha sabia que eu era psicóloga. Esta foi a primeira
vez que fiquei tão abalada ao entrar em contato com o mun
do secreto da morte.
Tive outra experiência impressionante uns 16 anos mais
tarde, pouco antes da morte de meu pai. A aproximação de
sua morte me foi anunciada de modo drástico: no mesmo
momento em que minha mãe me contava, pelo telefone, que
meu pai havia sofrido um derrame cerebral, duas estantes de
livros vieram abaixo na minha sala, e vários livros caíram ao
chão. Depois de passado o primeiro choque, lembrei-me dessa
ocorrência singular, na qual não pude deixar de discernir a
mensagem: o começo da libertação da alma do meu pai. O
outro fenômeno concomitante, isto é, a travessia lenta de uma
bola de fogo brilhante de uma a outra parede do meu escri
tório, também parecia apontar na mesma direção.
Pude seguir ainda mais os indícios lançados pela morte.
No mesmo dia em que meu pai foi acometido por um derra
me cerebral, vi uma aranha negra de um tamanho fora do
comum no corredor da minha sala. Apesar de várias tenta
tivas de apanhá-la, ela sempre escapava, para esconder-se fi
nalmente na sala, onde permaneceu invisível até a morte do
meu pai. Só então ela rastejou para fora de seu esconderijo,
e pude então expulsá-la da casa. Essas ocorrências estão entre
as minhas experiências mais intensas.
Devemos a C. G. Jung uma compreensão mais profunda
dos fenômenos parapsicológicos. Em seu trabalho publicado
em 1934, “Alma e Morte” ,5 ele expressou a suposição de que
a psique era capaz de transcender o espaço e o tempo. Entre
tanto, foram as pesquisas sobre sincronicidade, motivadas pe
la descoberta de Rhine,6 que primeiro confirmaram sua hi
pótese. Os fatores a princípio enigmáticos e deveras assombro
sos do surgimento da telepatia, da precognição e da telecinesia
32
foram compreendidos como uma possibilidade de a alma
transcender o mundo dos sentidos e ter percepções extra-sen-
soriais. Em termos parapsicológicos, trata-se de coincidên
cias irracionais e acausais entre ocorrências internas, psíqui
cas, e as externas que, surpreendentemente, sempre deixam
transparecer um sentido.7 Tão enigmático quanto o fato da
organização acausal do mundo é a essência do fator que ali
cerça a base da mesma. O grande mérito de Jung é ter reco
nhecido nesse fator um princípio transcendental interligado
à camada do conhecimento anterior da psique, organizando
ao mesmo tempo as ocorrências paralelas internas e exter
nas. Como já mencionamos, ele descobriu nesse princípio
um psicóide, ou seja, um aspecto não-psíquico do arquéti
po. E este arquétipo psicóide sempre é ativado por intensas
emoções. Como é o caso da experiência de mudanças que
abalam as profundezas do inconsciente. Estou pensando em
experiências ligadas ao nascimento, à doença e à morte. Vol
tarei a este assunto mais tarde.
Antes de me aprofundar mais ainda no significado do
arquétipo que organiza as experiências durante o estado de
perda de consciência dos agonizantes, eu gostaria de fami
liarizá-los um pouco mais com essas mesmas experiências.
Entre a literatura quase imensurável que versa sobre o as
sunto, escolho certas narrativas de alguns autores como Wie-
senhütter, Moody e Hampe.
33
Moody e em suas pesquisas a respeito das experiências nas
proximidades da morte. Nessas pesquisas, ele partiu de doen
tes graves que já não deixavam transparecer nenhum sinal
de vida, e que no entanto voltaram a viver. Ele apresenta os
seguintes sintomas primordiais desse estado: a extinção da
consciência, o não-funcionamento do coração, a suspensão
da respiração e, finalmente, a queda da pressão sangüínea e
da temperatura do corpo. A falta de fluxo sangüíneo e de
oxigênio arrematam o quadro. Infelizmente, faltou em suas
pesquisas o resultado do eletroencefalograma, que teria es
clarecido o quadro no que se refere a uma possível “morte
clinica” . Como, entretanto, no caso de seus pacientes, trata
va-se de pessoas que com freqüência ficavam em estado de
coma — quer como conseqüência de algum acidente ou de
uma repentina piora do estado físico — geralmente, pressio
nado pelo tempo, o dr. Moody não podia fazer um reexame
dos fluxos cerebrais.
Moody falou, então, da existência da morte no seu sen
tido mais restrito, quando aquele que está prestes a morrer
— como se comprovou mais tarde, após voltar à vida — ape
sar de profundamente inconsciente, teve certos instantês de
consciência. Estes podiam referir-se tanto a percepçOes do
meio que o circundava externamente como a visões de luz
e sensações relativas a um Eu que continuava a existir.
Por isso, daqui em diante, sempre entenderei como ex
periência de morte aquela na qual — não importa quão pro
fundo tenha sido o estado de inconsciência — se possam com
provar mais tarde manifestações do consciente. Baseados nas
experiências da morte, podemos formar um quadro dos mais
surpreendentes sobre os processos psíquicos internos que
acontecem durante o estado de coma.
Devemos agradecer a Eckart Wiesenhütter8 por uma das
primeiras apresentações sobre experiências de moribundos
que foram mais uma vez chamados à vida. Como médico e
34
catedrático em neurologia, e havendo ele mesmo tido uma
morte aparente, tem autoridade como poucos para se ex
pressar sobre esse tema tão delicado. Ele descreve de modo
emocionante essa experiência, assim como a de outros, no de
correr do processo da morte.
Num curto espaço de tempo, Wiesenhütter sofrera dois
infartos pulmonares extremamente dolorosos, cada um deles
seguido por uma lenta perda de consciência. Como ele rela
ta mais tarde, de modo algum ele sentiu esse estado de per
da de consciência como um aniquilamento da personalidade,
e sim muito mais como uma entrada e uma elevação num
estado de supraconsciência no qual se apagavam as sensações
de tempo e de materialidade. Ele sentiu, alternadamente, a
contração do seu ser até o ponto mínimo e, depois, a expan
são até quàse o infinito. O que o surpreendeu foi a “indes
critível sensação de liberação e de redenção”.
A respeito desse fenômeno-limite, ele escreve o seguin
te: “No processo da morte, a sucção pelo outro lado se inten
sifica cada vez mais. Não se trata da sucção do Nada. A últi
ma coisa que se pode perceber ao olhar por cima da cerca in
dica, sem quaisquer divisões, uma amplitude, uma liberação,
uma elevação.” 9 Essas experiências parecem-lhe menos a ex
pressão de um medo da morte do que uma espécie de anseio
para se ver livre da pressão do mundo exterior.
E interessante notar que a capacidade de recordar os fatos
de Wiesenhütter foi depois em grande parte apagada. O que ele
sentiu ao despertar foi uma bem-aventuran ça que equivalia a
uma transformação total do seu modo de ser. Ele só foi se
recuperando lentamente da impressão de uma Dasein como que
“dada de empréstimo” e de uma visão da vida como que singu
larmente “imposta” , na qual uma definitiva “saudade do além”
não o deixaria sentir-se à vontade no mundo. Porém, por mais
afetado que estivesse pela sua experiência, ele ressalta expressa
mente que não se descobre nada de definitivo e que a própria
realidade da morte permanece tão enigmática quanto antes.
35
Independentemente deste relato, Elisabeth Kübler-Ross10
havia descrito suas experiências com os moribundos; para ela,
porém, a visão de uma ajuda no momento da morte signifi
ca uma orientação.
Os relatórios divulgados por Raymond Moody,11 com ba
se em suas experiências com pessoas que haviam estado pró
ximas da morte, são extremamente relevantes. Os mais de
300 casos que ele observou referem-se a pessoas que caíram
em profunda inconsciência devido a ferimentos graves, a aci
dentes ou a doenças, a paradas cardíacas, a envenenamentos,
etc., e que posteriormente foram trazidas de volta à vida. En
tre esses pacientes, também havia alguns que já tinham sido
dados por perdidos pelos médicos, declarados como mortos.
A principal pergunta de Moody era: o que acontece no
estado de inconsciência profunda? Ele considerava como deci
siva a dissociação da psique ocorrida junto com a perda da
consciência, na qual o Eu de quem está prestes a morrer se
desprende do corpo. A este respeito, ele escreve o seguinte:
“Enquanto a agonia física vai se aproximando do ponto cul
minante, o agonizante ouve o médico declará-lo como morto.
Subitamente, ele percebe um ruído desagradável . . . e tem a
sensação de estar se movendo num túnel longo e escuro. En
tão, de repente, ele se vê fora do corpo .. . Ele olha para o pró
prio corpo de alguma distância, como se fosse o seu próprio
observador, e vê como lhe aplicam a respiração boca a boca
e como seu corpo é submetido às tentativas de ressuseitação.”
O doente já está num outro corpo, difícil de ser descrito —
fato que é confirmado por todos os que passaram por essa
experiência —, um corpo que se diferencia substancialmente
do seu corpo físico. Ele sente esse corpo ora como um Eu,
36
ora como um corpo espiritual, ora como pura consciência; ou
ainda, como uma nuvem, uma fumaça, um. vapor. Esse cor
po espiritual é sentido como algo sem peso, fora do tempo;
o mundo material já não lhe impõe restrições, e ele pode mo
vimentar-se com a rapidez do raio.
A capacidade de percepção desse corpo ou desse outro
Eu parece muitíssimo diferente e supera enormemente, em
nitidez e clareza, a percepção normal dos sentidos. A visão
e a audição passam ao primeiro plano, enquanto o olfato e
o tato vão se tornando menos perceptíveis.
Todos os pacientes mencionam como particularmente im
pressionante o aparecimento de uma luz intensa de indescri
tível claridade; não é raro que esta se condense numa figura
corpórea, num ser luminoso. Dependendo de sua crença, o
moribundo vê esse ser luminoso como um anjo, um guia ou
o próprio Cristo — vários personagens que conhece como
particularmente solícitos, dispostos a ajudá-lo a partir para
o além.
O encontro com esses seres luminosos leva freqüente
mente a uma retrospectiva espiritual — a uma visão da vida
passada. A característica desse processo de memória é a in
crível velocidade da seqüência de imagens, o surgimento con
comitante da nitidez e da veracidade das experiências proje
tadas nas imagens. A sensação de realidade é sempre absolu
tamente autêntica; os que estão prestes a morrer não têm a
impressão de um estado de sono, nem de uma anulação da
personalidade. O ser fora do tempo é sentido — ao contrário
do ser material —como algo leve, vivo, alado.
O ingresso de volta ao corpo em geral não é sentido cons
cientemente. E freqüente a menção de uma espécie de sucção,
que puxa o moribundo de volta para o seu corpo. Outros fa
lam de um choque semelhante a uma comoção, depois da
qual eles se encontram no corpo novamente. A volta ao mun
do temporal é sentida, em muitos casos, como algo penoso,
não apenas por causa das dores terríveis, como também pela
constante saudade daquele outro estado de bem-aventuran-
ça. Moody se abstém de tirar quaisquer conclusões compro
37
metedoras a respeito da probabilidade de uma outra vida após
a morte, apesar de em seu foro interno ele não duvidar de
que esta exista — estou me referindo apenas a um comen
tário à parte.
Seja como for, Moody confessa que, para ele, o que acon
tece no limiar da morte deixa, para os que passaram por essa
experiência, a impressão de absoluta realidade e objetividade.
As pesquisas de Christoph Hampe12 também são muito
interessantes, j á »que ele apresentou os resultados referentes
às experiências à beira da morte em estados de inconsciência
por volta da mesma época de Moody — embora se trate de
investigações independentes. Éle enfatizou especialmente a
vivência da cisão entre o Eu e o corpo inconsciente, isto é,
Hampe ressaltou o esvaziamento do Eu. O Eu em retirada
era percebido como a marca de uma “nova vitalização”, ple
na de luz e, ao mesmo tempo, como isenta de peso. O Eu
era sentido ora acima do corpo, como que fixado num pon
to próximo, ou então, pairando livremente pelo aposento,
tanto no quarto do doente como fora dele, pela rua, onde
acontecia a conhecida experiência denominada out-of-the-
boãy. Os relatórios concordam em que o Eu fora do cor
po é “perceptível para si próprio, embora não tenha uma
forma corpórea” . Em todo caso, a dimensão espacial parecia
anulada.
Alguém à beira da morte descreveu a anulação do Eu da
seguinte maneira: “Minha consciência ficou singularmente se
rena e clara. Eu também já não sentia mais dores. O conscien
te, que normalmente permeia o corpo inteiro, começou a se
condensar cada vez mais na cabeça, e eu ia me transforman
do totalmente numa cabeça, só cabeça. Tive então a sensa
ção de que todo o meu ‘Eu’ estava completamente concen
trado num pequeno ponto no meio da cabeça. Notei então
que começara a me mover para cima. Seguiu-se então um
pequeno black-out e eu fiquei livre: havia abandonado o
12. Johann Christoph Hampe, Sterben ist doch ganz anders [Morrer é tão
ferente), Kreuz, Stuttgart-Berlim, 1975.
38
meu corpo. E agora eu sabia, sem ter de pensar sobre o assunto,
que aquele era o estado que as pessoas chamam de ‘morte’.” 13
A partir de relatórios como este e outros semelhantes
Hampe concluiu que não se pode dizer que o Eu fica mais
fraco durante o processo da morte — como geralmente se su
põe. O que ocorre é muito mais uma intensificação do cons
ciente. E a cisão que se dá na retirada do Eu ocorre de mo
do que uma parte fica ligada ao corpo enquanto, em contra
partida, a outra parte se amplia e é percebida como um cons
ciente desprovido de corpo, independente do cérebro, uma
espécie de Supraconsciência. Esta aparece com freqüência
ao morto como um corpo espiritual ou como um corpo as
tral que, reluzindo num tom transparente e azulado, é ima-
terialmente belo. Essas descrições lembram-nos sem querer
a visão da “luz clara original” do Livro Tibetano dos Mortos
que se acende no momento da morte, sendo concebida co
mo um estado superior de consciência.
Concordando com Moody e com Wiesenhütter, Hampe
comprovou que as dores cessam nesse estado intermediário
entre a vida e a morte — tanto as dores físicas como as da
alma. Reina então a sensação de libertação, de uma alma rea
nimada. Curiosamente, faltam reações de sentimentos nega
tivos. Ele mencionou, como única exceção, o comportamen
to dos pacientes suicidas que, segundo os relatórios, conti
nuam a ser perseguidos por recriminações e por sentimen
tos de culpa e, ao mesmo tempo, passam por um verdadeiro
inferno. O medo e a dor geralmente cessam ao atravessar-se
o túnel, ou seja, com o início da separação entre o corpo e
o Eu. Nesse momento, a impressão que se tem é a de que
também as transformações das sensações de medo e de dor
são sucedidas por sentimentos positivos de liberação, ou me
lhor, de liberdade — o que também explica a ausência üe ima
gens negativas.
Christoph Hampe também percebeu nesses relatórios, à
semelhança de Moody, a idéia de uma retrospectiva, ou seja,
39
de uma visão retrospectiva da vida. Certamente ele teve a im
pressão de que o agonizante tinha certa atividade e passava pelo
“processo da morte” . De fato, ele submeteu as vivências passa
das a um julgamento, levando-as a uma solução posterior. Em
síntese, parece que o moribundo revive “sua vida passada”.
Hampe concluiu, também, que tanto a visão retrospec
tiva da vida como as outras visões e impressões se sucedem
em imagens rápidas, o que explica a grande dificuldade que
os que empreendem o retomo apresentam no que se refere
à formulação verbal dessa experiência,
Hampe não pôde evitar de formular paxa si mesmo a se
guinte pergunta: “Que estado será este entre a vida e a mor
te? Acaso será um estado onírico? Ou será que existe um Eu
sem corpo físico, que perdura após a morte? Por mais que essa
impressão de vida se assemelhe a um sonho, a indiscutível
sensação de realidade de quem está no limiar da morte contra
ria essa interpretação — deduz Hampe. Os que passaram por
essa experiência com freqüência tiveram surpreendentes per
cepções óticas e acústicas, que puderam ser comprovadas
ao redespertar. Hampe estava chegando à conclusão da rea
lidade de uma vivência transcendente, indicada pela profun
da emoção de quem retornava de uma “outra dimensão” .
Sobretudo, as sensações intensas de luz, de falta de peso,
de separação do Eu e de intensificação do consciente rumo
a um campo transcendente indicam a existência de uma rea
lidade espiritual indestrutível no homem. Segundo a opinião
de Hampe, a pessoa, ao morrer, ingressa numa nova dimensão,
ou pelo menos caminha nessa direção. Por isso, ele também
não hesita em vislumbrar, nas sensações que envolvem a mor
te, uma espécie de preparação para a morte real, uma pré-ex-
periência que é concedida ao espírito, uma abertura para uma
dimensão suprapessoal. “Com a morte, somos novamente li
bertados das nossas limitações. Porém, não podemos nos des
vincular de Deus, que é o Todo. Ele se impõe em cada forma
alcançada pelo nosso espírito.” 14 O homem não pode morrer,
40
pois seu espírito faz parte dessa Unidade, ou melhor: não faz
parte apenas, mas é a própria Unidade.15
Mesmo assim, Hampe acha que é prematuro tirar con
clusões dessas experiências no que concerne à natureza da
realidade do além, visto que é de se supor que também as
experiências subjetivas, tais como a fantasia exacerbada ou
o desprendimento físico das dores, possam estar em jogo. Ele
também não exclui a possibilidade de que as deficiências cor
porais, a falta de oxigênio, o envenenamento e a insuficiência
do fluxo sangüíneo diminuam a capacidade de observação.
Pessoas que estiveram à beira da morte por afogamento,
por congelamento ou queda, passaram por experiências se
melhantes. Em muitos casos falou-se como, justamente no
momento da perda da consciência, a pessoa foi dominada
por um inconcebível sentimento de bem-aventurança, de li
bertação e de completa harmonia.
Como já foi mencionado, os afogados muitas vezes rela
tam que viram sua vida inteira projetar-se diante de seus olhos
num átimo de segundo.
Impressionantes também são os relatórios dos alpinistas
que tentaram galgar a chamada zona da morte, a perigosa
altitude dos oito mil metros. Essas descrições foram divul
gadas num dos números da revista Die Weltwoche, de 1978.
Na narração de um alpinista que havia escalado um maciço
de oito mil metros no Himalaia, lemos a seguinte descrição
de sua experiência: “O alpinista se liberta gradualmente do
seu meio habitual. .. Ele vai se distanciando do mundo, que
é deixado para trás, e vai se distanciando de si mesmo, vai
se tornando o seu próprio observador.. . Agora ele vê sua
própria vida de modo mais claro e verdadeiro, de uma gran
de distância, como se estivesse sobre uma superfície, como
se estivesse vendo tudo como um espectador. Quanto mais
alto ele chega, mais se vê luminoso e claro; seus sentidos se
aprimoram. O cume que ele almejava galgar o enche de res
peito e da sensação de solenidade. O alpinista cai dentro de
41
uma espécie de ponto de irradiação, e pode entrar numa es
pécie de Nirvana.” 16
O que nos conta Albert Heim, geólogo suíço, a respei
to da retrospectiva de vida no momento de uma queda que
sofreu nos Alpes também é muito interessante para ilustrar
este item.
Em suas Memórias,1,7 Jung também narra uma experiên
cia de morte. No infarto cardíaco que sofreu em 1944, pas
sou por estados de inconsciência nos quais teve visões e sen
sações de indescritível beleza. Éssas imagens eram tão fortes
que o fizeram se sentir mais perto da morte. Sua enfermei
ra contou-lhe mais tarde como, em certos momentos extá
ticos, ele parecia envolto por um brilho luminoso. As expe
riências de Jung — semelhantes às descrições de Hampe —
foram totalmente reais. As experiências do Eu são igualmen
te nítidas e claras, ainda que não se trate de uma separação
em relação ao corpo. Em suas Memórias, Jung afirma: “Eu
tinha a sensação de . estar sendo despido de tudo o que vive
ra até então . . . Porém, algo permaneceu, pois era como se
eu então tivesse comigo tudo o que eu jamais havia vivido
ou feito, como se estivesse imbuído de tudo o que havia ocor
rido à minha volta . . . Eu era a minha própria história e ti
nha a nítida sensação de que aquilo agora era Eu.” 18 Jung
descreve como imponentes as imagens que giram em torno
do tema da coniunctio. Causaram-lhe profunda impressão
as visões do casamento místico entre Malchuth e Tipheret, ou
o hierosgamos de Hera com Zeus e, finalmente, o “casamen
to do cordeiro naquela Jerusalém adornada para uma festa” .
Por sobre tudo isto pairava o sopro do Sagrado e do Eterno.
Jung me confidenciou mais tarde que essas experiências
lhe haviam conferido a certeza de que o espírito perdura além
42
da morte, ao contrário da percepção, que cessa com a morte.
Fiquei muito impressionada, principalmente pela sua afir
mação de que o fascínio que os homens sentem pela mitolo
gia da coniunctio provinha da memória retrospectiva das gran
des imagens do Além.
Três meses depois de sua doença, Jung me escreveu o se
guinte, a respeito da dor do retomo ao mundo do aquém: “O
mundo do além, ou aquilo que os vivos ou os que estão em
vias de retomar podem aprender sobre ele, é completamen
te diferente do que se possa imaginar normalmente. Ele con
siste na mais profunda paz, na mais sublime beleza e na sen
sação de plenitude. O retomo à vida é um sacrifício.” 19 Para
ele, essa experiência assemelha-se à experiência da transcen
dência.
Antes de voltar-me para a interpretação de outros casos
semelhantes, eu gostaria de tocar de leve na idéia da reencar-
nação, que desperta cada vez maior interesse no mundo ociden
tal. Pode-se questionar, afirmando que este tema não faz parte
da nossa conferência, já que se trata menos de experiências
anteriores ou simultâneas ao processo da morte, mas, isto sim,
das chamadas recordações de vidas passadas. Desde os tempos
mais remotos, a crença numa nova encarnação após a morte
tem cativado a humanidade, principalmente na cultura hin-
du-budista. Tentativas de comprovar empiricamente a idéia
da reencarnação só foram empreendidas na época atual. Den
tre toda a volumosa literatura a respeito, eu gostaria de cha
mar a atenção para a obra intitulada Protokoll einer Wiederge-
burt [Protocolo de um Renascimento] de Morey Bernstein, que
alcançou notoriedade nos anos 70. Através da hipnose, ele con
seguiu extrair à recordação do inconsciente de um médium
até mesmo a vida antes do nascimento e retrospectivamente
alcançar também as encarnações anteriores. Parece que a maio
ria dessas recordações foram comprovadas, de modo que esse
protocolo é considerado uma informação fidedigna. Além disso,
43
no decorrer deste século, Jan Stevenson2® tentou comprovar
mais de mil pesquisas empreendidas na índia e na América
do Sul, que consolidassem empiricamente a hipótese de um
novo nascimento. Parecia-lhe existir a comprovação de um
renascimento físico através de indicadores contidos em so
nhos e visões, e também de marcas físicas reincidentes, tais
como lábios leporinos e cicatrizes. Ele encontrou também
uma importante fonte de provas nas chamadas “Recorda
ções” , especialmente por parte de crianças, de experiências
de uma vida anterior, nas quais o reconhecimento de situa
ções passadas e as sensações do déjà vu desempenhavam im
portante papel.
Dethlefsen21 também procura comprovar experimental
mente a reencarnação através da técnica da hipnose. Ele acre
dita que pode atribuir ao passado certos complexos de medo,
depressões e quaisquer outras perturbações do indivíduo de
correntes de experiências traumáticas de encarnações ante
riores. Ele seguiu os destinos de vida dos seus pacientes atra
vés da hipnose, reconduzindo-os a situações anteriores em que
ele propiciava a volta de uma experiência emocional através
de perguntas sugestivas.
No epílogo dessa obra, R. Fuchs ressaltou muito acerta-
damente que este processo de regressão, analisado do ponto
de vista psicológico, pode ser — são suas palavras — “conside
rado tanto como resultado de fantasias inconscientes” — ou,
mais precisamente ainda — “como técnica de desvelamento
de emoções importantes, carregadas de fantasias”,22 como
quanto provas de encarnações anteriores. Porém, mésmo se
questionáveis, esses depoimentos sobre novas encarnações
não deixam de oferecer a algumas pessoas, que sofrem com a
falta de perspectivas de vida, um fundamento capaz de tomá-la
suportável.
2 0 .Jan Stevenson, Reinkamation [Reencarnação], Ed. Aurum, Freiburg em
Bresgau, 1970.
21. Thorwald Dethlefsen, Das Erlebnis der Wiedergeburt [A Experiência do
Renascimento], Ed. Bertelsmann, Munique, 1967.
22. Lpc. cit., p. 286.
44
Tão pouco comprovável quanto esta é a hipótese espírita
de uma nova encarnação de seres vindos do além que transmi
tem recados aos vivos através dos médiuns.23 Por mais singu
lares e estranhas que sejam essas mensagens de supostos “mor
tos” e de suas materializações enquanto espíritos, estas não
poderiam ser de qualquer valia como prova da existência de
individualidades transcendentais. Até as impressionantes trans
missões de radiotelefonia feitas por Jüigenson24 e Raudive25 re
ferentes a informações pessoais dos já falecidos ficam a nos
dever uma comprovação. As declarações sobre fatos concre
tos de conteúdo psíquico interno, como por exemplo de com
plexos oriundos do inconsciente coletivo, também nos levam
de volta ao inconsciente coletivo.
SEGUNDA PARTE
23. Arthur Ford, Vom Leben nach dem Tode [Da Vida após a Morte], Ed.
Scherz, Munique.
24. Friedrich Jürgenson, Sprechfunk mit Verstorbenen [Conversa Radiofônica
com a Morte], Ed. Hermann Bauer KG, Freiburg/Breisgau, 1967.
25. Konstantin Raudive, Breakthrough [Transcendendo], Colin Smithe, Ger-
rardsCross, 1971.
26. Daqui em diante, utilizo a expressão “visão da morte” no sentido de expe
riência no estado de coma. Entendo por “sonho sobre morte” um acontecimento
que - consciente ou inconscientemente - tem relação com a morte que se aproxima,
enquanto o consciente e o Eu permanecem relativamente intactos.
45
próximas da realidade, como se fossem reais. A organização
das imagens em torno de um núcleo que é o significado da
morte é igualmente imbuída de sentido, assim como o cará
ter arquetípico dos seus conteúdos, que se expressam na irra
cionalidade e na numinosidade do acontecimento. Podemos
então considerar o sonho sobre morte e a visão da morte co
mo uma mesma coisa? Contra essa identificação fala a carência
total de um colorido pessoal na visão da morte. Enquanto
no sonho sobre morte se confere importância às sensações
individuais de doenças, aos correspondentes temores e às an
gustiantes premonições que são compensadas por um enfo
que de totalidade, à visão da morte falta completamente essa
compensação pessoal — como conseqüência da falta de cons
ciência e de sensibilidade sensorial. Isso também lança uma
luz sobre o distanciamento e a impessoalidade das imagens
consteladas. E, não por último, a predominância das apari
ções luminosas durante as visões, e a dissolução do amplo al
cance dos aspectos sombrios e negativos, depõem contra sua
identificação. Em contraposição, os dois modos em que o fa
tor alma aparece são semelhantes em sua orientação no sen
tido da mudança e de transformação da personalidade. En
quanto o sonho sobre morte integra o ponto de vista do Eu
até agora concebido, preparando-o para a dimensão do além,
a visão da morte é relevante principalmente no contexto da
cura dos traumas do corpo. É que não podemos deixar passar
o fato de que, diferentemente do que acontece no sonho, a
visão da morte está sempre interligada com um acontecimen
to urgente e dramático — como, por exemplo, um acidente,
uma operação, um envenenamento, uma parada cardíaca, etc.
Pode acontecer também que o re d espertar depois de um es
tado de coma seja dificultoso por estar interligado a essas
mesmas circunstâncias de urgência, que atuam delimitando
a capacidade da memória.
E interessante comparar uma visão da morte com as ex
periências do místico, cujo estado de êxtase denota certas se
melhanças com aquelas que se apresentam no estado de co
ma. Faltam, sem dúvida, no êxtase, tanto as condições somá
46
ticas doentias como também a urgência do acontecimento,
já que o místico procura conscientemente experimentar a
vivência da transcendência. No meu entender, não são sig
nificativas apenas as experiências místicas de Meister (do
mestre) Eckhart e a mística da Luz do antigo Irã, mas tam
bém os sonhos de curas nos sanatórios dos templos da anti
güidade, que deixam transparecer uma semelhança surpreen
dente com as visões da morte.
Parecem-me muito sugestivas as experiências místicas
de Meister Eckhart, que esboça, em palavras comovidas, uma
imagem da morte e do renascimento num estado que beira
o êxtase. Para ele, morrer significa “deixar de ser tudo aquilo
QUE”,27 uma renúncia de tudo o que é transitório. Essa re
núncia se consuma na separação total, no silêncio e na tran
qüilidade da alma. Através dessa separação “o homem se for
ça para ver Deus” . Ou então, em outras palavras, “dá-se o
nascimento de Deus na alma”. Num nível ainda mais eleva
do, na total Unidade do humano com o eterno, o Eu desa
parece por completo no Uno, e é abolida toda e qualquer
separação entre o sujeito e o objeto. Nesse estado limítrofe
do Ser no homem, consciente e Eu transcendem o mundo
tridimensional. O transe extático do místico é milagrosamen
te capaz — apesar de estar consciente ao mergulhar no êx
tase — de lembrar-se, ao retomar, da percepção do reconhe
cimento de Deus e da inconcebível plenitude da Luz que jaz
no fundo do Ser. Esse retomo após a vivência da morte mís
tica tem para Eckhart o mesmo significado de um renasci
mento da alma.
O redespertar de um doente grave do coma também é
vivenciado como um renascimento após uma viagem pelo
reino da morte. Trata-se também de uma lembrança póstu
ma, que parte de uma profunda inconsciência. Essa capaci
dade surpreendente da memória parece-me indicar que a cons
ciência e o Eu ficaram preservados durante o coma. Ao que
21. Meister Eckhart, Schriften [Os Escritos], Ed. Eugen Diederichs, Jena,
1934,p . 33.
47
tudo indica, um resíduo da consciência do Eu perdura no in
consciente — o que também podemos comprovar no sonho.
Mais adiante, voltarei a falar sobre o fenômeno mais impres
sionante da capacidade mnemónica, que consiste na sobrevi
vência do Eu.
Por enquanto, eu gostaria de colocar um ponto de inter
rogação diante da capacidade da memória quanto às visões
de morte, no que se refere à responsabilidade e à precisão dos
testemunhos. A suposição de um preenchimento posterior
das lacunas da memória pela fantasia não é ocasionada ape
nas pela condição de fraqueza da pessoa ao despertar, fraque
za que se expressa não só pela tontura, pela angústia e pela
exaustão, mas também pela falta de articulação e pela nebu
losidade das imagens vistas. Não se pode excluir a possibili
dade de que as imagens esfumaçadas, relembradas com pou
ca nitidez ao acordar, possam ser assimiladas ao patrimônio
do imaginário mitológico.
Todavia, a extensão de emoção e de controle do doen
te permite que ele reconheça a autenticidade da experiên
cia, ou então, seja como for, permite que ele dissipe as dúvi
das emergentes. Pois é bem possível que a elaboração poste
rior das visões siga o mesmo arquétipo que já constelara as
imagens interiores. E, finalmente, o caráter impessoal e cole
tivo de cada depoimento também indica uma uniformidade e
uma ubiqüidade da memória, independente de tempo e espaço.
Deparamo-nos continuamente com a tendência em vin
cular as fantasias de morte com perturbações psíquicas da per
cepção — com alucinações — ou com constituições psicóti
cas semelhantes, ou seja, com quimeras. Além disso, muitas
vezes, as fantasias de morte também são reduzidas a fatores
racionais, seja por motivos farmacológicos — alucinógenos,
drogas, narcóticos — ou devido a fatores fisiológicos — como
a falta de oxigênio, insuficiência cardíaca e outras tantas. Co
mo não sou médica, não gostaria de me envolver em tenta
tivas de explicações científicas. Mesmo que com freqüência
estas sejam justificadas por completarem o quadro, passam
pela tangente do meu verdadeiro questionamento.
48
Todas as tentativas de redução das visões de morte a con-
jeturas científicas não dão a devida atenção ao aspecto suma
mente importante da experiência da realidade. Porém, este as
pecto surge da extraordinária duração da experiência da mor
te. Essas impressões não só persistem vivas durante longos
períodos, como também estão interligadas ao sentido de uma
mudança interior que atinge grande profundidade. A certeza
de terem se transformado “numa outra pessoa” acompanha
continuamente os convalescentes que estiveram próximos da
morte.
A experiência de morte de C. G. Jung causou-lhe um efei
to parecido, pois lhe conferiu a fé na sobrevivência do espí
rito depois da morte. A impressão persistente da experiência
da morte também foi muito significativa para Eckart Wiese-
nhütter: “O fato de poder morrer me acompanha como uma
sombra . . . como um desejo, uma ânsia de libertação” , e “não
posso desfazer a sensação . . . de que aqui eu nunca mais pode
ria me sentir seguro . . . —e muito menos amparado.”28
Baseando-se nos testemunhos comoventes dos que retor
naram, não posso deixar de compreender as visões da morte
como uma expressão real da verdade interior. Por isso, pare
ce-me acertado tentar esclarecê-las.
Em primeiro lugar, surge a pergunta: apesar de se estar
num estado de total inconsciência, e de haverem cessado as
funções vitais de um modo tão amplo, como é possível que
certas emoções continuem a ser sentidas com a mais nítida
consciência?
A Hipótese da Sincronicidade
28. Eckart Wiesenhütter, Blick nach drüben [Olhando para o Além], Hambur
go, 1974, dtado por Hampe, loc. cit. p. 111.
49
rante o estado de total inconsciência. Anos após essa expe
riência de morte, ele voltou seu conhecimento científico pa
ra as experiências ocorridas durante o seu estado de coma.
A observação de uma paciente que, depois de uma aneste
sia, sofrera um desmaio que representava certo perigo, deu-
lhe um impulso renovado e imediato nesse sentido.29
Parecia-lhe muito elucidativo o fato de que nessa doen
te — apesar de ela estar em inconsciência profunda — o cons
ciente não tivesse se apagado por completo. De fato, ela con
tou posteriormente que ainda fora capaz de acompanhar os
acontecimentos que ocorreram no quarto do hospital, ob-
servando-os com um enfoque mais elevado e também com
surpreendente nitidez.
Estas aparições dissociadas não são algo fora do comum:
são encontradas entre os iogues e entre os médiuns espíritas,
como os assim chamados fenômenos de levitação que, de vez
em quando, também ocorrem entre os religiosos. Porém, eles
formam sobretudo o objeto do out-of-body-experiences, nos
quais o consciente se desprende do corpo e paira livremen
te, e por vezes voa através de um túnel, para então empreen
der outras viagens espirituais através do quarto, pois é des
provido de peso. Não se pode discutir até que ponto os rela
tórios dessas “viagens” podem ser atribuídos a estados pato
lógicos da psique.
Para Jung, a pergunta mais imediata a ser formulada é a
de discernir o estimulante oculto da função consciente ainda
presente no estado de coma, mesmo que evidentemente bas
tante delimitado. Além do cérebro, existe acaso “em nós al
gum outro substrato nervoso que pode apreender ou pensar?”
Descobriu-se, graças a diversas observações, que o sistema ner
voso simpático também pode ser considerado um estimulante
físico em casos leves de desmaio. Outras localizações do cons
ciente, tais como as células do corpo ou alguns órgãos especí
50
ficos,30 com toda probabilidade também são capazes de su
prir a função consciente que falta — apesar de Jung não acei
tar os fenômenos de sincronicidade nesse contexto.
Jung interessou-se principalmente por saber se esses “fa
tos ocorridos durante o estado de inconsciência . . . - trata-se
de acontecimentos que não têm nenhuma conexão causal
com os processos orgânicos” .31
Não se pode refutar essa possibilidade e, menos ainda, a
realidade da extra-sensory-perception já comprovada pelas pes
quisas de Rhine, que não podem ser explicadas através de “fe
nômenos de substratos biológicos” .32 Para esclarecer esses
processos de natureza não-causal (“as sensações sensoriais se
riam, por si só, impossíveis” ), Jung sugeriu o uso de um novo
princípio, que seria o princípio da sincronicidade.33
Sob essa denominação, Jung entendia um princípio que
não dependia de pressupostos energéticos, um princípio ba
seado em coincidências não-causais entre um processo psíqui
co interno e um processo físico externo de sentido análogo.
Um fenômeno muito conhecido nesse sentido é o aconteci
mento temporal de uma revoada de pássaros que surgem num
caso de morte. Minha experiência pessoal com a aranha que
se havia aninhado na nossa sala de jantar durante todo o trans
curso do estado de inconsciência de meu pai leva-me à mesma
conclusão de Jung.
Não posso deixar de supor, junto com Jung, que essas coin
cidências imbuídas de sentido também ocorrem nos casos de
inconsciência profunda, nos quais, apesar do colapso quase to
tal das funções corporais - devido à falha cardíaca, ao envene
51
namento, e por aí afora —, se possam comprovar sintomas psí
quicos, e até uma certa lucidez consciente. Nesses processos,
o impressionante não é apenas a aparição espontânea e total
mente inesperada desses fenômenos, mas, também, o inexpli
cável e todavia rico de significado do acontecimento. A mani
festa premonição que em geral se traduz num surpreendente
conhecimento da cura — por exemplo, a certeza de sobrevi
ver ao estado de coma — é assombrosa; nesse sentido, é im
possível descartar esses acontecimentos sincronísticos como me
ro acaso, Tudo aponta muito mais para a existência, na psique
inconsciente, de um fator central ainda desconhecido, que
organiza o acontecimento paralelo. Mais adiante voltaremos
a esse fator, que Jung chama de arquétipo.
Sem contar os efeitos esclarecedores e libertadores que a
referência ao princípio de sincronicidade exerce sobre mim,
restam ainda algumas perguntas sem resposta* Em primeiro
lugar, ainda não foi exaustivamente esclarecido se em casos
de um colapso quase total das funções vitais, não restaria
talvez ainda algum resíduo ativo dependente da causalidade
dos acontecimentos de processos orgânicos conscientes — co
mo, por exemplo, as células do corpo, os chakras, e assim por
diante. Pois, na verdade, o paciente continua vivo, e a morte
cerebral ainda não ocorreu. Outra pergunta que permanece
sem resposta é se o princípio de sincronicidade, que Jung re
duzia à coincidência expressa entre a psique interior e os even
tos externos, não pode também ser estendida às relações en
tre os processos ocorridos simultaneamente na alma e no cor
po do indivíduo. Pois as visões da morte mostram essa co
nexão entre corpo e alma: um acontecimento ocorre, por um
lado, sem se ter consciência do corpo e, por outro, ao mesmo
tempo, se processa da maneira mais intensa quando se está
consciente.
Estudar os trabalhos de C. A. Meier provou ser de extra
ordinária ajuda no que concerne a essas perguntas, dúvidas e
pesquisas. Desde suas pesquisas sobre os processos de incu
bação realizadas pelos antigos, seu maior anseio, decerto, foi
lançar alguma luz sobre as conexões não explicadas entre cor
52
po e psique. Com a ajuda da psicologia junguiana, Meier pro
curou chegar a novas conclusões esclarecedoras a respeito
dos fenômenos que acontecem simultaneamente no corpo
e na alma. Suas pesquisas o levaram a lidar com um proble
ma altamente significativo que a filosofia tratara desde os
seus primórdios e que, segundo Leibniz, suscitou a seguin
te pergunta: a conexão do corpo com a alma se baseia acaso
sobre um efeito de mutação, sobre uma relação entre causa
e efeito? Ou trata-se de um paralelo entre esses processos? O
que Leibniz havia entendido como uma harmonia ordena
da por Deus, preestabelecida, entre psique e corpo, encon
trou um prolongamento científico no paralelismo psicofísi
co (Fechner, Erdmarin, Ebbinghaus): corpo e alma remetidos
a uma causa transcendente, ou seja, a uma “vontade” com
preendida metafisicamente.
Em contrapartida a essas tentativas de esclarecimentos,
C. A. Meier partiu basicamente do caráter empírico que cor
respondia à sua pesquisa psicológica. Foram principalmente
seus estudos sobre os sonhos que lhe esclareceram a relação
entre corpo e psique. Desde suas importantes publicações
do ano de 1949,34 seu interesse já se dirigia aos sonhos sobre
cura e a seus efeitos surpreendentes sobre o restabelecimen
to dos sintomas vitais. Os antigos sanatórios do médico mís
tico Asclépio 35 foram particularmente elucidativos para Meier
— os templos onde eram celebrados cultos através dos quais
os doentes eram curados. Cada doente terminal devia passar
a noite num aposento especial, o Abaton, na esperança de
ter um sonho regenerador. Toda a atmosfera desse local de
culto — que muitas vezes se realizava em cavernas abando
nadas —, assim como os preparativos rituais para o culto,
visavam provocar no doente um reavivamento espontâneo
das forças regeneradoras, de modo a sintonizar seu consciente
53
com o acontecimento restabelecedor.36 Nessa instância, o funda
mental era a vivência interna da Epifania —a visão de Deus —que
poderia acontecer em sonho ou em visão.37 Sempre que o doen
te tinha o sonho “certo” , ele era curado. Esse efeito espontâneo
do sonho que induzia à cura estava interligado —como Meier tão
bem o expôs —à natureza arquetípica38 desse procedimento,que
correspondia à situação excepcional dós cultos realizados na ca
verna. O efeito consistia essencialmente na vivência de uma in-
tercessio divina, ou seja, “do emergir de um princípio divino
personificado”.39 Esse processo de cura que beira o prodigioso
procede de tudo menos da natureza causal: é, fundamental
mente, de índole não-causal.
Meier se referiu ao conceito junguiano da sincronicidade
para a compreensão desse processo de cura não-causal e irracio
nal, que ele ampliou até os paralelos simultâneos desses proces
sos no corpo e na psique. Num de seus trabalhos, ele escreveu o
seguinte: “Por isso, desde 1950 eu já havia proposto que, diante
do fracasso da causalidade, se poderia conceber a junção psíqui
ca como sincrônica.”40 Segundo esses escritos, as coincidências
imbuídas de sentido e não-càusais acontecem não apenas entre
ocorrências internas e externas — como Jung supunha —, mas
também entre o corpo e a alma. Do mesmo modo, no que diz
respeito a essas relações psicofísicas, é válida a suposição de que
“os efeitos sincrônicos estão essencialmente interligados ao apa
recimento dos arquétipos” . Não é apenas a extraordinária pleni
tude de sentido que distingue a disposição entre physis e psique,
mas também o saber numinoso que se evidencia nesses fenôme
nos sincrônicos - como, por exemplo, o aparecimento dos
36. C. A. Meier, “Zeitgemasse Probleme der Traumforschung” [Problemas Re
lativos ao Tempo na Pesquisa dos Sonhos], 1950, ín Experiment und Sym bol [Expe
riência e Símbolo], Ed. Walter, Zurique, 1975, p. 91.
37. C. A. Meier, “Der Tiaum im alten Griechenland” [O Sonho na Antiga
Grécia], 1962, in Experiment und Symbol, p. 176.
38. C. A. Meier, “Zeitgemasse Probleme.. loc. cit., p. 88.
39. C. A. Meier, “Einige Konsequenzen der neueren Psychologie” [Algumas
Conseqüências da Moderna Psicologia], 1950, 'w. Experiment und Symbol. . p. 132.
40. C. A. Meier, “Psychosomatik in Jungscher Sicht” [A Psicossomática na
Visão de Jung], 1960, in Experiment. . . ,p . 153.
54
meios adequados de cura.41 São esses processos de cura que
Meier reconheceu, sobretudo devido ao efeito dos sonhos
regenerativos de realizar a perfeição: eles são uma expressão
do arquétipo.
55
típica. Analisando de fora o processo, existe uma interrupção to
tal da atividade sensível, quase um colapso das manifestações de
vida: o doente parece não participar, como se estivesse paralisado,
apático. Em seu interior, porém, o quadro é muitíssimo diferen
te. Análoga à queda corporal do moribundo no vazio é a sua
liberdade psíquica para fora do espaço e do tempo. Ao estado
inconsciente, de um lado, corresponde a irrealidade da transfi
guração, do outro. O que existe de comum em ambos os casos é
o fato de ficar-se-fora-de-si-mesmo. Não devemos permitir que o
fato de o moribundo ter vivências numinosas com a mais clara
consciência nos engane, e nem mesmo nos iludam suas visões de
irradiante plenitude de luz no decorrer desse arrebatamento.
Pois, considerar as visões luminosas como compensatórias da
escuridão corporal não faria juz à situação: ambas são expres
sões da mesma e única situação-limite do Ser humano, no qual
agora a questão é de sobrevivência ou de morte. Vibrando em
sintonia com essa situação-limite- do Ser humano está também o
caráter da mais profunda irracionalidade desse procedimento,
dificilmente perceptível, que se subtrai à compreensão causal,
mas que mesmo assim é imbuído de sentido. Do ponto de vista
simbólico, esse procedimento é assinalado pelo confronto com a
morte, se corresponde ao sentido total de doença e de cura, da
proximidade da morte e do novo renascer. Assim como a fuga
corporal corresponde ao desvanecimento no transcendente,
também o renascer corresponde à experiência da mutação
interior. Diante dessas conexões palpitantes de tantos mistérios,
a única coisa que me parece apropriada é a sincronicidade, ou
seja, um enfoque de paralelos não-causais imbuídos de senti
do entre corpo e psique, que abrem ao mesmo tempo no
vas possibilidades de compreensão.
A seguir, eu gostaria de enunciar os principais aspectos do
princípio de sincronicidade e de sua significação para o nosso tema.
56
ralizadamente humana, que são ordenadas pelo arquétipo.
Esse acontecimento não se distingue apenas pela não-cau-
salidade e pela numinosidade, mas é sublinhado também por
uma grande dose de irracionalidade e de espontaneidade.
Entretanto, o que se compreende por esse princípio
ordenado, preexistente na psique inconsciente? No decorrer
dos anos, Jung aprofundou substancialmente a noção de ar
quétipo. Ele sempre considerou a existência, no inconscien
te coletivo, de um princípio fundamental desprovido de cons
ciência como sendo a própria essência desse fator que dis
põe cada uma das imagens emergentes no inconsciente. Jung
via nesse princípio a tônica da realidade não-espacial e atem
poral do inconsciente, a força do arquétipo transcendente
ou, ainda, da natureza não passível de ser reconhecida ou
vista — um modelo básico que jamais pode ser conhecido
e que ele chamou de psicóide. Essa denominação indica um
fator indeterminável que transcende o consciente do arqué
tipo, o que significa que esse fator não é de natureza mera
mente psíquica, mas é também contaminada pela matéria.
Na medida em que sua natureza é de ordem tanto espacial
como temporal, tanto física como espiritual, também lhe
cabe a faculdade de ordenar as coincidências entre o acon
tecimento espiritual e o corpóreo. Jung descreveu essa coin
cidência baseando-se na simultaneidade do seu sonho com
o escaravelho43 e na presença do mesmo inseto batendo na
janela. Tal como ocorre com o princípio espiritual do mo
do como o vê o físico Walter Heitler, que “corresponde tan
to às leis e às ocorrências do mundo material, como também
. . . à atividade espiritual humana” ,44 este arquétipo psicóide é
um princípio espiritual que forma o mundo, que organiza não
apenas todas as relações psicofísicas, mas que também é capaz
de dispor todos os “atos criativos, dentro e fora do tempo” .45
43. C. G. Jung. “Syncronizitãt.. loc. cit., pp. 497ss.
44. Walter Heitler, Der Mensch und die naturwissenschaftliche Erkenntnis [O
Ser Humano e o Conhecimento Científico], Viewegverlag, Braunschweig, p. 45.
4 5 .C. G. Jung, “Reflexões teóricas sobre a essência do psíquico”, Obras
Completas, vol. VIU, p. 247.
57
Esse conceito junguiano parece-me particularmente signi
ficativo. Permite que se compreenda a sincronicidade dos even
tos nas visões da morte como um ato criativo espontâneo,
acionado pela condição de fatalidade da morte. Ou, mais
precisamente: como um ato detonado pelo medo profundo
diante da ameaçadora proximidade da morte. O arquétipo,
de um modo para nós inconcebível, constela as vivências in
teriores de quem está morrendo numa forma dotada de sen
tido que freqüentemente permite reconhecer as característi
cas de fenômenos transformadores. Mais adiante, abordarei
os vários aspectos dessa cura.
58
É como se esse “conhecimento eterno” tivesse de ser esqueci
do antes do retomo à vida.49
Ressaltamos a seguinte parte de um relatório de J. Chr.
Hampe: . recebi resposta para todas as perguntas que um
homem possa formular. Agora sei tudo e, através dos conhe
cimentos que recebi, sinto-me incrivelmente bem, pois eles
me enchem de paz e de felicidade . . .,,s0
Na antigüidade, na filosofia chinesa e até na Idade Mé
dia, esse conhecimento completo, no qual surge a natureza
criativa autônoma do inconsciente, era compreendido como
uma correspondência mágica entre os acontecimentos. No
lugar dessa correspondência mágica da natureza, Jung reco
nhecia um princípio de sincronicidade nessas disposições,
apontando ao mesmo tempo para um “sentido objetivo”51
no acontecimento, isto é, para um sentido em si inexistente,
independente de pareceres subjetivos e de critérios de reco
nhecimento.
c) O continuum espaço-temporal
O âmbito intermediário dos corpos sutis
59
evidente que o conhecimento cognitivo acontece num conti-
nuum espaço-temporal, no qual as dimensões de tempo e de
espaço habitualmente aceitas já não são válidas.
Para Jung, o conhecimento obtido pela interligação de suas
pesquisas sobre a sincronicidade — de que há um âmbito da
psique em que não existem nem tempo nem espaço — foi uma
comprovação de sua hipótese anteriormente exposta em Seele
und Tod [Alma e Morte].53 Sua suposição era a de que pelo
menos uma parte da psique não está sujeita às leis da realidade
tridimensional, pois seu âmbito alcança um outro mundo. Essa
descoberta não corresponde apenas à sua própria experiência da
morte, mas também a descrições de outros que tiveram morte
clínica aparente e que, ao retomarem à vida, contavam que
haviam tido a sensação de terem sido “erguidos” a um outro
mundo, onde as leis do tempo não eram mais válidas.
E interessante notar que os relatórios de Moody e de
Hampe confirmam essa mesma hipótese de uma relativização
da sensação espaço-temporal. Esses dois estudiosos constata
ram que a perda da consciência costuma acontecer ao mes
mo tempo em que uma outra parte da psique alcança outra
realidade. E, de fato, no momento da perda de consciência,
dá-se uma cisão dentro da psique, ou melhor, no interior do
Eu, cisão esta que geralmente é simbolizada pela imagem da
travessia por um túnel. Enquanto uma das partes da psique
permanece ligada ao corpo a outra desliza para o âmbito des
provido de tempo e de peso, que o doente sente como uma
consciência indestrutível, ou como um “Eu sutil” . Essa dis
sociação desperta a impressão de que uma parte do Eu per
manece presa ao corpo inconsciente, enquanto a outra parte
é assimilada de modo compensador no âmbito intermediário
da alma, do sublime e do espiritual. Essa ocorrência, que o
visionário vive como um enlevo místico, como uma ilumina
ção da alma, tem para ele o mesmo significado que a expe
riência da Luz, do Eterno, do Além.
53. C. G. Jung, “Seele und Tod” [Alma e Morte], in Obras Completas, vol.
VIII, p. 472.
60
Uma obra de Henry Corbin a respeito da antiga mística
iraniana54 registrou paralelos impressionantes em relação ao
êxtase de quem está prestes a morrer, ao ingressar na dimen
são da luz. Em conexão com o que dissemos, parece-me so
bremaneira valiosa a visão de Sohravardi, um dos místicos
mais importantes do século XII. Diz ele o seguinte:
*'Certaine nuit où il y avait du soleil, Hermès (refere-se
ao vidente) était en prière dans le temple de la lumière, . . .
voici qu'il vit une Terre en train de s'engloutir avec des cités
sur lesquelles s'était abattu le courroux divin, et elles tombèrent
dans Vabîme. Alors il cria: Toi qui es mon père, sauve-moi
de l'enclos des voisins de perdition! Et il entendit une voix lui
crier en réponse: Agrippe-toi au câble de notre irradiation,
et monte jusqu'aux créneaux du trône. Alors il monta, et
voici que sous ses pieds il y avait une Terre et des Cieux".
(“Certa noite em que brilhava o sol, Hermes rezava no Tem
plo da Luz quando, de repente, viu uma terra sendo engoli
da junto com algumas cidades sobre as quais se abatia a có
lera divina, e sendo precipitadas no abismo. Então, ele gri
tou: ‘Tu, que és meu pai, salva-me dos recintos dos meus vi
zinhos de perdição!’ E então, ouviu uma voz a lhe gritar em
resposta: ‘Agarra-te à corda de nossos raios, e sobe até as ameias
do trono!’ E então ele subiu, e eis que havia uma Terra e Céus
debaixo de seus pés!”)5S
Nesta visão, são dignos de ser assinalados tanto o fato
de os místicos serem engolidos pela escuridão do abismo, co
mo a subida posterior para uma dimensão supraterrestre. São
incríveis as analogias aqui existentes com respeito às visões
da morte, assim como sobre a experiência inicial do choque
e a travessia do túnel, e também no que concerne o despertar
do “Eu sutil” para uma realidade transcendente.
54. Heniy Corbin, Terre céleste et corps de résurrection [Terra Celeste e Cor
po de Ressurreição], Ed. Buchet/Chastel, Corréa, 1960 — obra que já me havia sido
gentilmente indicada por C. A. Meier. Uma nova versão ampliada dessa obra, intitula
da Corps spirituel et Terre céleste [Corpo Espiritual e Terra Celeste], foi publicada
em 1979 pela Ed. Buchet.
55. Loc. cit., p. 140, tradução de L. Fischli.
61
Consideram-se também extremamente interessantes as ex
plicações ulteriores de Sohravardi sobre o mundo da alma, por
ele concebido como uma esfera intermediária da imagina
ção.56 Pois ele vê na imaginação o verdadeiro Ser da alma,
não somente na configuração criativa de imagens, mas tam
bém na capacidade de transformar “ corpos materiais em corpos
sutis”.57 Para ele, esse processo é tão significativo quanto o re
nascimento da alma na realidade espiritual. São surpreendentes
os paralelos que essas idéias formam em relação com as imagens
alquimistas da imaginado vera58 e com o conceito psicológico
da imaginação ativa.
Sohravardi tomou a elevação da alma rumo à verdade
absoluta da Luz como o último degrau da ressurreição, algo
que o místico só pode empreender após a morte. Num outro
trecho, entrarei em maiores detalhes sobre as outras explica
ções de Corbin a respeito do Eu celeste — o moi céleste — e
a respeito do corpo glorificado —o corps de glorification.
Depois dessa incursão pelo mundo da mística iraniana,
voltarei às visões dos agonizantes. Hampe percebe nessa repe
tição de depoimentos sobre o irromper de aparições de luz
radiante em todas estas visões, numa dimensão fora do tempo
e do espaço, a expressão de uma “consciência mais elevada”
da libertação. Isso é assinalado nao só pela extraordinária in
tensidade e plasticidade da experiência em si, como também
pela clareza e nitidez ligadas a essa percepção.
Um diretor de cinema que, depois de .um in farto e de
ter sido ressuscitado por um monitor cardíaco, pelo balão de
oxigênio e pelo choque elétrico, dá o seguinte testemunho:
“Eu caminhava na direção de uma rede luminosa e irradiante
. . . Ao entrar em contato com ela, a chama de luz aumentou
62
com tal intensidade que ao mesmo tempo me consumiu e
me transformou. Não senti nenhuma dor. A sensação não
era agradável nem desagradável, porém tomava conta de to
da a minha pessoa. Daí em diante, tudo ficou completamen
te diferente . . . Eu não me encontrava em outro lugar, pois
haviam sido eliminadas as dimensões espaciais, mas estava
numa outra dimensão. ”S9
Muitos outros que passaram por isso também ressalta
ram a surpreendente nitidez das cores vislumbradas e, con-
comitantemente, também sublinharam o surgimento de uma
música de beleza supraterrestre a espalhar prazerosa tran
qüilidade. E também a percepção de um “Eu sutil” indes
critível, percebido como puramente espiritual, foi para Hampe
uma prova da existência de uma “consciência mais elevada” .
Um dos seus relatórios diz o seguinte:
“Meu novo Eu já não era mais o Eu que eu conhecia, mas
era semelhante a uma sublimação do mesmo, pois de algum
modo me parecia conhecido, como algo que eu sempre soubera
estar enterrado nas profundezas, sob uma superestrutura de
medos, de esperanças, de desejos e de ansiedades. Esse Eu não
tinha nenhuma relação com o nosso Ego mundano. Era puro
espírito, definitivo, imutável, indivisível, indestrutível. Embora
absolutamente único, cunhado individualmente como uma
impressão digital, era ao mesmo tempo parte de um Todo
infinito e bem ordenado. Alguma vez eu já estivera lá.”60
Moody também ressalta, de igual maneira, que esse afas
tamento freqüentemente era sentido como “puro conscien
te” , semelhante a um “ponto de consciência” .6i Henry Corbin,
por sua vez, aponta a experiência mística de um moi céleste,62
de uma connaissance présencielle, uma presença espiritual que
Sohravardi descreveu como uma présence de soi-même à soi-
même.63 Nas visões da morte, destaca-se o fato de que a vi
59. J. Chr. Hampe, loc. cit. p. 84.
60. Idem,p. 92.
61. R. Moody, Leben nach dem Tode [A Vida depois da Morte], loc. cit., p. 48.
62. H. Corbin, loc. cit., p. 138.
63. Idem, p. 209.
63
vência da palavra vem depois da vivência da luz, da cor e da mú
sica. Apesar de não ser raro que se mencione a percepção de
uma “voz”, o que resta é apenas a lembrança de um nome
proferido e de quase nenhuma palavra ou conversação. Isso
explica a dificuldade geral de exprimir as experiências da mor
te com palavras.
As cores e os tons também desempenham um papel im
portante nas experiências místicas de Sohravardi. Ao narrar
suas visões, ele ressalta expressamente que elas não estão liga
das às vibrações do ar, porém representam características das
formas arquetípicas dos corpos sutis.64 Não se pode deixar de
pensar na harmonia das esferas de Pitágoras.
A insistente referência à transparência e à indescritível cla
ridade da luz nas visões de morte afetam-nos de modo particu
lar. Poderíamos então perguntar: por que nessas experiências
se manifestam exclusivamente a claridade e a luminosidade, o
brilho do supraterrestre e do eterno, e por que será que só
aparecem figuras que irradiam luz? Por que acontece expressa
preponderância do encontro de bondade e de ajuda, por parte
de mensageiros vindos do além — como os pais e parentes já
falecidos, que procuram facilitar a travessia até o outro mun
do? A total ausência de qualquer aspecto sombrio está em ma
nifesta oposição com as experiências dos sonhos de alguns ago
nizantes e, em geral, também contrariam as experiências que
ocorrem no caminho dos místicos, nos quais a escuridão da
alma se alterna tão freqüentemente com sua luminosidade. A
inexistência da escuridão e do mal também não estão de acor
do com as descrições do além alegadas pelos livros dos mortos
egípcio e tibetano. Segundo a crença egípcia da morte, o mor
to é ameaçado por monstros demoníacos, tais como crocodi
los, cobras, etc. Atorinentado pelo medo do precipício e do
abismo, o morto procura se proteger através do uso de fórmu
las mágicas. No Livro Tibetano dos Mortos conta-se que o mor
to, em seu caminho através das regiões intermediárias das visões
do Bardo, não se encontra apenas com divindades pacíficas,
64
mas se depara igualmente com divindades iradas e sedentas de
sangue. A representação do Scheol e do inferno no âmbito da
cultura judeu-cristã também contradiz as visões da morte. Afi
nal, apesar do aspecto luminoso, as imagens que aparecem nos
sonhos sobre morte também estão repassadas do medo de um
perigo ameaçador, embora no material de que disponho predo
minem os símbolos de luminosidade e de claridade.
Sempre fui da opinião de que a intensidade fora do comum
dos aspectos luminosos nesse particular seria um sinal de que a
alma se ergue até uma dimensão fora do tempo e do espaço. E
como se o Eu sutil daquele que passa para o outro lado partici
passe da numinosidade e da eternidade dessa situação, em de
corrência de sua contaminação com a região fronteiriça do in
consciente. Como se, de acordo com a intensidade de sua capta
ção, ele também se tomasse parte da visão da divindade luminosa.
Para alguns iluminados, a presença da divindade no meio
de um fluxo de luz e de claridade parece ser, de fato, de tal
modo sensível, que eles não podem deixar de compreender o
que sentiram senão como o testemunho de uma realidade que
transcende os limites da vida que vivemos. Do ponto de vista
psicológico, sem dar maior atenção ao elevado grau de sensa
ção da realidade, não se pode chegar a nenhuma conclusão a
respeito da existência de um mundo transcendente. O que o
agonizante vê e aquilo em que ele acredita não pode, de modo
algum, valer como prova para a objetividade ou para uma cons
tatação absoluta dessa realidade. Apesar de ser arrebatado pelo
elemento numinoso, este permanece preso ao mundo do âmbi
to psíquico; seus depoimentos continuam a depender de seus
pareceres subjetivos. Essas sensações são psicológicas, mas não
são metafisicamente verdadeiras. Contudo, o significado especí
fico do ser iluminado ou esclarecido no que concerne à cura da
pessoa em questão por certo permanece intacto.
65
acontecimento sincrônico, ou seja, a questão da mudança
e da cura. Estou abordando uma questão que foi de fundamen
tal importância para as pesquisas de C. A. Meier, no que concer
ne à incubação na antigüidade. Meier verificou que, nas antigas
localidades onde se tratavam os mistérios da doença, ocorria a
cerimônia denominada “Dignidade de um remédio” .65 Contu
do, a possibilidade de cura pressupunha de cada vez que “aque
le que havia causado a doença, ou o próprio doente ou ferido,
havia agredido a Deus pessoalmente” .66 Se o emergir do Deus
que dispõe da faculdade da cura é igual ao constelar de um ar
quétipo — como supomos do ponto de vista psicológico — en
tão podemos chegar a conceber cada arquétipo que se torna ma
nifesto no sonho ou na visão como uma intercessio divina,61 —co
mo uma intervenção de natureza divina. Segundo essa mesma
concepção, poder-se-ia entender o evento dos mistérios como
uma ponte lançada para uma compreensão mais profunda das
visões da morte, principalmente como uma razão para a pergun
ta: A cura de um doente tão próximo da morte estaria acaso li
gada com a atividade criativo-autônoma do arquétipo?
Avancemos em medias res! Podemos traçar um paralelo en
tre o “sonho de cura” e o que acontece nas visões da morte? Ou,
em outras palavras: haveria nas imagens impressionantes e arque-
típicas vislumbradas em estado de coma uma conexão com um
efeito de cura ou de transformação? Não é possível dar uma res
posta clara a isso sem maiores implicações. Segundo a nossa ex
periência, sabemos que é bem verdade que o fato de estar viven
do uma situação extremamente crítica aponta para a constela
ção do arquétipo, e isso também já implica a possibilidade de
cura. Para Jung, entretanto, a efetivação dessa possibilidade re
quer a colaboração da personalidade68 — o que seria deveras
65. C. A. Meier, “Einige Konsequenzen derneueren Psychologie” [AlgumasCon
seqüências da Psicologia Moderna], 1959, in Experiment und Symbol, loc.cit.,p. 131.
66. Idem.
67. Loc. cit., p. 132.
68. C. G. Jung, Mysterium Coniunctionis, Ed. Rascher, Zurique, 1955/1956,
ou nas Obras Completas, vol. II, p. 307. “Quando o homem não percebe seu próprio
envolvimento . . . ele ignora todas as transformações, relegando-as às suas imagens, en
quanto ele próprio permanece imutável
66
difícil, devido ao estado de profunda inconsciência do doen
te. Enquanto, ao realizar a cerimônia dos mistérios, tanto o
culto como a relação pessoal com o sacerdote propiciam o
processo de cura69 — pois encantam a personalidade por in
teiro —, essa circunstância benéfica falta no estado de coma.
Entretanto, reconhecemos, através dos vários relatos das ex
periências de morte, que na maioria dos casos houve uma
mudança de profundo alcance na personalidade. Qual será
o fator ativo nessa instância?
Nesse impasse, as explanações de Hans Dieckmann a res
peito da interpretação e do significado do Eu que sonha, no
que se refere aos processos psíquicos de transformação, com
provaram ser de extrema ajuda, pois ele provou que a mudan
ça psíquica não está ligada apenas à participação conjunta do
Eu desperto, mas que a personalidade como um todo tam
bém abarca o inconsciente do Eu que sonha. Sua experiên
cia mostra que caberia assinalar que “a maioria dos proces
sos de mudança dentro da análise passam primeiro pelo Eu
que sonha,70 que é mais permeável para a nova aquisição e
para a nova configuração da personalidade do que o Eu cons
ciente” .71
No que diz respeito ao processo de mudança, no decor
rer de minha busca de uma correspondência com o Eu que
sonha nas visões da morte, tive a feliz intuição de adjudicar
ao Eu sutil vidente um significado análogo. Isso é bem pos
sível, e mais ainda por se atribuir um significado fora do co
mum a esse “Eu sutil” , não só como conseqüência do fato
de ele estar tão carregado de emoções, como também devido
ao fato de sua natureza ser sentida como pura e indestrutí
vel. Isto me parece justificar o fato de eu definir esse “corpo
espiritual” como o sujeito interior do processo de cura nas
69. C. A. Meier, Psychosomatik in Jungscher Sicht [A Psicossomática na Vi
são de Jung], loc. cit., p. 155.
70. Hans Dieckmann, “Zur Methodik der Trauminterpretation” [Do Método
de Interpretação dos Sonhos], in Anatytische Psychologie [Psicologia Analítica], vol.
9,1 9 7 8 , pp. l l l s .
71. Loc. cit., p. 121.
67
visões da morte: nele vejo a instância desconhecida que, por
um lado, mantém de pé a conexão com as imagens e, por ou
tro, configura a transição até o Eu desperto. Através dessa
relação com o Eu desperto, o Eu vidente elimina a integra
ção das ocorrências do “outro mundo” no inconsciente, o
que ao mesmo tempo elimina a mudança da personalidade
e a cura. O que o “processo de cura” significa realmente ao
ingressar na “verdadeira” morte foge completamente à com
preensão humana. Mesmo assim, poder-se-ia imaginar que tal
vez se trate de uma mudança na direção de uma totalidade
e perfeição da pessoa em questão.
Independentemente do arquétipo e do Eu sutil, há ain
da um fator significativo para o processo de cura: refiro-me
ao aspecto geral, quase sempre coletivo, dos símbolos viven-
ciados. As configurações que vemos são de uma surpreen
dente ubiqüidade. Elas não só se repetem de modo seme
lhante por toda parte, e nos indivíduos mais diferentes, co
mo também permitem que se reconheça que não há nenhu
ma ligação pessoal com esse indivíduo. Todo o material ima
ginado circula exclusivamente em tom o da situação arque-
típica da proximidade da morte.
E significativo notar que as imagens consteladas apon
tam, sem exceção, para símbolos associativos que — como
já sabemos através da simbologia dos sonhos — possam ter
um sentido de liberdade, devido à repetição das oposições.
Essas imagens sempre lançam novas pontes, repetitivas, en
tre os opostos: entre o “Corpo físico e o Raio Luminoso” ,
entre “o Aqui e o Além” . São particularmente notórias as
experiências de Jung em relação à coniunctio e ao hierosgamos
entre as divindades “masculinas e femininas” . Como conse
qüência de sua tendência à perfeição, esses símbolos são da
maior importância para o restabelecimento da Unidade Per
dida.
A analogia das imagens consteladas, com relação a cer
tas experiências antigas da humanidade e de seu conteúdo
atemporal de verdade, também lança uma luz sobre a possi
bilidade do restabelecimento do doente, através da sua par-
68
ticipação nas mais antigas sabedorias humanas. Também é in
teressante notar, neste contexto, a tendência de o arquétipo
assim expresso formar correspondências imbuídas de senti
do entre, por um lado, a situação da morte e, por outro, a
experiência original da humanidade. Eu gostaria de transcre
ver alguns paralelos sobre este tema, de preferência com as
configurações simbólicas da doutrina do Livro Egípcio e do
Livro Tibetano dos Mortos, assim como com o âmbito do
culto cristão, da alquimia e da mística iraniana.
A idéia dos egípcios acerca da continuação da vida do
morto parece-me de fundamental importância. Do mesmo
modo como o rei divino Osíris, o morto se ergue da terra djos
mortos como uma figura viva. Essa concepção egípcia man
teve-se viva durante vários séculos, tal como o credo budis
ta tibetano sobre a continuidade de um princípio de cons
ciência, que segue existindo em reencamações carmicamen-
te condicionadas. A visão de uma Luz Original clara a relu
zir no momento da morte também é descrita no Livro Tibe
tano dos Mortos, análoga às visões da morte. O que seriam
essas aparições radiosas substancializadas, senão a lembran
ça da imagem original da Luz da alma? Do mesmo modo, exis
te uma analogia entre a penetrante experiência de um “Eu
corpóreo e sutil” indestrutível e o credo cristão sobre o mis
tério da ressurreição e a afirmação de São Paulo sobre um
corpo não corruptível. E, finalmente, eu gostaria de traçar um
paralelo entre a experiência da morte e o símbolo alquímico do
corpo ressuscitado; por exemplo, o de uma “Luz detentora de
uma voz”,72 ou a visãò de Jesus Cristo que, envolto em Luz,
agarra a mão do homem asfixiado e o tira do tanque em que
está morrendo.73 Encontramos pensamentos semelhantes na
mística de Sohravardi. Suas idéias giram em tomo do “mundo
intermediário dos corpos sutis, nos quais o corpo material se
espiritualiza, enquanto o espírito se transforma em corpo.74
72. R. Moody, Nachgedanken über das Leben nach dem Tod, loc. cit., p. 43.
74. Loc. cit., pp. 41ss.
74. Corbin, loc. cit., p. 138. “Ce monde intermédiaire est le monde par lequel
se corporalisent les esprits et par lequel se spiritualisent les corps. "
69
A semelhança desse corps glorieux com o corpus glori-
ficationis, ou seja, com o “corpo dotado de espírito” ,75 é pa
tente, e parece denunciar a familiaridade de Sohravardi com
os conceitos alquímicos dessa época (século XÍI).
O irromper do material coletivo na noite da inconsciên
cia possui, sem dúvida, um significado extraordinário para
o processo de cura. Como já é bem conhecido através do tra
balho psicoterapêutico com pessoas normais, a invasão de
cada símbolo arquetípico no sonho ou na fantasia significa
a possibilidade de um retomo à ligação de quem sonha com
o tesouro da sabedoria original contida no seu próprio inte
rior. Isto é, também, o que possibilita uma mudança no seu
ponto de vista. Não se deve excluir a possibilidade de que
esteja em andamento um processo semelhante nas condições
de êxtase do. agonizante. Pois também parece iniciar-se a cu
ra daquele Eu-pessoal que mais uma vez foi trazido de vol
ta à vida através da ponte lançada pelo Eu sutil e incorrup
tível, que se modifica devido ao fascínio das imagens numi-
nosas. Acho que não estou errada ao ver o fator essencial
da transformação na vivência espontânea de “outra” ver
dadeira realidade luminosa, fortalecida pelo sopro do Eter
no e do Sagrado.
A partir das descrições formuladas pelos que voltaram
à vida, sempre se infere a reiteração de que a vivência da liber
tação aconteceu numa dimensão luminosa de incomparável
efeito, e que com freqüência esta também amortece o me
do opressivo de voltar a esta nossa dimensão, além de tam
bém fortalecer o desejo de cura.
De todas essas considerações, resulta que o sentido mais
profundo do acontecimento sincrônico entre a alma e o cor
po dos que estão para morrer, tanto na cura da doença como
na transformação da personalidade, deve ser buscada atra
vés do encontro com a dimensão transcendente.
Em minhas exposições, não me questiono sobre o pro
blema de as experiências de morte também poderem ser vá-
75. C. G. Jung, Psychologie und Alchemie, Obras Completas, vol. XII, p. 487.
70
lidas como prova de uma realidade no além. Esta afirmação
seria tão pouco plausível como declarar o contrário. Mesmo
sem excluir a possibilidade de as vivências próximas da mor
te poderem conter dados sobre uma “outra realidade”, de
modo nenhum poderemos comprová-las. Um ponto de re
ferência objetivo é negado ao espírito humano para sempre.
Limito-me a formular a hipótese de que o arquétipo psicói-
de, graças à sua numinosidade, à sua força criativa autôno
ma e ao seu natural poder de cura, pode ordenar a renova
ção e a cura da pessoa doente. No decorrer da minha pes
quisa, deve ter ficado bem claro que, neste processo, não
só a alusão à dimensão desprovida de tempo e de espaço tem
um significado decisivo, como também o tem a continuida
de do Eu, ou seja, a capacidade de transformação do “Eu
sutil”, e por fim a percepção consciente do acontecimento.
Mesmo assim, apesar de todos os esforços para compreen
der o papel desempenhado pela morte no processo de cu
ra, este continua sendo um milagre, um segredo profundo
e impenetrável.
71
Eu, que é uma realidade sempre subjacente, mesmo no cor
re-corre do dia-a-dia. A existência de uma ponte entre o cons
ciente e a condição de crescimento tem um significado nada
desprezível no que se refere à continuidade e à estabilidade
do Ser psíquico.
Caímos na tentação de traçar uma analogia entre esse
aspecto eterno do Eu e o “conhecimento absoluto” da psi
que inconsciente e, como sugere C. A. Meier, chamá-lo de
“Eu absoluto” , ou de “ Sujeito absoluto”.76 Baseando-se no
pensamento de Fichte e de Schelling, Meier compreende essa
expressão como a designação de um núcleo central no Eu.
E, neste germe-do-Eu, ele vê uma “fonte da dinâmica psíqui
ca”77 no homem, uma energia indestrutível, cuja existên
cia se deve a um ato de criação das profundezas do incons
ciente.
E interessante constatar que, fundamentando-se nas len
das judias, Erich Neumann também comprovou a existência
de um núcleo imortal do Eu e do consciente, procedente de
lendas da antigüidade. Desde então, este germe conservou-se
através de todos os níveis de desenvolvimento do homem:
não morreu, continuou inabalável e, além disso, estava cien
te de seu futuro renascimento. “É como se houvesse uma
parte indestrutível na morte, aquilo que a lenda judaica de
nomina ‘ossinho Lus’, que conserva dentro de si a garantia
e a potencialidade de voltar a viver no futuro.”78
Entre todas essas conjecturas, resulta a probabilidade
de que através das experiências por que passamos durante
o estado de coma, pudéssemos chegar à conclusão, não só
da natureza transcendente do consciente do Eu, como tam
bém da existência de uma realidade desprovida de espaço
e de tempo por trás da ordem das coisas. E mais uma vez se
comprova que a “perfeição da nossa visão de mundo” exige
76. C. A. Meier, Bewusstsein [Consciência], Ed. Walter, Olten, 1975, pp. 52 e
56.
77. Loc. cit., p. 56.
78. Erich Neumann, Ursprungsgeschichte des Bewusstseins [História Primor
dial da Consciência], Ed. Rascher, Zurique, 1949, p. 114
72
a admissão da hipótese de que nossa psique funciona “para
além da lei de causalidade espaço-temporal” .79
73
Tudo o que pode acontecer no nosso nível espaço-temporal
nos umbrais da morte já o sabemos devido às experiências
individuais e às inúmeras descrições parapsicológicas: param
os relógios, pássaros negros barulhentos sobrevoam o apo
sento dos agonizantes, quadros caem das paredes, e assim
por diante. Porém, o que acontece no nível do além conti
nua a ser uma incógnita para nós. Evidentemente, não se po
de proibir ao espírito humano de configurar modelos imagi
nários. Como exemplo, poderíamos imaginar a existência
psíquica que ingressa num continuum desprovido de tem
po ou de espaço como uma Essência espiritual; ou então,
poderíamos inferir que no decorrer do processo da morte
ocorre um imediato renascimento físico. Porém, de acordo
com a idéia da reencamação, também se pode imaginar que
a essência psíquica continua viva num outro corpo. E, final
mente, pode-se pensar ainda numa fragmentação da alma,
ou até na sua dissolução após a morte. Não se pode desven
dar o mistério da realidade post mortem de modo racional.
Depois desta minha incursão pelas fronteiras da morte,
eu gostaria de voltar ao problema proposto inicialmente :
74
— circunstância cujo significado científico não é nada despre
zível.
Sabe-se hoje, com certeza, que as fronteiras do conscien
te humano não coincidem com os limites dos sistemas bioló
gico ou nervoso. Até que ponto se estende realmente esse
consciente independentemente do sistema nervoso é algo
que talvez nunca possa ser verificado. Mas a representação
do modelo permite que se penetre no inconsciente coletivo
descobrindo dimensões até hoje insuspeitadas; e estas talvez
até continuem a existir no Ser que subsiste após a morte co
mo uma “ consciência mais elevada” .
A perspectiva de uma possível continuidade da vida após
a morte, ou de um prolongamento da existência como algo
consciente com um Ser dotado de um Eu, é extremamente
atraente diante da perplexidade espiritual do homem atual.
Já que, em grande parte, o indivíduo perdeu sua ligação com
os fundamentos arquetípicos que indicam o destino do seu
Ser, ele tomou-se presa fácil da insegurança emocional que
o faz duvidar, e até desesperar, do sentido e do significado
da sua existência. Dilacerado entre a admiração dos progres
sos da técnica e o crescente medo da situação apocalíptica
mundial, o homem procura o equilíbrio no âmbito espiritual.
Não é de se estranhar que a situação ameaçadora e interna
mente conflitante seja compensada naqueles que estão pres
tes a morrer por esperanças inconscientes do futuro, expres
sas nas projeções das visões da Luz e do além. A pessoa que
se encontra nessa situação espera o milagre de uma nova exis
tência depois da morte, muito mais do que deseja fazer um
esforço pessoal para se submeter a uma transformação pessoal
do lado de cá da vida.
O atrativo da experiência nos umbrais da morte adqui
re uma ampla e progressiva motivação, ou seja: o antigo an
seio do homem em relação a uma ampliação do espírito que
supere as fronteiras delimitadas pela realidade tridimensio
nal. Esse mesmo ímpeto se exprime tanto nos seus vôos à lua,
ao espaço, como nas pesquisas que faz das profundezas da
estrutura do átomo. Outro item importante a ser ressaltado
75
é a pesquisa do inconsciente como uma expressão à procura
de um conhecimento maior. Neste setor também existe a
tentação de trespassar as fronteiras da experiência rumo à
metafísica e a tudo o que se encontra no além.
As pesquisas realizadas nos limites entre este nosso la
do e o além, entre a vida e a morte, sempre encerram por si
mesmas uma mudança da mentalidade humana. Nas profun
dezas do inconsciente vai-se preparando a imagem de um
homem que participa tanto da dimensão tridimensional co
mo da transcendência do consciente. Enquanto as visões da
morte abrem o espírito daquele que se depara com elas e,
possivelmente, até agucem o espírito de quem as pesquisa
em relação ao Ser post-mortem, os experimentos efetuados
na área da reencarnação apontam para uma existência ante
rior ao nascimento. Esse questionamento em ambas as dire
ções, tanto para frente como para trás, pode ter efeitos ex
traordinariamente proveitosos se o indivíduo, envolvido pela
emoção do próprio ato de morrer e pela sua própria morte,
não se deixar abater pela tentação de tomar presentes as ima
gens percebidas, deixando-as, isto sim, permanecer na sua
“existência” e valorizando-as simbolicamente como expres
são de uma experiência interior.
Partindo deste enfoque psicológico, a pergunta sobre
como e de que maneira prossegue a vida após a morte parece
perder importância. E, em contrapartida, passa a ser do maior
interesse uma recuperação do elemento de cura oculto e sim
bólico nas visões da morte, que vence a oposição entre o “aqui”
e o “além”, o “material” e o “espiritual” .
Neste terceiro item — refiro-me às visões da morte —
reconheci o símbolo do “corpo iluminado” corresponden
te ao “corpo sutil” da mística de Sohravardi,82 e ao corpus
glorificationis dos alquimistas, um “corpo dotado de espíri
to ”.83 Mas a mudança, ou seja, a espiritualização do corpo
76
e a materialização do espírito, ocorre no reino intermediário
da alma. O reconhecimento da verdadeira realidade concer
nente à alma e a seus símbolos de cura parecem ter significa
ção decisiva para a sobrevivência da humanidade nestes tem
pos tão profundamente dilacerados. Encarado deste ângulo,
o fascínio de tantas pessoas pelas experiências nas proximi
dades da morte adquirem seu sentido mais profundo.
Meu trabalho como psicóloga permite-me reavaliar sem
pre o quanto o homem deslocado sofre, devido às oposições
existentes entre o que se encontra neste mundo, e o mundo
suprapessoaí. Posso ver o quanto seus anseios se dirigem para
um símbolo de conciliação, que possa curá-lo. Por isso, afe
ta-me sobremaneira o encontro desse símbolo com o homem,
por um lado completamente diferente, que cria novas raízes
no seu consciente; isto propicia a valorização da alma do ho
mem na atualidade.
A todas as perguntas formuladas sobre o ato de morrer
e sobre a morte — que dão jnotivo a tantas projeções —, acres
centa-se um duplo significado: por um lado, o espírito huma
no toma-se transparente à verdadeira realidade suprapessoaí
na alma humana; e, por outro, a vida deste lado de cá vai sen
do preenchida por uma consciência transcendente, de um no
vo sentido. O homem reconhece então que está entre o aquém
e o além, no limiar de um novo eon.
Assim como a experiência do nascimento não significa
apenas um começo, a experiência da morte também não sig
nifica um fim. Ambos são, respectivamente, começo e fim.
Nascimento e morte permeiam a vida humana, e estão pre
sentes em cada experiência de transformação. A cada progres
so na direção de uma consciência maior está ligado o sacri
fício das perspectivas anteriores. E esse sacrifício é sempre
encarado como um acontecimento que se parece com uma
morte. A promessa de uma vida mais autêntica e mais verda
deira está ligada com essa transformação.
Nascimento e morte acompanham cada pessoa durante
a vida, e formam o conteúdo genuíno do germe do autode-
senvolvimento. A luz e a escuridão fazem parte integrante
77
desse caminho. O encontro consciente com o lado inteira
mente diferente da morte parece inviável para o homem da
atualidade, mas é o que fundamenta o mistério da mudança,
o encontro consigo mesmo, e a travessia do portal rumo à
consciência transcendental.
“A Luz recai sobre a vida a partir da morte — e só quem,
na sua alma, está pronto para caminhar através do portal da
morte será um homem vivo.”84
84. Edgar Herzog, Psyche und Tod [A Psique e a Morte], Série de Estudos do
Instituto C. G. Jung, vol. XI, Ed. Rascher, Zurique, 1960, p. 245.
78
EXPERIENCIAS ARQUETIPICAS NAS PROXIMIDADES
DA MORTE
79
uma situação em que o inconsciente não ignora a aproxima
ção da morte, a saber, quando o sonhador tenta foijar ilu
sões para si mesmo a respeito do fim iminente.
Cito o exemplo de uma mulher que estava com câncer;
os médicos tentavam consolá-la da maneira habitual, dizen-
do-lhe que sua doença era curável, do mesmo modo que um
relógio quebrado de sua propriedade. Ela o levou ao relojoei
ro, e este constatou que já não se podia consertá-lo. Duas
noites depois, ela sonhou que a árvore favorita do seu jar
dim havia caído ao chão. Não foi necessário que eu lhe dis
sesse o que isso significava. Ela mesma me disse com triste
za: “E muito claro o que isto significa!” Mas tão logo acei
tou essa idéia, voltou a sonhar de modo “normal” , e o pro
cesso de sua evolução interior seguiu como antes. O incons
ciente tentou transmitir-lhe uma consciência maior sobre si
mesma, sobre suas relações e sobre o seu meio ambiente. A
única coisa que se podia notar era que o inconsciente insis
tia ainda mais implacavelmente do que antes sobre a verdade
interior, como se então fosse realmente urgente desapegar-se
de todas as ilusões e de todos os auto-enganos neuróticos.
Fui testemunha de mais de um desses sonhos “terríveis”,
quando um de meus pacientes teve de ser internado aos 54
anos, para se submeter a uma operação de câncer na vesícula.
Ele estava inquieto e inseguro sobre o que iria ocorrer. Então
sonhou que uma ambulância veio buscá-lo (na realidade seria
suficiente que ele fosse para o hospital de táxi). O motoris
ta abriu a porta de trás da ambulância para deixá-lo entrar:
lá havia um caixão branco! Ele acordou sobressaltado. De fato,
não saiu do hospital com vida, pois morreu após algumas
semanas de grande sofrimento. Mas, tão logo admitiu a amar
ga verdade sobre o desfecho da operação, começou a ter so
nhos reconfortantes sobre a vida após a morte, mas só de
pois de ter aceito a verdade! Seu primeiro sonho após essa acei
tação versava sobre o fato de que, no seú consciente, ele es
tava muito amargurado por ter de morrer tão cedo, com ape
nas 54 anos. Ele sonhou o seguinte: Viu um bosque muito
verde em plena folhagem, em pleno outono. Um incêndio
80
intempestivo na floresta destruiu-a por completo. Foi uma
cena terrível. Mais tarde, no mesmo sonho, meu paciente
caminhou sobre a superfície queimada. Tudo era negro e es
tava carbonizado; só restavam cinzas; porém, no meio havia
uma grande pedra vermelha de arenito, sem nenhum vestí
gio do fogo e, ao sonhar, ele pensava: “Aquela pedra não foi
tocada, e nem sequer enegrecida pelas chamas.”
Evidentemente, esta é a conhecida “pedra filosofal ver
melha” da alquimia, um símbolo do Self, ou seja, do núcleo
central da alma de cada personalidade. Desde seus primórdios,
os alquimistas já ligavam a idéia da pedra da sabedoria à no
ção da morte.
O material de onde partiu essa sua forma chamava-se
Osíris, o deus-homem que jaz em seu túmulo de chumbo (ele
havia sido assassinado por Seth) à espera de uma ressurrei
ção. Nos textos mais antigos que possuímos, a formação des
sa “pedra” fora comparada com os diferentes estágios do pro
cesso de mumificação. No Egito, a arte sagrada da mumifi-
cação era uma ação ritualística, cujo objetivo era criar para
o corpo a possibilidade de ressuscitar, ou produzir o “corpo
eterno” do morto. Uma das principais etapas consistia em
banhar o cadáver em natron, — uma mistura de carbono, de
enxofre e soda.1 A palavra natron vem do vocábulo egípcio
n-t-r que significa “deus” . Portanto, o cadáver era literalmen
te banhado num “líquido divino” , a fim de ser deificado. As
ataduras de linho enroladas em volta do corpo simbolizavam
as deusas Isis e Néftis, as duas esposas de Osíris, ou então a
deusa-mãe Nut. O morto era assim conduzido a Osíris, e des
cansava no abraço de suas companheiras femininas. Bem ao
final da liturgia de morte egípcia, terminadas todas as oferen
das e orações, erguia-se do chão, com a ajuda de cordas, um
pilar de pedra denominado djed ou “estátua”. Então o sa
cerdote anunciava que o morto havia levantado, voltando à
vida. O pilar djed tinha a forma de uma árvore estilizada (ou
81
talvez da espinha dorsal). Este é um símbolo antigo, difícil
de ser explicado.2
Um antigo texto alquímico intitulado “Kortiarios an
Kleopatra” relata este momento da ressurreição com as se
guintes palavras:
82
se separará na eternidade, e se alegra por morar na sua casa
[em seu corpo] . . . e se unem no amor. Espírito, alma e corpo
tomam-se uma só coisa, na qual jaz escondido todo o segre
do. O mistério se realiza neste tomar-se Uno, e agora a casa
está selada e a “estátua” é erguida, plena de Luz e de divin
dade. O fogo converteu-as em Um, e as transformou, e esse
Um nasceu do corpo materno.4
83
Existem ainda vários outros indícios que nos mostram
que os alquimistas consideravam a pedra filosofal como o
corpo imortal dos mortos. Sua perfeição acontece no estágio
da rubedo — da cor vermelha. Por isso, a pedra redonda ver
melha no sonho de meu paciente aponta para essa mesma in
terligação de sentido. E como se o sonho lhe dissesse: sim,
o seu bosque (a sua vida) ainda está verde, você deve morrer
em pleno verão da sua vida, contra a natureza, por causa de
uma catástrofe. Entretanto, o germe mais intrínseco de seu
Ser, a pedra vermelha, “permanece intocada” .
Não foi nenhuma mera coincidência o fato de o incons
ciente escolher a imagem de uma floresta para descrever a des
truição do corpo mortal. Segundo Jung, a floresta simboli
za aquela região da psique inconsciente onde essa derradeira,
instância se funde com os processos fisiológicos no corpo.
Pois a vegetação é a forma de vida que cresce diretamente
da matéria inorgânica, e que dela se nutre. Por isso a flores
ta é freqüentemente uma imagem que representa a nossa vi
da “vegetativa” na sua inter-relação com os processos quími
cos somáticos. E lá que se dá a destruição pelo câncer. Essa
última etapa é simbolizada pelo fogo — a energia vital caotica
mente irreprimível, assim como o crescimento caótico das
células cancerosas.
Todavia, a vegetação também possui um indomável de
sejo de vida. Sua capacidade de regeneração na natureza é
sempre surpreendente. Sempre me comoveu observar como,
nas mais altas montanhas, as pequenas ervas — formas anãs
de árvores e de flores — se agarram às rochas nas geadas, na
neve e nas ventanias,, preenchendo cada cantinho de casca
lho das encostas com sua minúscula e tênue vida. Por isso,
na antigüidade, as plantas sempre verdes — como a hera, o
cipreste, etc. — foram símbolos da vida após a morte, assim
como o sêmen dos mais variados tipos, a partir do qual res
surge a vida vegetativa..
Certa vez um homem me procurou para uma única con
sulta. Sua vida estava condenada: ele tinha sua sentença de
morte — câncer — no bolso, e não podia aceitá-la. Tinha uns
84
quarenta anos, e contou-me o seguinte sonho: Ele viu um campo
de trigo — todo verde, ainda não maduro. Nele havia entrado
um rebanho de gado e o havia pisoteado, aniquilando-o por
completo. Tudo parecia destruído. Porém, uma voz dizia: “As
plantas são destroçadas, exceto as raízes. Delas voltará a nascer
novo trigo.” Nem mesmo este sonho o convenceu. Ele partiu
amargurado, assegurando não acreditar numa vida após a morte.
Graças a Deus, o outro sonhador — o que havia sonha
do com a pedra vermelha — acreditou no sonho. Ele sonhou
o seguinte: Caminhava por uma floresta no inverno; tudo es
tava coberto de neve. Havia nevoeiro, e geava. Ao longe, ele
ouviu o ruído da engrenagem de uma serra e, de vez em quan
do, ouvia um estampido quando uma árvore caía. De repen
te, a cena mudou. Ele encontrava-se. novamente numa flo
resta — porém, num nível mais elevado. Era verão. O sol raia
va através das folhagens, desenhando manchas de luz sobre
o musgo do chão. Lá estava o seu pai — que na realidade já
estava morto há mais de 30 anos —, que lhe dizia: “Veja, esta
aqui é uma nova floresta; não dê mais importância ao que
ocorre lá embaixo.” (Ele se referia à queda das árvores.) Essa
queda, provavelmente, faz alusão à operação brutal que ele
teria de enfrentar, e que na realidade não salvaria a sua vida.
A morte é freqüentemente representada na arte por um an
cião com uma foice, o instrumento da colheita do deus Sa
turno. Ele colhe o milho, e o homem é o trigo que ele cor
ta. “Em verdade, em verdade eu vos digo: a não ser que o
germe do trigo caia na terra e morra, ficará sozinho; porém,
lá onde ele cai, dá muitos frutos.” (João 12, 24-25.)
Essa imagem do trigo que morre para novamente cres
cer é de origem anterior ao cristianismo, e já é encontrada
na tradição egípcia e nos textos gnósticos e alquimistas. Osí-
ris, o deus egípcio da morte, com quem todos os mortos se
fundem após o fim, chamava-se “trigo” . O morto vivia num
“campo de junco”, numa terra fértil, onde o trigo e a ceva
da cresciam muito mais alto sobre a terra.8 Um dos textos
85
diz o seguinte: “Eu [Osíris] alimentei as hortaliças, e permiti
que as ervas secas voltassem a verdejar.”9 “Eu planto e colho,
e preparo uma festa para ti. Minha caverna [o túmulo] será
aberta . . . e a luz cairá sobre a escuridão.” “Os deuses vivem
em mim, e eu vivo na semente.” 10 “Eu lá entrei como um
ignorante e saio como um iluminado; serei eternamente con
templado na minha forma humana.” 11 “Osíris é o princípio
do verde, que permite que tudo cresça.” 12 Na inscrição de
um dos textos fúnebres o morto dizia: “Eu sou Osíris . . . eu
saí de ti, ó semente. Entrei dentro de ti, me alimentei de ti
e cresci em ti . . . Vivo como semente . . . Eu vivo, eu morro,
eu sou a cevada, eu não pereço.” 13
Na antiga alquimia do Ocidente, o trigo e a cevada tam
bém são um símbolo da ressurreição. No texto intitulado ^4«-
rora Consurgens (do século XIII), â matéria glorificada fala
do crescimento do ouro, a se desdobrar em mil frutos, pois
o alimento da vida é elaborado dos grãos de trigo que caem
do céu. Quem o comer, vive sem passar fome.14 O grão res
suscitado transforma-se, evidentemente, num alimento espi
ritual.
Num dos primeiros textos alquimistas gregos (do século
I), a deusa Isis ensina a seu filho Hórus como produzir a pe
dra filosofal, e o instrui do seguinte modo: em primeiro lu
gar, faz Hórus prestar o juramento solene de guardar o segre
do e de não divulgá-lo, a não ser a alguém muito próximo ou
a um amigo, de maneira que “tu te tornes ele, e os dois se
tomem um” . E então, continuou dizendo: “Vai, observa e
pergunta ao camponês Acarantos (ou ao marinheiro Aque-
rantos) o que se semeia e o que se colhe, e aprende que quando
86
semeares trigo, colherás trigo, e quando semeares cevada,
colherás cevada .. . Pensa, então, a respeito de toda a cria
ção, e compreende que o homem gera o homem, o leão ge
ra o leão e o cachorro gera o cachorro; e quando nasce qual
quer outra coisa, trata-se de uma anomalia, e não perdura.
Pois a natureza se alegra com a natureza, e esta supera a si
mesma . . . Assim também o ouro gera ouro, e o semelhan
te gera o semelhante. Esta é a revelação de todo o segredo.”
Este texto não explica muita coisa quando não se co
nhece o simbolismo egípcio a que se refere. Mas Aqueran-
tos, o camponês ou marinheiro, não é outro senão o Deus
do Reino dos Mortos, Aker, aquele que conhece o mistério
da morte e da ressurreição. Ele também foi representado co
mo um duplo leão, cujo nome era “Ontem e Amanhã”, aque
le que representava o próprio processo da ressurreição, o au
tor da revivificação.15 Ele era o Deus desse processo que não
compreendemos e que não se passa no interior da terra, onde
o morto volta à vida; o próprio leão vale como símbolo da
alma humana.16 Aker era o duplo leão, sobre cujo dorso es
tava pintada uma criança — uma representação da ressurrei
ção.17 Em certos textos, o leão é substituído por dois cachor
ros (Anúbis).18 O texto alquimista menciona, particularmen
te, que o leão gera o leão, o cachorro o cachorro e que o ho
mem gera o homem. O Deus do Sol, que é o mesmo que o res
suscitado, também é chamado para testemunhar. “Brilhante
durante o dia, o leão é a sua noite. O próprio ser cria o seu
nome entre as formas em mutação. Aquele que está se for
mando cria a própria forma.” 19 Mas Aker também é o pró
prio cadáver,20 “guardião da sua própria imagem” . Ele tam
bém se chama: aquele cujas formas são misteriosas,21 e também
15. Cf. Constant de Wit, Le rôle et le sens du lion dans VEgypte ancienne [O
Papel e o Sentido do Leão no Egito Antigo], Ed. Brill, Leida, 1951, p. 161.
16. Ibidem, p. 31.
17. Ibidem, p. 129.
18. Ibidem, p. 169.
19. Ibidem, p. 141.
20. Ibidem, p. 95.
21. Ibidem, p. 97.
87
simboliza todo o Reino dos Mortos e as águas originais do
princípio do mundo. Aker é representado sobre o caixão co
mo um ancião que segura em suas mãos o ovo do Deus do
Sol que ressurgirá.22
Ao observar essas imagens egípcias, veremos que o texto
alquímico, aparentemente trivial (que diz que o leão gera o
leão, que o homem gera o homem) está apontando, na rea
lidade, para o mistério central do culto dos mortos egípcios
e da crença na ressurreição.23
A partir desses textos históricos e religiosos, podemos
vislumbrar que o grão e a vegetação como um todo eram as
sociados à idéia da ressurreição, assim como dizia aquela voz
do sonho ao homem cético, que surgiria uma nova vida das
raízes subterrâneas do corpo do trigo pisoteado.
Vemos então que, por um lado, a queda das árvores ou
a destruição do trigo parece ser um símbolo e, por outro, que
um dos sonhos significa que haverá ali outra vez uma nova flo
resta; o outro sonho quer dizer que o grão voltará a nascer.
Ambos os sonhos ressaltam que a vida continua.
A forma mais diferenciada deste duplo significado da vege
tação — como algo transitório e eterno —se encontra no gnósti-
co Simão Magno, contemporâneo do apóstolo Pedro. Simão
ensinava que o universo é feito de fogo, e que uma de suas
metades gera o mundo visível e a outra, o mundo invisível. Por
último, um fogo supraceleste é a câmara do tesouro de todas as
coisas, das manifestas e das invisíveis. Esse fogo se assemelha à
grande árvore que Nabucodonosor viu em sonho (Daniel 4,'7ss.)
e que alimenta toda a vida, que é a própria vida visível: as folhas,
os ramos e o tronco da árvore. Estes seriam, ao final, destruídos
como o fogo. Mas os frutos da árvore, que são as almas huma
nas, são levados até a abóbada celeste e, após terem sido purifi
cados e libertados de sua forma anterior, já não são queimados.
88
O tema da imagem purificada alude ao texto de Moisés
(Gên. 1:27), segundo o qual o homem é criado à imagem de
Deus. Essa imagem é o fruto qUe é poupado enquanto o joio é
queimado. A parte invisível da criação é dotada de consciência,
enquanto a parte visível é desconhecida.24
Nesse simbolismo, a vegetação (da árvore) é ao mesmo
tempo uma imagem que representa a transitoriedade e a vi
da eterna. A imagem da árvore da vida, no Apocalipse, 22: 2,
remete-nos às seguintes idéias gnósticas: “No meio de uma
rua, em ambas as margens do rio, ergue-se a árvore da vida
que deu frutos doze vezes, e que se carrega de frutos todos
os meses; e as folhas da árvore servem para preservar a saú
de dos gentios.”
Imagem semelhante aparece nos dois bosques do sonho
do meu paciente. Embaixo, as árvores são tombadas — uma
referência à morte —, mas na região superior, a vida da árvore
prossegue, como se nada tivesse acontecido. O homem que
sonhou encontrou o pai — que já havia falecido há muito
tempo, quando ele ainda era um menino — nessa região mais
elevada. Nas suas recordações, o pai desempenhava um papel
positivo (sua relação com a mãe era negativa). O pai o ins
truiu dizendo-lhe como ele devia agir na parte de cima da
floresta, na terra dos mortos. Este é um tema arque típico
muito divulgado: o de que os parentes ou amigos do morto
vêm em sua ajuda.
Quando outro dos meus pacientes estava no hospital
pouco antes de morrer, teve o seguinte sonho: Ele deixava
o hospital a pé, e dirigia-se a um velho portal que na Idade
Média havia demarcado os limites da cidade. Aí ele encon
trou Jung, que estava morto e que havia se tomado gover
nante no Reino dos Mortos. Jung disse-lhe o seguinte: “Ago
ra deves te decidir se queres continuar a viver, prosseguindo
em teu trabalho (ele era um pintor, um artista), ou se dese
jas abandonar o teu corpo.” No sonho, o homem viu que
sua cama hospitalar também era, de certo modo, um cava
24. Cf. H. Leisegang, Die Gnosis [A Gnose], Leipzig, 1924, pp. 69ss.
89
lete. Quarenta e oito horas depois deste sonho, ele faleceu
serenamente.
Este sonho parece querer dizer que, para nós, é impor
tante ir ao encontro da morte conscientemente. Não quero
dizer que não se deva morrer durante o sono ou de modo
parecido; isto significa que se deve pensar na morte enquan
to ainda se está consciente, e que se deve “decidir” por ela.
O fato de a cama do hospital se confundir com um cavalete
parece revelar que aquele artista devia então concentrar seu
esforço criador em sua doença e na sua morte, para se cons
cientizar, assim como antes a pintura havia sido o seu cami
nho. A individuação, a conscientização de si mesmo parece
ser, portanto, mais importante do que a vida ou a morte.
Raymond Moody, em seu livro Life after Life, relata
vários exemplos nos quais o agonizante encontra um auxi
liar que o instrui. Esse tipo de sonho e de experiência são
provavelmente os que configuram o fundamento do credo
dos espíritas, de que os mortos vêm ajudar os moribundos
a alcançar a outra terra, do outro lado. No material apresen
tado por Moody, esse auxiliar aparece freqüentemente na
forma de um círculo, como uma roda de luz que oportuna
mente poderá ser dotada de braços, pernas, cabeça, e assim
por diante. Traduzido numa linguagem psicológica, esse aju
dante seria uma imagem do Self que aparece como um sósia
do Eu, pleno de luz.
Como ajudante na morte, o Self também pode, até onde
sei, tomar outras formas. Um paciente de 49 anos, por exem
plo, teve durante sua análise este primeiro sonho: Ele corria
por um campo aberto; havia um clima lúgubre e o céu esta
va encoberto. De repente, abriu-se uma brecha entre as nu
vens e apareceu um lindíssimo jovem nu sobre um raio de
sol a irromper, e este olhava para baixo, para ele. Meu pa
ciente sentiu uma indescritível sensação de amor e de bem-
aventurança. Não ousei lhe dizer, mas assustei-me com este
sonho, por pensar em Hermes, o acompanhante das almas,
que busca os mortos para conduzi-los ao Hades. Em breve,
ficou claro que a saúde desse paciente estava arrumada; ele a
90
havia estragado quando era piloto na Segunda Guerra, com as
pílulas Stuka. Seis anos depois deste sonho, ele faleceu em
decorrência de males do fígado, e sua análisè transformou-se
numa preparação urgente e dramática para a morte.
A figura iluminada que busca o agonizante não tem para
lelos somente na antiga Grécia, mas também na antiga reli
gião persa.25 De acordo com essa tradição, ao passar para o
além, o morto primeiro chega à ponte de Cinvat, tão estrei
ta como um fio de cabelo. Se conseguir atravessá-la, ele está
salvo; se não, cai no abismo do inferno. Ao chegar à ponte,
uma linda moça vem ao seu encontro. Ela personifica as suas
boas ações — que ela guardou para ele. A seu lado, há cachor
ros que afugentam os maus espíritos. A moça também se cha
ma “casa do tesouro das boas ações”. Em outros textos per
sas, ela é substituída por Srosch, o justiceiro, ou pelo “Men
sageiro da Luz” , que ajuda o morto. A própria morte, às ve
zes, chama-se “emissário” , ou então é a “lealdade” personi
ficada. A morte libera o agonizante do mundo, e também
se denomina Sawriel: “Meu campo é Deus.” Quando o mor
to chega ao além, encontra a videira ou a árvore da vida, cu
jas raízes são a água, cujas folhas e frutos são anjos, cujos
ramos são luz e cujo tronco constitui a alma. Aquele que chei
ra essa árvore é revivificado. Embaixo dessa árvore, o morto é
vestido com uma nova túnica feita de luz, e ingressa no pa
raíso.
Esse rico simbolismo religioso remonta a âmbitos mais
primitivos da imaginação. No sistema de mundo dos malaios,
por exemplo, cada pessoa que nasce na terra é apenas um
“meio” homem. Isto ocorreu em primeiro lugar com o ho
mem mítico original (Anthropos) dos malaios. Ele chama-se
Budangimasononga, que quer dizer “a metade do corpo”.
Na mitologia japonesa, o primeiro par humano era for
mado por um irmão e uma irmã; cada um tinha apenas um
25. Cf. W. Biandt, Das Schicksal der Seele nach dem Tode nasch mandaeischen
und parsischen Vorstellungen [O Destino da Alma Depois da Morte Segundo a Perspec
tiva-do Masdeísmo e do Parsismo], Darmstadt, 1967 (reimpressão do texto de 1888).
91
olho e. a metade de um nariz, e um lábio leporino. No “Ma-
binogion” dos celtas, o rei Artur tem de lutar com Kynvelyn
Kendawd Pwyll (o meio homem). Essas imagens mitológi
cas tornam nítido o fato psicológico de que, quando o ho
mem toma-se consciente, ele se divide, deixando atrás de
si algo importante, que na verdade pertence ao séu todo. Essa
cisão é suspensa ou curada por ocasião da morte. O costu
me primitivo, muito difundido, de considerar a placenta do
recém-nascido como o seu sósia, que todavia não ingressa
na vida junto com ele, tem um significado semelhante. Por
isso, em Celebes, guardava-se a placenta dos filhos da famí
lia real num jarro, que era sempre carregado atrás deles. E
quando morriam, a placenta era enterrada junto.26
Os antigos germanos também acreditavam que a pla
centa era um sósia, a seqüência do seu espírito, que seria a
sua felicidade ou infelicidade, a personificação do seu des
tino. Por isso muitas pessoas acreditam que quando vêem
seu sósia ou seu reflexo no espelho, isso é um sinal de mor
te breve. A “outra metade” aproxima-se, por assim dizer, e
se junta ao agonizante no momento da morte.27 Enquanto
vivemos, somos apenas “metades” do nosso verdadeiro Ser,
e a morte é o momento alegre no qual nos reunimos nova
mente com a metade perdida. No antigo Egito, o morto, que
era Osíris, também era chamado de “aquele que tem duas
almas”, pois se fundia com a alma do Deus do Sol, Rá.28
Se focalizarmos estes temas do ponto de vista da psi
cologia junguiana, a princípio parece um pouco confuso que
a “outra metade” apareça às vezes como um ser do sexo opos
to — na Pérsia seria uma jovem, daena —, e depois apareça
novamente como pessoa do mesmo sexo. Na terminologia
junguiana, a outra metade ora surge como figura da anima,
26. Cf. H. v. Beit, Symbolik des Marcherts [O Simbolismo dos Contos de Fa
da], Ed. Francke, Berna, 1960, vol. I, pp. 368-9.
27. Idem, vol. II, pp. 384-5.
28. Cf. de Wit, loc. cit., p. 130. “C ’est Osiris lorsqu'il entre à Mendes. Il y
rencontre l'âme de Rê, ils s ’embrassent l ’un e t l ’autre, e t il devient 'celuiqui a deux
âmes’. ”
92
ora como o Self. Mas não se pode esquecer que essas diferen
ças de Jung — como ele mesmo ressalta com freqüência -
não passam de categorias diferentes que servem para nos des
crever aquele misterioso “Outro” que é o inconsciente. En
tão esses conceitos às vezes são trocados, pois o intuito é o
de usá-los para descrever essa “outra alma” . Se essa outra
alma aparece como figura da anima,29 temos de pressupor
que o agonizante deve sentir apenas e principalmente a sua
anima, por não havê-la integrado suficientemente em vida.
Lembro-me de um sonho de um homem de 60 anos
três semanas antes da sua morte — devido a uma repentina
falha cardíaca, Na verdade este homem estava casado com
uma mulher fria, sedenta de poder, de índole não congenial.
Ele lhe havia sido fiel por razões convencionais, e nunca deu
vazão a seus impulsos amorosos, que o levavam para outras
mulheres. Ele vivia em estado de depressão e era mal-humo
rado. Em outras palavras, ele não sabia lidar com sua anima
(com seu problema afetivo). O sonho foi o seguinte: meu pa
ciente estava sentado ao lado de um mulher na parte dian
teira de uma igreja — ao que tudo indica, para se casar no
vamente com, ela, ou numa tentativa de renovar seu casa
mento. Porém, à sua frente havia uma parede branca Usa.
Quem oficiava a cerimônia era um pastor que ele de fato co
nhecia, um homem muito honesto, porém deprimido e neu
rótico. De repente, uma cigana lindíssima apareceu na igreja,
amarrou o pastor com cordas a começou a puxá-lo para fora.
Ao mesmo tempo, lançava olhares furiosos ao meu paciente,
e gritava: “E você; eu também perdi a paciência com você!”
Ele acordou assustado, sentindo-se ameaçado — e, como já
mencionei, três semanas depois teve um colapso cardíaco
inesperado.
O homem que teve esse sonho tentou em vão remen
dar sua situação conjugal sem esperanças. Ele chegou lite
ralmente “diante de uma parede”, ou seja, ele não pôde vis-
93
Iumbrar de modo algum como prosseguir na vida. O pastor
representa uma convicção convencional cristã de correção,
porém neurótica e inimiga da vida. A cigana — a sua anima —,
ao contrário, personifica a própria vida, sadia, de índole tem
peramental, selvagem. Ela simboliza a vida não realmente
vivida, que então se voltou contra o sonhador. Nesse sonho,
a morte é representada como uma catástrofe inconsciente,
como resultado do seu conflito não resolvido. Este homem
não fazia análise, por isso havia essa cisão entre o seu cons
ciente e a sua anima. Em conseqüência, a anima mostrou o
seu lado obscuro, o lado do daimon da morte. Este, aliás, é
um aspecto que ele sempre denota, como Jung expõe: “Ela
[a anima] é o consolo diante de todas as amarguras da vida,
e, ao mesmo tempo, com tudo isso, ela é a grande tentadora
que desperta as ilusões da vida . . .”30
Nos papiros da última etapa da antigüidade ela é procla
mada como a deusa da morte e da vida:31
94
pouco diferente, menos terrível. É o sonho de iniciação de
um médico de 50 anos, que deseja ter uma formação psico-
terapêutica. Ele era sadio, feliz no casamento e tinha suces
so em sua clínica geral. Seus filhos estavam adultos, mas ele
começava a perder o gosto pela profissão. Por isso, queria
mudar para a psicologia.
Foi quando teve o seguinte sonho: ele se dirigia, com
muitas outras pessoas, a um enterro. A pessoa falecida lhe
era totalmente indiferente. O séquito fúnebre parou sobre
o pequeno gramado de uma praça da cidade, onde havia sido
erguida uma cruz de madeira. As pessoas que carregavam o
caixão colocaram-no no chão e atearam-lhe fogo. O médi
co observou tudo isso com total indiferença. Quando as cha
mas começaram a arder a tampa do caixão se abriu e caiu
de lado. Uma linda jovem nua pulou de seu interior e, abrin
do os braços, dirigiu-se ao médico. Ele também abriu os bra
ços para recebê-la e acordou com uma sensação de indescri
tível felicidade.
Assustei-me ao ouvir este sonho: parecia-me indicar mor
te. Mesmo assim, começamos o trabalho analítico, e todos os
outros sonhos refletiam o processo “normal” de individua
ção. Depois de um ano, esse homem teve de voltar à sua ci
dade natal por motivos financeiros. Continuamos a manter
correspondência. Três anos mais tarde, recebi a notícia de sua
morte, sem nenhum aviso prévio. Ele teve uma gripe que pio
rou rapidamente, vindo a falecer em conseqüência de uma
parada cardíaca na ambulância que devia levá-lo ao hospital.
O sonho de fato havia sido premonitório, assim como eu ha
via pressentido. O que transmite o seu simbolismo? Primeiro, sur
giu o enterro de uma pessoa que lhe era completamente in
diferente. Eu tive a sensação de que isto significava o seu
corpo, que já estava morto, e que para ele já não tinha a me
nor importância. Também poderia simbolizar o “velho Adão” ,
uma personalidade inconsciente passada, que, ao prestar seus
últimos serviços, provou que cumpriu a tarefa terrena e o
término de úma existência. Mas o caixão continha um segre
do, pois, ao colocá-lo no fogo, dele não surgiu um homem
95
morto, mas uma linda mulher. O fogo foi atiçado sobre um
gramado verde (vegetação), numa praça quadrada. Em pri
meiro lugar, isso é uma alusão ao ritual da cremação, porém
existe ainda um significado psicológico mais profundo por
trás desse costume.
No texto de Komarios já citado diz-se que o colo do fo
go gera a “estátua”, uma forma de “pedra filosofal” — psi
cologicamente, uma imagem do Self. Na mitologia egípcia,
o morto tem de atravessar um mar de fogo para poder alcan
çar uma nova vida, e precisa se encontrar com um demônio
com cabeça de leão, do qual se diz: “A chama, diante de cuja
visão se morre de medo.” 32
De um modo geral, o fogo é visto mais como uma força
destrutiva, com exceção de dois aspectos: seu uso na cozinha
e na alquimia (química). Nessas duas instâncias, o fogo é do
mado pelo homem, e desenvolve a faculdade de trazer à to
na algumas aptidões de certas substâncias ocultas: ao cozi
nhar, “extrai” odores e sabores que não são percebidos na
comida crua. Na alquimia, o fogo foi elogiado como o Agen,
o que “extrai” as características e as cores ocultas das subs
tâncias cozidas. No sonho, o fogo mostra um aspecto criati
vo e gerador, e por isso é chamado de colo materno, no qual
a “pedra” vai se formando, como uma criança. “Eu sou aque
le ser amorfo no meio do fogp” — diz o texto gravado no
caixão do morto.33 “Entro nas chamas e saio do fogo. A in
candescência não me fere —ela não me queima.”
Um outro texto se dirige ao morto: “O tu, que jazes pre
so em teu cadáver, cuja brasa toma-se chama incandescente
até no mar . . . vem e traze o fogo, e lança a brasa sobre meus
inimigos.”34
Assim, essa imagem do caixão no fogo, onde de um ho
mem morto surge uma linda mulher, é um símbolo alquímico
dos mais ricos, pois descreve aquilo que os alquimistas chamam
96
de extractio animae. A matéria morta evapora-se com o ca
lor — isto é, a extractio animae. Como o texto sublinha, vê-se
então “a cor da alma” , e esse é o verdadeiro momento da res
surreição. No sonho, essa mulher que volta a se erguer — ima
gem de uma nova vida — dirige-se depressa para o sonhador,
a fim de abraçá-lo. Este é o famoso tema do casamento da
morte ou Hierosgamos, encontrado com freqüência no so
nho dos moribundos.
Em suas Memórias (capítulo 10), Jung conta suas visões
de um Hierosgamos que ele teve enquanto estava em coma,
quando lhe aplicaram um pulmão artificial, ocasião em que,
clinicamente, já estava quase morto . . . A imagem apareceu-
lhe então nas mais variadas formas. Ao final de sua descrição,
ele afirma o seguinte:35
“Não se pode fazer idéia da beleza e da intensidade do
sentimento durante as visões . .. Diante da palavra ‘eterno’
ficamos intimidados, mas eu só posso revelar essa vivência
como felicidade — de uma circunstância atemporal, na qual
presente, passado e futuro são uma coisa só. Nada mais é di
vidido de acordo com o tempo, ou pode ser medido segun
do parâmetros temporais . . . A única coisa que poderia mos
trar o sentido seria uma soma, uma totalidade reluzente, na
qual estivesse contida tanto a espera do elemento inicial como
a surpresa sobre o recém-ocorrido, e a satisfação ou desapon
tamento sobre o resultado do que se passa. Um Todo indes
critível, em que se fica enlevado e, mesmo assim, aceitamo-lo
com total objetividade.”
Jung teve essas visões quando estava bem próximo da
morte. Era o mesmo sentimento sobrenatural de bem-aven-
turança do sonho daquele médico, que me transmitiu a no
ção de que poderia tratar-se de um presságio de morte. Cer
ta vez, li um trecho sobre este tema diante de um grupo de
enfermeiras, e recebi na ocasião uma carta que muito me
tranqüilizou, de uma freira aposentada de 83 anos. Ela me
97
escreveu que só então entendia finalmente um sonho que
tivera há alguns meses: uma voz procedente das alturas ha
via-lhe dito que ela devia preparar seu vestido de noiva. Ela
ficou admirada, pois o que poderia significar isso na sua ida
de? Mas agora ela sabia que se referia ao seu casamento com
Cristo.
Nos textos dos mausoléus egípcios mais antigos, o Hieros-
gamos em geral é descrito como uma orgia sexual celebra
da entre o morto e as deusas do além.36 Como menciona
mos no sonho do médico, o morto que aparece e deve ser
sepultado lhe é indiferente. Isto me lembrou o sonho de um
velho oficial de cavalaria que teve o seguinte sonho pouco
antes de morrer: ele estava numa caserna, como tantas ve
zes havia estado em sua juventude; era tenente e tinha 20
anos. Um velho oficial daquela época, que ele apreciava mui
to, aproximou-se dizendo: “Por favor, venha às estrebarias
no andar térreo, pois preciso lhe mostrar algo.” E o oficial
o conduziu até uma porta de chumbo, abriu-a, e lá se encon
trava um cavalo morto, deitado de costas, em estado de to
tal decomposição. O cheiro era terrível, e o oficial acordou
sobressaltado.
Após sua morte, relatei este sonho a Jung, e ele o inter
pretou da seguinte maneira: o cavalo representa o corpo —
uma imagem própria para um oficial da cavalaria. O sonho
queria transmitir àquele que o havia sonhado que a morte
estava à sua frente, porém não diante dele como um todo,
mas apenas diante daquela parte que era um animal de san
gue quente. O sonho almejava, portanto, distanciá-lo um pou
co do corpo e liberá-lo. O morto indiferente do sonho aci
ma mencionado pareceu-me transmitir uma idéia parecida:
a de que então o seu corpo seria enterrado; porém, este já
lhe era totalmente estranho. Seria como se desse corpo o
fogo destacasse a sua alma, que vem ao seu encontro. Vol
tarei a falar sobre o fogo, mas antes me demorarei um pouco
mais no tema do corpo morto.
98
Uma de minhas colegas analisava uma jovem mulher de
29 anos que tinha câncer. Ela tinha metástases pelo corpo
inteiro, e os médicos já haviam perdido as esperanças. Seu
analista a visitava duas vezes por semana no hospital e con
tinuava o tratamento. Finalmente, ela teve metástases tam
bém no cérebro e ficou inconsciente, mas o analista conti
nuou suas visitas; sentava-se simplesmente em sua cama, sem
poder falar com ela. Então, no decorrer de uma de suas vi
sitas, ela abriu os olhos e, por um instante, ficou plenamen
te consciente. Ela contou-lhe que havia tido o seguinte so
nho surpreendente: estava de pé, ao lado de sua cama hos
pitalar; o sol brilhava em seu quarto e ela se sentia bem e re
vigorada, como há anos não se sentia. O médico entrou e
disse: “Sim, senhorita X, você foi curada inesperadamente.
Pode se vestir e sair do hospital.” Então, ela voltou o olhar
para a cama e viu a si mesma, deitada, morta! Cerca de 24 ho
ras depois deste sonho, ela faleceu, sem recobrar a consciência^
Este sonho lembra as derradeiras palavras de Sócrates
quando, na prisão, conversava com os amigos ao beber do
copo com veneno. E Platão quem nos conta no Phaedon: “De
pois de ter ingerido o veneno, ele se despediu dos amigos
e, ao final, disse: ‘Criton, deves um gaio a Asclépio, não te
esqueças!’ E Criton respondeu: ‘Eu o pagarei; vê porém se
ainda queres dizer alguma coisa!’ Mas Sócrates já não res
pondia. Ficou quieto por algum tempo, contraiu-se, e mor
reu.” 37
Na antiga Grécia, o galo era um animal de Asclépio, as
sim como a cobra e o cachorro. Por isso era costume que,
se alguém fosse salvo de uma doença por Deus, deveria fazer
a oferta de um galo. As palavras de Sócrates queriam dizer
a seus amigos que, de certa forma, para ele a vida havia sido
uma doença e a morte a sua cura, pois esta o libertava de
seu longo caminho de misérias. O sonho da jovem transmi
te uma idéia parecida: agora, finalmente, ela seria saudável
e poderia viver novamente; embora, ao mesmo tempo, lhe
99
revelasse impiedosamente que nesse momento seu corpo esta
ria morto.
Moody relata várias experiências em que as pessoas es
tiveram clinicamente mortas durante um breve lapso de tem
po, sendo, contudo, trazidas novamente à vida por massa
gens no coração. Nessas narrações, as pessoas com freqüên
cia vêem o próprio corpo deitado, morto, sobre a cama, en
quanto elas pairam sobre ele ou ficam de pé a seu lado. Al
guns se preocupam pelo que ocorre com o próprio corpo,
enquanto a moça cujo sonho mencionamos o vê simplesmen
te sem quaisquer outros sentimentos. Creio que isso se deve
ao fato de que, ao contrário dos outros casos citados, ela não
parece estar destinada a regressar à vida. Por isso, seu corpo
lhe causava total indiferença.
As pessoas que não acreditam numa vida depois da mor
te fazem freqüentes comentários céticos ao ouvirem sonhos
parecidos aos que relatei aqui. Acham que esses sonhos são
meros reflexos de desejos, e que não podem realmente “com
provar” a existência de uma vida além da morte. Contudo,
justamente efcse sonfío da jovem me parece depor contra esse
argumento, pois lhe transmite de modo totalmente brutal que
ela estará morta (ela vê o seu próprio corpo inanimado) e que
sobreviverá numa forma sadia. Isso certamente depõe contra
esse ceticismo. Os outros sonhos que apresento também não
“se parecem” com desejos que se quer ver realizados!
Agora eu gostaria de me dedicar à questão da vida após
a morte. Os espíritas ridicularizarão o que tenho a dizer, pois
eles falam como se essa pergunta já tivesse sido respondida,
e podem até apresentar descrições do reino dos mortos. Com
ou sem razão, não quero abordar esse tema. Muitos espíritas
não fazem diferença entre o inconsciente e o mundo espiritual
“objetivo” — se é que existe essa diferença —, e especulam com
a ajuda da imaginação religiosa, enquanto eu quero me apoiar
somente na minha experiência pessoal. Pois, na verdade, não se
pode produzir sonhos; estes são emanações naturais puramente
espontâneas, e nos dizem apenas aquilo que precisamos saber,
sem satisfazer uma mera curiosidade intelectual.
100
Meu pai faleceu inesperadamente enquanto eu estava
ausente de casa. Naturalmente, mais tarde, questionei-me
muito sobre a hipótese de ele existir, e de que forma. Três
semanas depois de sua morte, tive o seguinte sonho: Eram
umas 10 horas da noite e estava escuro. Então ouvi a cam
painha da casa tocar, e eu “soube” que era meu pai que che
gava. Abri a porta, e lá estava ele, com uma malinha na mão.
Lembrei-me (no sonho) do que diz o Livro Tibetano dos Mor
tos, de que muitas vezes é preciso dizer aos que morreram
repentinamente que eles estão mortos. Porém, antes que eu
pudesse proferir qualquer palavra, meu pai sorriu e disse: “Cla
ro que eu sei que estou morto, mas será que não posso visi
tá-los?” E eu lhe respondi: “Naturalmente, entre.” E então
perguntei: “Como vai você? O que está fazendo? Você está con
tente?” E ele me respondeu: “Preciso refletir sobre o que vo
cês, os vivos, chamam de ‘contente’. Sim, é claro, na língua
de vocês eu estou contente. Estou em Viena (sua cidade na
tal, que ele amou durante toda a vida e da qual sempre ti
vera saudades) e estudo na Academia de Música.” Então, en
trou em casa e subiu as escadas. Quis levá-lo até o quarto de
casal, mas ele me fez um gesto negativo, dizendo: “Não, eu
sou apenas um hóspede” — e foi se dirigindo para o quarto
de hóspedes. Lá, colocou a maleta sobre a mesa, e disse: “Não
é bom nem para os mortos nem para os vivos ficar muito
tempo juntos. Vá embora. Boa noite.” Com um gesto, indi
cou-me que eu não devia abraçá-lo, e que devia ir embora.
Voltei para o meu quarto e pensei que havia esquecido de
apagar o fogão elétrico e que poderia causar um incêndio.
Nesse momento, acordei sentindo muito calor, transpiran
do. Tive este sonho quando já estava fazendo análise com
Jung, e o comentei por sentir que este havia sido um sonho
objektstufiger,* ou seja, que eu não havia visto a imagem do
meu pai, mas que sua presença havia sido real. Viena queria
101
dizer que ele havia chegado “em casa” — como dizemos dos
mortos, que eles foram chamados de volta ao lar original. Meu
pai foi um pensador e, em vida, nâo ligava para seus próprios
sentimentos: era também um talentoso violinista, e também
essa vocação havia sido desconsiderada. Com as palavras “es
tudo na Academia de Música” ele indicou que trabalhava na
quilo que havia descuidado durante toda a sua vida. O resto é
óbvio, a não ser por aquele estranho epílogo do fogão dema
siado quente e do meu estado febril e acalorado ao despertar.
Jung me disse que quando se chega perto de um morto tam
bém se é tocado pela frieza gelada da morte. O calor seria uma
violenta contra-reação física para chamar-me de volta ao cor
po e à vida. “Há experiências” — escreve Jung numa carta
dirigida a um homem que havia tido uma experiência seme
lhante38 — “indicadoras de que o morto se imiscui de certo
modo na fisiologia (no sistema nervoso simpático) dos vivos.
Daí talvez possam resultar condições que fazem com que es
sas pessoas possam ser possuídas.” Provavelmente, foi por
isso que acordei com aquela reação física. Nunca esqueci este
sonho, que continuou a ser um problema para mim.
Uma amiga teve uma experiência semelhante. Sua fale
cida mãe lhe dizia, ni*m sonho, que ela devia se esforçar para
permanecer consciente, pois nada mais pode ser modificado
no além. Isso contradiz o meu sonho, no qual meu pai con
tinuava claramente a trabalhar na sua evolução. Em suas Me
mórias, Jung também conta um sonho no qual uma mulher
morta continuava a trabalhar no livro que não havia termi
nado em vida. E, numa outra passagem de suas Memórias
(capítulo 11), ao encontrar-se no quarto de uma paciente,
Jung fala de como os mortos ficam ansiosos por saberem
notícias, como se não dispusessem de informações diretas
sobre a vida na terra. Acaso eles já não podem conseguir essas
informações por si mesmos? Isso parece ser um paradoxo.
Há ainda um outro motivo, uma alusão ao fato de que
entre o reino dos vivos e o reino dos mortos talvez haja algo
102
parecido com um grande abismo ou um alheamento. Por exem
plo, no comentário de meu pai, de que ele precisava tentar
lembrar o que os vivos entendiam por ser “feliz” ou “estar
contente” . Isso parece significar que os mortos vivem em
condições completamente diferentes, que desenvolvem con
ceitos bem diversos do que é “felicidade” ou “infelicidade” .
Durante muito tempo questionei-me como Jung poderia estar
tão seguro de que este sonho devia ser considerado objektstufig.
Uma coisa parece-me clara: se interpreto o sonho “objetiva
mente”, significa apenas que meu animus (meu lado mascu
lino e espiritual) me visitou na forma da figura paterna. Isso
redunda num resultado pobre, em comparação com a impres
são numinosa que o sonho me deixou.
Encontrei uma comprovação desse sentimento um pou
co mais tarde, quando uma analista sugeriu que eu repassasse
com ela alguns dos sonhos de uma de suas pacientes. Trata
va-se de uma moça que havia sido noiva de um piloto mor
to num acidente. Ela sonhava com ele quase todas as noites,
e nós interpretávamos a maior parte desses sonhos como ob
jektstufig, no sentido de que seu inconsciente estaria tentan
do resgatar a projeção do seu animus, de modo a afastá-la do
piloto, ou seja, buscando liberá-la. isso fazia sentido. Mas,
no decorrer de seis sonhos que foram particularmente im
pressionantes, essa explicação não nos pareceu válida. Então,
ousei sugerir que, nesses sonhos, o verdadeiro piloto, o mor
to, havia aparecido para a moça. A outra analista, muito ra
cional, ficou indignada, e pediu uma consulta com Jung. Jung
leu a série de sonhos e, sem saber da minha escolha, ressal
tou os mesmos seis sonhos, dizendo que estes deviam ser en
tendidos como objektstufig. Isso me deu uma certa compro
vação de que, de certo modo, pode-se “pressentir” se foi o
verdadeiro morto que apareceu num sonho ou se apenas a
imagem interior que dele se foijou. Mas é claro que aí se pisa
num solo muito inseguro. Parece-me que há um grande “um
bral” ou uma barreira entre o reino dos vivos e o dos mortos
e que — segundo o meu sonho — seria até perigoso para am
bos pretender atravessá-lo em busca de um contato mais ínti-
103
mo. Por que existe esse umbral ou essa fronteira? O velho medo
da humanidade diante dos espíritos deve ter alguma conexão
direta com essa limitação.
Uns cinco anos depois da morte do meu pai, sonhei mais
uma vez com ele; este sonho parece-me ter esclarecido um pou
co essa questão. Sonhei o seguinte: eu estava numa praça em
Zurique chamada Hottingerplatz com minha irmã; queríamos
tomar o bonde número 8, cujo trajeto nos levaria ao centro
da cidade. Subimos no bonde e notamos — tarde demais —
que ia na direção contrária. Então eu disse: “ Se só uma de
nós duas tivesse se enganado, seria um mero erro, mas conío
ambas nos enganamos, este equívoco deve ter algum signifi
cado. Vejamos para onde o bonde vai.” Então, veio o cobra
dor e conferiu os bilhetes. No seu boné havia a inscrição: EWZ
Elektrizitätswerk Zürich [Central Elétrica de Zurique]. Salta
mos na parada seguinte, onde um táxi veio em nossa dire
ção e dele saltou o meu pai. No sonho, eu sabia que ele era
um fantasma. Quando quis cumprimentá-lo, ele fez um sinal
para que não me aproximasse muito, e foi andando na direção
da casa onde havíamos morado durante algum tempo. Eu gri
tei para ele: “Não moramos mais aí!” Mas ele balançou a ca
beça, murmurando: “Agora isso já não importa.”
Os dados importantes do sonho são o bonde número 8,
e o estranho cobrador. No símbolo numérico, o 8 é o núme
ro da atemporalidade e da eternidade, pois, segundo Santo
Agostinho, depois dos 7 dias da criação veio o 8, “o que já
não tem mais entardecer” (Sermões IX, 6). Na alquimia, o 8
é o número da Perfeição.39 Quando se inverte o 8, temos o
°° , a marca do infinito.
Em relação ao cobrador, veio-me espontaneamente à lem
brança a palavra the control. É sabido que nas sessões espí
ritas o “ controle” é a pessoa que serve de intermediária entre
o médium e os “espíritos” com os quais este fala em transe.
Muitos médiuns são incapazes de trabalhar sem um desses
“controles” , o que seria, por assim dizer, a personificação do
39. Jung, Psychologie und Alchemie, Obras Completas, vol. 12, pp. 201-8.
104
seu animus (ou, no caso de upi médium homem, de sua ani
ma). Mas por que será que no sonho esse “controle” era um
funcionário da EWZ? Veio-me a idéia de que isso poderia ter a l-'
go a ver com a transformação da tensão ou freqüência de
uma corrente necessária para estabelecer um contato com o
mundo dos mortos. Tratar-se-ia de um enfraquecimento ou,
mais provavelmente, de uma elevação da corrente. Durante
muitos anos contentei-me em deixar esse problema de lado,
até que há alguns anos encontrei uma passagem numa das car
tas de Jung, que pareceu-me esclarecer este problema. Tra
ta-se de uma carta dirigida a um senhor Smythies, com da
ta de 1952, nove anos antes da morte de Jung. Nela, Jung
discutia em primeiro lugar a relação de tempo e espaço no
inconsciente, e então prossegue dizendo:40
“Pode ser que a psique deva ser apreendida como uma
intensidade limitada e não como um corpo que se move no
tempo. Pode-se inferir que a psique funcione gradualmente
num crescendo, desde a menor extensão até uma intensidade
ilimitada, desmaterializando41 o corpo, quando, por exem
plo, supera a velocidade da luz . . . Encarado deste ponto de
vista, o cérebro pode ser uma estação transformadora, na
qual a tensão ou a intensidade relativamente infinita da
psique como tal é transmutada em freqüências ou em ‘vi
brações’ que podem ser captadas. E, ao contrário, a ausên
cia das percepções corporais introspectivas42 é explicada por
uma ‘psiquificação’ ou intensificação gradual, às custas des
sa ‘tensão’. Psique = maior intensidade no menor espaço.”
Estes comentários muito arrebatados talvez necessitem
de mais esclarecimentos. Em texto anterior a essa passagem,
Jung interroga por que temos tão pouca informação direta
no consciente sobre os processos que acontecem no interior
do corpo. A maioria das pessoas vítimas de uma doença in-
105
terior - muitas vezes até um tumor cancerígeno extenso que
não dói - precisam de um médico que lhes diga o que está
ou não em ordem com os seus órgãos. Pois quem pode afir
mar se o seu baço, ou todas as suas glândulas, estão funcio
nando bem? E o próprio médico também tem de chegar a essa
conclusão através da observação de sintomas indiretos!
Portanto, aqui também existe uma espécie de umbral
ou barreira. Jung não responde a essa pergunta diretamente,
mas desenvolve a hipótese de que a alma pode se constituir
basicamente da mesma energia que chamamos de energia fí
sica, mas com uma intensidade e freqüência de vibração in
finitamente mais elevada. Uma intensidade que pode até su
perar a freqüência da velocidade da luz. Sabemos, porém,
que tudo o que é observável (aquilo que os físicos america
nos chamam de observables) no âmbito da matéria, está in
terligado ao fenômeno da luz. O que ocorre além da veloci
dade da luz (se é que existe algo desse tipo) para nós não é
passível de observação, nem mesmo com a ajuda de todos
os aparelhos ou truques da física. Por isso, se na sua essên
cia a psique supera a velocidade da luz, ela desmaterializa o
corpo, como afirma Jung. Por isso, só se pode observar a psi
que quando ela diminui sua velocidade, quando ela é trans
mitida por uma freqüência de nível menos elevado. Mas, se
gundo Jung, isto é justamente o que faz o cérebro: ele des-
parafusa a intensidade do elemento psíquico, diminuindo-a;
assim, ele nos faz mergulhar na vivência espaço-temporal.
A meu ver, esta é a razão pela qual Jung, ao retornar à
vida em 1944, teve a sensação, devido às suas visões, de ter
sido rebaixado para um insuportável “mundo cinzento, com
o seu sistema de células” — um mundo que era apenas “uma
parcela de existência a se desenrolar num sistema de mundo
tridimensional para o qual foi preparado” .43
Visto a partir dessa hipótese, creio que se possa dizer
que todas as aparências materiais, inclusive o corpo, encon-
tram-se sob uma determinada faixa de freqüências. Pode-se
106
deduzir dal que a psique fica em um outro nível graças à ação
do cérebro, e que uma parcela da psique está além desse um
bral. Essa parcela não se “encarnou” nem torna a se “desen
carnar” , e continua a existir após a morte.
Agora podemos voltar nosso olhar para os textos de al
quimia já citados de autoria de Simão Magno, nos quais ò
“fogo” é descrito como o grande transmutador da morte, a
fim de provocar a ressurreição. O fogo ou o calor, ao ser uti
lizado na matéria, eleva o nível de energia das partículas. Por
isso, quando os textos ou os sonhos usam o fogo como sím
bolo — quando, por exemplo, Simão afirma que a árvore da
vida é queimada, mas que seu fruto é levado até a abóbada
celeste, pode-se supor que isso é uma alusão ao processo da
desencarnação da alma na morte. Esse processo também po
de ser antecipado sob certas condições de transe, quando a
alma abandona o corpo, ou seja, quando o corpo é sentido
como algo irreal. Inúmeras experiências parapsicológicas, com
suas freqüentes experiências de relativização espaço-tempo-
ral, podem ser explicadas sob essa luz.
Nas observações do mundo espacial, a astrofísica atual
esbarrou com um outro tipo de “umbral” , ao descobrir no
espaço os chamados “buracos negros”. Se uma estrela possui
uma massa que é 4 ou 5 vezes maior do que o Sol, quando
ela se desfaz, não atinge uma condição final estável como o
faria um “anão branco” ou uma estrela de neutrônio, porém
continua a explodir até que ela mesma desapareça. Durante
o seu colapso, sua massa ingressa num certo raio de ação on
de a influência da gravitação toma-se tão grande que nada,
nem mesmo a luz, pode voltar a sair. Esse raio de ação cha-
ma-se “horizonte-do-acontecimento” ( “event-horizon”) por
que nenhum evento dentro desse âmbito pode ser comunicado
para fora. Tudo o que ocorre (ou deixa de ocorrer) dentro
deste “buraco negro” será totalmente e para sempre inobser
vável.44
44. Cf. J. G. Cailson, Black Holes [Buracos Negros], tese apresentada no Ins
tituto C. G. Jung de Zurique, 1977, p. 6 (inédito).
107
O fenômeno dos “buracos negros” mostra-nos o que ocor
re quando já não podemos mais retomar contato - nem se
quer com a ajuda da luz ou de sinais eletromagnéticos. Algo
torna-se para sempre incognoscível. Encontramo-nos total
mente diante de uma parede.
Num sonho que mencionarei a seguir, a morte foi apre
sentada de modo semelhante. Trata-se do sonho de uma de
minhas pacientes, que tratei durante um curto espaço de tem
po. Ela não conhecia Jung, porém o admirava de longe. Na
noite depois da morte de lung — da qual, porém, ela ainda
não tinha notícia — ela sonhou o seguinte: Encontrava-se nu
ma festa ao ar livre, e muitas pessoas estavam espalhadas pelo
gramado. Jung era uma delas. Ele vestia um temo estranho,
o paletó e a calça eram verde-claro na parte da frente, e preto
atrás. Em seguida, ela viu uma parede negra na qual haviam
recortado um buraco que correspondia exatamente ao con
torno de Jung. De repente, Jung entrou nesse buraco; a par
tir daí, via-se apenas uma superfície negra fechada, e mal se
notava que Jung ainda estava lá. Então a mulher que sonhava
olhou para si mesma, e percebeu que ela também usava um
vestido parecido: na frente ele era verde e atrás, preto. Ela
acordou muito surpresa, e logo ouviu pelo rádio que Jung
havia morrido.
Evidentemente, não pretendo de modo nenhum sugerir
que os mortos desaparecem nos “buracos negros” do univer
so. Só menciono essa última circunstância para mostrar que
esses “horizontes-do-acontecimento” de fato existem na na
tureza, e que talvez a morte também possa ser compreendida
como esse “horizonte-do-acontecimento”, e que esse não é
o único caso na natureza.
Este sonho parece querer afirmar que a morte é um pro
blema do umbral da apreensão entre os vivos e os mortos.
Estes últimos simplesmente se transformaram numa outra
forma de existência, de modo que já não podemos apreendê-
los, porém — como bem diz o sonho — ainda estão presentes.
Este sonho também foi importante para a moça que o teve,
pois ela tinha muitas tendências suicidas. Deste sonho, ela
108
concluiu por si mesma que não há nenhum sentido em se ma
tar se, de qualquer modo, temos de continuar existindo, com
todos os problemas que isto implica.
E com isto chego ao fim. Quando comecei a refletir so
bre o conteúdo deste ensaio, tive o seguinte sonho: Eu me
dirigia de carro para minha casa de férias no “além” . O mo
torista era alguém que na realidade já estava morto. A casa de
férias “no além” não se encontrava — como minha verdadeira
casa de campo — ao lado de um bosque, mas sobre o cume
de uma montanha. Ela estava sendo reformada. Estávamos
rodeados por nuvens brancas e paredes de neblina, que se cho
cavam continuamente entre si. De vez em quando, a parede
de neblina se rasgava, e podíamos ver a planície lá embaixo
pela abertura — montanhas e paisagens verdejantes de uma
beleza extraordinária. Mas logo a parede de neblina voltava
a se fechar, e já não se via mais nada.
Isso me parece ser então o que tentei transmitir neste en
saio: alguns breves momentos numa terra totalmente desco
nhecida, da qual quase sempre estamos separados pela nebli
na, enquanto ainda vivemos nesse corpo; contudo, de vez em
quando, vislumbramos dela paisagens surpreendentes. Creio
que esses momentos comprovam o enfoque de Jung, de que
o processo de individuação também é uma preparação para
a morte, e de que esta última não significa um fim, mas úma
singular transformação que a razão não pode compreender.
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