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* O presente artigo, revisto e ampliado, foi inicialmente 1. A maior parte das reflexões que compõem este artigo é
apresentado com o título “Patrimônio imaterial: velhos decorrente da experiência etnográfica na cidade de Goiás
objetos, novos desafios”, no Simpósio Memória, Cidades, (GO), reconhecida pela Unesco em 2001 como “patrimô-
Patrimônio, na 54 a SBPC, em Goiânia, no ano de 2002. nio mundial”. O tombamento do núcleo histórico pelo Ins-
Agradeço a Alcida Rita Ramos e Klaas Woortmann a leitura tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
atenta, os comentários e as sugestões, lembrando que o data de 1978. Antes disso, na década de 1950, algumas
argumento aqui desenvolvido é de minha exclusiva respon- edificações foram tombadas, como monumentos isolados,
sabilidade. A Letícia Vianna agradeço, além da leitura, o pelo antigo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico
estímulo para que este artigo fosse publicado. Nacional (Sphan). Os dados coletados durante o trabalho de
** Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS – campo, realizado entre 2000 e 2002, estão sendo interpre-
DAN/UnB e professora da Universidade Federal de Goiás tados na tese de doutoramento em Antropologia pela UnB,
(UFG). E-mail: itamaso@cultura.com.br em fase de finalização.
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se apega a um mundo a ponto de desaparecer”, mas décadas para cá, tais propósitos passaram
são trazidas de volta pela “economia protecio- a atrair um número muito maior de pessoas, que
nista” que, em períodos de recessão, “sempre olhando, vivendo, reconhecendo e valorizando
se renova” (Certeau, 1996, p. 190). As “ilhotas” o patrimônio “dos outros”, de outros povos,
de passado surgem em meio à cidade moder- começaram a desejar transformar suas histórias,
nista, “um espectro que agora ronda o urbanis- seus monumentos, suas manifestações culturais
mo” e multiplica os investimentos no mercado em patrimônio.
de antiguidades. Segundo Certeau, esse “fan- É importante considerar que, se o aciona-
tasma é esconjurado sob o nome de ‘patri- mento da categoria “patrimônio” trouxe inúmeros
mônio’” e “sua estranheza convertida em benefícios, trouxe também danos a alguns grupos
legitimidade” (Certeau, 1996, p. 190). As relí- sociais. O reconhecimento do valor arquitetônico
quias, bens culturais que nos remetem ao e histórico desencadeou, em muitos casos, o
passado, são então identificadas, classificadas, processo de gentrification, que se configura
restauradas, expostas, protegidas, ressigni- por empreendimentos econômicos em espaços
ficadas. O recurso ao “arquivismo” é abusiva- selecionados da cidade, transformando-os em
mente usado. As culturas são postas em “mu- setores de investimentos privados e públicos
seus”, literal ou metaforicamente, enquanto (Featherstone, 1995; Harvey, 1992; Leite, 2001).
registros de patrimônio vão sendo realizados. São tão valorizadas as construções localizadas
Essa ampliada afeição pelo patrimônio tem nesses espaços, que sofrem um aumento
inúmeras conseqüências. Patrimônio traz significativo em seu valor imobiliário. As popula-
benefícios. Dentre eles, propicia a ligação entre ções nativas desocupam suas casas, ruas e
as várias gerações (dos nossos descendentes bairros, reocupados por outras pessoas, que
aos nossos ancestrais) (Jeudy, 1990; Lowenthal, obviamente imprimem a eles outros valores
1998b); cria vínculos entre os cidadãos por fazer simbólicos e de usos.
referência aos símbolos que são representativos Para Certeau, tal processo “subtrai a usuá-
da coletividade, ou bens coletivos (Canclini, rios o que apresenta a observadores”, na medida
1994; Gonçalves, 1996; Fonseca, 1994; Rubino, em que
1991; Santos, 1992), acionando portanto o senti-
faz passar esses objetos de um sistema de
mento patriota; propicia o desenvolvimento práticas (e de uma rede de praticantes) a um
econômico ao atrair o turismo cultural (Choay, outro. Empregado para fins urbanísticos, o
2001), e aumenta a auto-estima do grupo portador aparelho continua fazendo esta substituição
e herdeiro daquele legado. O patrimônio de toda de destinatários; tira de seus usuários habituais
a espécie, ao acumular, contraria a transito- os imóveis que, por sua renovação, destina a
riedade das coisas. Salvando da erosão e do uma outra clientela e a outros usos. A questão
descarte, nós procuramos o equilíbrio entre o já não diz mais respeito aos objetos restaurados,
mas aos beneficiários da restauração. […] A
efêmero e o permanente (Jeudy, 1990). Mas a
restauração dos objetos vem acompanhada de
acumulação a que temos assistido por todo o uma desapropriação dos sujeitos. (Certeau,
mundo é algo muito recente e cabe refletir sobre 1996, p. 195-196)
o contexto no qual a retenção das coisas do
passado se torna cada vez mais possível e Os laços sociais existentes nesses lugares
desejada. tornam-se valores irrelevantes se comparados
Segundo Lowenthal, o patrimônio expande- ao poder econômico e político que entra em cena,
se especialmente porque a maioria das pessoas quando os lugares transformam-se em patrimô-
começa a ter (e ser) parte nesse patrimônio: nios. Além disso, muito embora constituam
“em tempos passados, apenas uma pequena “patrimônios” nacionais ou mundiais, e isso
minoria procurava por seus antepassados, remeta à propriedade cultural coletiva e global,
acumulava antiguidades, desfrutava dos velhos o patrimônio é quase sempre acionado pelas
mestres, ou excursionava por museus e sítios elites, que freqüentemente inclina-o para fins
históricos” (Lowenthal, 1998b, p. 10). De algu- específicos e nem sempre democráticos.
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2. Inscrito no Livro do Tombo de Belas Artes pelo Iphan 3. Conferir reportagem intitulada “Deteriorando Aleijadi-
em 1939 e reconhecido como Patrimônio Mundial pela nho”, na Folha de S. Paulo, 2 fev. 2000. Folha Ilustrada,
Unesco em 1985. (In: http://www.iphan.gov.br) p. 1.
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sociais ainda não sofreu impacto. A cultura suas pedras remete à idéia do valor atribuído à
tradicional e popular – crenças, comida, dança, coisa e não à coisa em si. A preservação, nesse
procissões, folias, expressões, música etc – caso, é mais das memórias e histórias sobre os
mantém-se com relativa autonomia, no que sítios e monumentos do que de suas estruturas
concerne à ação dos realizadores e participantes (Lowenthal, 1998b, p. 20). No Japão, segundo
locais. Ogino (1995), a arte tradicional exprime-se mais
por sua reatualização do que por conservar
Os bens de natureza imaterial fielmente o patrimônio do passado. Além disso,
a política japonesa já havia incorporado há tempo
Para atender à clientela ampliada e diver- “l’idée de trésor national vivant”, que consiste
sificada, o patrimônio, antes da elite, dos bens em conservar seus ofícios ou hábitos: os bens
materiais, de um passado remoto, dos monu- imateriais (Ogino, 1995, p. 57).
mentos e dos grandes heróis, passa agora a ser Esta era a única esfera da herança cultural
também aquele das classes populares, de um que ainda não tinha sido acionada pelo Estado
tempo mais recente, da arquitetura vernacular brasileiro, no que concerne às políticas públicas
e da cultura intangível das várias etnias (Lowen- de preservação do patrimônio cultural. Ainda
thal, 1998b). Torna-se, segundo Lowenthal, que a preservação da cultura tradicional e
“mais substancial, mais secular, e mais social” popular brasileira já fizesse parte das intenções
(1998b, p. 14). Uma observação atenta às do grupo que participou da criação do Serviço
“cartas” e “recomendações” da Unesco é sufi- de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ciente para acompanhar a transformação. (Sphan), 4 e que posteriormente tenha sido
Desde 1964, já havia sido insinuada uma avidamente retomada pelo grupo do Centro
mudança nos critérios de seleção dos sítios Nacional de Referência Cultural (CNRC) e da
históricos. A noção de monumento histórico foi Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), os
então ampliada na “Carta de Veneza” e passou institutos de proteção legal em vigor no âmbito
a compreender não apenas “as grandes criações, federal não se mostraram adequados à proteção
mas também às obras modestas, que tenham do patrimônio cultural de natureza imaterial
adquirido com o tempo uma significação cultural” (Fonseca, 1994). Contudo, os trabalhos, estudos
(1964, apud Cury, 2000, p. 92). Várias foram as e reflexões desses grupos garantiram a amplia-
cartas patrimoniais redigidas pela Unesco ou por ção do conceito de patrimônio, que já na Consti-
órgãos a ela ligados que cuidaram de aprofundar tuição Federal de 1988 foi definido como sendo
o debate e as recomendações sobre as culturas constituído pelos “bens de natureza material e
tradicionais e populares. imaterial, tomados individualmente ou em
A preocupação com a herança cultural conjunto, portadores de referência à identidade,
passou a recair sobre as idéias e imagens e não à ação, à memória dos diferentes grupos forma-
apenas sobre as coisas. Essa transformação dores da sociedade brasileira […]” (apud Iphan,
reflete, em parte, a influência das culturas que 2000, p. 33).
não compartilhavam com a mania ocidental de O documento da Unesco “Recomendação
bens materiais como patrimônio. sobre a salvaguarda da cultura tradicional e
A Polônia, por exemplo, apesar de ter popular”, de 1989, ampliou as possibilidades, ao
reconstruído suas edificações arrasadas pela 2a apontar formas jurídicas de proteção às mani-
Guerra Mundial, porque entendia que eram festações da cultura tradicional e popular. Em
importantes para a identidade nacional, atual- 1997, o Iphan realiza em Fortaleza um seminário
mente se preocupa mais com o patrimônio internacional com o propósito de refletir sobre
composto pelos pensamentos e memórias que formas de proteção ao patrimônio imaterial, do
as construções evocam, do que com as cons- qual decorre a “Carta de Fortaleza”. Em 1998,
truções em si. O patrimônio, na China, enfatiza é formada uma comissão, com a finalidade de
mais as palavras do que as coisas. A idéia
chinesa de que sítios antigos tornam-se sítios de 4. Conferir o anteprojeto de Mário de Andrade para a cria-
patrimônio pelo passado de palavras e não por ção do Sphan (Andrade, 2002).
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elaborar uma proposta de acautelamento do Então, eles sempre foram o objeto mais caro
patrimônio imaterial (Iphan, 2000, p. 12).5 dos folcloristas e dos antropólogos. Milhares de
Havia que se aguardar o momento no qual páginas já foram escritas sobre a cultura brasi-
o trabalho (de décadas) de inúmeros intelectuais, leira (imaterial/material). Entretanto, muito
artistas e cidadãos sensibilizados pela riqueza pouco se refletiu sobre o que significa inventariar
da pluralidade cultural brasileira daria finalmente um bem imaterial e, ao inseri-lo em um dos livros
origem ao Decreto n. 3551, de agosto de 2000, de registro, atribuir-lhe o estatuto de “Patrimônio
que institui o “Registro dos Bens Culturais de Cultural do Brasil”.
Natureza Imaterial”.6 Como instrumento da Uma diferença há e não é de objeto, mas
política de preservação praticada no país pelo sim epistemológica. Transforma-se o modo como
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico se “olha” para o objeto. Manifestações culturais
Nacional (Iphan), o decreto visa reconhecer os (dança, música, poesias, crenças, expressões,
valores de bens que têm “relevância nacional técnicas etc.), encaradas por folcloristas, são
para a memória, a identidade e a formação da “folclore”, “fato folclórico”, “manifestação
sociedade brasileira” (Iphan, 2000a, p. 25). folclórica”. Aos olhos dos antropólogos, são
A nova política de preservação tem pro- “cultura”. Atualmente, a tendência de ambos é
vocado interesse de inúmeros pesquisadores. Os de percebê-los como “patrimônio”; ao menos
antropólogos, sobretudo, têm olhado para o “pa- pelo fato de que, ao serem potencialmente bens
trimônio imaterial” como mais uma possibilidade patrimoniais, ampliam as possibilidades profis-
no mercado de trabalho. O que são os “patrimô- sionais de ambos.
nios imateriais”? O próprio Iphan (2000a) reco- É oportuno lembrar que os folcloristas viram
nhece que o maior problema no qualificativo desabar seus planos para a constituição de uma
“imaterial” é de que, ao enfatizar mais o conhe- disciplina autônoma, quando da constituição das
cimento, o processo de criação e o modelo, ten- ciências sociais no Brasil, como um saber
dem a desconsiderar as condições materiais de legítimo e científico, pelo não-reconhecimento
sua existência, não dando conta, portanto, de do folclore como um tema relevante (Vilhena,
toda a complexidade do objeto que pretendem 1997). Ao comparar o trabalho de identificação
definir. Sant’Anna, coordenadora do Grupo de da nação, realizado pelos folcloristas, com aquele
Trabalho do Patrimônio Imaterial (GTPI), consi- feito pelos agentes preservacionistas, Tamaso
derou a distinção operativa à medida que deli- enfatiza que, no caso dos folcloristas, a identi-
neia o conjunto dos bens culturais que não vinha ficação é produzida por intermédio da cultura
sendo oficialmente reconhecido como patrimônio popular, enquanto “no caso dos agentes preser-
nacional (Sant’Anna, 2000, p. 13). Debates vacionistas, em parte contemporâneos dos
semânticos à parte, os “patrimônios imateriais” folcloristas, tal identificação” é produzida por
são, segundo Arantes, as “referências das iden- intermédio da “idéia de memória e tradição”, no
tidades sociais”, são “as práticas e os objetos sentido da cultura erudita e dos bens monu-
por meio dos quais os grupos representam, mentais (Tamaso, 1999, p. 313). Assim, “en-
realimentam e modificam a sua identidade e quanto agentes do folclore encomendavam
localizam a sua territorialidade” (Arantes, 2001, pesquisas sobre a cultura popular, os agentes
p. 131). Os patrimônios imateriais são “sentidos preservacionistas protegiam os monumentos
atribuídos a suportes tangíveis”, às práticas e representativos das classes dominantes” (1999,
aos lugares. p. 313). Com o quê se entretinham os antropó-
logos? Não exatamente com debates em torno
5. Sobre o processo histórico da categoria patrimônio cul- da preservação dos patrimônios culturais. Ao
tural e patrimônio imaterial, conferir Gonçalves, 1996; menos, não até a década de 1980, quando alguns
Fonseca, 1994; Santos, 1992; Rubino, 1991, além do “Dossiê
final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho poucos trabalhos começaram a surgir.7
Patrimônio Imaterial” (Iphan, 2000).
6. Registro que se pode fazer em um dos seguintes livros: 7. Dentre eles e, sobretudo, as reflexões de Antonio Augusto
Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Cele- Arantes (1984) e, posteriormente, Marisa Veloso Mota
brações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro Santos (1992), Silvana Rubino (1991) e José Reginaldo San-
de Registro dos Lugares. tos Gonçalves (1996).
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culturas populares tradicionais”; (2) “as culturas intangível. Recomendou ainda a Unesco que a
camponesas e tradicionais já não representam “cultura tradicional e popular, enquanto expres-
a parte majoritária da cultura popular”; (3) “o são cultural, deveria ser salvaguardada pelo e
popular não se concentra nos objetos”; (4) “o para o grupo (familiar, profissional, nacional,
popular não é monopólio dos setores populares”; regional, étnico etc.) cuja identidade exprime”
(5) “o popular não é vivido pelos sujeitos (1989, apud Cury, 2000, p. 295). Orientou no
populares como complacência melancólica para sentido de que os Estados-membros da ONU
com as tradições”; (6) “a preservação pura das realizassem inventários, criassem sistemas de
tradições não é sempre o melhor recurso popular identificação, registro, conservação, difusão e
para se reproduzir e reelaborar sua situação” proteção das culturas tradicionais e populares.
(Canclini, 1997, p. 215-238). O que foi feito no Brasil, sob responsabilidade,
Não obstante haver concordância para com dentre outros, do antropólogo Antonio Augusto
as refutações feitas por Canclini (1997), no que Arantes.9
concerne às concepções sobre cultura popular Recomendou também que a difusão da
tradicional, não se pode deixar de considerar o cultura tradicional e popular deveria “sensibilizar
papel que desempenhará o antropólogo inven- a população para a importância da cultura tradi-
tariante ao ser parte do processo de inventário cional e popular como elemento de identidade
e registro de bens de natureza imaterial. Ou seja, cultural” e ainda que “numa difusão deste tipo,
ao passar do papel de pesquisador de políticas e contudo, deve-se evitar toda a deformação, a
recepção de práticas patrimoniais para o de fim de salvaguardar a integridade das tradições”
inventariante de patrimônios culturais. Ademais, (1989, apud Cury, 2000, p. 297-298).
há que se considerar a presença de antropólogos A difusão de um dado bem cultural está
no Conselho Consultivo do Iphan. Para estes também prevista no Decreto 3551/2000. O
caberá a tarefa, junto aos demais conselheiros registro dos bens culturais de natureza imaterial
(que não têm nenhuma obrigação para com as assegura ao bem cultural “ampla divulgação e
reflexões antropológicas), de reconhecer como promoção”,10 por parte do Ministério da Cultura.
procedente (ou não) o pedido de registro de um Quais conseqüências podem advir da “ampla
dado bem cultural. divulgação” dos bens culturais? Se os criadores,
Em 1989, a 25a Reunião da Unesco reco- participantes e responsáveis pelos bens culturais
mendou aos Estados-membros que tomassem desejam que suas práticas sejam divulgadas, por
as medidas necessárias “relativas à salvaguarda certo pleiteiam o reconhecimento do valor cultu-
da cultura tradicional e popular”. Definiu “cul- ral do grupo. Contudo, o valor simbólico atribuído
tura tradicional e popular” como àquela referência cultural, ao ser amplamente
divulgado, desencadeia ou potencializa a incor-
conjunto de criações que emanam de uma poração de valor econômico.
comunidade cultural fundadas na tradição, No sentido econômico, segundo Gorz, “o
expressas por um grupo ou por indivíduos e ‘valor’ designa sempre o valor de troca de uma
que reconhecidamente respondem às expec-
mercadoria na sua relação com outras”. Refe-
tativas da comunidade enquanto expressão de
sua identidade cultural e social; as normas e
rências culturais tradicionais não podem ser
valores [que] se transmitem oralmente, por trocadas porque, obviamente, não “têm sentido
imitação ou de outras maneiras. Suas formas no ‘valor’ econômico” (Gorz, 2005, p. 30).
compreendem, entre outras, a língua, a lite- Contudo, Gorz salienta que
ratura, a música, a dança, os jogos, a mitologia,
os rituais, os costumes, o artesanato, a arqui- se não podem ser apropriadas ou ‘valorizadas’,
tetura e outras artes. (1989, apud Cury, 2000, as riquezas naturais e os bens comuns podem
p. 294) ser confiscados pelo viés das barreiras artifi-
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ciais que reservam o usufruto delas aos que a distinção entre elas é operativa a fim de
puderem pagar um direito de acesso. A colaborar para a distinção do “valor de uso” dos
privatização das vias de acesso permite bens patrimoniais, para o “valor de troca” deles.
transformar as riquezas naturais e os bens Assim, o bem patrimonial está sujeito às conse-
comuns em quase-mercadorias que propor-
qüências das políticas de patrimônio, que “parti-
cionarão uma renda aos vendedores de direito
de acesso. (Gorz, 2005, p. 31) cipam ativamente desse complexo processo de
construção e atribuição de sentido às atividades
O controle do acesso aos bens patrimoniais, consideradas” (Arantes, 2001, p. 135).
como “uma forma privilegiada de capitalização Evidente que, se a preservação das culturas
das riquezas imateriais” (Gorz, 2005, p. 31), tem tradicionais populares e/ou intangíveis entra na
estado freqüentemente no controle das elites agenda dos órgãos nacionais e internacionais de
culturais. preservação, simultaneamente surgem as possi-
Ao refletir sobre as atribuições de valor aos bilidades de impacto sobre elas, em conse-
bens culturais, Arantes reconhece dois eixos qüência das próprias políticas públicas. Assim
sobre os quais se estruturam as “mudanças como no caso dos centros históricos, que têm
produzidas pelas políticas de patrimônio sobre sido tomados pelas políticas públicas, em geral,
as culturas locais”: um valor de uso, referente à muito mais pelo seu aspecto alegórico do que
natureza simbólica, e um valor de troca, referente por sua dimensão simbólica, os bens de natureza
à natureza alegórica (Arantes, 2001, p. 134). imaterial podem ser estimulados a práticas que
Seriam dois aspectos dos mesmos bens culturais. valorizem sobremaneira seu aspecto alegórico.
Em um aspecto, o bem patrimonial representa E aqui a pergunta feita por Arantes, ao refletir
um símbolo (unidade sensorial entre signo e sobre os centros históricos, se apresenta tão
referente) e, por isso, é constantemente trans- oportuna:
formado pelo “trabalho social de produção
simbólica”. O segundo aspecto do bem patri- e sobre as identidades sociais e pessoais, quais
monial, o valor de troca, é o modo como a as conseqüências dessa tendência que quer
tornar soft as diferenças culturais, quer tornar
“cultura participa da política de identidade e dos
fast o soul étnico, lisos os territórios existenciais
jogos de mercado” (Arantes, 2001, p. 134). e o nosso velho mundo um inócuo parque
Tal distinção feita por Arantes pode ser temático? (Arantes, 1999, p. 131)
melhor compreendida em outro artigo de sua
autoria, no qual ele faz uma distinção conceitual O texto de apresentação da metodologia
entre patrimônio-referência e patrimônio- do Inventário Nacional de Referências Culturais
recurso (Arantes, 1999). Na “economia simbó- (INRC), que consta do Manual de aplicação
lica do patrimônio”, o primeiro seria relativo ao do INRC, assinado por Arantes, revela o “desa-
bem patrimonial como símbolo – sentidos fio de natureza política” a ser enfrentado: a
enraizados na vida coletiva – e o segundo como “responsabilidade social de pesquisadores e
alegoria, no qual o signo não é intrinsicamente técnicos”, uma vez que se prevê que o INRC
associado a um referente, fazendo a ele apenas poderá produzir conseqüências na “formação e
uma alusão icônica. Nesse aspecto da signifi- reconfiguração das identidades dos grupos e
cação que Arantes (1999) denomina de alegó- categorias sociais envolvidos”. O inventário
rico, estariam contidos a preferência estética e poderá provocar, por sua reflexividade, “impac-
o prazer lúdico. Entendo que a natureza alegórica tos sobre estratégias políticas e de mercado
do bem patrimonial é também simbólica, na associadas ao patrimônio” dos grupos envolvidos
medida em que o consumo de um bem cultural (Iphan, 2000b, p. 27).
– seja estético, seja lúdico – implica usos e Em outra publicação, Arantes chamou a
processos de apropriação de signos.11 Contudo, atenção para o fato de que
11. Sobre o assunto conferir artigo de Rogério Proença
Leite, “Patrimônio e Consumo Cultural em Cidades
emanando de centros de decisão que trans-
Enobrecidas”, publica nesse mesmo volume da Revista So- cendem o plano local, as medidas de acaute-
ciedade e Cultura. lamento necessariamente repercutem (ou
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que sejam mais imediatamente reconhecíveis Cora Coralina merecem uma incursão etnográ-
pelos atores e que se proponha a registrar os fica, ainda que breve.
dados que sejam mais imediatamente apreen- A Procissão do Fogaréu raramente é citada
síveis por meio de roteiros e formulários padro- pelo vilaboense como sendo uma das manifes-
nizados”14 (Iphan, 2000b, p. 30). tações religiosas mais importantes. Ao pedir que
Lembrando que eticamente o antropólogo escolhessem uma procissão, a que eles atribuem
está compromissado com o grupo estudado,15 mais significado e que têm maior afeição,
como atender devidamente o interesse do con- raramente obtive como resposta a Procissão do
tratante, quando este for conformado por institui- Fogaréu. Outras três procissões são muito mais
ções públicas de cultura e preservação? Ainda citadas, muito mais esperadas. São aquelas com
que, em meio às instituições públicas, existam as quais o vilaboense “perde seu tempo”: a
representantes do grupo que apóiem tanto os Procissão do Encontro, a Procissão dos Passos
trabalhos do INRC quanto um doravante regis- e a Procissão da Paixão de Cristo. Qualquer
tro como reconhecimento do valor cultural do pequeno detalhe, qualquer modificação, qualquer
grupo, como equacionar os conflitos internos ao ausência (por doença ou morte) de um dos
grupo, que nem sempre chegam até as institui- integrantes são intensamente vividos pelos
ções públicas de preservação ou nem sempre moradores. Consideram que uma delas, a Pro-
são por elas considerados? Estou me referindo cissão do Encontro, por acontecer em uma
especificamente à questão da representativida- segunda-feira, é a procissão “dos vilaboenses”,
de. Um exemplo pode esclarecer a problemática. pois participam dela apenas os vilaboenses, que
O objeto do Inventário Nacional de Refe- são moradores da cidade de Goiás. Por não
rência Culturais (INRC) é descrito e exempli- atender ao mercado turístico, não recebe inter-
ficado no Manual do INRC: (1) Celebrações, ferência dos “de fora”.17 É como uma festa para
(2) Formas de Expressão, (3) Ofícios e Modos os mais íntimos. Ela é especialmente referida
de Fazer, (4) Edificações e (5) Lugares. Em dois pelos vilaboenses.
deles, há exemplos referentes à cidade de Goiás No caso da Casa de Cora Coralina, levanto
(GO).16 No item “Celebrações”, há referência também uma dúvida. Minha etnografia em Goiás
à Procissão do Fogaréu e, no item “Edificações”, revelou que a Casa de Cora, como um “lugar”
a referência é feita à Casa de Cora Coralina. (atribuído no item “Edificação”), não é nem o
Tenho dúvidas de que ambas referências feitas mais “querido”, nem o mais “lembrado”, nem o
no Manual do INRC sejam “referências cultu- mais “belo”. Há mesmo crítica veemente de
rais” no sentido apresentado no próprio manual parte dos moradores do centro histórico pela
(Iphan, 2000b) como sendo “objetos, práticas e sistemática presença da Casa de Cora, quando
lugares apropriados pela cultura na construção se fala de Goiás.18 Defendem a importância de
de sentidos de identidade” e, ainda, “o que outros “lugares” – exemplo é o Chafariz de
popularmente se chama de raiz de uma cultura” Cauda – como mais representativo de Goiás.
(Iphan, 2000b, p. 29). Não obstante serem
citadas apenas como exemplos do que poderá 17. Nem mesmo os vilaboenses ou filhos de Goiás que resi-
dem em Goiânia ou outras cidades, e que costumam freqüen-
ser inscrito nos respectivos livros de registro, tar as festas e procissões da cidade de Goiás, têm disponibi-
tanto a Procissão do Fogaréu como a Casa de lidade de participar dessa Procissão do Encontro, por ser
realizada em uma segunda-feira. Com exceção para os apo-
sentados. Filhos de Goiás é categoria nativa usada para
14. Ressalta que a adaptação da pesquisa etnográfica ao àqueles que ou nasceram na cidade de Goiás, ou são filhos de
INRC não seria uma tentativa de transformar o “inventário vilaboenses, mas que residem em outras cidades (a maioria
num sucedâneo simplificado de pesquisa etnográfica” (Iphan, em Goiânia, outros no interior do estado de Goiás ou em
2000). Brasília). Em geral, mantêm residências na cidade de Goiás
15. Conferir o Código de Ética do Antropólogo (http:// e vêm à cidade em todos os eventos religiosos, culturais ou
www.abant.org.br). Também disponível em Víctora et al. cívicos importantes.
(2004, p. 173-174). 18. Delgado (2003) analisa o discurso sobre o qual a poetisa
16. Foram realizados levantamentos pelo Departamento Cora Coralina (sua casa e museu) é tomada para auxiliar na
de Identificação e Documentação em Goiás (GO) e em construção de Goiás como cidade histórica e patrimônio
Diamantina (MG) em 1998, e em Serro (MG), em 1995 mundial. A “batalha das memórias” é ponto central do tra-
(Manual de aplicação do INRC, Iphan, 2000b). balho de Delgado.
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SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36
Assim, se referências culturais são “as fes- estéticas que são propriedade intelectual
tas e os lugares a que a memória e a vida social dessas comunidades, e principalmente (2) pelo
atribuem sentido diferenciado: são as mais belas, fato das referências serem sempre função dos
valores diferenciados que cada grupo atribui
são as mais lembradas, as mais queridas” (Iphan,
num determinado onde e quando a alguns bens
2000b, p. 29), nem a Procissão do Fogaréu (como culturais do seu repertório. (Arantes, 2001,
celebração), nem a Casa de Cora Coralina p. 135)
(como edificação) o são. Ao menos não para
os moradores do centro histórico; aqueles que Não obstante a declaração dessas reco-
mais densamente (tanto temporal quanto espa- mendações, como antropólogos, não podemos
cialmente) atribuem sentido e valores, sobretudo desconsiderar que o diferencial de atribuição de
os mais idosos. valor, e a conseqüente apropriação diferenciada
Mas se alguns defenderem a idéia de que, pelos diversos grupos, se dá em meio a conflitos
para os jovens, a Casa de Cora e a Procissão sobre a construção das identidades, dos símbolos
do Fogaréu constituem “referências culturais” e do acesso a determinados bens culturais. Não
importantes, como ficarão as políticas de podemos esquecer que a luta pelo poder de
preservação em meio às diferentes formas de nomear o patrimônio é antes de tudo uma luta
apropriação dos bens? Como compatibilizar pelo poder de pôr em destaque uma “memória”,
apropriações que tomam como “mais belas”, uma história”. Os vários grupos servem-se de
“mais lembradas” e “mais queridas” coisas não estratégias de relações de forças que suportam
apenas diferentes, como por vezes até anta- e são suportadas por tipos de saber (Foucault,
gônicas? 1995).
Não estariam sendo, tanto a Procissão do O problema apresentar-se-ia ao antro-
Fogaréu quanto a Casa de Cora, “referências pólogo não exclusivamente quando da execução
culturais” construídas pelas agências gover- do INRC em um dado sítio, mas também, após
namentais e não-governamentais preserva- esse processo, da escolha do bem a ser indicado
cionistas local, regional e nacionalmente? Ou para o registro. O bem cultural proposto para
melhor, não estariam as políticas de preservação ser registrado é o mais representativo para os
“redefinindo” ou ao menos “legitimando” alguns membros daquela comunidade? Ou é mais
bens culturais, enquanto simultaneamente representativo para alguns, que, por serem
silenciam outros, conforme já foi alertado por detentores de algum saber legitimado pela
Arantes (2001)? Quais agentes sociais da maioria – em geral o poder de falar em nome
cidade de Goiás participam ativamente dos do grupo sobre a história local (os memorialistas)
processos de seleção dos bens culturais? Como –, impõem um dado bem cultural sobre todos os
pensar na questão da representatividade quando outros? Não seria esse o caso da Procissão do
a elite cultural transita melhor e mais freqüen- Fogaréu?19 Ao escolher um bem cultural para o
temente pelos corredores do Iphan, das agências registro, qual dimensão do bem patrimonial
governamentais estaduais e federais? estará sendo valorizada pelo INRC: a simbólica
Arantes recomenda que a sociedade parti- ou a alegórica? E como equacionar o conflito
cipe da definição “das políticas e particu- interno a cada uma dessas dimensões?
larmente na seleção dos bens a serem identi- A Unesco também tratou de implantar uma
ficados e, sobretudo, registrados”. São dois os política de reconhecimento do “patrimônio
motivos que justificam a importante participação imaterial”. Em maio de 2001, realizou a primeira
da “sociedade”: Proclamação dos Obras-Primas do Patrimônio
Oral e Intangível da Humanidade. Foram
(1) o fato dessas ações modificarem os valores inscritos dezenove bens culturais dentre teatro,
construídos e atribuídos a esses bens, porque,
resultando de atividades correntes em grupos
19. Carneiro analisa as várias percepções sobre a Procissão
localizados, a sua continuidade depende do do Fogaréu e confirma a pluralidade de discursos, enfatizando
desempenho criativo dos seus executantes, que que a Procissão do Fogaréu é “vista como mero marketing
é balizado por conhecimentos e concepções da cidade, atração turística” (Carneiro, 2005, p. 111).
23
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
música, rituais etc. Tem como objetivo identificar, como sendo ou um tipo de “legitimação” de
preservar e promover as expressões culturais. identidades (Jongmyo Jerye na Coréia), ou de
Os critérios de inclusão na lista são “uma forte legitimação e resistência (Garifuna) e outros
concentração de patrimônio cultural intangível ainda, como representação mais de conservação
de excepcional valor” ou “uma expressão (Zápara e Jama’el-Fina), do que de construção
cultural tradicional e popular de excepcional valor de identidades. É importante ressaltar que a idéia
do ponto de vista histórico, artístico, etnológico, do “risco de desaparecimento” está presente nas
sociológico, antropológico, lingüístico ou lite- formulações que indicam “conservação”, “legi-
rário”.20 Outros critérios relacionados com a timação” e “resistência”.21
importância do fenômeno cultural, como afir- Nas enfatiza a importância de os antro-
mação de identidade, raízes históricas, exce- pólogos examinarem de perto o programa –
lência, podem ser considerados. Pode também considerado uma intervenção transnacional e
pesar sobre a decisão o atestado de risco de uma forma de experimento de política cultural
desaparecimento, seguido de um plano de ação do mundo moderno –, a fim de alcançarem seu
para a preservação. impacto nas comunidades envolvidas (Nas, 2002,
O antropólogo Peter J. M. Nas (2002) p. 143). Contudo, a “onda universalizante” da
levantou algumas questões concernentes à Unesco aumentou sua “cobertura” de ação.
política da Unesco para os bens intangíveis que Ampliando a Convenção do Patrimônio Material
são, em alguma medida, as reflexões que vimos de 1972, a Unesco realizou, em 2003, a Con-
fazendo no Brasil a propósitos da política para venção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural
os bens de natureza imaterial. Nas observou que Imaterial. Seguem as normas dadas por essa
o fenômeno da variedade cultural é colocado convenção alguns programas que já tinham sido
na agenda mundial em um caminho prático e criados e estavam em execução pela Unesco,
chamou a atenção do público e dos mass media. como Obras-Primas do Patrimônio Oral e
Questiona, por exemplo, por que se deveria Intangível da Humanidade, o Tesouros Humanos
preservar e revitalizar esse tipo de fenômeno Vivos, Traditional Music of the World. O
cultural. É possível preservar cultura e folclore? “Endangered Languages” foi criado simulta-
O que acontece quando eles são politizados por neamente à convenção.22 Com a ampliação da
programas de proteção governamental nacional “cobertura”, amplia-se igualmente o importante
e internacional? Nenhuma pergunta nova, se trabalho de observação antropológica junto aos
estamos atentos para os debates em nível nacio- grupos criadores e portadores desses bens.
nal. No entanto, continuam pululando em meio Arantes tem tomado alguns pontos como
às ações de inventário e registro que têm sido relevantes. Afirmou que os “impactos devem
praticadas. ser avaliados com a participação da população
Nas (2002) destaca ainda o paradoxo dado afetada e cujo monitoramento é parte importante
no programa, que enquanto se baseia no fato de da responsabilidade social das instituições envol-
que a urbanização, modernização e globalização vidas” (Arantes, 2001, p. 135). O fato de que
constituem o grande perigo para a variedade das
culturas humanas, terminam por globalizar o 21. Em Sandroni (2005), é possível acompanhar as refle-
xões sobre a candidatura do samba brasileiro como Obra-
fenômeno para reagir à mesma globalização. A Prima do Patrimônio Imaterial da Humanidade. Apresenta
globalização e a localização, por estarem criando parte do diálogo institucional entre Unesco e MinC, reve-
lando a intenção da Unesco em “apoiar” a candidatura,
uma crise de identidade, acabam por gerar novas sugerindo, porém, que “o objeto do apoio fosse trocado”,
formas de identidades. Essa luta pela identidade uma vez que o samba não estaria, segundo a Unesco, “em
é o que segundo Nas (2002) constitui o foco da risco de desaparecimento” (apud Sandroni, 2005, p. 45).
crise social contemporânea e a iniciativa da 22. O programa Traditional Music of the World teve início
em 1961. O programa Tesouros Humanos Vivos foi formu-
Unesco. Alguns casos inscritos pela Unesco lado em 1993. O OPPOIH foi criado em 1998 e teve a
como Obras Primas do Patrimônio Oral e Intan- primeira proclamação em 2001. Outras duas proclamações
já foram feitas. Na segunda foi inscrita, dentre os 28 esco-
gível da Humanidade (OPPOIH), são citados lhidos, Expressões Gráficas e Orais dos Wajapi, do Brasil. O
último programa a ser criado foi Endangered Languages,
20. Site http//:www.unesco.org.fr em 2003. Site: http//:www.unesco.org.
24
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36
25
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
Por uma “antropologia da prática”: Lembrando que o grupo pode reconhecer como
“etnólogo orgânico”, “antropólogo importante a parcial destruição (reatualização)
ativista” e antropólogo inventariante como prática de preservação de uma tradição.
Exemplo disso é o já citado caso do Japão
O antropólogo, ao realizar o trabalho de (Ogino, 1995).
campo, realiza um registro dos dados observados Canclini propõe que se observe o patrimônio
e, após um trabalho analítico, imprime-o em suas como um “espaço de disputa econômica, política
dissertações, teses, livros, artigos. Do registro e simbólica”, que contempla a ação de três
etnográfico, para o registro etnológico/antro- “tipos de agentes: o setor privado, o Estado e os
pológico. movimentos sociais”. Para Canclini, há uma
Ao efetuar o inventário e o registro de um relação imediata entre a forma de interação
“bem cultural de natureza imaterial”, seja a desses setores e as contradições nos usos do
pedido de instituições governamentais – muni- patrimônio (Canclini, 1994, p. 100).
cipais, estaduais ou federal – ou não-gover- A antropologia, como área disciplinar,
namentais, seja a pedido dos grupos criadores e cuidou de refletir sobre as contradições e os con-
portadores do bem a ser inventariado (e quiçá flitos em torno dos patrimônios, acompanhando
registrado), o antropólogo estará participando de o discurso (Gonçalves, 1996; Santos, 1992) ou
uma terceira modalidade de registro. O registro a ação (Arantes, 1984; Fonseca, 1994; Rubino,
que se fará no INRC e talvez no Livro de Regis- 1991; Garcia, 2004) de um ou mais agentes, ou
tro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial. a relação entre eles (Arantes, 1984, 1999, 2001;
Um registro não mais antropológico, agora, mais Lewgoy, 1992; Tamaso, 1998; Leite, 2001).
do que nunca, político. Alguns contra-argumen- Contudo, no caso da participação do antro-
tarão lembrando que qualquer trabalho antropo- pólogo no processo de inventário e registro de
lógico foi sempre político. Ramos, por exemplo, um bem cultural, para atender às políticas
afirmou que no “Brasil, como em outros países públicas culturais, ele não está transitando em
da América Latina, fazer antropologia é um ato meio aos três setores: setor privado, Estado e
político” (1992b, p. 155). Um ato político que, movimentos sociais. Ele entra como parte inte-
segundo Debert, termina por exigir grante de um dos setores. Ou seja, desloca-se
do papel de antropólogo que reflete sobre as
posicionamentos quanto à proibição exercida
pelo governo às entradas e pesquisas em área
políticas e práticas preservacionistas – e sobre
indígena; indicação de profissionais para a os impactos destas para os grupos portadores
emissão de laudos periciais; elaboração de de bens patrimoniais – para o papel de antro-
regulamentações; controle de questões éticas pólogo inventariante; o que não significa que
que envolvem os antropólogos, e pronuncia- a participação do antropólogo seja nesse caso
mentos nos meios de comunicação de massa. ilegítima. Deve, contudo, pautar-se pelo exer-
(Debert, 1992, p. 14) cício da reflexão sistemática sobre a prática
antropológica, no sentido metodológico e teórico,
No entanto, tais participações (registros em como garantia de participação responsável e
teses, laudos, mídia etc) visam ao conhecimento ética. Haverá que relativizar sua própria parti-
e ao reconhecimento de singularidades culturais cipação.
e de legitimação da diversidade cultural, por meio Na situação atual em que se encontram os
da divulgação científica, seja no meio acadêmico, debates sobre a relação do antropólogo com as
seja para a sociedade de maneira ampla. Assim, políticas de preservação dos patrimônios ima-
os antropólogos não apenas não processam uma teriais,24 é oportuno lembrar de uma caracte-
hierarquização de culturas, como ainda se rística da antropologia brasileira marcada pela
comprometem em colaborar para a garantia e a freqüente atuação política de antropólogos em
salvaguarda dos grupos estudados. Significa que
se comprometem responsavelmente por cola-
24. Reflexões sobre a relação entre a antropologia e o INRC
borar, caso necessário, na preservação daquilo podem ser encontradas em Simão (2003) e Fonseca et al.
que for sinalizado como importante pelo grupo. (2004).
26
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36
defesa de causas de grupos indígenas, negros, Tomarei por base especialmente antro-
quilombolas etc. Os antropólogos brasileiros têm pólogos indigenistas que vêm há algum tempo
assumido o importante papel de mediadores em problematizando a questão da ética e da
situações de conflito de interesses ou, segundo responsabilidade social do antropólogo, no que
Oliveira (2004), “no âmbito da comunicação concerne às demandas dos direitos indígenas.
interétnica” ou do “agir comunicativo”. Chamando a atenção para as situações nas
A ABA tem demonstrado especial inte- quais a pesquisa antropológica vai, como disse
resse nos debates sobre ética e responsabilidade Oliveira, “além da construção de conhecimentos
social, diante dos novos desafios: a grande e se vê enleada em demandas da ação” (2004,
diversificação da atividade profissional dos p. 22), Cardoso Oliveira cita sua própria expe-
associados da ABA (Funai, Procuradoria Geral riência etnográfica como um exemplo no qual a
da República, Fundação Palmares, ONGs, “saudável combinação de etnólogo e de indi-
instituições privadas de ensino etc); a existência genista” acabou por impor formas de ação ao
de contralaudos, que afirmam a posição dife- processo de pesquisa. O antropólogo pesquisador
renciada de antropólogos em campos políticos
se viu também na condição de “etnólogo
e econômicos em disputa; a relação entre a
orgânico”;26 ou seja, na condição de pesquisador
antropologia e outras áreas disciplinares como
umbilicalmente ligado a uma “entidade, uma
o direito e as ciências da saúde, estas últimas,
classe social, um setor de classe ou um dos
sobretudo, no que concerne às normatizações
segmentos desse setor” (2004, p. 24). Seu antigo
vinculadas ao Conselho Nacional de Saúde
(CNS), pela Comissão Nacional de Ética em vínculo como etnólogo do Serviço de Proteção
Pesquisa (Conep).25 ao Índio (SPI) teria condicionado de tal maneira
Não caberia somar a todos esses desafios seu fazer antropológico que o pesquisador em
a recente incorporação do antropólogo no campo assumia, vez por outra, a postura do
trabalho do Inventário Nacional de Referências indigenista.27
Culturais? Não deveria a inserção do antro- O etnólogo orgânico, “intermediário na
pólogo nesse novo campo ser também consi- elucidação de situações equivocadas”, cumpriria,
derada como tema para a reflexão sobre ética segundo Oliveira (2004) o papel de intérprete
e responsabilidade social? Convicta de que a “de idiomas culturais em confronto”. Assim, a
resposta é positiva problematizarei um pouco “antropologia prática” deve se pautar pelo
mais sobre esse novo papel, o do antropólogo modelo de eticidade de Groenewold – da macro,
inventariante, não a fim de imobilizar-lhe a ação, meso e microesfera28 –, considerado por Oliveira
mas a fim de ampliar-lhe os horizontes etno-
gráficos e teóricos. 26. Faz referência à expressão gramsciana.
De maneira geral, farei uma análise compa- 27. Um dos exemplos relatados por Oliveira (2004) refere-
se a uma situação de contato interétnico na cidade de
rativa das demandas de ação dadas aos antropó- Miranda. Um casal de índios terena aguardava para ser aten-
logos indigenistas, com aquelas propostas mais dido pelo proprietário de uma casa de comércio, quando o
recentemente para o antropólogo inventariante. antropólogo e outros fregueses entraram. Não obstante es-
tarem esperando há mais tempo, o proprietário do comér-
De maneira específica tratarei de criar paralelos cio foi atendendo os outros, desconsiderando o casal de
– sempre resguardando as diferenças entre a índios. O antropólogo, imbuído da postura indigenista, in-
questão indígena e a questão patrimonial – entre dagou sobre o motivo em não atender os índios que haviam
chegado antes e, ouvindo do comerciante uma resposta
o laudo pericial e o inventário, como documentos etnocêntrica – “esses bugres não ligam por esperar, eles não
produzidos sob responsabilidade de antropólogos, têm pressa, o tempo para eles não conta como para nós” –
com poder senão de transformar, pelo menos , começou a “discutir” com o comerciante; mesmo ciente
de que deveria estabelecer boas relações com as “áreas
de causar impacto em maior ou menor grau, circunvizinhas às reservas terênas”, para o bom andamento
positiva ou negativamente, sobre os grupos neles de sua pesquisa. Posteriormente, ao retomar suas anotações
de campo, leu a seguinte frase: “Será que mais do que brigar,
e por eles tratados. não deveria eu devotar-me a elucidar” (2004, p. 24-25).
28. Sendo a microesfera o espaço das particularidades, a
25. Conferir Antropologia e ética: o debate atual no Bra- macroesfera o espaço do universal e a mesoesfera o lugar
sil, livro que resultou de encontros, oficinas e simpósios dos Estados nacionais, cujo papel seria o de mediar as esfe-
organizados pela ABA. ras locais e globais (2004, p. 26).
27
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
como “útil para orientar os nossos passos no geralmente criticamos? Até onde podemos
terreno da moral” (2004, p. 28). A interme- empurrar a lança, não raro quixotesca, do rela-
diação entre as esferas, em termos de uma ética tivismo cultural e do respeito absoluto à famosa
discursiva, só se realiza quando o pesquisador alteridade? Quando nossas sugestões pisam
nos calos dos interesses desenvolvimentistas,
participa do diálogo entre as partes.
somos acusados de querer guardar os índios
Assim, Oliveira entende que, em demandas em zoológicos. Quando aceitamos dialogar com
de ação, acionadas por conflitos entre as esferas esses interesses, corremos o risco de acusações
sociais, o etnólogo orgânico não só pode como de cooptação, ou de sermos francamente
deve agir junto aos grupos estudados “sempre cooptados, o que não é inédito entre nós. Resta
sob o signo da solidariedade – sendo esta então perguntar: será possível que o ethos
solidariedade o modo pelo qual iluminamos o teor antropológico é irremediavelmente incom-
de nossa imparcialidade e, esta, sob o signo da patível com uma participação mais direta com
justiça” (Oliveira, 2004, p. 28). aqueles que traçam as diretrizes da nação? Não
será uma contradição em termos advogar a
O “agir comunicativo” de que trata Haber-
legitimidade das diferenças e engajar-se em
mas é retomado por Oliveira, uma vez que para negociações com quem sistematicamente nega
ele “sempre que estivermos voltados para a reali- essa legitimidade? […]Que Estado nacional
zação do trabalho etnográfico, também estare- seria suficientemente esclarecido para acatar a
mos abertos para as questões que a própria vocação relativizadora da antropologia? Ou,
prática indígena nos propuser” (Oliveira, 2004, inversamente, que antropologia seria suficien-
p. 21). Descartando a “antropologia aplicada”, temente despojada de relativismo para suportar
por não se orientar pelo diálogo com aqueles compromissos ‘realistas’ com o Estado?
sobre os quais age, e a “antropologia da ação”, (Ramos, 1992a, p. 156-157)
por ser demais reflexiva, Oliveira propõe uma
noção de prática “nos termos de uma tradição Seriam compromissos “realistas”, por
inerente à filosofia moral” (2004, p. 21). Retoma exemplo, o processo de hierarquização para a
o conceito de “prática” de Lévy-Bruhl (1910), seleção das manifestações culturais brasileiras?
como aquela que “designa as regras da conduta O antropólogo ativista, para Ramos, tem o papel
individual e coletiva, o sistema de direitos e de ator político do qual não pode se eximir.
deveres, em uma palavra as relações morais dos Propõe encarar essas questões sem “falsas
homens entre si” (apud Oliveira, 2004, p. 22). expectativas e sem um niilismo paralisante”
Oliveira especifica ainda que confere as “rela- (1992a, p. 157). Penso que os antropólogos
ções morais” um “sentido moderno, como o das inventariantes encontram-se no mesmo ponto:
relações dotadas de um compromisso com o nem devem se imobilizar diante das novas
direito de bem viver dos povos e com o dever demandas sociais (participação e/ou coorde-
de assegurar condições de possibilidade de nação em INRC), nem descartar a postura
estabelecimentos de acordos livremente nego- crítica, relativizadora e ética da prática antro-
ciados entre interlocutores” (2004, p. 22). pológica. Como manter o equilíbrio em meio às
Alcida R. Ramos também tem refletido há retóricas desenvolvimentistas e globalizantes dos
algumas décadas sobre responsabilidade social Estados-nações membros da ONU e co-partí-
e ética no trabalho do antropólogo (1992a; cipes das decisões das Unesco para o “patri-
1992b; 2004). Em “O antropólogo como ator mônio mundial”?
político” (1992a), a autora levanta algumas Como “ator político”, há outra analogia
questões relativas à crescente demanda de parti- possível entre o antropólogo ativista (e etnólogo
cipação dos antropólogos indigenistas que me orgânico) e o antropólogo inventariante: diz
parecem bastante oportunas para o debate atual respeito aos laudos antropológicos, ressalvadas
sobre os patrimônios imateriais: as diferenças específicas, que serão analisadas.
O laudo antropológico pericial é uma das provas
[…] o que acontece quando somos chamados solicitadas a um antropólogo por um juiz que
pelos poderes estabelecidos a pôr o conhe- esteja dirigindo um dado processo judicial.
cimento que acumulamos a serviço daquilo que Implica, portanto, a existência de conflitos de
28
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36
interesses, que devem ser resolvidos de acordo (Iphan/Minc) criou a “metodologia e a cultura
com a lei. A perícia judicial é solicitada a fim de próprias à produção” das “pesquisa/docu-
apurar um fato ou situação cuja resolução mentos”: a metodologia dada no Manual de
depende de conhecimento técnico ou científico aplicação do INRC. Sendo assim, a princípio,
(Santos, 1994). São exemplos de perícia eliminar-se-ia a necessidade de participação de
antropológica a “investigação do grau de um antropólogo conhecedor do grupo envolvido;
entendimento de um grupo indígena quanto à sobretudo se pensarmos que o INRC prevê a
eliminação da vida humana” (criminal) e a anexação de pesquisas acadêmicas antropo-
“reconstituição da memória tribal sobre posse lógicas e outras no levantamento bibliográfico a
de determinada terra” (civil) (Santos, 1994, p. ser feito sobre o sítio e os bens inventariados.
22). O laudo antropológico é o resultado de Porém, Valadão cita o fator “responsabilidade
diligências periciais, compostas por observações para com resultados dos trabalhos” e, nesse
de campo. Compõe-se, em geral, de um relatório, ponto, o problema se apresenta da mesma forma
resumo dos fundamentos, respostas aos quesitos para ambos os campos: indígena e dos grupos
e apêndice científico (Santos, 1994). portadores de bens patrimoniais a serem reco-
Ainda que o laudo antropológico não se nhecidos.
confunda com pesquisas de caráter acadêmico, Proponho também que se reflita sobre a
a qualidade das informações etnológicas, como capacidade do INRC de captar valores e signi-
aspectos da cosmologia, demografia, atividades ficados dos mais diversos grupos para além
econômicas e rituais, organização social etc., é daqueles que em geral respondem pela história
fundamental para garantir a força de argu- do grupo. O próprio Manual de aplicação do
mentação. Sendo assim, Valadão levanta uma INRC indica que os pesquisadores (inventa-
questão com relação aos laudos antropológicos riantes) procurem por aquelas “pessoas” que
que penso servir para pensar a situação atual tenham “um conhecimento aprofundado da
do antropólogo inventariante: cultura local” (Iphan, 2000, p. 35). Mesmo não
se resumindo ao conhecimento dessas “pes-
pode um antropólogo que não tenha estudos
soas”, o INRC propõe que se comece por elas
acumulados relativos ao grupo indígena
envolvido no processo responder satisfato- que, ao meu ver, podem de início direcionar o
riamente ao quesitos propostos dentro do prazo grupo inventariante para “referências culturais”
de um ou dois meses determinado pelo juiz, que não são apropriadas como valores mais
considerando-se especialmente que deverão significativos pelo grupo como um todo, mas
ser envolvidas pesquisas específicas para a antes por parte do grupo que detém o poder sobre
construção do laudo? (Valadão, 1994, p. 40) a construção da memória local. Como tratar as
contradições sociais, que freqüentemente atin-
Valadão informa que a ABA, até aquele gem os embates sobre a memória, se o que o
momento, havia indicado para perícias antropo- INRC pretende é buscar apreender os signi-
lógicas apenas “antropólogos conhecedores dos ficados e valores que os grupos sociais atribuem
grupos envolvidos nos processos”, entendendo aos seus bens culturais, para, em seguida, se
a medida como “prudente” a considerar-se “a considerar pertinente, indicar o registro de
inexistência de metodologia e culturas próprias determinado bem cultural.29 Não seria o antro-
à produção dessas pesquisas/documentos, bem pólogo especialista no grupo o mais adequado
como das responsabilidades para com os para interpretar as contradições inerentes à
resultados dos trabalhos” (1994, p. 40, grifo da prática da memória ou ao processo sobre o qual
autora). se dão as narrativas sobre o passado e o tempo?
O que chama a atenção é que as preocu- Mas o que seriam antropólogos especialistas?
pações de Valadão são em parte as que têm
inquietado os antropólogos que vêm refletindo 29. Ainda que seja uma das fases do registro, o inventário
sobre o INRC. O que há de significativa dife- não se limita a ele. O INRC tem por objetivo fazer o “le-
vantamento, atualização e organização dos dados sobre de-
rença é que, no caso do reconhecimento dos terminada realidade cultural territorialmente delimitada”
bens de natureza imaterial, o Estado-nação (Garcia, 2004, p. 78)
29
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
Ramos levanta questões importantes sobre em afirmar que não devemos nos iludir, pois “essa
o papel de “testemunhas” desempenhado pelos linguagem acadêmica, aparentemente neutra,
antropólogos que realizam laudos periciais. não é sempre inofensiva” (1992b, p. 56).
Questiona primeiramente a categoria “espe- As reflexões de Ramos objetivam lançar
cialista”: luz sobre a complexidade do trabalho antropo-
lógico que, para além dos limites acadêmicos,
Até que ponto sou especialista em Yanomami? deve manter uma “ponte constantemente esten-
[…] a pequena parte da vida indígena que dida entre o rigor profissional e o compromisso
conseguimos assimilar em nossas investi- político” (1992b, p. 59). Critica uma postura
gações será suficiente para que tenhamos
ingênua, segundo a qual os laudos periciais seriam
aquela visão, ao mesmo tempo global e
específica, que nos habilite a fazer afirmações
capazes de “salvar” os grupos humanos do
que, ao passar do domínio da lei, serão “flagelo”, afirmando que o simples fato de se
metamorfoseadas em fatos e verdades jurí- acreditar que o conhecimento antropológico deve
dicas? (Ramos, 1992b, p. 55-56) servir a alguma coisa mais do que à academia é
motivo para que enfrentemos os desafios.
Outro ponto importante tratado por Ramos, O desafio que está sendo imposto no
e que pode ser trazido para iluminar os debates momento é aquele de refletir sobre a relação
sobre a nova política de preservação dos patri- entre vários atores sociais – entre o antropólogo
mônios culturais, é que, como “autores de laudos inventariante e o grupo portador do bem cultural;
periciais, somos, ao fim, uma vicissitude conjun- entre o grupo portador do bem cultural e as
tural na trajetória interétnica dos índios”. instituições públicas de preservação; as relações
Parafraseando Ramos, a participação dos antro- internas ao próprio grupo; as relações entre o
pólogos inventariantes “é uma contingência antropólogo inventariante e as instituições
histórica e, como tal, deve ser avaliada” (Ra- preservacionistas; entre os antropólogos e os
mos, 1992b, p. 56). Tais considerações levam programas de pós-graduação em “gestão dos
Ramos a tocar na “incômoda questão do pater- bens culturais”; entre os antropólogos inventa-
nalismo” (no campo do indigenismo), da qual riantes e a academia – no que concerne às estru-
freqüentemente são acusados a Igreja e o Esta- turas hierarquizadas de saber e poder, tanto no
do, mas que, quando é o antropólogo o acusado, corpo do Estado quanto nas universidades e
sente “seus brios feridos” (Ramos, 1992b, p. 56). instituições financiadoras de pesquisa. Assim, o
Para além das limitações do “especialista” antropólogo inventariante é antes de tudo “sujeito
ou “perito”, Ramos levanta questões importantes e objeto do seu próprio trabalho” (Ramos, 1992b).
sobre o “processo pelo qual nos tornamos Deve cuidar para não ser surpreendido por
experts”, ou seja, o modo como pensamos a situações contraditórias, nas quais a ação como
antropologia. Ao irmos para o campo carre- autoridades em determinado assunto imobilize
gamos conosco tanto nossa existência anterior o trabalho como antropólogo.30
quanto posturas teóricas, métodos e ferramentas Entendo, pois, que essa nova modalidade
analíticas que moldam de tal forma os dados de atuação – registrar primeiramente no
que recolhemos, que tanto funcionam no sentido inventário, com o objetivo de registrar finalmente
de ampliar quanto de estreitar nossa percepção. no Livro de Registro – pode ser comparada com
Segundo Ramos, “domesticamos a realidade a atuação em laudos periciais antropológicos,
com categorias que nos são familiares, tanto em os quais Silva considerou como sendo locus
termos de nossa socialização cultural como de privilegiado de acúmulo dos vários papéis por
nosso treinamento profissional” (1992b, p. 56). parte dos antropólogos : (1) cientista e traba-
Nossa vivência de campo é transformada em lhador acadêmico; (2) pesquisador de campo;
uma linguagem que não pertence àquela reali-
dade e que vai sendo reproduzida em nossos 30. Exemplo disso é dado por Ramos (1992b), quando o
escritos, “que poderão incluir, entre outras trabalho em laudos periciais realizados a pedido do Poder
Judiciário desencadeia a proibição por parte do Executivo
coisas, laudos periciais, declarações oficiais ou de regressar ao campo para dar continuidade ao trabalho
públicas etc.” (1992b, p. 56). Ramos é enfática antropológico de pesquisa.
30
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 13-36
(3) militante, e (4) profissional com competência Ademais, o próprio fato que antropólogos
muito específica, mas com profissão não regu- realizem um “inventário” que, em última
lamentada (1994, p.60). Esse antropólogo instância visa, averiguar o potencial “patri-
inventariante do patrimônio, de certa forma, monial” de dado bem cultural configura-se uma
estará efetuando o que passo a chamar a partir espécie de “laudo”. Ao enviar ao Conselho
de agora de um laudo cultural: que se constitui Consultivo do Iphan uma proposta de registro, o
dos resultados das pesquisas iniciadas no INRC, relatório baseado em um dossiê deverá declarar
sendo concluído com a indicação de registro de e comprovar o “valor” inventariado. Não cons-
uma dada “referência cultural”, ou apenas titui, pois, um laudo cultural? E não seria o próprio
limitado à indicação de registro.31 O antropólogo laudo pericial, antes de tudo, um laudo cultural?
deverá estar ciente de que estará mettant en Convicta de que a resposta é positiva passo a
scène todos os papéis acima relacionados. partir de agora a me referir ao antropólogo
Alguns poderão alegar uma diferença, em inventariante como aquele que realiza um laudo
princípio, entre o laudo pericial antropológico e cultural em algum momento do processo de
o laudo cultural do qual participaria, dentre outros reconhecimento oficial de um bem cultural de
profissionais, o antropólogo. Refutando essa natureza imaterial.
possível linha argumentativa, apresento as Assim, um mesmo antropólogo poderá
características do laudo pericial para em seguida praticar uma ou mais de uma das várias formas
revelar que uma provável defesa da diferença de registros: registro no decorrer da pesquisa
entre eles seria equivocada e sem valor heu- para o INRC, no parecer de solicitação de
registro ao Conselho Consultivo do Iphan e no
rístico maior.
próprio registro, que é a inscrição em um dos
O laudo pericial antropológico é acionado
Livros de Registro. Registros que desencadea-
pela justiça e efetuado pelo antropólogo32 para
rão, conforme já previu Arantes (2001), impactos
resolver situações de conflito de interesses. O
que devem ser considerados pelo trabalho
INRC seria uma espécie de laudo cultural que,
antropológico “prático” e/ou “intelectual”, que
no entanto, não teria como objetivo a resolução
se pretenda socialmente responsável e ético.
de conflitos de interesses, no sentido judicial.
Considerando-se todas as observações
Os conflitos seriam internos ao grupo criador e
feitas até o momento, penso que os antropólogos
portador do bem cultural. Seriam resultado da que lidam com questões relativas aos patrimônios
disputa pelo “passado”, pelas “marcas identi- culturais devem balizar suas ações e reflexões
tárias”. Haveria, então, um conflito de ordem na direção de alguns pontos que considero
não-judicial, uma disputa simbólica para impor cruciais. Alguns deles já foram parcialmente
uma narrativa sobre o passado como mais tratados pelos profissionais que se debruçaram
legítima. A disputa pelos valores atribuídos aos sobre a nova política de preservação dos patri-
bens é deveras importante e pode, por vezes, mônios (Decreto 3551/2000, INRC, Programa
colocar na arena valores simbólicos em disputa Nacional de Patrimônio Imaterial).
com alegóricos. Primeiramente é importante ressaltar que
não basta estarmos de posse dos conhecimentos
31. No primeiro caso, enquadram-se os casos nos quais um
dado “sítio” foi inventariado com base na metodologia de-
de uma dada manifestação cultural. O nosso
finida pelo Manual de aplicação do Inventário Nacional olhar antropológico deve estar atento às cate-
de Referências Culturais (INRC) e de cujo inventário de- gorias que estão entrando em cena: “inventário”,
correu a indicação do registro de uma determinada “refe-
rência cultural”, por exemplo, o registro da viola-de-cocho “referência cultural”, “patrimônio imaterial”,
(MT). No segundo caso, a solicitação de registro não é “registro” e interpretar criticamente os usos aos
decorrente da aplicação da metodologia do INRC. Exemplo quais eles têm servido nos mais variados lugares,
é o registro da arte gráfica e pintura corporal dos Waiãpi,
cuja documentação que amparou a solicitação de registro é uma vez que, como enfatizou Canclini, o
de autoria da antropóloga Dominique Gallois. “problema mais desafiante, agora, são os usos
32. O antropólogo pode requerer ao juiz um auxiliar da área sociais do patrimônio” (1994, p. 102). Caso
que considerar necessária, para a realização dos trabalhos de
pesquisa visando à elaboração do laudo pericial (Santos, contrário, correremos o risco de nos depararmos
1994). com uma postura ingênua dos antropólogos
31
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
32
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cultural, fazem-na tanto do ponto de vista mate- do país, finalmente, reconheçam a importância
rial quanto do intangível. E creio ainda que os dos vários grupos étnicos formadores da cultura
futuros “patrimônios imateriais”, pela sua feição brasileira. Uma demonstração do espírito
particular, de manifestações culturais em cons- democrático. É um bom motivo. Mas quem
tante dinâmica, ficam ainda mais sujeitos aos arcará com os riscos?
impactos advindos das políticas de patrimônio. Estou certa de que, se um novo mercado
O terceiro ponto a ser considerado diz de trabalho se abre para o antropólogo, também
respeito à relação entre os antropólogos e o surgirão novos objetos de estudo, oriundos da
grupo a ser inventariado. Penso que os antro- transformação das manifestações culturais nos
pólogos que se disponham a realizar o INRC mais recentes “patrimônios culturais brasileiros”.
não devem perder de vista que o compromisso Pois se a atribuição do valor patrimonial passa
do antropólogo é para com o grupo estudado, e a ser cada vez mais desejada, se a afeição pelo
que este não deve ser suplantado para atender patrimônio se alastra pelo mundo, nós antro-
aos interesses das agências estatais, não- pólogos devemos tentar entender o contexto
governamentais ou privadas que porventura os social no qual tal aceitação se dá e quais
tenha contratado. É oportuno citar a perspectiva conseqüências podem surgir do investimento na
crítica de Carvalho ao chamar a atenção para o idéia de “patrimônio” e nas práticas de preser-
fato de que “a crise do Estado brasileiro pode vação dos patrimônios. Qual contribuição os
afetar também a perspectiva dos pesquisadores, antropólogos podem dar aos gestores das
gerando novas ambivalências de adesão e políticas e práticas de preservação dos patri-
mesmo de identidade social e política” (2004, mônios, mas, sobretudo, aos grupos que estarão
p. 11). sendo inventariados e talvez registrados?
Sendo assim, o quarto ponto a ser consi- Entendo que devemos acompanhar os
derado seria uma indicação de que os antro- processos de atribuição do valor “patrimônio”
pólogos se comprometessem a acompanhar o em casos específicos, a fim de observar proxi-
grupo inventariado após o registro, a fim de mamente os resultados da inserção dessa nova
colaborarem para impedir rupturas e desinte- categoria. Como a categoria “patrimônio” é
grações não desejadas pelo grupo, naquele apropriada pelos vários grupos sociais? A quais
sistema cultural, em conseqüência da divulgação grupos ela melhor serve ou é melhor opera-
e promoção deste. cionalizada? Quais grupos, por dificuldade de
Os projetos de desenvolvimento têm sido se apropriar dessa categoria, são excluídos do
recorrentemente debatidos e acompanhados processo? Quais expectativas são geradas pela
pelos antropólogos há algumas décadas. Os inserção da idéia de “patrimônio” e pela ascen-
antropólogos têm sido chamados por empresas são das políticas públicas a ela relacionadas?
públicas e privadas, tanto para elaborar projetos O quinto ponto a ser considerado diz
de desenvolvimento quanto para avaliar seus respeito à questão da representatividade na
efeitos (Arantes et al., 1992). A maior preo- esfera cultural. Quanto a isso, vale lembrar que
cupação é para com os vários sistemas culturais, a Unesco enfatiza a importância do papel a ser
que podem ser absolutamente transformados por desempenhado pelos grupos criadores e porta-
projetos, que têm como mote o “desen- dores dos bens culturais, que devem ser agentes
volvimento da região”. Os projetos de desen- do processo de solicitação, registro e ações
volvimento, no caso dos bens culturais intangíveis, posteriores ao reconhecimento. Também no
são projetos turísticos. Os bens culturais não são Brasil esta é uma preocupação. Arantes (2001)
obstáculo para esse tipo de desenvolvimento. recomenda que o acompanhamento dos
São antes a sua razão de ser (Lowenthal, 1998b). impactos deve ser feito com a participação da
Ao invés de desconsideradas pelo Estado- população afetada. Há, pois, que se proble-
nação, as manifestações culturais serão reco- matizar mais a questão da representatividade
nhecidas como “patrimônio cultural brasileiro” na esfera cultural de países onde a democracia
e serão divulgadas com um único interesse, não foi efetivamente instituída e a cidadania está
dentre outros, de que as políticas de preservação ainda por ser conquistada.
33
TAMASO, IZABELA. A expansão do patrimônio: novos olhares...
Vianna, esclareceu que a realização de expertises about specific groups, when they participate
inventários e registros tem por objetivo propor- to the process of inventory and/or register of intangible
reference. It is opportune to make analogies with the
cionar “ampla base de dados no sentido de practices of Indian anthropologists. In front of that new
orientar as políticas públicas de preservação challenge it is necessary to make anthropologic reflections
cultural e regulamentação de direitos para as about its concerning theory and ethic.
comunidades criadoras dos bens culturais em Key-words: cultural heritage, anthropology, public
questão” (2001, p. 97). Preocupada que estou politics, expertises, ethic.
com a questão da representatividade e da
agencialidade dos criadores e portadores dos
bens culturais, pergunto: como (e quem vai) Referências
garantir que os próprios criadores e agentes
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para a criação
locais do bem cultural serão também “agentes”
do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. In:
no processo de seleção de políticas e regula- Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
mentação de seus direitos? Como podemos nós nal. Brasília: Iphan, n. 30, p. 270-287, 2002.
antropólogos contribuir para que a cidadania seja ARANTES, Antonio Augusto; GUILHERMO, Raul
efetivamente alcançada no processo de patri- Ruben; DEBERT, Guita G. Desenvolvimento e
monialização dos bens culturais? direitos humanos: a responsabilidade do antro-
O sexto ponto seria que a Associação pólogo. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
Brasileira de Antropologia (ABA), preocupada ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura
que está como ética e responsabilidade social popular. São Paulo: Brasiliense, 1998. [Coleção
dos antropólogos, incluísse em sua pauta de Primeiros Passos, 36]
debates a questão dos patrimônios culturais e _____. Repensando os aspectos sociais da susten-
dos antropólogos inventariantes. Não seria tabilidade: a conservação integrada do patrimônio
oportuna uma participação mais efetiva da ABA ambiental urbano. In: Projeto História, 18. São Paulo:
no caso do patrimônio, assim como ocorre no Educ/Fapesp, 1999. p. 121-134.
caso do indigenismo? _____. Patrimônio imaterial e referências culturais.
Se, por um lado, estamos assistindo à Revista Tempo Brasileiro. n. 147. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2001.
ampliação de novas oportunidades de inserção
_____. Produzindo o passado: estratégias de cons-
no mercado de trabalho por meio dos INRC e
trução do patrimônio cultural. São Paulo: Editora
dos Registros dos Bens Culturais de Natureza Brasiliense/Condephaat, 1984.
Imaterial, simultaneamente estamos presen-
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São
ciando a constituição de novos objetos de estudo, Paulo: Brasiliense, 2000. [Coleção Primeios Passos,
uma vez que a ampliação dos patrimônios tende n. 60]
a aumentar as tensões constitutivas, dada a luta CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a
empreendida pelos vários grupos sobre quem construção imaginária no nacional. In: HOLANDA,
deve possuir e interpretar o patrimônio. Heloísa Buarque (Org.). Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan, n.
23, p. 94-115, 1994.
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