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A arte (en)cena: humanização & loucura


The art (en)cena: humanization & madness
El arte (en)cena: la humanización y desmadre

César Gustavo Moraes Ramos


Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas, TO, Brasil
Irenides Teixeira
Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas, TO, Brasil
Jonatha Rospide Nunes
Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas, TO, Brasil
Mardônio Parente de Menezes
Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas, TO, Brasil
Victor Meneses de Melo
Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas, TO, Brasil
Resumo
O portal “(En)Cena: a saúde mental em movimento”, lançado em 18/05/2011, é
idealizado pelos cursos de Psicologia, Comunicação Social e Sistemas de Informação
do CEULP/ULBRA, tem por objetivo intervir na cultura e divulgar material referente ao
campo da saúde, em especial, o da Saúde Mental. Apesar de um tema específico, o
portal abarca uma ampla gama de assuntos e experiências, visto que dessa temática
subentende-se um conhecimento transdisciplinar que extrapola as disciplinas mais
comumente a ela ligadas, abrindo espaço para além do campo da saúde. O (En)Cena
possui nove seções que estimulam produções que ultrapassem a ordem técnico-
acadêmica, incluindo, portanto, manifestações artístico-culturais originadas nos e
relacionadas aos serviços de saúde. O portal (http://www.ulbra-to.br/encena) promove
discussões de relevância social, fruto das práticas nas quais os colaboradores estão
inseridos. O resultado se traduz em novos olhares e novas formas de pensar, de
pesquisar, de ensinar e de atuar no campo da Saúde Mental que fomentam a
transversalidade, o protagonismo e a tríplice inclusão; princípios esses estruturantes da
Política Nacional de Humanização.
Palavras-chave: Arte, Cultura, Internet, Saúde Mental, Política Nacional de
Humanização.

Abstract
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The website “(En)Cena: a saúde mental em movimento”, inaugurated on May 18, 2011,
conceived by professors of Psychology, Social Communication and Information Systems of
Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA), aims to act in culture and
disclose material related to the field of Health, in particular to Mental Health field.
Although it is devoted to a specific theme, the website covers a wide range of issues and
experiences, since this theme requires a transdisciplinary knowledge, opening up a space
beyond the boundaries of disciplines commonly related the field of health. The (En)Cena
website consists of nine sections that stimulate productions that go beyond the academic
matter and include cultural expressions that come from mental health services. The website
(http://www.ulbra-to.br/encena) promotes socially relevant discussions, which are the result
of practices in which collaborators are involved. The results are new perspectives and new
ways of thinking, researching, teaching and acting in the field of Mental Health that
promote mainstreaming, involvement and triple inclusion, principles that build the Política
Nacional de Humanização.
Keywords: Art, Culture, Internet, Mental Health, Política Nacional de Humanização.

Resumen
El sitio web "(En) Cena: a saúde mental em movimento", concebido por profesores de
Psicología, Comunicación Social y Sistemas de Información del Centro Universitario
Luterano de Palmas (CEULP / ULBRA), inaugurado el 18 de mayo de 2011, tiene como
objetivo actuar en la cultura y divulgar material relacionado con el campo de la salud, en
particular com el campo de la Salud Mental. Aunque este espacio está dedicado a uno solo
asunto, él cubre una amplia gama de temas y experiencias, ya que este tema requiere un
conocimiento transdisciplinario, que abre un espacio más allá de los límites de las
disciplinas comúnmente relacionadas con el campo de la salud. El sitio web (En)Cena
consta de nueve secciones que estimulan producciones que van más allá de la cuestión
académica e incluyen expresiones culturales procedentes de los servicios de salud mental.
El sitio web (http://www.ulbra-to.br/encena) promueve discusiones de relevancia social,
que son el resultado de prácticas en que sus colaboradores están insertados. Los resultados
son nuevas perspectivas y nuevas formas de pensar, investigar, enseñar y actuar en el
campo de la Salud Mental que promueven la integración, la participación y la inclusión
triple, principios que conforman la Política Nacional de Humanização.
Palabras clave: arte, cultura, Internet, Salud Mental, Política Nacional de
Humanização.
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Introdução Idealizado por professores e


acadêmicos dos cursos de Psicologia,
O “(En)Cena: a saúde mental em Comunicação Social e Sistemas de
movimento” é, em sua primeira definição Informação do Centro Universitário
e de forma bastante geral, um espaço na Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA), o
web para o qual convergem produções (En)Cena conta com 13 acadêmicos
artísticas que se traduzem em textos, voluntários e 10 docentes dos três cursos
imagens e áudios referentes ao tema da supracitados e já publicou mais de
loucura. Contudo, além de ser um banco trezentos trabalhos de maio de 2011 a
dessas produções o portal visa também setembro de 2012 em suas nove seções:
estimulá-las, em especial no âmbito dos Cenas (seção com publicação de trabalhos
serviços de saúde, já que sua proposta imagéticos produzidos por acadêmicos,
partiu do pressuposto de que há muitas artistas e profissionais e usuários dos
experiências vividas nesses serviços que serviços de saúde, podendo ou não tais
condizem com a proposta da Reforma produções serem produtos de oficinas
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, terapêuticas), Desterritorialize-se (seção
mas que não são publicizadas. Tal destinada a textos de pessoas convidadas a
pressuposto, baseado na experiência em produzir trabalhos sobre temas variados,
serviços por parte dos idealizadores do não ligados a seus campos de
portal, traduz uma deficiência do processo conhecimento e que tragam a saúde mental
da Reforma Psiquiátrica, a saber: a como eixo transversal.), Em Cartaz
dificuldade de modificar, no nível cultural, (espaço destinado a resenhas, críticas e
os preconceitos, os estigmas, as relações reflexões a respeito de obras – tais como:
verticais presentes no modelo asilar de livros, filmes, exposições etc. – e eventos
cuidado em saúde mental (Costa-Rosa, atuais que sejam relevantes para o tema da
2000). Dizendo de maneira mais direta, as saúde mental), Entrevistas (seção
experiências gestadas em serviços, na rede destinada à divulgação de entrevistas feitas
de atendimento em saúde, compõem um com pesquisadores, autores, gestores e
instrumento necessário para a mudança do especialistas em saúde, assim como as
modelo de atenção à saúde e, se não se realizadas com usuários, familiares de
transformam em cultura e conhecimento, usuários e profissionais de serviços de
perdem parte do potencial que possuem em saúde mental, e que digam respeito ao
produzir novas práticas. tema de interesse do portal), Escritos
(espaço que visa à publicação de narrativas
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que se deixam moldar em poesias, contos, campo das relações que as pessoas fazem
crônicas, romances e narrativas), Insight com aquilo que, ainda sem maiores
(local reservado para textos teóricos, definições, chamamos aqui de loucura.
reflexões, críticas e comentários, de autoria Desse modo, mais especificamente, o
da equipe do portal ou não, sobre temas (En)Cena visa estimular os atores (pessoas
contemporâneos que tragam a saúde que usam os serviços, profissionais e
mental como eixo transversal), gestores) diretamente presentes nos
Personagens (ambiente destinado a serviços públicos de saúde, em especial os
histórias de personagens, reais ou fictícios, de saúde mental, a transformarem suas
pessoas ou instituições, que têm suas vidas vivências nos já referidos produtos.
e trajetórias relacionadas de alguma forma
à saúde mental ou à loucura), Roteiros Produto e Loucura como categorias
(seção onde se pode divulgar relatos de
experiências ocorridas em serviços de É pertinente, a esta altura, deixar
saúde que, embora fujam do formato claro a que exatamente nos referimos
acadêmico tradicional, impõem-se por sua quando usamos dois termos específicos:
necessidade e por sua importância na “produto” (escrito, imagético e sonoro) e
produção do conhecimento relacionado à “loucura”. Quanto ao primeiro termo, cabe
área), Trilhas (uma espécie de sarau dizer que, de forma geral, o mundo é
musical sobre o passado, o presente e o constituído por produtos escritos,
“proto-futuro” da produção discursiva em imagéticos e sonoros que carregam
Saúde Mental e onde se publicam consigo discursos. Dito de outra forma,
fragmentos de sonoplastia textual datados, tais produtos não se resumem apenas ao
mas com reverberação atemporal, e que representam, mas também pressupõem
interpretados-dublados sob a estética da uma história de formação e, nas
peça radiofônica). entrelinhas, uma comunicação de valores.
O (En)Cena, além de objetivar criar Ademais, tais produtos, que dão
um espaço para ser ocupado por essas continuidade a essa comunicação, quando
produções, objetiva também estimular as presentes nas relações, produzem formas
pessoas a transformar suas próprias de as pessoas se relacionarem entre si e
vivências com a loucura em produtos com o mundo. Dessa forma, entendemos
(escritos, imagéticos e sonoros) que que esta concepção parte do pressuposto de
produzam movimento reflexivo, tanto no que este produto não necessariamente
campo das idéias, dos conceitos, quanto no possui um fim em si mesmo, mas se
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desdobra em múltiplas possibilidades de do que o pesquisador vai encontrando pelo


conexão com o mundo. caminho; as formalizações da ciência do
A música é um produto, o livro e o Estado são, a priori, definidas antes do
artigo científico também, bem como o encontro do pesquisador com o campo de
filme o é. Ao pensarmos sobre o cotidiano pesquisa, ou seja, as regras são
dos serviços de saúde, ainda bastante estabelecidas antes do processo de
influenciados pelo modelo biomédico- produção.
asilar, chegamos à conclusão de que os
produtos que medeiam as relações que É que as duas ciências diferem pelo modo
de formalização, e a ciência de Estado não
ocorrem nesses serviços são, em sua maior
para de impor sua forma de soberania às
parte, técnicos e burocráticos (Costa-Rosa,
invenções da ciência nômade; só retém da
2000). Podemos citar como exemplo disso ciência nômade aquilo que pode apropriar-
os prontuários (quando usados como a se, e do resto faz um conjunto de receitas
principal fonte de comunicação), as fichas estritamente limitadas, sem estatuto
verdadeiramente científico, ou
de atendimento, as práticas de cuidado
simplesmente o reprime e o proíbe.
verticais (que também carregam consigo
(Deleuze & Guattari, 1997, vol.5)
uma história de formação bem como uma
ideologia fortemente impregnada e
Assim sendo, o produto final
impregnante) e o uso cada vez mais
carrega as marcas do processo pelo qual
frequente de práticas (tanto
ele foi produzido, pelo qual uma
farmacológicas, quanto sociais e
multiplicidade de elementos heterogêneos
psicoterapêuticas), que – quando usadas
se atravessam. Cada um desses elementos
isoladamente como tratamento para a
que aqui se chama de produto tem, pois,
loucura – visam o mero tamponamento de
sua história pregressa e em criação, o que
sintomas. O próprio artigo pode ser
nos leva a uma importante categoria para
considerado como um produto rígido,
as ciências sociais e para o paradigma que
quando preza pelas regras e normatizações
emergentemente vem questionando a
da Ciência que o elevam ao estatuto de
produção atual do conhecimento: a
“Artigo científico”. Deleuze e Guattari
categoria “processo”.
(1997, vol. 5) destacam dois tipos de
Os processos se constituem como
ciência: nômade e do Estado. Os autores
ações que resultam em produtos, que são
enfatizam a diferença de formalização
modificados ao longo de um tempo e que
entre elas, enquanto a formalização
se usam deles para reproduzir ou produzir
nômade é a posteriori, constituída a partir
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práticas. Trata-se das ideias sendo Outro pressuposto do qual parte a


operacionalizadas socialmente, trata-se de presente escrita é, portanto, o de que
profusões sociais de ideias, trata-se – quando se fala em loucura se está falando
portanto – de redes de relações nas quais em processos e não de um resultado. Trata-
necessariamente elementos afetivos, se, contudo, de um processo indefinido,
sociais, econômicos, simbólicos e de poder que tentamos tornar racional, mas que em
se evidenciam. Os processos aqui todas as definições, seu caráter de
considerados não são estruturas escondidas indefinição aparece como fundamento. No
a serem descobertas, mas, antes, a serem demonismo, a fonte das manifestações,
criadas, tendo em vista uma ética que mesmo que nomeada como “demônio”,
tautologicamente (por que não assim o tem como indefinida a forma de sua
dizer – o conhecimento é tautológico) atuação; na Nau dos Loucos também, nos
precisa dos próprios processos para se leprosos romanos, no inconsciente
formar. De qualquer maneira, tais psicanalítico e no próprio conceito de
processos podem somente ser escritos (no doença fala-se de uma dimensão do
sentido literal do termo) e inscritos (no homem para a qual não chegam as
sentido de tomarem existência corpórea) se palavras: uma dimensão indefinida,
deles forem cartografadas as linhas das portanto. David Cooper nos traz uma bela
relações entre as pessoas, alicerces da visão a respeito do discurso louco quando
micropolítica de qualquer instituição. afirma que “A linguagem da loucura é o
Podemos usar, nesse momento, outra perpetuo deslizar das palavras para actos
categoria denominada processos de até se chegar o momento em que a palavra
subjetivação para falar de tais relações. É é puro acto” (1978, p.19).
por tal categoria que nos lançamos a falar Dizendo de outra maneira, a
sobre a loucura. Guattari (2009) afirma que loucura é um dispositivo e o dispositivo
o que chamamos de “eu”, identidade, para Deleuze é:
sujeito, é constituído a partir do
cruzamento de uma multiplicidade de É antes de mais uma meada, um conjunto
multilinear, composto por linhas de
elementos heterogêneos e autônomos.
natureza diferente. E, no dispositivo, as
Desta forma, fica em evidência a
linhas não delimitam ou envolvem
importância da diferença na produção sistemas homogêneos por sua própria
subjetiva - pois é a partir da diferença que conta, como o objecto, o sujeito, a

nos tornamos outros -, e da “loucura” linguagem, etc., mas seguem direções,


traçam processos que estão sempre em
como expressão radical desta diferença.
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desequilíbrio, e que ora se aproximam ora As oficinas terapêuticas são um


se afastam uma das outras. Qualquer linha
exemplo disso: por elas, aposta-se numa
pode ser quebrada – está sujeita a
vivência ético-estética e política diferente
variações de direcção – e pode ser
bifurcada, em forma de forquilha – está
da vivência vertical entre são-louco, por
submetida a derivações. (Deleuze, 1997, meio da expressão artística, partindo da
p.1) idéia de que a arte e a loucura conseguem
se comunicar mais abertamente do que as
Não se pode negar que a definição técnicas profissionais o fazem em relação à
acima de dispositivo pode muito bem ser doença. As oficinas terapêuticas, a
usada para definir a psicose; pode também depender logicamente dos seus processos,
definir a produção artística ou a produção permitem ressaltar a diferença entre as
filosófica do livre pensar, da expressão pessoas, entre suas diversas formas de
aberta de opiniões dissonantes que nos expressão e comunicação, ao mesmo
permite convergir, divergir, misturar, nos tempo em que permite também construir
aproximar e nos afastar. Esses processos: a formas de se relacionar diferentes das
psicose, a prisão, a arte, a filosofia e a formas homogêneas da dita “normalidade”
liberdade de expressão foram e de tamponamento, de coerção, de
historicamente ligados à loucura, todos infantilização e vitimização, comuns às
eles tratados como tal, seja loucura ainda práticas profissionais em saúde. Permite,
como manifestação transcendente, seja pois, tratar da loucura como uma vivência
como manifestação de doenças. que, apesar de considerada estranha a
O conceito de dispositivo apresenta costumes e expectativas ideológicas, é
também outros desdobramentos. Foucault comum aos homens e às culturas, fonte de
(2006) utiliza-o para visualizar o vida e criação (Lima & Pelbart, 2007).
conjunto/rede de processos heterogêneos Podemos perceber essa potência também
de governabilidade proliferados em tempos nas sessões do Portal onde entramos em
de urgência, com função estratégica imersa contato com produtos a respeito de
em relações de forças que “condicionam “Loucos” trabalhando, trabalhadores se
certos tipos de saber e por eles são permitindo um momento de loucura, a
condicionados”. Para Agambem (2009, p. produção artística e artesanal como
48) “aqueles que têm discursos similares, terapêuticas e como possibilidade de
são de resto, o resultado do dispositivo sustentabilidade econômica, o trabalho
midiático no qual estão capturados”. formal com produtor de sofrimento, a
família como lócus de produção de tristeza
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e alegria, a arte como produção inerente à constituem por imperativos, por


vida e a vida como produção artística. Sem prescrições, como as definições de doença
dúvida, estes elementos podem funcionar mental; constituem-se apenas a partir de
como analisadores1 que decompõe o sua dimensão material, como produtos
discurso dominante disseminado pelo finalizados e não por processos;
aparelho midiático. constituem-se por produtos que não
A Reforma Psiquiátrica busca disparam processos, mas, antes,
desmistificar e ampliar o debate sobre a (re)produzem relações alienadas e
relação que estabelecemos com a loucura. alienantes. A respeito disto, Deleuze e
Para tanto, para se falar da loucura deve-se Guattari (1995) se referem a dois tipos de
com ela conviver, relacionar-se. O resto espaço (liso e estriado), a partir dos quais a
que falamos sobre ela, quando com ela não realidade social é produzida.
se convive, é apenas repetição de palavras
com ordem fraseológica, “...transmissão de O espaço liso e o espaço estriado, – o
espaço nômade e o espaço sedentário, - o
palavra funcionando como palavra de
espaço onde se desenvolve a máquina de
ordem...”, como diriam Deleuze e Guattari
guerra e o espaço instituído pelo aparelho
(1995, p.14). Portanto, para produzirmos do estado, - não são da mesma natureza.
novos discursos, nesse dispositivo (Deleuze & Guattari, 1997, p. 179)
chamado loucura, precisamos nos deixar
viver com ela, seja lá como a definirmos; A vida do cidadão é aprisionada no
não basta apenas com ela conviver, mas fluxo de relações criado pelo Estado. Esse
também temos que criar múltiplas não é o único fluxo, mas é o que mais
linguagens para falar do que é produzido captura-regula nossos comportamentos,
em nós quando com ela nos encontramos. compondo assim o que se define por
Os produtos, engendrados nos biopoder (Passos & Benevides, 2001). A
encontros com a loucura, são meios de loucura possui um trânsito caótico demais
definição e as definições não são dadas para as expectativas de “ordem e
apenas por conceitos duros; os diálogos progresso” que ainda espera o biopoder.
também definem a loucura, os acordos, as Entendemos que a loucura tem sua gênese
práticas sociais, as festas, o uso de drogas, a partir de espaços lisos e que o Estado –
os esportes, a educação, a arte e o trabalho. enquanto expressão máxima do espaço
Há definições duras e definições fluidas; as estriado – busca estratificar, classificar,
definições fluidas se constituem na normatizar a loucura. Por outro lado, a
vivência do afeto; as definições duras se loucura enquanto processo não para de
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desestratificar, desconstruir, decompor o 1) A loucura, enquanto


Estado. Dois movimentos importantes: um dispositivo, produz múltiplas linguagens,
que vai do espaço liso dos fluxos afetivos ricas em sua diversidade. Assim sendo,
que são capturados, tornados fixos, trabalhamos com a publicização de
materializados; e outro que vai do espaço linguagens diversificadas (escrita, sonora e
estriado das formas fixas que são imagética)
dissolvidas, decompostas. 2) Os produtos escritos, sonoros e
A loucura virou hoje uma imagéticos são meios pelos quais as
instituição: institucionalizaram-na, ela pessoas podem se relacionar com a loucura
institucionalizou-se. Toda instituição para além do discurso hegemônico,
precisa de suas organizações para se possibilitando uma diversidade de
materializar; as instituições são lógicas, as produções subjetivas;
organizações, concretude; os equipamentos 3) O (En)Cena, além de banco de
são tentáculos que buscam água; são raízes dados, é também um dispositivo de
(Baremblit, 1998). Mas, nesses tentáculos, intervenção na cultura.
nesses equipamentos, há células que As duas primeiras teses não
mudam ou tentam mudar a própria função apresentam novidade. A Reforma
da raiz em que se encontra. A Ética discute Psiquiátrica e as clínicas do sujeito (as
que raízes podem ou não se modificar diversas abordagens psi), de maneira geral,
funcionalmente e que funções adquirirão têm enfatizado que a expressão, seja pela
as que podem mudar, que valores mais se fala, pela arte, pelo corpo, é um meio
podem ou se devem produzir. Portanto, a terapêutico essencial para lidar com o
Ética é o lócus para o qual se direcionam sofrimento ligado à loucura. Contudo, o
os aspectos instituintes das instituições. fato de publicizar, tornar público, reforça o
Por isso se diz de um paradigma ético caráter de atividade da expressão, pois ela
emergente (Santos, 2006), pois questionar passa a ser comentada, o que lhe permite
o biopoder é um exercício ético. protagonizar uma maior expressão política,
que pode se tornar pública; todas elas, as
As três apostas expressões, miradas à existência, própria e
coletiva. Todos nós nos relacionamos com
Para concluir e tentar arrematar a polis, mesmo em silêncio.
esse tanto de ideias concatenadas, O (En)Cena visa possibilitar
seguiremos o texto na defesa de três teses, relações e dar visibilidade a linguagens
abaixo escritas: outras, em especial àquelas que surgem na
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construção do vínculo entre pessoas que tanto de coisas, ainda não faladas, ainda
atuam nos serviços (seja lá de qual não vistas, que são atravessadas ao mesmo
categoria faça parte), ou seja, àquelas em tempo em que constroem uma ética, afetos,
cujo seio está a convivência com a economias e sociabilidades. Entendemos
experiência da loucura. O (En)Cena quer que o (En)Cena pode operar na dissolução
modificar a luz que toca as cenas de das concepções de loucura, normalidade,
cuidado em saúde mental, não por ser doença mental, tratamento, etc; dentre
considerado, por seus idealizadores, um outras concepções que permeiam a
projeto iluminado. A luz de que aqui se sociedade e as políticas públicas na saúde,
fala não é a luz do Iluminismo, mas sim a em especial na saúde mental,
luz que pretende clarear e tornar algo possibilitando uma nova estratificação, ou
visível. Não é tudo que aparece quando seja, criando pontes através das quais o
uma luz é projetada e o visualizável é intituinte se torne instituído.
desvelado. Somente pelas sombras se vê o
que reflete a luz. A medicina e a psicologia Considerações finais
tradicionais têm se posto a ver, na loucura,
sintomas. Pela força e status que possuem Tendo em vista a discussão até aqui
essas duas disciplinas, ao passo que vêem elaborada, chegamos a outro pressuposto
sintomas na loucura, os fazem ser vistos fundante do (En)Cena que é o de que
por demais disciplinas e pessoas. Criam existe, nos serviços de saúde mental, uma
uma forma de ver e, portanto, de lidar com gama de relações e experiências que fogem
a loucura (Rocha & Deusdará, 2005) e da instituição da loucura como doença e
reproduzem tal forma pelo aparato que que não são vistas e nem delas se fala. O
possuem como os cursos de formação, os discurso, dentro dos próprios Centros de
serviços de saúde e as propagandas. Atenção Psicossocial (os CAPS – um dos
A Reforma Psiquiátrica tem se dispositivos nos quais aposta a Reforma
preocupado em criar novas formas de lidar Psiquiátrica) ainda se mantém
com a loucura. Nesse sentido, tem hegemonicamente no formato “queixa”,
apostado na modificação daquilo que se tanto no que o profissional escuta do
vê; o que se vê, ao olhar-se para o usuário quanto no que o profissional diz
sofrimento mental, não é um conjunto de sobre seu processo de trabalho. A queixa e
sintomas, mas, antes, um processo de vida. os sintomas andam de mãos dadas; de um
Encarar a loucura como processo de vida é ao outro, a distância é apenas um tropeço.
pressupor que, em tal vivência, há um Assim, justifica-se o objetivo do (En)Cena,
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o que nos permite, agora, debruçarmo-nos da saúde mental (interpelando, dessa


sobre a terceira tese, a de que o (En)Cena é forma, também a Psicologia). Contudo, a
um dispositivo de intervenção na cultura, dimensão epistemológica não se esgota no
que promove estranhamentos, mero encontro dessas três disciplinas, já
aproximações, alteridade e por conseguinte que outras vieram se juntar ao debate ao
humanização. longo da existência do portal. Dessa forma,
Visto como um dispositivo, pela contribuições de pessoas ligadas à
própria ideia que o originou, o (En)Cena Economia, Música, Psiquiatria,
tem provocado movimentos instituintes de Administração, Artes, Matemática etc.,
caráter interdisciplinar. Tais movimentos todas discutindo saúde mental a partir de
têm provocado mudanças tanto no plano uma perspectiva integradora, têm sido cada
das relações daqueles que se propõem a vez mais comuns. Além disso, poder-se-ia
colaborar com o portal quanto em um incluir ainda na dimensão epistemológica,
plano de ordem mais acadêmica e teórica. o próprio fato de o (En)Cena abordar a
É por tal motivo que se pode afirmar que o saúde mental a partir de uma lógica que
(En)Cena é transversalizado pela visa questionar o próprio conceito de
interdisciplinaridade em pelo menos duas loucura e os discursos que sobre ela
dimensões: em uma dimensão produzimos, incluindo discursos que – de
propriamente epistemológica e em uma outra forma – são delegados ao
outra dimensão que se diria de ordem esquecimento da ciência tradicional.
vivencial e prática. Assim, pode-se dizer que o portal é uma
Como exemplo do primeiro caso, estratégia importante para se questionar o
poderíamos citar a própria ideia de discurso sectário, separatista e
constituição do portal que, desde seu monodisciplinar que a ciência hegemônica
início, congregou – como antes tem a respeito da loucura e que leva a uma
mencionado – os cursos de Psicologia, de visão estreita e míope da vivência de quem
Comunicação Social e o curso de Sistemas sofre psiquicamente.
de Informação. Tal composição do projeto No que toca a questão vivencial e
aqui apresentado pode ser entendida a prática, dimensão fundamental da
partir de sua característica básica: um interdisciplinaridade, o (En)Cena tem se
espaço de comunicação virtual constituído como campo de estágio e
(demandando, assim, tanto a contribuição pesquisa para estudantes dos três cursos
da Comunicação Social quanto da envolvidos. Ademais, o portal tem se
Informática) que pretende abordar o tema dedicado ultimamente a coordenar
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atividades vivenciais tanto no espaço profissionais que trabalham na PNH,


institucional em que foi gerado (portanto, apresenta trabalhos pioneiros de todos os
na academia) quanto no próprio espaço estados brasileiros e com uma abrangência
vivo da cidade. Exemplo claro de ações de milhares de acessos semanais. É,
dessa natureza foi a comemoração do Dia portanto, um rico e potente difusor de
Nacional da Luta Antimanicomial, em práticas antimanicomiais, antiburocráticas
maio de 2012. Tal evento foi denominado e democratizantes. A troca de logomarcas
de “(En)Cena na praça: Saúde Mental se entre as redes de comunicação do
faz em Redes” e se caracterizou por HumanizaSUS e do (En)cena, com o
convidar toda a comunidade da cidade para intuito de se divulgarem, representa uma
participar de uma tarde na praça, enquanto aproximação corpórea de resistência, de
ocorriam oficinas diversas e redes de jeitos de fazer, de horizontes a alcançar, de
dormir eram atadas sob árvores para quem olhares para a diversidade da vida, para a
quisesse nelas deitar. A dimensão liberdade e dignidade do homem em um
vivencial e pessoal é fundamental para que Estado Democrático de Direito.
a interdisciplinaridade expanda seus efeitos Mas o que é o (En)cena? Um
para além dos textos acadêmicos e dos portal? Um agrupamento de pessoas
debates epistemológicos, já que ela “[...] impregnadas de/com a loucura? Um
não se efetiva por meio de princípios ou de projeto acadêmico de extensão? Um
intenções genéricas desenvolvidas em campo/projeto interdisciplinar de
textos de pesquisadores bem- pesquisa? Uma estratégia de
intencionados” (Furtado, 2007, p. 247). Humanização? Utilizaremos a perspicácia
Outra parceria que redimensiona a de James Joyce ao se referir sobre a
processualidade do Encena é com a gestação de sua obra Finnegans Wake para
Política Nacional de Humanização (PNH), dizer que o (En)Cena acima de tudo é um
desenvolvida de dentro para fora do work in progress2, sendo assim (des)cobrir
Ministério da Saúde. Por essa sua o (En)Cena é uma empreitada de cada
característica, e também por sua protagonista.
metodologia mais proeminente (a análise
institucional em territórios de saúde), a Notas
PNH encontra-se numa posição entre a
1
instância governamental e a popular, Conceito da Análise Institucional
fazendo-as se comunicar. O portal de fundamental para as estratégias da Política
acesso HumanizaSUS, gerido por Nacional de Humanização que se refere a
P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , N ú m e r o T e m á t i c o , 2 0 1 2 P á g i n a | 220

um acontecimento que explicita o jogo de Deleuze, Gilles. (1997). Mistério de


forças institucional, a problematização Ariadne segundo Nietzsche. In G.
daquilo que está naturalizado, o Deleuze. Crítica e clínica. São
estranhamento como fomento a alteridade, Paulo: Editora 34.
a emergência dos conflitos como Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1995).
tencionadores coletivos de novos modos de Mil platôs: capitalismo e
vivenciar a produção em saúde. esquizofrenia. (Vol. 2). Rio de
2
Tradução: trabalho em andamento, Janeiro: Ed. 34.
conforme a introdução de Donaldo Schüler Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1997).
In: Joyce, James. Finnegans Mil platôs: capitalismo e
Wake/Finnicius Revém. Introdução, esquizofrenia. (Vol. 5). Rio de
versão, notas Donaldo Schüler; desenhos Janeiro: Ed. 34.
Lena Bergstein. - 2 ed. - Cotia, SP: Ateliê Guattari, Félix. (2009). As três
Editorial, 2004. p. 25. ecologias. Campinas: Papirus.
Foucault, Michel. (2006). Ditos e escritos:
Bibliografia ética, sexualidade, política. (Vol. 6).
Rio de Janeiro: Forense
Agamben, Giorgio. (2009). O que é Universitária.
contemporâneo? E outros ensaios. Furtado, J. P. (2007). Equipes de
(V. Honesko, Trad.). Chapecó, SC: referência: arranjo institucional para
Argos. potencializar a colaboração entre
Baremblitt, Gregório. (1998). Compêndio disciplinas e profissões. Interface –
de análise institucional e outras comunic, saúde, educ., 11(22), 239 –
correntes: teoria e pratica. (4ª 255.
ed.). Rio de Janeiro: Record. Joyce, James. (2004). Finnegans
Cooper, David. (1978). A linguagem da wake/finnicius revém. Introdução,
loucura. Lisboa. versão, notas Donaldo Schüler;
Costa-Rosa, Abilio. (2000). O modo desenhos Lena Bergstein. (2 ed.).
psicossocial: um paradigma das Cotia, SP: Ateliê Editorial.
praticas substitutivas ao modo asilar. Lima, Elizabeth Maria Freire de Araújo &
In P. Amarante (Org.). Ensaios: Pelbart, Peter Pál. (2007). Arte,
subjetividade, saúde mental, clínica e loucura: um território em
sociedade. (pp.141-168). Rio de mutação. História, ciências, saúde –
Janeiro: Fiocruz.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , N ú m e r o T e m á t i c o , 2 0 1 2 P á g i n a | 221

manguinhos, Rio de Janeiro, 14(3), Universitário Luterano de Palmas -


709-735, jul.-set. CEULP/ULBRA.
Passos, Eduardo & Benevides, Regina. E-mail:
(2001). Clínica e biopolítica na jonatharospidenunes@yahoo.com.br
experiência do contemporâneo,
Psicologia Clínica, 13(1), 89-99. Mardônio Parente de Menezes:
Rocha, D. & Deusdará, B. (2005). Análise Psiquiatra com mestrado em Psicologia
de conteúdo e análise do discurso: (UNESP/ASSIS-SP). Professor do curso
aproximações e afastamentos na de Psicologia do Centro Universitário
(re)construção de uma trajetória. Luterano de Palmas - CEULP/ULBRA.
Alea, 7(2), 305-322, jul-dez. E-mail: mardonioparente@gmail.com
Santos, B. S. (2006). Um discurso sobre as
ciências. (4ª Ed.). São Paulo: Cortez. Victor Meneses de Melo: Psicólogo com
César Gustavo Moraes Ramos: mestrado em Psicologia (UNESP/ASSIS-
Psicólogo com mestrado em Ciências SP). Professor do curso de Psicologia do
Criminais (PUC/RS). Professor e Centro Universitário Luterano de Palmas -
Coordenador do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA.
Centro Universitário Luterano de Palmas - E-mail: victormelo@yahoo.com.br
CEULP/ULBRA.
E-mail: cgmramos@gmail.com

Irenides Teixeira: Psicóloga, graduada


em Publicidade e Propaganda e em
Processamento de Dados com mestrado em
Comunicação e Mercado
(FACASPER/SP). Professora dos cursos
de Comunicação Social e de Psicologia do
Centro Universitário Luterano de Palmas -
CEULP/ULBRA.
E-mail: irenides@gmail.com

Jonatha Rospide Nunes: Psicólogo com


mestrado em Psicologia Social (UFF/RJ)
Professor do curso de Psicologia do Centro

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