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Notas sobre o gênero épico


João Adolfo Hansen

“Em grego, meninos, em grego e em


verso, que é melhor que a nossa língua e a prosa do nosso tempo”
( Machado de Assis, Esaú e Jacó, cap. 45).
“... Acheronta movebo...”
(Virgílio, Eneida VII 312)

Enquanto duraram as instituições do mundo antigo1, a epopéia narrou a ação


heróica de tipos ilustres, fundamentando-a em princípios absolutos, força guerreira,
soberania jurídico-religiosa, virtude fecunda. Desde a segunda metade do século XVIII, a
universalização do princípio da livre-concorrência burguesa que impôs a mais-valia
objetiva a todos e contra todos foi mortal também para ela, pois o heroísmo é improvável
e inverossímil quando o dinheiro é o equivalente universal de todos os valores. Desde
então, apesar de algumas tentativas românticas de revivê-la nos séculos XIX e XX, é um
gênero morto. Supondo a perspectiva da morte que faz dela um gênero terminado, logo
interminável, esta introdução o trata como pode ser tratado hoje- arqueologicamente-,
reconstituindo parcialmente preceitos de sua doutrina vigentes no presente da invenção
dos poemas publicados neste livro2.

Hoje, a presença desse presente extinto só tem existência metafórica em atos


contingentes de leitura. Tais atos estão predeterminados pelo intervalo temporal e
semântico que separa e diferencia os tempos em que os poemas foram inventados, os

1
“Antigo” como formulado por Francis Bacon: “And to speak truly, Antiquitas saeculi juventus mundi.These
times are the ancient times,when the world is ancient, and not those which we account ancient…by a
computation backward from ourselves”[ E para falar a verdade, a Antigüidade é a juventude do mundo. Esses
tempos são os tempos antigos, quando o mundo é antigo(velho),e não aqueles que julgamos antigos …por um
cálculo retrospectivo a partir de nós mesmos] . Francis Bacon. Ed. B.Vickers, Oxford,1996, pp.145-146.
2
Este texto é um lugar onde outros lugares convergem de modo não totalizante, mas indicial , como
definições aristotélicas, latinas, italianas,espanholas e portuguesas da épica que interessam para a doutrina
poética dos textos publicados neste livro.
2

séculos XVI, XVIII e XIX, do aqui-agora do leitor que os lê produzindo versões


necessariamente parciais deles. Obviamente, a epopéia não é pop e o tempo frio da narração
dos arcaísmos heróicos alheios às alegrias do marketing entedia mortalmente o leitor já
bastante animado pelo tédio do espetáculo global. A extensão e a estranheza do intervalo
podem diminuir, no entanto, se a lê como objeto histórico, tentando refazer as operações
do pensamento do seu enunciador. Para isso, ocupa o lugar do morto, como se também já
estivesse morto, o que não é incomum, também quando se lê ficção. Os enunciados épicos
são pseudo-referenciais e não representam estados de coisas empíricas ou coisas de fato;
se refaz os procedimentos ordenadores da sua enunciação extinta, o leitor estabelece
comunicação fictícia com ações fictícias ficticiamente figuradas3. Se impede que seu
imaginário elimine os preceitos que regulam a significação da forma, sua leitura poderá ter
alguma eficácia como representação verossímil, ainda que parcial, do que é figurado nela.

Para ler a epopéia historicamente, deve saber que, até a segunda metade do século
XVIII, os códigos da poesia foram retóricos, imitativos e prescritivos, diferentes dos
critérios expressivos e descritivos da estética, da crítica e da história literária então
inventadas pela revolução romântica, que subjetivou todas as artes como expressão da
consciência infeliz dividida e multiplicada pelo dinheiro. É o que se observa quando se
reconstitui a longa duração da instituição retórica greco-latina e suas inumeráveis
apropriações cristãs que evidentemente não conheceram as classificações retrospectivas,
evolutivas e dedutivas dos estilos feitas a partir do século XIX nas histórias literárias e

3
Por exemplo, se lê o primeiro verso da proposição de Os Lusíadas, deve atribuir-lhe significado, fazendo
uma tradução que reconhece uma figura relevante. A palavra poética não existe em “estado de dicionário”,
pois é retórica, não apenas semiótica ou gramatical: “As armas e os barões assinalados” é enunciado
intencional que se relaciona com outros, no poema, e com matérias simbólicas anteriores e contemporâneas.
Assim, “armas” é sinédoque, parte pelo todo, valendo por “guerras”, “feitos militares” da história medieval
portuguesa, principalmente, que Camões lê em cronistas, como Fernão Lopes, e historiadores do seu tempo,
Damião de Góis, Rui de Pina, João de Barros. O termo é tópica do gênero épico associada à fé e à força do
caráter dos heróis do poema. E, como emulação do primeiro verso da Eneida: Arma virumque cano, “canto
as armas e o varão”, é signo para o destinatário ou preceito de leitura: termo de estilo alto, constitui um
destinatário épico, indicando-lhe que recebe o poema de modo determinado, sabendo que seu estilo é
sublime, “tuba canora e belicosa”, não lírico ou pastoral, “agreste avena ou frauta ruda” (I, 5). O leitor
também deve observar a funcionalidade da ordenação métrica, rítmica e sintática: o termo “armas” liga-se
imediatamente à fórmula “barões assinalados”, que significa “varões”, homens viris, e “barões”, fidalgos, que
são “assinalados” pelos feitos que os tornam dignos da memória que o canto épico começa a eternizar. Logo,
a expressão “as armas e os barões assinalados” antecipa a matéria histórica, o gênero, as tópicas, os tipos
heróicos, a ordem e o estilo para o leitor. O verso figura a matéria histórica como objeto direto posto em
relevo como os dois primeiros termos épicos da proposição.
3

histórias da arte caudatárias do idealismo alemão. Em seu tempo, a epopéia constituía a


mundaneidade de seu mundo como arte que punha em cena as figuras relevantes da
experiência do passado e da expectativa de futuro. Para encená-las, o poeta imitava
opiniões consideradas verdadeiras nos campos semânticos das atividades discursivas e não-
discursivas do todo social objetivo definido como “corpo místico” de estamentos
subordinados ao rei num pacto de sujeição. Nos séculos XVI, XVII e XVIII, os usos dos
procedimentos técnicos da invenção poética eram parte dos regimes discursivos
subordinados ao “bem comum” público desse todo.

As definições de tratados retóricos, de artes poéticas e o funcionamento objetivo do


trinômio autor/obra/público regulam a poesia antiga como imitação de autoridades ou
auctores, os discursos do costume (consuetudo), que realizam a excelência dos gêneros
em que os poetas se exercitam: Sófocles, Eurípides e Sêneca para a tragédia; Horácio,
Juvenal e Marcial para a sátira; Aristófanes, Plauto e Terêncio para a comédia; Calímaco,
Ovídio e Petrarca para a lírica; Homero, Virgílio, Lucano, Dante, Ariosto, Camões e Tasso
para a épica etc. O costume determina o decoro interno do poema como adequação das suas
partes ao todo e, deste, aos preceitos da auctoritas imitada. Simultaneamente, prescreve o
decoro externo como adequação verossímil à recepção. Os poetas não se concebem como
“medievais”, “clássicos”, “maneiristas”, “barrocos”, “neoclássicos” ou “pré-românticos”,
mas como artífices politécnicos ou pantécnicos capazes de compor imitando os estilos das
autoridades. A imitação não é decalque expressivo-realista de coisas evoluindo em
formação, pois não conhecem o romantismo da “cor local” nem o positivismo do “fato”,
mas operação compositiva, intelectualmente ordenada, que faz o poema particular
verossímil ou semelhante às opiniões verdadeiras encenadas descontinuamente em textos
de história e poesia anteriores. A mediação dos auctores exclui todo expressivismo ou
psicologismo: a auctoritas é norma retórica coletiva e objetiva, o gênero é critério
prescritivo e a noção de obra (opus) impõe-se como principal, imortalizando o auctor.
A semelhança do novo poema é tida como boa imitação quando resulta da emulação.
Emula-se o que se admira e ama: por outros meios materiais e modos miméticos, o poeta
inventa o poema com forma análoga - mas não idêntica- à da obra autorizada do costume,
competindo com ela em engenhosidade e arte. A emulação efetua o prazer do destinatário
4

culto, capaz de reconhecer o engenho e a perícia técnica do poeta como compositor da


fábula 4.
Em sociedades que não conhecem o mercado dos bens culturais, como a luso-
brasileira dos séculos XVI,XVII e XVIII, os poetas têm a posse dos meios técnicos de
produção da poesia, mas nenhuma propriedade privada dos poemas, que circulam na
oralidade e em cópias manuscritas sujeitas às apropriações produtoras de variantes. Não há
regulação da propriedade privada das obras como “direitos autorais”, “originalidade” ou
mercadorias concorrendo com outras originalidades, logo não se conhece o conceito
moderno de “autoria” como autonomia crítica e livre-concorrência, nem o conceito jurídico
e estético de “plágio” implicado na noção mercadológica de “originalidade” da obra, nem o
de “público”, como “opinião pública” liberal. Mas fala-se de “roubo” e “pirataria”,
entendendo-se que emular é diverso de roubar, pois o roubo diz o mesmo e a emulação diz
outra coisa. Essa outra coisa buscada pela emulação demonstra tal semelhança com a obra
imitada em suas partes mais belas, difíceis e louvadas que qualquer um que as conheça sabe
que a segunda foi feita intencionalmente como semelhança da primeira5.
Para emular as autoridades sem roubá-las, procura-se a propriedade- o predicado
ou as “raízes”, na definição de Tesauro - que na autoridade imitada causa prazer. O
predicado é um gênero comum que inclui espécies diversas de invenções possíveis
(“flores”) que o figuram. Depois que o acha, o poeta o representa em uma das suas espécies
possíveis, fazendo-a semelhante à espécie da obra que imita. A nova espécie é figurada em
“diferentes categorias”, que participam mais e melhor no predicado, segundo o gênero da
obra. Na recepção, o leitor compara o novo poema e o poema imitado; no intervalo
semântico que produz entre eles, lê a diferença da nova obra como variação engenhosa do
mesmo predicado. Todos os poetas que se exercitam num gênero específico, como o épico,
aplicam os mesmos preceitos que o regulam; é principalmente a variação elocutiva- o

4
Repetindo Aristóteles, Emanuele Tesauro define emulação em Il Cannocchiale Aristotelico:
"Chamo pois imitação uma sagacidade com a qual, quando para ti é proposta uma metáfora ou outra
flor do humano engenho, consideras atentamente as suas raízes e, transplantando-a em diferentes categorias
como em um solo cultivado e fecundo, propagas outras flores da mesma espécie, mas não os mesmos
indivíduos"(Tesauro- "Arguzie umane"- Il Cannocchiale Aristotelico. 5 ed. 1670). (Tesauro- "Arguzie
umane"- Il Cannocchiale Aristotelico. 5 ed. Torino, Zavatta, 1670).
5
Pallavicino, Sforza. Trattato dello stile e del dialogo,ove nel cercarsi l’idea dello scrivere insegnativo.
Roma, Stamperia del Mascardi, 1662, p.. 111.
5

modo diverso de aplicar as palavras à fábula, produzindo diferenças proporcionadas- que


permite distinguir emulação de roubo e imitação servil, como se lê na emulação da Ilíada
e da Odisséia pela Eneida, desta por Os Lusíadas e, destes, por Prosopopéia, de Bento
Teixeira, ou Caramuru, de Santa Rita Durão.
A emulação é cumulativa6: o novo poema alinha-se com os anteriores do mesmo
gênero como autoridade a ser imitada em novas emulações 7. Logo, a novidade poética
não deve ser entendida como “ruptura” ou “superação”, no sentido do “universal
progressivo” de Schlegel ou do “nouveau au fond de l’ inconnu” de Baudelaire, fragmento
e negação da própria originalidade tornada obsoleta na ocorrência. A novidade antiga
efetua o retorno de todo o sistema retórico-poético de preceitos na nova espécie produzida
pela combinação de formas já conhecidas. Não há originalidade em Prosopopéia, Vila

6
Um poeta maior como Camões imita autoridades poéticas, filosóficas e históricas de várias durações,
algumas delas antiqüíssimas: o grande bloco greco-latino ou as doutrinas e a poesia gregas e latinas da arte
como mímese: a doutrina aristotélica da épica exposta na Poética; a doutrina da reminiscência de Platão e
Plotino; a doutrina do sublime de Longino e Hermógenes; as epopéias de Homero, a bucólica de Teócrito, a
épica de Virgílio, a ode de Horácio, a elegia erótica de Ovídio etc. Outras datam do século XV, como o
platonismo reciclado por Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Cristóforo Landino e Angelo Poliziano na
academia florentina de Careggi. Muitas datam dos séculos XII e XIII, como a poesia da coyta e do amor
cortês dos trovadores galego-portugueses e provençais; e o “doce estilo novo” italiano, mescla de língua
vulgar, formas poéticas e culto da Antigüidade, exercitado nos anos iniciais do século XVI por poetas
portugueses, como Sá de Miranda e Antônio Ferreira, que imitam o soneto e a canção de Petrarca, o terceto de
Dante, a elegia e os capítulos de Bembo, as éclogas de Sannazzaro, a oitava rima de Poliziano, Bocaccio,
Boiardo e Ariosto. Camões também figura o conhecimento cosmográfico antigo, fundamentado em Ptolomeu
e Euclides, e a experiência empírica das navegações portuguesas dos séculos XV e XVI sistematizada por
autores portugueses de tratados de cartografia e história natural, como Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira,
Garcia da Orta etc. E imita principalmente a prosa da história de seus contemporâneos João de Barros, Rui de
Pina e Diogo do Couto. E tratados teológico-políticos escolásticos que tratam das virtudes do príncipe cristão
e da “guerra de devaçam”, expressão de Gil Vicente para a cruzada contra não-cristãos da África e da Ásia.
Quando imita essas várias durações, a enunciação de Camões é modelada nas tópicas aristocráticas da
racionalidade de corte com que autores italianos e portugueses do século XVI, Baldessare Castiglione,
Giovanni Della Casa, D. Jerônimo Osório, definem a excelência do uomo universale, o homem universal,
cortesão perito em letras e armas, caracterizado por “engenho”, “discrição”, “prudência”, “agudeza”, “honra”,
“amor”, “gentileza”, “graça” etc.
7
O público antigo definia imitação servil com a alegoria do médico principiante que administra remédios por
ter visto em que ocasiões foram usados, mas sem saber porque fazem efeito. Ou como a imitação do escolar
que repete subservientemente o que acha nas composições do mestre porque sabe que agradaram e foram
louvadas, mas não é capaz de distinguir a causa por que agradam. Sforza Pallavicino escreve que o médico
experiente, vendo que determinado remédio atua sobre uma doença específica, sabe que isso ocorre porque
ele tem temperamento corretivo do humor deficiente. O médico experiente sabe inventar outro remédio contra
o mesmo mal, semelhante em temperamento à substância também usada para outros males decorrentes do
mesmo humor mórbido. Aqui, novamente, invoca-se a autoridade de Aristóteles para distinguir senso comum
e intelecto, ou experiência e arte: o senso comum e a experiência restringem-se ao particular, caso de Bento
Teixeira em relação a Camões; o intelecto e a arte visam a máxima universal aplicável a inumeráveis outras
coisas distintas, como Camões em relação a Virgílio. Cf. Pallavicino, op.cit. cap.XIII, pp.120-122.
6

Rica, O Uraguai e Caramuru, no sentido iluminista-romântico do termo, pois a autoridade


do costume mimético é total.
O público luso-brasileiro da poesia dos séculos XVI, XVII e XVIII não era, como
nas sociedades de classes constituídas na Europa a partir da segunda metade do século
XVIII, a “opinião pública” dotada de representatividade, livre-iniciativa e autonomia crítica
teoricamente democráticas. As epopéias italianas, espanholas e portuguesas desse tempo
são inventadas como representações incluídas nos regimes discursivos do “corpo místico”
de cidades-Estado aristocráticas e Estados monárquicos católicos em que os valores
burgueses são constituídos como vulgaridades matéria da comédia e mais gêneros baixos.
As epopéias pressupõem e põem em cena o corporativismo característico da hierarquia de
sociedades de Corte; o ponto de vista encenado na sua enunciação não é moldado por
categorias liberais, expressivas ou psicologicamente subjetivadas, mas é a perspectiva de
um tipo com autoridade simbólica, o auctor, conformado como racionalidade técnica no
“eu” do narrador situado e subordinado objetivamente na hierarquia como instrumento de
representação de outros tipos compostos por paixões e caracteres precodificados e também
subordinados à mesma hierarquia. Como foi dito, as tópicas, as ações, as paixões e os
caracteres de narradores e personagens; a disposição dos argumentos e as palavras da
elocução são achados pelo poeta nos elencos da memória do costume. A variação
elocutiva deles constitui o destinatário como receptor do estilo particular com que o poeta
qualifica o narrador, situando sua enunciação e enunciados como variantes hierarquizadas
do gênero doutrinado pela instituição retórico-poética. Como a autoridade da instituição é
total, o ponto de vista do estilo não é autônomo, mas efeito da aplicação dos preceitos pela
iniciativa do poeta caracterizado por uma liberdade e uma habilidade técnicas particulares,
cujos limites são a inépcia e a licença poética assim definidas na recepção por preceitos
produtores de verossimilhanças e decoros. A suposta “experiência subjetiva” do autor é
parte do todo social objetivo, enfim; logo, os modos e os estilos da sua representação estão
imediatamente relacionados com os meios de avaliação do campo semântico geral de seu
tempo.
Desta maneira, na poesia épica luso-brasileira dos séculos XVI, XVII e XVIII,
“público” não é o mesmo que é pressuposto nas histórias literárias que generalizam
transistoricamente sua definição como uso público da razão por particulares ou como
7

coletivo da “opinião pública”. “Público” é, no caso, a totalidade do “corpo místico” ou


corpo político do Estado doutrinada escolasticamente como espaço público de “bem
comum”. Figurado como membro dessa totalidade, o destinatário produzido no estilo épico
é sinônimo do narrador, ou seja, tipo também subordinado. Como tal, deve reconhecer,
sendo sempre instado a fazê-lo, sua posição de membro subordinado quando recebe e
reconhece os preceitos, matérias, tópicas e efeitos heróicos. Como outros gêneros desse
tempo, a poesia épica reproduz ficcionalmente aquilo que cada membro do “corpo místico”
já é, prescrevendo que deve ser e permanecer como o que já é. Assim, figurando o espaço
público como totalidade mística do "bem comum", a epopéia é uma teatralização
corporativista dos valores elevados dos “melhores” do “corpo místico” do Estado. Ela põe
em cena a totalidade jurídico-mística de destinatários8 desse corpo, à qual narrador e
destinatário se subordinam em posições estamentais.
Quando o poema épico é apropriado por públicos empíricos de diversas competências
também subordinadas às normas hierárquicas do "bem comum" do "corpo místico" do
Estado, como as que são representadas nas posições do narrador e do destinatário, a
recepção modela-se prescritivamente. Os juízos da recepção são autorais, normativos ou
avaliativos das regras aplicadas pelo poeta para inventar o contrato enunciativo de narrador
e destinatário: obedecem a padrões institucionais de regramento das representações e, na
leitura ou na audição, aplicam os mesmos preceitos usados pelo poeta, segundo uma nítida
circularidade de código. O público empírico pode dividir-se, julgando o poema pirataria,
imitação servil e emulação. Nas três espécies possíveis de avaliação, não age livre de
regras, pois formula o juízo como proporção mimética de modelos; não é progressista ou
autônomo, pois deseja a semelhança que repete uma identidade já evidenciada no costume;
não faz juízos informais, porque se apropria da forma refazendo os atos da invenção do
poeta como artifício que aplica intelectualmente uma verossimilhança e um decoro
específicos do gênero.

Definições do gênero épico


As definições do gênero épico pressupõem e sistematizam a prática efetiva dos poetas
e os modos de comunicação dos poemas, que são muito variáveis, historicamente, segundo

8
Merlin, Hélène. Public et littérature en France au XVIIe siècle. Paris, Belles Lettres, 1994, pp. 385-388.
8

a oposição complementar de oralidade e leitura. Helenistas como Georges Dumézil, Jean-


Pierre Vernant e Jesper Svenbro9 demonstram que a poesia da Ilíada e da Odisséia
precedeu em vários séculos a sistematização escrita da memória dos gregos pela
historiografia grega, funcionando como epopéias míticas em que a “palavra eficaz” da
religião e seus rituais e mitos foi repetida oralmente por aedos antes de ter sido fixada
pela escrita que, ainda durante muito tempo, foi instrumento para a oralidade.
Diversamente delas, a grande epopéia latina, Eneida, é uma epopéia histórica, pois
sua matéria são principalmente as fontes escritas da história romana, os anais do
pontificado, provavelmente também os Livros Sibilinos, além dos textos de poetas
alexandrinos; de filósofos estóicos, pitagóricos e platônicos; e de autores romanos, Varrão,
Ênio, Névio, Catulo, Lucrécio etc. Imitando a Odisséia principalmente nos seis primeiros
cantos e a Ilíada nos seis últimos, a Eneida trata da origem mítica de Roma, celebrando a
presença dos seus deuses tutelares, Júpiter, Marte e Quirino, no tempo da pax augusta de
Otávio Augusto, tido por descendente da gens Iulia mitologicamente originada por
Enéias10.
A primeira exposição doutrinária sobre o gênero épico é feita na Poética
aristotélica (334 a.C.), que o define nos intervalos da conceituação de tragédia. O epos
(épico deriva do grego epos, “narração”, “discurso” e “palavra”) doutrinado por Aristóteles
é oral : a “palavra eficaz” do rapsodo repetida pelo aedo que efetiva o herói que, por sua
vez, fala nela, efetuando o kleos, renome ou glória, que se quer “imperecível”. Referindo-se
principalmente à poesia de Homero, Aristóteles aproxima epopéia e tragédia como artes
miméticas para distingui-las, considerando seus meios e modos. Diferem nos meios: uso

9
Cf. Dumézil, Georges. Mythe et Épopée.I-L’idéologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-
européens ;II-Types épiques indo-européens : Un héros, un sorcier, un roi ; III-Histoires romaines. Préface
de Joël H.Grisward. Paris, Gallimard, 1995 ; Vernant, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris,
PUF,1969; Svenbro, Jesper. “La Grèce Archaïque et Classique. L’invention de la lecture silencieuse”. In
Cavallo, Guglielmo e Chartier,Roger. Histoire de la Lecture dans le Monde Occidental. Paris, Seuil,1997.
10
A leitura latina da epopéia era pública, feita em voz alta como recitatio do volumen, o rolo que continha o
poema com os espaços entre as palavras marcados por pontos (interpuncta). O volumen era segurado na mão
direita e desenrolado pouco a pouco pela esquerda. O termo “cantar”, que se associa a partes materiais e à
enunciação da epopéia - “canto” (= “livro”); “Arma virumque cano”; “Cantando espalharei por toda parte”
etc.- designa a voz do intérprete que marcava com suas inflexões e batidas dos pés a elocução do poema.
Como diz Quintiliano, a composição deve ser regrada pela maneira como se dará voz ao escrito. Cf. Cavallo,
Guglielmo. “La lecture dans le monde romain”. In Cavallo, Guglielmo e Chartier, Roger. Op.cit
As epopéias luso-brasileiras dos séculos XVI, XVII e XVIII são textos escritos para serem lidos
individualmente em silêncio. Mas continuam seguindo Aristóteles e Virgílio: imitam ficcionalmente o
discurso da história escrita, definindo a verossimilhança como semelhança da verdade pressuposta nele.
9

exclusivo do verso heróico, o hexâmetro datílico, na epopéia; uso de vários metros, na


tragédia. O verso heróico é o único adequado à epopéia, porque é o mais amplo e grave, por
isso o mais apropriado para imitar ações ilustres. Épico e trágico também se aproximam
pelas mesmas coisas que imitam: homens superiores, melhores que o leitor e o espectador.
Mas diferem nos modos imitativos: a tragédia é dramática; a epopéia é narrativa e
dramática, pois faz personagens falar diretamente, dotando-os de caracteres específicos
para que seu discurso seja verossímil: Aquiles colérico, Nestor sábio, Ulisses astuto.
Aristotelicamente, a diferença entre ambos os gêneros é constituída pela oposição de
meios- verso heróico na epopéia/ várias medidas de versos na tragédia- e de modos-
modo narrativo e dramático na epopéia/modo dramático na tragédia11.
Além dessas, Aristóteles propõe a extensão da epopéia como diferença: se a tragédia
procura caber no limite de um dia, a epopéia não tem limite de tempo(Poét. V,24), embora
em geral sua ação corresponda ao período de um ano. Na tragédia, é impossível representar
muitas partes de uma ação que se desenvolvem no mesmo tempo, pois ela só pode
representar a ação que se desenrola entre os atores em cena. Porque é narrativa, a epopéia
pode apresentar muitas ações contemporâneas. A tragédia é superior a ela, segundo
Aristóteles, porque contém todos os seus elementos. Além disso, a melopéia e o espetáculo
cênico aumentam a intensidade dos prazeres próprios do discurso trágico, que tem a
vantagem de realizar perfeitamente a imitação em forma e em tempo mais breves. Durante
algum tempo, o que é condensado parece mais doce à audição que o difuso, diz Aristóteles,
sugerindo que se imagine o efeito tedioso de Édipo-Rei se o mito dos Átridas fosse posto
no mesmo número de versos da Ilíada.
A finalidade principal da epopéia é o prazer decorrente da admiração das res gestae,
“coisas feitas” que efetuam o kleos ou a fama, como se lê na definição do gênero que
Horácio formula na Arte Poética: Res gestae regumque,ducumque,et tristia bella, Coisas
feitas dos reis e dos chefes e tristes guerras12. De Aristóteles até o século XVIII, o gênero
é doutrinado como discurso longo, quase sempre em verso13 heróico, o hexâmetro datílico

11
Aristóteles, Poética, 154.
12
Horácio, Arte Poética de Q.Horacio Flacco.Traduzida, e illustrada em portuguez por Candido Lusitano.
Nova Edição. Lisboa, Rollandiana, 1833, X,p.59.
13
Obviamente, como é o modo mimético que importa na definição do gênero, a epopéia também pode ser
escrita em prosa. Cf., a respeito, o estudo exaustivo e excelente de Adma Fadul Muhana. A Epopéia em
Prosa Seiscentista: Uma Definição de Gênero. São Paulo, Editora da UNESP,1997.
10

grego e latino, ou na oitava rima italiana de verso decassílabo com as seis primeiras rimas
alternadas e as duas últimas emparelhadas (ABABABCC) das línguas vulgares, imitando
por modo misto, narrativo e dramático, a ação una, inteira e perfeita, de tipo superior,
ilustre ou heróico, metido em guerra histórica ou mítica, real ou fictícia, para a admiração,
o prazer e o ensino de virtudes cívico-morais.
No século XVI, pressupondo que a epopéia é poesia escrita para ser lida, Júlio César
Scalígero retoma a definição horaciana quando resume a matéria da fábula épica com
termos do estilo alto: Epicorum materia declaratur, dux, miles, classis, equus, victoria (
“Declara-se a matéria dos épicos: chefe, soldado, exército, cavalo, vitória”14). Em meados
do século XVI, Antonio Minturno retoma Horácio e Aristóteles, prescrevendo que poesia
heróica é
“Imitação de atos graves e ilustres, dos quais um contexto perfeito e completo tenha
justa grandeza, com dizer suave, sem música e sem dança, ora narrando simplesmente, ora
introduzindo outro [personagem] em ato e em palavra; de modo que pela piedade e pelo
medo das coisas imitadas e descritas purgue o ânimo de tais afetos com maravilhoso prazer
e proveito”15.

14
Cf. Scaliger, Iulius Caesar. Poetices libri septem ad Sylvium filium. Lyon, Apud Antonium Vincentium,
1561,p.144. Provavelmente, a referência da fórmula de Scalígero é a rota Vergilii, do século XIII, que elenca
tópicas da invenção e palavras da elocução de três estilos, humilde, medíocre e sublime, correspondentes às
Bucólicas, às Geórgicas e à Eneida.
stilus humilis mediocris gravis
(BUCOL.) (GEORG.) (ENEIDA)
---------------------------------------------------------
(ordem) pastor agricola miles
dominans
-----------------------------------------------------------
(nomes) Tytirus Caelius Aiax
Meliboeus Triptolemus Hector
------------------------------------------------------------
(animais) ovis bos equus
------------------------------------------------------------
(instrumentos) baculus aratrum gladius
------------------------------------------------------------
(lugares) pascua ager urbs
castra
------------------------------------------------------------
(plantas) fagus pomus laurus/cedrus

15
Minturno, Antonio Sebastiano(1500-1574). L’Arte Poetica del Signor Antonio Minturno nella quale si
contengono i precetti Eroici,Tragici, Comici,Satirici, e di ogni altra Poesia: com la dottrina de’ sonetti,
Canzoni, ed ogni sorte de Rime Toscane, dove s’ insegna il modo, che tenne il Petrarca nelle sue opere. E si
11

Com a expressão “contexto perfeito e completo”, Minturno refere-se à fábula épica,


composta de matéria una e de assunto uno subordinados com justa grandeza ao
“maravilhoso prazer” determinado pelo gênero. Sua referência a afetos como “piedade” e
“medo” traz para a definição os efeitos da catarse que Aristóteles afirma serem próprios do
trágico. Afirmando que não há beleza em corpo demasiadamente grande ou excessivamente
pequeno, prescreve que a epopéia tenha “justa grandeza”, isto é, que seja
proporcionadamente longa. Como não há medida exata para sua extensão, deve ser
determinada pela capacidade de memorizar seu princípio e ações intermediárias,
relacionando-os com o final num todo coerente. Poemas muito longos ou acidentados,
como Orlando Furioso, de Ariosto, e Jerusalém, de Lope de Vega, foram considerados
defeituosos por vários intérpretes dos séculos XVI, XVII e XVIII.
No fim do século XVI, Torquato Tasso define “poema heróico” de modo análogo a
Minturno, Scalígero, Horácio e Aristóteles:
“ Diremos pois que o poema heróico seja imitação de ação ilustre, grande e perfeita,
narrando com altíssimo verso a fim de mover os ânimos com a maravilha e ensinar desta
maneira”16.
Em poemas e preceptivas dos séculos XV e XVI, o gênero vai sendo praticado e
doutrinado aristotelicamente como imitação das epopéias gregas e latinas; as definições
incluem a matéria cristã das canções de gesta17, como A Canção de Rolando; de romances,
como o Poema del mio Cid; e das novelas de cavalaria, principalmente as da matéria da
Bretanha do ciclo arturiano. A matéria medieval fornece tipos, como o herói cavaleiro
andante; tópicas, como a demanda de objetos sagrados, por exemplo o Santo Graal;
situações narrativas e dramáticas, como o duelo e o diálogo amoroso do herói-cavaleiro
com donzelas guerreiras e damas, além do maravilhoso de magos, bruxas e fadas, Merlim,
Morgana, Viviana, Melissa, Alcina, que parecem dar continuidade aos encantamentos das
Circes, Calipsos e sibilas antigas:

dichiara a’ suoi luoghi tutto quel, che da Aristotele, Orazio, ed altri Autori Greci e Latini è stato scritto per
ammaestramento de’ Poeti. In Napoli, Gennaro Muzio,1725, p. 9.

16
Tasso, Torquato. Discorsi del poema eroico (1594) Lib. I, p. 508.
17
A expressão chanson de geste (canção de gesta), documentada em francês desde o século XII, nomeia
poemas épicos longos escritos em língua vulgar. O termo do francês arcaico “geste” é o latim gesta, “ações”.
Chanson de geste significa “narrativa de grandes feitos” de um personagem, de uma família ou de uma
coletividade.
12

“Le donne,i cavalier, l’ arme,gli amori,


Le cortesie,l’audaci imprese io canto
Che furo al tempo che passaro i Mori
D’ Africa il mare,e in Francia nocquer tanto...”
propõe Ariosto no primeiro canto de Orlando Furioso (1516). O poema, variadíssimo,
desenvolve uma fábula de três “nós”: o sítio de Paris e a derrota final dos sarracenos pelos
heróis cristãos de Carlos Magno; a loucura amorosa do herói Orlando apaixonado por
Angélica; os amores do herói Ruggiero e da heroína Bradamante. Motivos feudais-
vassalagem, honra, façanhas de cavaleiros andantes, culto da dama, viagem iniciática,
magia - tudo quanto as novas sociedades de Corte, que então discutem Maquiavel e Lutero,
começam a julgar insensatez18.
Pietro Micheli aproximou o ideal cavalheiresco dos heróis de Ariosto, em Orlando
Furioso, da sprezzatura da “fereza com juízo” do cortesão de Baldassare Castiglione:
“Agrada-me bastante ver um jovem, e maximamente nas armas, que tenha um pouco
do grave e do taciturno, que esteja senhor de si, sem aqueles modos inquietos que
freqüentemente em tal idade se vêem; porque parece que tem não sei quê mais de grave que
os outros jovens.Além disso aquela maneira tão repousada tem em si certa fereza notável,
porque parece movida não por ira, mas por juízo, e mais rapidamente governada pela razão
que pelo apetite; e esta sempre se conhece em todos os homens de grande coração; e da
18
Dove avete trovato, messer Lodovico, tante minchionerie? (Onde encontrastes, senhor Ariosto, tantas
caraminholas ?) teria perguntado o protetor do poeta, o cardeal Hipólito d’ Este (SYMONDS-200). Ariosto
poderia responder que na épica carolíngea. Ela tinha-se formado na França entre as invasões francas, a
dinastia merovíngea e a dos Capetos. Por exemplo, o fundamento da gesta da Canção de Rolando é Vita
Karoli, de Eginardo (Eggihardus). Nela, conta que, depois de vencer os sarracenos na Espanha, a retaguarda
do exército de Carlos Magno foi assaltada e destruída nos Pireneus: na luta, o governador das ilhas britânicas,
Hruodlandus, e outros companheiros foram mortos ( “...in quo proelio Hruodlandus Britannici liminis
praefectus, cum alliis compluribus interficiuntur”). Deste personagem, a imaginação popular inventou
Orlando, espécie de Aquiles cristão. A épica francesa divulgou as gestas do herói por meio dos jongleurs ou
cantores Francigenarum. Dois poemas de gesta, Entrée d’Espagne e Prise de Pampelune, tiveram grande
circulação em cidades italianas. Por volta de 1350, a matéria desses poemas, fundindo-se com a matéria
arturiana da Bretanha, foi posta na forma da oitava, retomada no século XV, por exemplo, no Morgante
Maggiore, de Pulci. No final do século XV, o conde Matteo Boiardo imitou essa poesia escrevendo Orlando
Innamorato, poema em que os heróis são paladinos franceses vivendo matérias arturianas. Para narrar “cose
dilettose e nove”, Boiardo transforma o herói: no seu poema, Orlando, que nos poemas de gesta é um paladino
pio e austero, torna-se enamorado de uma pagã; Rinaldo, outro herói, foge de quem o ama ou só ama quem
foge dele. E seus heróis cavaleiros, cristãos e pagãos, sempre cobertos de armaduras pesadíssimas, saltam e
correm com agilidade espantosa, que em seu tempo devia fazer rir. Entre 1503 e 1515, quando Ariosto
compôs Orlando Furioso, Carlos VIII e Luís XII tinham invadido a Itália e os franceses lutavam contra os
espanhóis no reino de Nápoles; entre a primeira e a segunda edição do poema, tinha começado a guerra entre
Carlos V e Francisco I. Assunto presente nas discussões das cortes e nos tratados de arte militar, a guerra
então qualifica heroicamente o cortesão. O modelo imitado nessa qualificação era principalmente o dos
cavaleiros franceses, que iam para a batalha com a viseira do elmo levantada, sorridentes como se estivessem
num torneio, demonstrando valentia e desdém cristão pela morte. Cf. Micheli, Pietro. “Introduzione”. In
Ludovico Ariosto. Orlando Furioso. Con introduzione e note seguite da un commento estetico di Pietro
Micheli. Milano, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1922, 2 vol., vol. 1, pp. XV-XXV.
13

mesma maneira a vemos nos animais brutos que têm sobre outros nobreza e fortaleza, como
no leão e na águia: e não é sem razão que aquele movimento impetuoso e súbito,sem
palavras ou outra demonstração de cólera, que unidamente em um golpe, quase como um
estouro de bombarda, irrompe da calma, que é o seu contrário, é muito mais violento e
furioso que aquele que, crescendo por graus, esquenta pouco a pouco” 19

É Maquiavel quem diz o que está em jogo nessa aparência desdenhosa: “ (...) é justa
a guerra que é necessária; e as armas são piedosas onde não se espera outra coisa senão a
elas “20.O que caracteriza a função guerreira nas epopéias do século XVI é a transformação
paulatina da antiga nobreza de armas orgulhosa do sangue, da bruteza da força e da
ignorância da latinidade em uma nobreza de letras civilizada e erudita, movida por juízo,
“grave e taciturna”, “senhora de si”, como no texto de Castiglione, subordinada mais e mais
ao rei em uma corte. O poder guerreiro lentamente dá lugar ao império da escrita e da lei
que, por sua vez, recebem sua força do monopólio da violência legítima do soberano21.
Depois da publicação dos decretos do Concílio de Trento, em 1563, a épica cristã,
cavalheiresca, sprezzante, caprichosa e humorada de Boiardo e Ariosto se afunila, em
Camões e Torquato Tasso, como epopéia católica dessa civilização áulica. Mantendo as
velhas tópicas da cruzada contra o mundo muçulmano, é poesia moralizada: quando imita
a matéria histórica, pressupõe a definição tridentina da mesma como história sacra, para
afirmar contra a “vida libertina”, o ateísmo maquiavélico e as religiões reformadas, a
intervenção da Providência nos eventos da “vida beata” contra-reformada do herói. Seus
exemplos de ação heróica são, por assim dizer, mais virtuosamente nobres, como nobreza
cortesã traduzida pelas virtudes dos programas da piedade pós-tridentina. Antes dos
decretos do Concílio de Trento, o heroísmo era simplesmente a virtude do herói; depois

19
Cf. Micheli, Pietro. Op. cit. p. XXIII. .
20
Cf. Maquiavel, N. O Príncipe,último cap. Castiglione também evidencia que já não se combate por simples
espírito de aventura, mas por razões políticas, visando ampliar o poder e os domínios:
“Mas devem os principes fazer os povos belicosos não por cupidez de dominar, mas para poder defender-
se a si mesmos e aos mesmos povos de quem os queira reduzir à servidão ou fazer-lhes injúria em alguma
parte, ou para destituir os tiranos e governar bem aqueles povos que forem maltratados, ou para reduzir
aqueles que forem de tal natureza que mereçam ser feitos servos,com intenção de governá-los bem e dar-lhes
o ócio, o repouso e a paz”.Cf. Castiglione, Baldassare. Il Libro del Cortegiano. In Cordié, Carlo (Edit.) Opere
di Baldassare Castiglione, Giovanni della Casa, Benvenuto Cellini.Milano-Napoli, Riccardo Ricciardi
Editore,1960,pp.313-314.
21
Varela, Julia. Modos de Educación en la España de la Contrarreforma. Madri, Las Ediciones de La
Piqueta, 1983, p.120.
14

deles, todas as virtudes católicas são consideradas heróicas, por isso o amor é uma virtude
tão heróica quanto a guerra, diz Tasso, tratando de “l’illustre de l’eroico”.
Camões e Tasso escrevem e publicam em sociedades controladas pela legibilidade
dogmática do Santo Ofício da Inquisição. Camões, auctor dos poetas luso-brasileiros dos
séculos XVI, XVII e XVIII, afirma a ortodoxia, fazendo uso alegórico da máquina
mitológica antiga: a Vênus terrestre e celeste de Os Lusíadas é composta como causa
segunda escolástica ou instrumento da Providência divina. E a ninfa Tétis, enviada por
Deus para revelar o segredo da máquina do mundo a Vasco da Gama, nega-se a si mesma
de maneira espantosamente inverossímil quando, apontando o Empíreo, declara ao herói
que ela mesma, que fala e continuará falando, é ficção falsa de “cego engano”, metáfora
fingida ou fabulosa para o prazer do leitor :
Aqui só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano;
Só para fazer versos deleitosos
Servimos...” (Os Lus.X,82 )
Antes de publicar A Jerusalém Libertada, Tasso enfrenta quatro censores
inquisitoriais; um deles repete as diretivas do Collegium Romanum e sugere que o episódio
do bosque encantado talvez se enquadre nos anátemas dos decretos do Concílio, exigindo
que o poeta suprima todas as passagens eróticas e personagens femininas fundamentais,
Armida, Clorinda, Sofrônia, Ermínia. Tasso antecipa-se à censura que desconjunta a obra e
escreve um posfácio para a edição de 1581, onde declara que todo o poema é alegoria
cristianíssima com sentido tropológico, moral, e anagógico, dos fins últimos. Quando o
compôs, não previra nenhum sentido alegórico para ele22.
Na primeira metade do século XVIII, tendo por referência as epopéias gregas (Ilíada,
Odisséia), latinas (Eneida, Farsália) e as do século XVI (Orlando Furioso, Os Lusíadas, A
Jerusalém Libertada), Ignacio Luzán sintetiza preceitos e finalidades do gênero: ação nobre
e grande de pessoas ilustres- e agora ilustradas- como reis e heróis, visando a instrução

22
Symonds, J.A. “Torquato Tasso”. In El Renacimiento em Italia. México, Fondo de Cultura Económica,
1995, 2 v., p. 792, 2º. v.
15

moral pela maneira verossímil, admirável e deleitosa da imitação23. Cândido Lusitano o


repete, também repetindo Scalígero, em 1748:
“Dizemos pois, que a Epopeia he a imitação de huma acção heroica, perfeita,e de
justa grandeza, feita em verso heroico por modo mixto, de maneira, que cause huma
singular admiração, e prazer, e ao mesmo tempo excite os animos a amar as virtudes, e as
grandes emprezas”24.
As definições luso-brasileiras de epopéia dos séculos XVI, XVII e XVIII incluem-se
na longa duração dos preceitos aristotélicos do gênero, mas expurgam o maravilhoso
antigo. Quando não o moralizam alegoricamente, substituem-no pelo maravilhoso cristão
ou indígena, caso do poema de Basílio da Gama. Como se viu, Tasso não usa o
maravilhoso pagão em A Jerusalém Libertada, substituindo os deuses greco-latinos por
anjos, bons e maus. O mesmo tinha feito Ariosto, persuadido de que não era tolerável entre
poetas cristãos a introdução de falsos deuses, mesmo quando se dizia que seu uso era
alegórico.
Escolásticos repetidores de Aristóteles, os poetas luso-brasileiros desse tempo sabiam
que sem divindades antigas não havia o maravilhoso determinado pelo gênero como fonte
do prazer do leitor; como homens de uma sociedade especializada em perseguir e queimar a
heterodoxia, também sabiam que, com elas, o poema era perigosamente inverossímil, pois
não se assemelhava aos preceitos do Deus então verdadeiro. As soluções para o limite
teológico imposto à ficção são bastante diversas e, se nem sempre evidenciam engenho e
arte, pelo menos demonstram a prudência dos poetas. Bento Teixeira, que compõe um
poema extremamente menos engenhoso e artístico que o de seu auctor, Camões, publica
Prosopopéia em 1601, 37 anos depois de todos os decretos do Concílio de Trento terem
sido declarados leis do reino de Portugal pelo rei D. Sebastião. Sabendo que imitar é fazer
semelhante, moraliza a verossimilhança catolicamente, pois ela depende da verdade
inquisitorial: “As Délficas irmãs, chamar não quero,/Que tal invocação é vão
estudo,/Aquele chamo só, de quem espero/A vida que se espera em fim de
tudo”(Proposição, vs.9-12). E, seguindo o seu auctor, usa dos deuses antigos como
metáforas fabulosas que ilustram virtudes católicas.

23
Luzán, Ignacio de. La poética o reglas de la poesía em general y de sus principales especies. Zaragoza,
Francisco Revilla,1737.
24
Francisco Joseph Freire (Candido Lusitano), Arte Poetica. 2 ed. Lisboa, 1759, Livro III,Cap. I, Tomo II, p.
165)
16

Também os preceptistas portugueses e poetas luso-brasileiros do século XVIII


mantêm-se nos limites ortodoxos da imitação da história sacra da política católica:
“...os Poetas gentílicos fingiram que tudo quanto obrou Aquiles, Enéias, Diomedes e
outros Heróis fora por patrocínio de Palas, de Vênus, de Marte, e de outras divindades.Nós
outros os Católicos não fingimos,mas firmemente cremos que todas as ações heróicas
dependem da ajuda de Deus, de quem procede tudo o que é perfeito;porque a nossa
natureza como corrupta sim pode obrar alguma cousa boa,porém não tudo,segundo os bons
costumes” 25
Em Portugal, nesse tempo, a crítica ilustrada à fantasia poética identifica as agudezas
seiscentistas dos imitadores de Góngora, que foram legião durante o reinado de D. João V,
ao “peripatetismo”, o ensino escolástico dos jesuítas. A crítica é feita como apologia do
bom senso empirista muitas vezes planificado poeticamente como um chatíssimo senso
comum; mais chato ainda porque o juízo crítico é encomiástico dos poderes constituídos e
continua subordinado ao catolicismo contra-reformista, que permanece atuante na chamada
“Ilustração católica” de Pombal. Dois anos antes de Sebastião de Carvalho e Mello tornar-
se ministro de Estado, Cândido Lusitano prescreve:
“ (...)se deve o Poeta Católico usar no seu Poema de divindades gentílicas. O insigne
Boileau no Canto 3 da sua Poetica,Menzini Poetica liv.2., e outros de igual autoridade
seguem que sim; porém como a razão vence a autoridade, não seguimos nesta parte as
doutrinas destes grandes Mestres. Entre os Católicos é cousa evidente de fé que todas as
divindades do Paganismo foram fabulosas; e deste modo não se pode descobrir meio com
que estas possam entrar em uma Epopéia feita por pena católica, porque não vêm a
significar cousa alguma,principalmente atribuindo-lhes como os Gentios poder e atributos
divinos e pintando-as com aquelas mesmas cores com que as pintava a Poesia gentílica,
segundo fez Camões; e por este motivo não pode subsistir a opinião de Garcez Ferreira
comentando a este Poeta, em que diz que por estas falsas divindades se podem entender os
Planetas e causas segundas; pois a cada passo nos pinta Camões,v.g. Vênus,Baco e outros
Deuses, como os formariam os Poetas pagãos”26
E especifica: se é próprio da epopéia o admirável e extraordinário, por conta disso não
deve padecer a verossimilhança, o que ocorre com a introdução de divindades fabulosas
que figuram falsamente os atributos do Deus verdadeiro. A decorrência do uso da máquina
mitológica greco-latina é que não se instruem os costumes como deve ser, pois poetas que
usam do artifício só fazem o leitor perder tempo, embora agradavelmente, como diz Lamy
em sua Arte Poética.

25
Candido Lusitano. Arte Poética. Ed. cit., Livro III, cap. I, p. 168.
26
C.Lusitano. Arte Poética. Ed. cit., Livro III,Cap. III, pp.182-183.
17

A interdição do maravilhoso antigo refere-se à teologia católica; Cândido Lusitano


concede que o poeta use de nomes de divindades pagãs como ornato ou alegoria
transparente, quando se refere a coisas físicas, dizendo por exemplo que Marte acende os
ânimos, para significar uma guerra; da mesma maneira, dons da natureza podem ser
figurados por seres fabulosos, a beleza por Vênus, a ciência por Minerva etc.

As três funções indo-européias


Nas formas variadas da ação heróica imitada nos poemas épicos deste livro, o
leitor encontra vestígios da longuíssima duração das três funções indo-européias estudadas
por Otto Höfler, Geo Widengren, Hermann Lommel, Georges Dumézil, Émile Benveniste,
Jean-Pierre Vernant etc. Dumézil demonstrou abundantemente que o mundo indo-europeu
é ordenado pela “ideologia”, como diz, de que o homem e a sociedade não vivem se não
houver colaboração harmônica de três funções superpostas, soberania, força e fecundidade.
Nas grandes epopéias indo-européias, o Mahabharata hindu, a Ilíada grega, a Eneida
latina, a Ynglingasaga e a Edda nórdicas, o Vistap Yast persa, os cantos ossetas, os cantos
celtas de Cuchulainn de Ulster etc., os heróis derivam de deuses e figuras míticas
fundadoras em que as três funções se manifestam e hierarquizam.

Estudando a matéria épica do Mahabharata, Dumézil demonstrou que os Pandava,


Pandu e seus cinco filhos, desenvolvem, por seu caráter, ações e aventuras, as três funções:
Pandu e o maior dos Pandava, Yudhishthira, ambos reis, encarnam a soberania; o segundo
e o terceiro dos Pandava, Bhima e Arjuna, figuram os dois aspectos, brutal e gentil, da força
guerreira, que o Rgveda funde em Indra; o quarto e o quinto filhos, os gêmeos Nakula e
Sahadeva, têm qualidades dos gêmeos divinos, como os Dióscuros gregos: bondade,
humildade, serviçalidade, habilidades na criação de cavalos e vacas. Nas fábulas celtas, as
três funções são distribuídas do mesmo modo no agrupamento dos heróis, com a
designação coletiva “Filhos de Don”. Em Roma, as funções estão figuradas e patrocinadas,
em sua hierarquia, nos deuses da tríade precapitolina, Júpiter, Marte e Quirino: Júpiter e sua
variante, Dius Fidius, figuram o poder e o direito da soberania; Marte é o deus guerreiro e
Quirino corresponde à prosperidade agrícola. Conforme Dumézil, Roma não reuniu seus
heróis trifuncionais num grupo de irmãos hierarquizados e contemporâneos, como fazem o
Mahabharata e os poemas celtas, mas os distribuiu no tempo, na sucessão dos quatro
18

primeiros reis, Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio, Anco Márcio, que, por suas
iniciativas, figuram e agregam uma das funções. Rômulo, semideus criador da cidade, é rei
temível, acompanhado de achas, varas e ligaduras; Numa, sábio e religioso, funda os cultos,
os sacerdócios e as leis; Tulo Hostílio, chefe exclusivamente guerreiro, dá a Roma o
instrumento militar do poder; Anco Márcio, sob o qual se desenvolve a plebe romana e a
riqueza comercial, não faz guerra se não é constrangido a fazê-la para defender a cidade.
Dumézil estabelece correspondências entre Rômulo-Varuna e Numa-Mitra na função da
soberania; Tulo Hostílio corresponde a Indra, função guerreira; Anco Márcio, a vários
27
deuses, como Quirino . Quanto à épica grega, Dumézil lembra que a terceira função
compreende, ao lado da fecundidade e riqueza, também a beleza e a voluptuosidade. No
julgamento de Páris, a Afrodite que compete com Hera, doadora de soberania, e com Atena,
doadora de vitória guerreira, oferece ao príncipe troiano justamente “ a mais bela das
mulheres”, causa da guerra de Tróia cantada na Ilíada28.

Em múltiplos atores e formas épicas, a função da soberania concentra a sacralidade


e o poder, no sentido antropológico de uma chefia ou condução de homens figurada como
autoridade política de caráter eletivo ou hereditário com fortíssima conotação sagrada,
privilégios cerimoniais e econômicos, como é o caso de Agamêmnon, Menelau e Príamo,
na Ilíada; de Ulisses e Alcino,na Odisséia; de Turno, na Eneida. O rei- o wa-na-ka hitita,
o anax micênico, o basileus grego, o rahja hindu, o rex, o dux, o imperator latinos- é
responsável pela vida religiosa; cuida do ritual, da celebração de festas em honra de vários
deuses, fixa os sacrifícios, as oblações vegetais, as oferendas29. Poemas épicos dos séculos
XIII e XVI que imitam as epopéias gregas e latinas transformando a matéria histórica das
guerras das Cruzadas mantêm as características gerais da função da soberania nas formas
cristianizadas do poder, como ocorre na ação de Carlos Magno em luta contra os
sarracenos, na Canção de Rolando; na luta de D.Rodrigo de Bivar, El Cid, contra os

27
Cf. Dumézil, Georges. “Mito y Epopeia”. In El Destino del Guerrero. México, Siglo Veinteuno, 1971,
p.22: “Mas advirtamos primeiro- isso não foi feito suficientemente- que o ‘ sistema’ formado pelos primeiros
reis de Roma não é uma descoberta de nossos estudos: os romanos o compreendiam, explicavam-no e o
admiravam como sistema e viam nele o efeito da benevolência divina: não fizemos mais que considerar esse
sentimento”.
Cf., no canto VI da Eneida, a caracterização funcional desses reis, quando Anquises apresenta a Enéias os
futuros primeiros reis de Roma.
28
Dumézil, op.cit. p.99.
29
Vernant, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris, PUF,1969, pp. 23-24
19

muçulmanos; na ação dos reis portugueses representativos da fé cristã que devastam as


“terras viciosas” de África e de Ásia, em Os Lusíadas; na ação de Gofredo de Bouillon
como chefe da cruzada contra os árabes, em A Jerusalém Libertada.
Simultaneamente, a segunda função evidencia-se na atividade guerreira do herói
responsável pela segurança do grupo e pelo apoio a sua expansão. O guerreiro é aristocrata,
inicialmente homem do carro, a biga e a quadriga, e, depois, desde Roma até o século
XVIII, homem do cavalo, eques, perfeito cavaleiro especializado em armas e técnicas
bélicas, oposto ao pastor e ao agricultor. Como na Índia, em que ao vaiçya, agricultor
(viç,cf. latim vicus, grego oikos,o grupo de casas), isto é, o homem da vila, se opõe o
kshatrya, o guerreiro (de kshatram: /poder,posse/)30; ou, ainda, como na oposição medieval
dos milites, bellatores,“soldados”, “guerreiros” armados, e dos rustici, laboratores,
“rústicos”, “lavradores”, “camponeses”; e nos séculos XVI e XVIII, “fidalgos”,
“aristocratas” e “peões”, “plebeus”. No Mahabharata, Indra, Arjuna,Krishna e mais
avatares heróicos figuram essa função, como Aquiles e Heitor o fazem na Ilíada, Enéias na
Eneida, Thor na Ynglingasaga nórdica, Cuchulainn nos cantos celtas da Irlanda; os heróis
e heroínas, Rolando, Orlando, Angélica, Ruggiero, Bradamante, Armida, Hermínia,
Clorinda, Gofredo, Tancredo, Rinaldo, Vasco da Gama, Jorge de Albuquerque Coelho,
Albuquerque, Diogo Álvares Corrêa, Gomes Freire de Andrade, Sepé, Caitetu, Aimbirê
etc., nas epopéias cristãs, todos eles com as qualidades de “perfeitos cavaleiros”: nobres,
fortes, corajosos. No caso das epopéias do século XVI, que estilizam motivos das canções
de gesta e romances medievais, a ação guerreira figura a força posta a serviço de Deus e
dos pauperes, os “pobres”, conforme a ética cristã da justiça sacralizada na matéria
medieval na cerimônia iniciática do adubamento do cavaleiro andante. Desde os gregos, o
herói épico costuma fazer parte de uma fratria, um comitatus ou Gefolgschaft, o grupo dos
sodales ou camaradas unidos no “companheirismo” caracterizado pela amizade e
solidariedade de iguais rudemente corteses a que não faltam, várias vezes, as cores do amor
de que Aquiles e Pátroclo fornecem o modelo.
A terceira função é “econômica”, em sentido amplo, aparecendo na epopéia
associada às formas descritivas de conhecimentos técnicos, de atividades agrícolas,
pecuárias e comerciais, e suas propriedades e efeitos, riqueza, prosperidade, prazeres e

30
Vernant , Jean-Pierre. Op.cit. p. 26.
20

virtudes fecundas31. No caso dessa função, os personagens que a figuram costumam ser
benévolos e benfeitores, como a Vênus da Eneida e de Os Lusíadas.
O núcleo do gênero épico é a segunda função, a guerreira, a que se associam
complementarmente as outras duas. Res gestae Regumque,Ducumque,et tristia bella,/Quo
scribi possent numero, monstravit Homerus, como se viu na fórmula de Horácio: “Coisas
feitas de Reis e de Capitães e tristes guerras/ O número em que possam escrever-se mostrou
Homero”. Desde a Eneida, as epopéias que o imitam compõem a enunciação do narrador
como lembrança das res gestae dos heróis do enunciado. Como a matéria lembrada e
estilizada é antes de tudo coletiva, a imaginação do narrador transcende a experiência
individual do poeta, pondo em cena a memória anônima das ações exemplares que
condensam a função. Assim, como foi dito, a epopéia homérica é poesia que transforma
mythoi- imitações de ações ou narrativas, fábulas e “contos” coletivos e anônimos. A
partir principalmente da Eneida, de Virgílio, até o século XVIII, enquanto os preceitos da
Poética aristotélica têm legibilidade, a epopéia estiliza o discurso da história escrita como
sua matéria principal.
Nessa imitação, ela é, já se viu, discurso narrativo longo, quase sempre em verso
heróico, o hexâmetro datílico, e, principalmente a partir da Comédia, de Dante, em verso
decassílabo heróico, imitando a ação inteira e perfeita de personagem guerreiro ou heróico
em situação de guerra histórica ou mítica, real ou fictícia. Hegel lembrava as tristia bella do
verso de Horácio quando escreveu que, de modo geral, a situação que mais convém à
epopéia é caracterizada pelos conflitos do estado de guerra. Na guerra, é a nação inteira que
se põe em movimento estimulada a agir, pois trata de defender a “totalidade” da vertente
natural do seu caráter nacional pressuposta no idealismo do filósofo, evidenciando-a no
herói representativo, que sempre age movido por uma finalidade concreta32. Guerra feita
preferencialmente contra grupo ou nação estrangeira, lembra, criticando a Farsália e a
Henriade como epopéias defeituosas: Lucano e Voltaire tratam de guerras civis que
dividem a totalidade de um povo, não de guerras entre totalidades.

A matéria histórica e a ficção épica

31
Cf. Scarpi, Paolo. Politeísmos: As Religiões do Mundo Antigo. São Paulo, Hedra, 2004, p.84.
32
Hegel, G.W.F. Eshétique (Trad. Intégrale de S. Jankélévitch). Paris, Aubier-Montaigne, 1944, Tome III,
pp.111-112.
21

No capítulo IX da Poética (1451b), Aristóteles faz a distinção conhecida: a história


é narração feita conforme a verdade das ações humanas memoráveis que efetivamente
ocorreram. A poesia épica também é narração, mas composta segundo a verossimilhança
de ações humanas memoráveis possíveis de ocorrer. Logo, a poesia é mais filosófica que a
história, pois não narra a particularidade e a verdade dos eventos que ocorreram, mas põe
em cena o universal, o tipo de coisa e ação que determinados homens diriam e fariam
conforme a necessidade e a verossimilhança do seu caráter. Comentando a Poética
minuciosamente, Lodovico Castelvetro distingue: poesia é similitude ou semelhança de
história e, assim como história se divide em duas partes, matéria e palavras, também
poesia se divide em matéria e palavras, mas difere em ambas. Basta lembrar que o
historiador não recebe a matéria do seu próprio engenho, mas das coisas do mundo ou da
vontade manifesta ou oculta de Deus. Quanto às palavras, fazendo o encômio de homens
exímios e grandes feitos, o historiador usa as ordinárias, com que se raciocina e fala
diariamente; as do poeta são artificiais, translatas, metafóricas, sublimes, medidas em
verso33.
É básico observar que a verossimilhança não pressupõe a empiria como critério da
plausibilidade do que a epopéia narra. Como toda verossimilhança, o verossímil épico é um
efeito de adequação produzido pelo destinatário quando relaciona o discurso do poema com
discursos de gênero histórico. A forma da poesia épica – ficção em estilo sublime de fábula
composta de ações valorosas de personagens heróicos- deve ser semelhante à matéria da
história- guerras históricas, feitos de homens históricos - mas não idêntica. Se o fosse, o
poema não seria poesia, nem causaria prazer com a engenhosidade do artifício verossímil.
Logo, a história é coisa representada e a poesia, coisa representante34. A poesia é coisa
representante como semelhança de três espécies: semelhança de meios, como palavras,
ritmo, estilo; semelhança de matéria, os homens melhores, os piores e os medianos;
semelhança de modo imitativo, narração e representação.
A distinção aristotélica de história e poesia significa que a ficção épica não é nem
deve ser lida como documento de coisas e ações empíricas, pois sua narração estiliza a
matéria histórica numa maneira elevada, que põe em cena e celebra, por semelhança, a

33
Castelvetro, Lodovico. Poetica d’ Aristotele Vulgarizzata e Sposta. A cura di Werther Romani. Roma-Bari,
Gius. Laterza & Figli, 1978, 2 v., I, p.44.
34
Castelvetro, Lodovico. Op.cit. vol. I, p. 44
22

forma essencial ou universal da ação, caracterizando-a como heróica ou ilustre, grande e


perfeita. A distinção de coisa representada/coisa representante feita por Castelvetro é
fundamental, portanto, para o destinatário determinar a adequação dos preceitos da
imitação épica da história quando avalia o efeito poético, pois a verossimilhança da coisa
representante depende da verdade da coisa representada. Como diz D. Francisco Manuel de
Melo: “As histórias do mundo são uns espelhos claríssimos donde, vendo nós retratados as
famosas ações, que não vimos, nos acendemos utilmente no amor delas”35.
Prescreve-se, geralmente, que o poeta épico deve preferir a matéria histórica a
matérias fictícias, pois a imitação de ações escritas e guardadas na memória dos pósteros é
verossímil. Tasso diz que sucessos extraordinários não podem ser incógnitos, por isso
nenhuma fábula fingida é digna de recomendação, pois é inverossímil a imitação de um
grande feito desconhecido36. Complementando o preceito, afirma que o poeta heróico
exerce “magistratura moral” nos círculos letrados das academias e das cortes como
“homem de bem e bom imitador das ações e costumes dos homens a fim de ser útil pelo
prazer”37.
Lembre-se novamente o tempo contra-reformista de sua definição: o poeta católico
do século XVI assemelha-se ao pregador que tem “o seu fundamento no verdadeiro”, as
matérias de uma história sacra iluminada pela Graça. No entanto, como a poesia nunca é a
história, ainda que sempre histórica, o poeta imita a matéria da história sacra buscando não
a verdade, mas o prazer da surpresa e do espanto- il mirabile, la maraviglia- do artifício
mimético:
“Antes de qualquer coisa, o poeta deve observar se na matéria que vai tratar há
algum acontecimento que, se tivesse ocorrido de outro modo, teria sido mais admirável e
verossímil ou por outro motivo teria produzido maior prazer; e todos os acontecimentos que
ele achar assim feitos (ou seja, que pudessem ter ocorrido melhor de outro modo)sem

35
Melo, D. Francisco Manuel de. Epanáfora Triunfante Quinta (Restauração de Pernambuco, 1654). Lisboa,
1660, p. 479.
36
Cf. Bédier, Joseph. Les Légendes Épiques. Recherches sur la formation des chansons de geste.
Paris,Honoré Champion, 1912, III, pp.3-4: “O que se chama a epopéia francesa, ou- com um nome mais
familiar aos homens da Idade Média-as canções de gesta, são setenta ou oitenta romances, todos do século XII
ou do século XIII. Na maioria, são romances históricos, pois põem em cena personagens que viveram
realmente entre o século V e o X, Clóvis ou Carlos o Calvo, Girard ou Carlos Magno, Roland ou Raul de
Cambrai. “
37
Citado por Christian Mouchel. « Les rhétoriques post-tridentines(1570-1600) : la fabrique d’une société
chrétienne ». In Fumaroli, Marc (Dir.). Histoire de la rhétorique dans l’Europe moderne 1450-1950. Paris,
PUF, 1999, p. 440.
23

nenhum respeito da verdade ou da história que ele os mude e os mude ainda à vontade, que
ele os ordene e reordene e transforme da maneira que julgar melhor, mesclando o
verdadeiro com o fictício, mas de modo que o verdadeiro seja o fundamento da fábula,
como o ensina Aristóteles na sua Retórica e Alessandro Piccolomini em seu livro
Estrelas”38.
A narração dos poemas épicos deste livro reedita com maior ou menor fidelidade os
preceitos e as tópicas das definições aristotélicas, latinas e quinhentistas do gênero. Ela
compõe enunciados representantes, no sentido de Castelvetro, verossímeis ou semelhantes
à matéria histórica de momentos da colonização portuguesa: lutas, no século XVI, de
Jorge de Albuquerque Coelho, donatário de Pernambuco e Itamaracá, contra o gentio do
Nordeste, depois de ter vencido infiéis árabes na África e Ásia (Prosopopéia); pacificação e
conquista do território das Minas Gerais por herói ilustre, Albuquerque, no início do século
XVIII (Vila Rica); lutas contra invasores franceses huguenotes, conquista espiritual de
almas de índios por jesuítas, ação heróica de Diogo Álvares Pereira, no século XVI
(Caramuru); louvor do herói Gomes Freire de Andrade como emissário da civilização do
Marquês de Pombal defensora do direito natural das gentes, destruição do monopólio
jesuítico das missões dos Sete Povos do Uruguai, derrota dos índios guaranis pelo exército
português e espanhol na segunda metade do século XVIII (O Uraguai); luta nacionalista de
índios tupis federados contra portugueses no século XVI (Confederação dos Tamoios);
ação do tupi sublime não adequada à honra necessária para o sacrifício ritual que reitera a
originalidade ou nacionalidade de sua raça (I-Juca Pirama).
O preceito que determina a imitação da história pela ficção épica tem sua função
especificada retoricamente pelo docere, a utilidade: a epopéia ensina o amor das virtudes do
herói e seria inverossímil, pouco ou nada persuasivo, propor como modelo de virtude um
herói inexistente e ações que nunca ocorreram. Assim, entre outras razões que se verão
adiante, a fábula épica também é única por tratar de uma ação ilustre ou heróica abstraída
de matéria histórica considerada relevante: a guerra de Tróia; a origem de Roma; um novo
reino sublimado, a conquista de mares nunca dantes navegados; a libertação de Jerusalém
do domínio de infiéis; vitórias católicas contra o gentio e hereges; pacificação das Minas
Gerais; derrota da superstição religiosa, defesa do direito natural e civilização das Luzes
etc.

38
Tasso, T. Op. cit. Lib. III,pp.562-563.
24

Em geral, a epopéia do século XVI indicia a imitação da história, como faz


Camões na dedicatória de Os Lusíadas. Afastando-se de Ariosto, propõe ao rei D.
Sebastião que imita o discurso da história portuguesa; logo, seus heróis são “verdadeiros”:
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas,fingidas,mentirosas,
Louvar os vossos,como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas.
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas,fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando,inda que fora verdadeiro. (Os Lus. I, 11)
As épicas luso-brasileiras do século XVIII anexam argumentos históricos e notas,
fornecendo explicações de “uma clareza extrínseca e mendigada” à fábula, como diz Tasso
censurando o uso que tende a subordinar o possível épico ao real histórico.
Para os autores dos séculos XVI e XVIII, era verossímil, enfim, a imitação de ações
históricas que tinham sido escritas e passadas aos pósteros como sucessos cristãos dignos
de memória. Os poetas não inovam quanto à matéria imitada, que é conhecida do público
contemporâneo, mas naquilo que Torquato Tasso chama de “nó”, a fábula e seu
desenvolvimento ficcional. A ficção da fábula implica a possibilidade de propor outro
modo mais admirável do desenrolar dos acontecimentos, como se viu com Tasso, com a
liberdade de mesclar o verdadeiro com o fictício, mas sempre subordinando a liberdade
poética à verossimilhança.
As partes de quantidade e de qualidade da epopéia

As definições do gênero épico especificam que, assim como a tragédia, a epopéia


tem partes de quantidade e qualidade. As de quantidade correspondem à materialidade do
poema: título, proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo. As de qualidade são
as mesmas da tragédia: fábula, costumes, pensamento e elocução.

As partes de quantidade

Geralmente, os preceptistas propõem que a epopéia tem seis partes de quantidade:


título, proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo. Dessas, duas são
consideradas acessórias, a dedicatória e o epílogo.
25

É praxe buscar o título do poema ou no herói (Eneida, de Enéias, Odisséia, de


Odisseu; Caramuru, apelido de Diogo Álvares Correa etc. ) ou no lugar da ação (Ilíada, de
Ílion, Tróia, Vila Rica, O Uraguai etc.).

A proposição apresenta a ação, uma guerra ou uma navegação, devendo-se evitar o


estilo ampuloso ou inchado de fórmulas como “Dos sucessos de Príamo, e da nobre/ Guerra
celebrarei a vária história”39, apresentando-se o argumento de modo simples e grave:
“Arma virumque cano”, “As armas e os barões assinalados” etc.” Deve-se acrescentar algo
glorioso, que faça o elogio de uma nação ou de um povo: Genus unde Latinum,/Albanique
Patres, atque altae moenia Romae, “(...) donde a raça Latina, os Pais Albanos e as
muralhas da ilustre Roma”, como em Virgílio.

A proposição não pode apresentar nem o gênero nem a espécie, mas o indivíduo a
ser cantado, por isso não deve dar notícia de nenhum episódio. Camões foi censurado por
ter falado das “memórias gloriosas daqueles Reis”. Nesse sentido, também a proposição do
Orlando Furioso é considerada defeituosa, pois Ariosto propõe “mulheres, cavaleiros,
armas e amores”, confundindo episódios com a ação principal, segundo preceptistas. Da
mesma maneira, Cláudio Manuel da Costa erraria, segundo o preceito, pois propõe o
resultado da ação do herói, o episódio, no lugar do próprio herói e sua ação:
“Cantemos,Musa, a fundação primeira/Da Capital das Minas,onde inteira/Se guarda ainda,e
vive inda a memória/Que enche de aplauso de Albuquerque a história”.

De modo geral, os preceptistas determinam que o poeta comece a proposição com


um acusativo ou objeto direto- como faz Virgílio com dois, “Arma virumque cano”, e
também Camões, que o segue de perto: “As armas e os barões assinalados...cantando
espalharei”. Adotando a lição de Tasso, Cândido Lusitano explica que o acusativo e mais
complementos se afastam da disposição da frase natural com gravidade e obscuridade
adequadas ao estilo sublime. Outro preceito é da Poética, de Vida: a proposição deve
ocultar o nome do herói; se o nomeia, deve ser com os títulos da sua dignidade40.

E Marcos Martinho diz: “Ora, em geral, isso de acusativos encabeçar a proposição


do canto seria rememoração de Homero, uma vez que tanto a proposição da Ilíada é

39
Horácio,Arte Poética. Ed. cit. XV.
40
Candido Lusitano. Arte Poética. Ed. cit. p. 199.
26

encabeçada pelo acusativo mênin ou ‘ira’, como a da Odisséia, pelo acusativo ándra ou
‘varão’. Em particular, porém, o segundo acusativo, virum [ de ‘arma virumque cano’],
seria tradução do ándra da Odisséia, mas o primeiro, arma, não o seria do mênin da
Ilíada”41

Segue a invocação, pedido de inspiração à Musa. Prescreve-se a invocação como


essencial, pois a Musa justifica a presença do maravilhoso como revelação divina feita ao
poeta. A Musa, diz Virgílio, tem e dá memória (En., VII 645; IX 529). Obviamente, poetas
católicos devem invocar Deus e filiais, anjos, santos etc. Tasso pede auxílio à Musa
celestial, mas não Camões, que inventa as Tágides e, como Virgílio- “Vos, o Calliope,
precor, aspirate canenti”(En. IX 525) (Vós, ó Calíope, inspirai ao cantante”)- pede auxílio
à Musa heróica- “Agora tu, Calíope, me ensina/O que contou ao Rei o ilustre Gama,/Inspira
imortal canto e voz divina/Neste peito mortal que tanto te ama” (Os Lus., III, 1, 1-4).

Cândido Lusitano afirma que Homero dá o exemplo para todos, quando funde
invocação e proposição, pois a Musa deve preceder o herói por uma razão principal: é mais
religioso ou piedoso confiar as coisas grandes à proteção superior antes de começar o canto
que iniciá-lo dizendo “Eu canto” e só depois pedir auxílio. Outra razão é que a divindade
posta no início torna o poema mais magestoso, honesto e grave. Além disso, a presença do
nume demonstra que o poema canta coisas inexplicáveis que um homem sozinho não
alcança fazer e entender. E, por fim, a Musa confirma a fama do poeta como homem
animado de furor divino. Basílio da Gama realiza o preceito: “Musa, honremos o herói,que
o povo rude/Subjugou do Uruguai...”(O Uraguai, I-6-7)

Quanto à dedicatória, não deve equiparar o poderoso a uma divindade que inspira o
canto, pois o artifício demonstra que a subserviência é excessiva. Como se sabe, ela sempre
deve ser virtuosa. Quanto ao epílogo, não é necessário, mas grandes poetas o usaram, como
Camões: “Não mais, Musa...” Etc.

A narração é a principal parte de quantidade da epopéia. Deve dar conta da ação


única e inteira, feita como começo, meio e fim, incluindo ações secundárias ou episódios.
Embora alguns autores digam que a Ilíada começa a narração em ordem natural (ordo

41
Cf. Martinho, Marcos. “Da Disposição da Eneida, ou do gênero da Eneida segundo as espécies da Ilíada e
da Odisséia”. In Letras Clássicas n. 5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP, 2001 (2005), p. 169
27

naturalis), contando do mais recuado do passado até o presente do narrador, o que foi
seguido por Lucano e muitos poetas, prescreve-se a ordo artificialis ou ordem artificial.
Assim, afirma-se que a Farsália seria muito melhor se Lucano tivesse começado a narração
pondo César e Pompeu em luta na Tessália para depois voltar às coisas sucedidas antes, ao
invés de começar ab ovo, do início da contenda. A principal razão de a ordem natural ser
considerada defeito é o tédio do encadeamento linear de uma coisa depois de outra, como
afirma Scalígero, que propõe a ordem artificial como adequada para manter o ânimo do
leitor suspenso e curioso, coisa que não ocorre com a ordem natural própria do gênero
histórico, que particulariza as ações ocorridas desde o início.

Cândido Lusitano lembra ainda as partes de quantidade material da narração, como


os “livros” ou “cantos” e as “estâncias” de cada um deles. Muitos poetas, como Boiardo,
imitam Virgílio e dividem o poema em “livros”. Outros usam “cantos”, seguindo Dante. É
o caso de Pulci, Ariosto, Camões, Tasso, Bento Teixeira, Cláudio Manuel da Costa, Basílio
da Gama, Santa Rita Durão e Gonçalves de Magalhães.

As partes de qualidade
A fábula
A fábula épica é feito ilustre, grande ação de herói, rei ou chefe, que ensina uma
verdade moral com o exemplo espantoso. Narrada como ficção semelhante à história,
exige a ordem artificial (ordo artificialis), o uso de caracteres, pensamentos e costumes
heróicos com palavras de estilo alto ou sublime. Segundo os preceptistas, deve ser grande,
maravilhosa, inteira, una e verossímil.
Figura uma única ação, com começo, meio e fim, diferenciando-se da narração
histórica, que trata de um único tempo ou de todos os acontecimentos que sucederam a um
ou mais homens no decorrer de todo o tempo de sua existência. Na sucessão temporal de
uma vida, lembra Aristóteles, as coisas acontecem umas depois de outras ou
simultaneamente, sem ordem, começo e fim comuns (Poet. 23, 1459ª). Nesse sentido,
Homero é modelo para toda epopéia, porque não trata de toda a guerra de Tróia, mas só
de parte, evitando complicar a fábula com a multiplicidade de eventos diversos que
tornariam impossível memorizá-la.
A grandeza da ação, o caráter e as palavras do herói tornam a fábula maravilhosa
porque com eles o poeta narra o possível fictício, não o verdadeiro histórico. É preciso
28

insistir no artificioso do artifício: a fábula épica é dessemelhante das ações rotineiras,


prescreve Aristóteles, mas nunca transposta da empiria, nunca absurda ou
desproporcionada, pois composta com arte que corrige e aperfeiçoa a natureza. Assim,
também o maravilhoso da máquina mitológica- o sobrenatural pagão e cristão- é funcional:
torna a fábula extraordinária, elevando-a ao sublime. Virgílio diz que Enéias desce ao
Hades e que ali vê e faz coisas extraordinárias porque escreveu a Eneida imitando as
opiniões verdadeiras em seu tempo, que acreditava na existência do mundo das sombras.
No caso, Homero pode cochilar mais que Sófocles, pois o maravilhoso épico é mais
fácil de crer que o verossímil trágico.Na epopéia, presta-se menos atenção às
incongruências, pois narra ação que tem de ser imaginada pelo ouvinte ou leitor,
diferentemente da tragédia, em que o extraordinário é visto diretamente em cena. Quando
compõe a fábula, o poeta épico relaciona extensão e ornamentação, sabendo, com
Aristóteles e Horácio, que há distâncias convenientes, formuladas como maior ou menor
clareza, a serem mantidas entre as tópicas da invenção, as partes da disposição e as
palavras da elocução para efetuar a verossimilhança. A extensão da fábula deve equivaler
ao tamanho de um ser vivo que o olho da memória do destinatário apreende num relance.
Na Retórica, o orador que fala com minúcias ornamentais ou desenvolve argumentação
intrincada numa assembléia ruidosa não é seguido nem apreciado42; assim, deve adequar o
discurso à recepção, desenvolvendo-o genericamente com grandes traços, como se fizesse
um esboço rápido. Como a matéria elevada do gênero épico exige a narração de amplas
ações e caracterizações de personagens ilustres, a fábula deve ser suficientemente longa
para poder contê-los, prevendo que a memória do destinatário deve retê-los como unidade
de princípio-meio-fim. Logo, a mesma extensão determina a composição da fábula como
discurso para ser recebido à distância, de uma vez só, e não de perto, obrigando o
destinatário a examinar ou interpretar várias vezes o que lê e ouve. O poeta épico obtém o
efeito de observação à distância por meio da clareza elocutiva: evita minúcias descritivas e
expressões figuradas muito agudas ou herméticas, pois contradizem o todo da extensão da
fábula. Tornando suas partes difusas, também tornam o todo difícil de memorizar, pois
freiam, com a necessidade de observação minuciosa dos detalhes, a rapidez e a intensidade
da ação narrada.

42
Aristóteles. Retórica 3,9,3,140.
29

Os preceptistas dos séculos XVI, XVII e XVIII insistem em afirmar, no entanto, que
a epopéia é gênero para ser lido. Diferentemente do drama - cuja representação breve e
contínua não permite que o espectador volte ao início- a extensão da fábula passa a ser
definida como função da leitura. Galileu a pressupõe como critério técnico que aplica à
avaliação da qualidade poética da elocução de Orlando Furioso e de A Jerusalém
Libertada. Propondo a pintura como termo de comparação para a disposição e ornatos dos
poemas, Galileu desqualifica Tasso, afirmando que as transições bruscas e o acúmulo de
tropos e figuras agudamente herméticos são responsáveis pela falta de coesão estilística de
A Jerusalém Libertada, que aparece à leitura como pintura "társia", como que feita de
tesserulae, pedrinhas de mosaico, metaforizadas por Cícero no Orador, 149, como lumina,
" luzes". Quanto a Ariosto, afirma que seus versos dispõem os detalhes da ação narrada um
ao lado do outro, como cores cujos limites se esfumam docemente em uma tela. Conforme
Galileu, o leitor lê Orlando Furioso como se andasse por uma longa galeria alta e
iluminada onde, em toda a extensão, vão-se dispondo obras de arte em espaços regulares,
formando um todo claro e unificado. Já o poema de Tasso é literalmente con-fuso, oblíquo
e fantástico 43.
Questão bastante debatida no século XVI é a do princípio da ação da fábula.
Retoma-se o que Aristóteles determina: é princípio da ação aquela parte que não depende

43
“Uno fra gli altri difetti è molto familiare al Tasso, nato da una grande strettezza di vena e povertà di
concetti, ed è che mancandogli bem spesso la materia, è costretto andar rapezzando insieme concetti spezzati
e senza dependenza e connessione fra loro; onde la sua narrazione ne riesce piè presto uma pittura intarsiata
che colorita a olio; perchè essendo le tarsie um accozzamento di legnetti di diversi colori,com il quale non
possono giammai accopiarsi e unirsi così dolcemente,che non restino i lor confini taglienti,e dalla diversità
dei colori crudamente distinti,rendon per necessità le lor figure secche,crude, senza tondezza e rilievo;dove
che nel colorito a olio sfumandosi dolcemente i confini si passa senza crudezza dall’uma all’altra tinta,onde
la pittura riesce morbida,tonda, com forza,e com rilievo. Sfuma e tondeggia l’ Ariosto, come quelli che è
abbondantissimo di parole, frasi,locuzioni e concetti(...).
Cf. Galileo Galilei. Considerazione al Tasso. In Opere Letterarie.Con prefazione di Riccardo Balsamo
Crivelli e note di vari. Milano, Casa Editrice Sonzogno, s/d, p.25-26. Wesley Trimpi propôs que, segundo
Galileu, o poema de Tasso parece uma Kunst-und-Wunderkammer, uma saleta de maravilhas repleta de
singularidades triviais e isoladas que não se encadeiam linearmente, mas devem ser vistas uma a uma,
acumuladas na obscuridade do recinto. Se em Ariosto a poesia é produzida como galeria de pinturas que o
olho percorre linearmente, vendo-as com clareza, de longe e de uma só vez, em Tasso cada minúcia brilha na
obscuridade da câmara para ofuscar o olho, que perde o sentido do todo, enquanto se detém para observar,
de perto e várias vezes, partes e minúcias das partes. Ao contrário de Galileu, Emanuele Tesauro
hipervaloriza Tasso, quando escreve agudamente que a estrela da agudeza engenhosa evita a claridade onde
perde a luz, exigindo a noite hermética dos conceitos enigmáticos para que seu brilho passe sob o arco do
triunfo do cílio admirado do observador. Cf. Trimpi, Wesley- "The early metaphorical uses of SKIAGRAPHIA
and SKENOGRAPHIA" in Traditio (Studies in ancient and medieval history, thought and religion). New
York, Fordham University Press, 1978, vol. XXXIV, pp.412-413.
30

necessariamente de coisa passada.Ao mesmo tempo, propõe-se que a ação é princípio


quando determina funcionalmente as ações seguintes. E isso porque, diz Castelvetro, há
muitas coisas que, depois do princípio, não aparecem imediatamente como meio e fim, mas
tardam a aparecer, sendo conveniente que dependam do princípio, pois, doutro modo, não
seriam nem meio nem fim44. Logo, a fábula deve ter um princípio independente de outra
ação anterior. O princípio do poema de Ariosto depende necessariamente de Orlando
Enamorado, do conde Matteo Maria Boiardo. Sem o conhecimento dele, o leitor não
consegue entender o princípio de Orlando Furioso e Ariosto erra poeticamente, segundo
Castelvetro, por não ter inventado um princípio decoroso.
Se o princípio da fábula pressupõe coisa seguinte, que é ou que será, o fim deve
pressupor coisa passada, que é ou que foi. Horácio e Rodolfo Agricola prescrevem que a
ordem da narração das ações do meio do poema postas depois do princípio e antes do fim é
artificial, afirmando que Homero a seguiu na Ilíada e na Odisséia e, do mesmo modo,
Virgílio, na Eneida. Homero põe como princípio da Ilíada coisas ocorridas no meio da
guerra de Tróia, o desentendimento de Aquiles e Agamêmnon, para narrar ora as coisas do
início, ora as coisas do fim da mesma. E, na narração do retorno de Ulisses para Ítaca, põe
como princípio as coisas ocorridas perto do fim, a partida do herói de Ogígia, a ilha de
Calipso, para fazê-lo chegar a Corfu onde, depois de ser achado por Nausicaa, começa a
narrar seus feitos para o rei Alcino. Do mesmo modo, Virgílio começa a narração da
Eneida não pelas coisas que ocorreram primeiramente, mas com as que acontecem perto do
fim, como a partida de Enéias da Sicília; e, antes que chegue o fim, inventa Dido e sua
curiosidade, para que Enéias possa contar-lhe as coisas que ocorreram no início.
Entre as analepses e prolepses que aplica, a ordo artificialis da fábula épica também
prevê, como na tragédia, a peripécia, inversão da ação, e o reconhecimento, como o do final
da Odisséia, quando Euricléia identifica Ulisses por causa da cicatriz de uma ferida na
perna45.

44
Castelvetro, L. Op. cit. pp. 208-209
45
Luzán, I. op.cit, pp.10-11. Cf. Aristóteles, Poética, cap.IV; “ ‘ Peripécia’ é a mutação dos sucessos no
contrário,efetuada do modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos, verossímil
e necessariamente.Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de libertá-lo
do terror que sentia nas suas relações com a mãe,descobrindo quem ele era,causou o efeito contrário”. “O
‘reconhecimento’,como indica o próprio significado da palavra[anagnórisis], é a passagem do ignorar ao
conhecer,que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a
desdita. A mais bela de todas as formas de reconhecimento é a que se dá juntamente com a peripécia, como,
31

No século XVI, tratando de “l’illustre de l’ eroico”, Tasso propõe que a epopéia é


uma suma das virtudes cristãs e que os personagens épicos são heróicos da mesma maneira
que toda virtude é heróica. A extensão do conceito de “virtude heróica” tem conseqüências
na definição da fábula, que passa a admitir episódios cujos motivos amplificam e
moralizam a ação principal, funcionando como alegorias de virtudes católicas consideradas
heróicas-prudência, temperança, caridade, generosidade etc. É o que já ocorre, antes da
definição de Tasso, no episódio da máquina do mundo, no canto X de Os Lusíadas. No
caso, o Amor de Deus, que orienta providencialmente a ação de Vasco da Gama, encarna-
se em Vênus, alegoria de causa segunda escolástica ou instrumento da Providência que
protege a armada portuguesa contra as ciladas dos árabes infiéis inspirados por Baco.
Diversamente do que acontece com Vasco, sempre temperado no meio-termo da prudência
escolástica, os deuses ardem com intensidade patética. Para proteger seus eleitos, Vênus é
mulher, feminina e fêmea: implora, lacrimeja, trapaceia, seduz o pai, Júpiter, e está sempre
presente com seu séquito, Cupido e as nereidas, a empurrar navios, sustar ondas, amainar
ventos, desfazer ciladas, inspirar sonhos e fornecer prazeres sensuais aos navegantes na Ilha
dos Amores, alegoria erótica do casamento do povo português com o mar, antes de
ascenderem à visão beatífica do puro inteligível da virtus unitiva do Todo, o Amor que
move o sol e as estrelas. Antônio José Saraiva lembrou a sentença de Voltaire: maravilhoso
tão absurdo desfigura a obra aos olhos de leitores sensatos, pois é inverossímil a aliança da
Vênus pagã e seus prazeres sensuais com o Deus católico e suas virtudes medíocres46.
Como Camões é uma das principais autoridades imitadas pela poesia luso-brasileira
dos séculos XVI,XVII e XVIII, é útil lembrar que evidentemente não é um iluminista
adepto do senso comum neoclássico, como Voltaire, mas platônico que compõe a forma
intelectualmente, com extrema graça, como aceno da beleza intelectual, aquela beleza
metafísica do Tratado Oitavo da V Enéada, de Plotino. Como em sua poesia lírica, Camões
inventa a fábula de Os Lusíadas como experiência da contemplação do ato do intelecto que

por exemplo, no Édipo.” “São estas duas das partes do mito: peripécia e reconehcimento. Terceira é a
catástrofe. Que sejam a peripécia e o reconhecimento, já o dissemos. A catástrofe é uma ação perniciosa e
dolorosa,como o são as mortes em cena,as dores veementes,os ferimentos e mais casos semelhantes”(XI).
46
“ O principal objectivo dos Portugueses, depois da fundação do seu comércio, é a propagação da fé, e
Vênus encarrega-se do sucesso desta empresa. Falando a sério, um maravilhoso tão absurdo desfigura
completamente a obra aos olhos dos leitores sensatos”. Cf. Saraiva, António José. Luís de Camões.2 ed.
revista. Lisboa, Publicações Europa-América, 1972, p. 185.
32

compõe os mundos possíveis da arte que transcende o tempo. A forma da fábula


certamente pressupõe a matéria da história portuguesa, onde se recorta tal escultura numa
pedra bruta; mas o poeta acredita que a pedra não tem beleza ou que, se a tem, é bela não
como matéria, mas em virtude da Forma da Idéia introduzida nela pela arte do escultor,
como se lê no Platão, no Plotino, no Marsilio Ficino, no Angelo Poliziano e no Leão
Hebreu que também estiliza em seus sonetos, canções e elegias47. A forma produzida pelo
escultor não está no material da pedra, mas no seu intelecto, antes de entrar nela. Como a
pintura em Leonardo, a poesia em Camões é cosa mentale.
Não há beleza na história, que é tempo e destruição, mas na poesia, meio de domínio
intelectual das contingências no qual o instante se eterniza na forma proporcionada para
além da morte que o determina. O mundo possível da poesia é regrado com número e
medida; nele, a liberdade do intelecto do poeta é demiurgia: o que Deus criou, o poeta o
concebe pelo ato intelectual e o figura na forma como ordem que transcende a matéria do
mundo, atestando a potência criadora participada pelo divino no homem. A poesia não é
operação do mundo sensível, apenas, como sensação envolvida e perdida nas aparências.
Antes de tudo, é ação da ordem do inteligível: “Transforma-se o amador na cousa amada/
Por virtude do muito imaginar/ Não tenho, logo, mais que desejar,/pois em mim tenho a
parte desejada”.
Logo, a invenção poética articula as sensações numa percepção sucessiva e seletiva,
intelectualmente proporcionada, que mimetiza o ritmo da alma na progressão da sua
reminiscência do Bem: “esta linda e pura semidéia/(...)está no pensamento como idéia”, diz
Camões, propondo que o “imaginar”, visão interior inteligível orientada pela discrição do
juízo, produz com a memória dos casos poéticos antigos e da matéria da história a
semidéia, semideusa, como semi-idéia, quase-idéia, construção intelectual da ascese da
alma. Assim como a pedra e o que é esculpido nela são sempre menores que a beleza
intelectual, também as armas e os barões assinalados do reino de Portugal não são nada sem
a arte que lhes dá a forma poética superior, salvando-os do esquecimento.

47
Marsilio Ficino escreve: “ A beleza dos corpos não consiste na sombra da matéria, mas na claridade e
graça da forma; não na massa obscura, mas numa espécie de harmonia luminosa; não num peso inerte e
estúpido, mas no número e na medida conveniente. Luz, graça, proporção, número e medida que percebemos
pelo pensamento, visão e audição. É para isso que tende o ardor do verdadeiro amante. O desejo dos outros
sentidos, que arrasta para o material, pesado e informe – contrário à beleza, ao amor- não é o amor, mas um
apetite estúpido, opressor e perfeitamente feio”. Cf. Chastel, André. Marsile Ficin et l’ art. Genève,
Droz&Lille, Giard, 1954, p. 87.
33

Com Saraiva, deve-se dizer que a ação dos deuses da fábula de Os Lusíadas é
funcional, como formulação alegórica que interpreta o sentido das narrativas da história do
reino e da navegação de Vasco da Gama. E, discordando de Saraiva, dizer que não há
contradição de “humanismo pacifista” e “feudalismo bélico” em Camões. Na figuração
alegórica de Vênus ou Tétis, o leitor contempla a forma-matriz platônica, a concepção de
Eros como virtus unitiva do universo, a mesma que se lê na metafísica da luz da Divina
Comédia. A ação de Vênus e dos demais deuses é uma alegoria platonizante e traduz
poeticamente a teologia escolástica que fundamenta, interpreta e orienta o sentido da
fábula. No presente de Camões, a mesma teologia doutrina as virtudes guerreiras ou feudais
que movem o rei D. Sebastião na invasão do Marrocos, justificando as ações dos heróis da
“política católica” como feitos iluminados providencialmente pela luz natural da Graça.
A mesma doutrina teológico-política é figurada como interpretação do sentido da ação
heróica nos poemas luso-brasileiros que emulam Camões nos séculos XVI e XVIII,
Prosopopéia, Vila Rica e Caramuru.
O mesmo uso da alegoria interpretada escolasticamente encontra-se no posfácio que
Torquato Tasso fez para a edição de 1581 de A Jerusalém Libertada:
“A Heróica Poesia, quase animal em que duas naturezas se juntam, de imitação e
Alegoria é composta; com aquela alegra os ânimos e os ouvidos dos homens, e
maravilhosamente os agrada; com esta na Virtude,ou na Ciência, ou numa e noutra os
ensina: e como a Épica imitação outra coisa nunca é senão semelhança, e imagens de ação
humana, assim costuma a Alegoria dos épicos da humana vida ser a figura. Mas a imitação
observa as ações do homem, que estão aos sentidos exteriores submetidas, e em torno
dessas principalmente esforçando-se para representá-la com palavras eficazes. E
expressivas, e aptas a pôr claramente frente aos olhos corporais as coisas representadas;
considera os costumes ou os afetos delas, ou os discursos do ânimo enquanto esses são
intrínsecos, mas somente quando se ouvem fora, e na fala e nos atos e nas obras
manifestando-se acompanham a ação. A Alegoria ao contrário refere-se a paixões, e às
opiniões e aos costumes, não só quando eles aparecem, mas principalmente no seu ser
intrínseco, e mais obscuramente o significa com notas (por assim dizer) misteriosas, e que
apenas dos conhecedores da natureza das coisas podem ser plenamente compreendidas.48”

Tasso interpreta a Odisséia “intrinsecamente”, alegoricamente, como ilustração da vida


contemplativa e, a Ilíada, como figura da vida política e das virtudes necessárias para ela.
Da mesma maneira, A Jerusalém Libertada admite duas leituras, segundo o poeta: a literal,

48
Tasso, Torquato. Allegoria del Poema. Tratta da vero Originale,com aggiunta di quanto manca nell’altre
Edittioni,com l’ Allegoria dello stesso Autore. Ferrara, Heredi di Francesco de’ Rossi, 1581, pp. 161-166.
34

que associa as ações da fábula aos “sentidos exteriores” ou “olhos corporais”, e a alegórica
ou “intrínseca”, feita apenas por conhecedores da natureza verdadeira das coisas, que a
lêem com “olhos intelectuais”.
Alegoricamente, o exército de vários príncipes e soldados cristãos de A Jerusalém
Libertada significa o “homem viril” ou o varão composto de alma e corpo. Sua alma não é
simples, mas distinta em muitas e várias potências. Jerusalém, cidade fortificada posta em
áspera região montanhosa para a qual convergem todas as ações do exército cristão,
significa “a felicidade civil” que convém ao homem católico contra-reformado. Tal
felicidade é um bem muito difícil de conseguir, acima do fatigante jogo da virtude; para ela
se voltam, como última meta a ser atingida, todas as ações do homem político. Gofredo de
Bouillon, capitão do exército cristão, está no lugar do “intelecto”, particularmente do
intelecto que considera não as coisas necessárias, mas as mutáveis, que podem variamente
acontecer. Por vontade de Deus e dos Príncipes é eleito capitão da empresa guerreira,
porque Deus e a natureza constituem o intelecto senhor das outras virtudes da alma e do
corpo, comandando aquelas com poder civil e a este com império real. Assim, Rinaldo,
Tancredi e os outros Príncipes guerreiros estão no lugar das outras potências do ânimo
etc.Gofredo não ataca Jerusalém para obter o poder temporal sobre ela, mas para que nela
se celebre o culto divino e o Santo Sepulcro possa novamente ser visitado por peregrinos
cristãos. Por isso mesmo, fecha-se o poema com a adoração de Gofredo “ para demonstrar
que o intelecto cansado das ações civis deve finalmente repousar nas orações e na
contemplação dos bens da outra vida beatíssima e imortal” 49
Os preceptistas dos séculos XVI, XVII e XVIII determinam que a fábula épica
não deve imitar matéria histórica muito moderna nem antiga em demasia. Para inventar o
maravilhoso, o poeta deve fazer com que o herói principal viva experiências sobrenaturais;
se a matéria histórica é muito recente, caso das épicas luso-brasileiras dos séculos XVI e
XVIII, principalmente Prosopopéia, Vila Rica e O Uraguai, sua memória está fresca e não
dá lugar para ficções. Se a matéria é excessivamente antiga, o poeta se vê obrigado a figurar
costumes estranhos e desconhecidos do presente do leitor, que não os reconhece e julga o
poema inverossímil. Como diz Cândido Lusitano:

49
Tasso, T.Allegoria del Poema, ed. cit. p. 166.
35

“No primeiro defeito, segundo Garcez Ferreira, incorreu Camões, porque tomou por
assunto uma ação que sucedera cinqüenta anos antes que ele a principiasse a descrever; e
no segundo vício caiu Gabriel Pereira, e Miguel da Silveira, este escolhendo para a ação de
seu Poema a restauração do Templo de Jerusalém por Judas Macabeu, e aquele a edificação
de Lisboa por Ulisses; o que tudo é de tanta antigüidade,como sabe qualquer”50
Quanto à duração da ação da fábula, a maioria dos preceptistas propõe que deve
durar um ano, pois a epopéia é obra para ser lida e deve ser extensa. Camões, por exemplo,
segue Virgílio, fazendo decorrer um ano entre o princípio da narração, com Vasco da Gama
já em alto mar, e o final, em que o herói retorna para Portugal com as notícias da Índia.
Quanto ao final feliz, é a verossimilhança que o determina. Se a ação heróica
pudesse terminar comicamente com a desonra do herói, toda a fábula seria improvável e
inverossímil.

Episódios da fábula

O episódio é parte da fábula, devendo ter relação com o assunto do poema. Mais
extenso que o episódio cômico e trágico, é uma seqüência narrativa paralela da ação
principal dotada de começo, meio e fim, mas sem concluir o todo da fábula narrada pelo
poema. Por outras palavras, o episódio é funcional: situação narrativa ou dramática,
amplifica e diversifica a ação narrada como ornato e exemplo que tornam o poema mais
variado e versátil, enquanto relaciona o que veio antes com o que vem depois, para que o
herói continue agindo.
Pode-se compor o episódio como exposição de uma ação ou costume com os quais se
comparam o costume e a ação do herói. Por exemplo, uma ação que lembre ao leitor que o
herói age como um chefe antigo que conduzia muitos homens e não dormia a noite toda,
pois ocupava parte da mesma para a vigília em que examinava os assuntos que haviam de
ser executados na manhã da batalha.
O episódio também deve prever a verossimilhança do que é pensado ou tramado
pelo personagem sujeito do enunciado: na guerra, o herói pensa em coisas guerreiras,

50
Cândido Lusitano, op.cit. p. 175. As epopéias aqui publicadas tratam de matérias recentes: Prosopopéia
narra feitos dos donatários de Pernambuco e Itamaracá, Jorge de Albuquerque Coelho e Duarte de
Albuquerque Coelho, ainda vivos quando foi composta; Vila Rica imita ações passadas no início do século
XVIII; o Uraguai refere acontecimentos recentíssimos das guerras guaraníticas nos Sete Povos das Missões.
Caramuru e Confederação dos Tamoios tratam de matérias do século XVI. Em “I Juca Pirama”, a matéria é
fictícia.
36

soldados, víveres, armas, honra, lutas contra o inimigo etc., não em coisas imediatamente
relacionadas com a paz da res publica.
É comum o narrador épico compor o episódio como história narrada por
personagens de uma história contada por personagens da história que narra. O embutimento
virtualmente ilimitado de histórias dentro da história torna a narração épica extremamente
catalisável, no sentido da “expansão” descritivo-narrativa da seqüência dado ao termo por
Barthes, principalmente porque o acúmulo de ações encaixadas que expandem com
variedade as ações narradas tem a função de compor exemplos e testemunhos que tornam
crível ou verossímil, com a autoridade alegada, a fábula principal contada pelo narrador.
Aqui, o leitor está frente ao “tempo frio” da narração épica: o narrador tem todo o tempo do
mundo para contar, pressupondo o ócio, não o tempo do negócio. No entanto, o acúmulo
desproporcionado de episódios secundários desvia a atenção, pois também torna a narração
prolixa e confusa. Prescreve-se o uso de episódios como antídoto do tédio; logo, o próprio
uso não pode ser tedioso, mas artificiosamente calculado segundo o fim, a produção da
maravilha eficaz que diverte e ensina.
O pensamento
Como foi visto, a epopéia é narrativa e dramática: imita narrativamente uma ação e
simultaneamente põe em cena personagens que falam, apresentando-se diversamente uns
dos outros, conforme seu caráter e pensamento particulares. É por meio das diferenças de
caráter e de pensamento que as ações são qualificadas. Do que decorre, segundo o preceito
retórico, que as duas causas naturais que determinam as ações do herói são seu pensamento
e seu caráter. Ambos são produzidos como desenvolvimento poético do mythos (mito), uma
imitação de ações, entendendo-se por “caráter” a qualidade do herói e, por “pensamento”, o
que diz para demonstrar algo valoroso, manifestando a sua decisão heróica51.

Na composição do pensamento e caráter, a narração épica aplica lugares-comuns


epidíticos de pessoa, fazendo o encômio da linhagem do herói como uma notatio, uma
pequena descrição ou perífrase que o incluem numa classe, “bom/belo”: “Atena de olhos
cinza”, “O piedoso Enéias”, “O ilustre Gama” etc. A notatio é de gênero demonstrativo e
sua aplicação sempre pressupõe a questão: An honestum (turpe) sit? (É
bom/belo(mau/feio)?). Usando a notatio, o poeta pinta o tipo heróico por meio das onze

51
Aristóteles, Poética VI,30.
37

circunstâncias de pessoa, como aspecto físico, nome, origem familiar, pátria, nação, idade,
sexo etc., expostas por Quintiliano na Instituição oratória. Além de Quintiliano, os lugares
demonstrativos do elogio são buscados pelos poetas épicos também em textos de Cícero e
da Retórica a Herênio.

O pensamento (dianoia) deve corresponder ao caráter (éthos) do herói: ambos


devem ser únicos, raros, sublimes e admiráveis, para serem verossímeis e decorosos.
Fazendo o elogio do herói, o narrador épico conta a história de seus feitos e cita suas
virtudes e discursos; muitas vezes, compara-o com varões exímios, como faz Camões, que
afirma a superioridade dos portugueses, comparando seus feitos com os de Enéias e
Ulisses, Alexandre e Trajano. Catolicamente, prescreve Cândido Lusitano, o herói há de ser
adornado de bondade não só poética, mas moral, pois doutro modo é indigno de se imitar e
torna-se inverossímil e indecoroso, como ocorre nos cantos 5 e 6 de Orlando Furioso, em
que Ariodante deseja matar o irmão para satisfazer sua paixão amorosa.

As virtudes mais adequadas ao caráter do herói são a humanidade, a generosidade, a


prudência, a força e principalmente o valor guerreiro, pois toda epopéia deve conformar-se
ao decoro militar. Tecnicamente, o poeta deve escrever como o pintor que compõe um
quadro com diversas figuras pintando-as diversamente, mas sempre considerando que há
uma principal entre elas, que figura de corpo inteiro, enquanto deixa as outras de meio
corpo ou pintadas como que de longe, sem que se distingam as minúcias de seus membros.
Assim, pintando o herói, caracteriza nuclearmente seu costume como unidade que ressalta
entre outros caracteres, permitindo reconhecer que ele é o mesmo em todas as ocasiões.
Logo, a unidade do caráter e do pensamento do herói é também homóloga da unidade da
ação da fábula: o caráter e o pensamento heróicos correspondem à ação heróica, doutro
modo o poema é inverossímil, pois tipo baixo não age heroicamente, nem tipo ilustre age
vulgarmente, como se sabe pela experiência do costume.

O costume

Em vários lugares da Poética, Aristóteles diz que se atribuem costumes a um


personagem quando ele manifesta sua eleição boa ou má com palavras e obras. A epopéia
figura hábitos, mais que paixões, por isso pinta os costumes do herói aos poucos, com
exemplos de ações, diferentemente da tragédia, em que as paixões se desencadeiam
38

bruscamente para comover o espectador com o medo e a piedade. A pintura dos hábitos
visa o útil, ou seja, elevar o leitor com virtudes. Costuma-se prescrever quatro qualidades
dos costumes do herói: bondade, conveniência, semelhança e igualdade.

Não se trata de apenas figurar qualidades morais dos costumes, pois a epopéia não é
tratado de ética nem sermão; antes de tudo, como é poesia, trata-se de figurar qualidades
morais poeticamente, como pintura verossímil e decorosa de qualidades morais dos
costumes. Para serem poéticas, devem adequar-se à fábula, ao caráter e pensamento do
herói e mais personagens. Luzán lembra que seriam maus os costumes de Mezêncio se
Virgílio, que no início do poema o figura como ateu e tirano (contemptor deum Mezentius),
depois o fizesse religioso e respeitoso dos deuses. Essa bondade moral faria com que os
costumes de Mezêncio fossem poeticamente incongruentes, maus antes de tudo por serem
contrários às regras da arte porque mal imitados. Logo, o poeta erra essencialmente quando
figura os costumes com inépcia técnica, não importa que sejam bons ou maus.

O preceito de Luzán fundamenta-se em Aristóteles. Na Ética a Nicômaco, as


disciplinas prudenciais e poéticas operam com variáveis e só podem alcançar resultados
aproximados. Logo, há dois critérios básicos de julgamento das técnicas produtivas e
políticas; distinguem arte, atividade poiética ou técnica, como saber fazer, de ética,
atividade prudencial ou política, como saber agir. Na arte, o erro voluntário não é tão mau
quanto o involuntário, enquanto na esfera da prudência o erro voluntário é o pior, assim
como o é no âmbito das virtudes. Como diz Emanuele Tesauro, não se peca contra o decoro
quando se sabe muito bem que se deseja abandoná-lo; da mesma maneira, não erra contra
ele o pintor que desenha um focinho torto com habilidade, nem o poeta que representa
coisas torpes e obscenas no gênero baixo, pois evidenciam conhecimento do preceito e da
técnica.
Pressupondo esses critérios, os preceptistas dos séculos XVI, XVII e XVIII
classificam as falhas do poema épico em acidentais e essenciais. Doutrinária ou
factualmente, o poeta pode ter uma concepção errônea do que está representando; mas, se
o representa de modo poeticamente apto e adequado, o erro é acidental. O erro torna-se
essencial se falha poeticamente, tecnicamente, não importa que seja falsa ou verdadeira,
boa ou má, prudente ou imprudente a coisa que representa. Deste modo, o erro poético
acidental pode ser compensado, mas não o essencial, uma vez que é erro do poeta enquanto
39

poeta. Mas, como se viu, as epopéias católicas prevêem o Santo Ofício da Inquisição, que
limita a autonomia ficcional da poesia com a censura teológico-política.

O herói

Caracterizados por força e coragem animadas de fúria física e sobrenatural (ama


hindu, lussa e ménos gregos, furor latino, Wut germânico, gangr e ferg dos berserkir
52
escandinavos ), o caráter, o pensamento e a ação do herói épico são exteriores a ele
mesmo, evidenciando sua adesão objetiva aos valores de seu mundo, pois é tipo sem
subjetividade psicológica que possa dividi-lo em conflitos interiores figurados
dramaticamente. Sua ação, seu caráter e seu pensamento são constituídos pelas estruturas
fundamentais de seu mundo, condensando no grau máximo suas qualidades. Como ocorre,
por exemplo, com o Mitra e o Varuna indo-irânicos, que têm neles mesmos o rtá, a ordem
moral tanto cósmica quanto ritual. Formando um corpo único com eles, o rtá é princípio e
fim da sua ação53

Dumézil caracteriza precisamente a função guerreira figurada no caráter, no


pensamento e na ação do herói épico em suas relações com as outras duas funções indo-
européias, soberania e fecundidade. Para fazê-lo, analisa as narrativas de dois historiadores,
Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, sobre o terceiro dos Horácios romanos, que
assassina a irmã depois de matar os três Curiácios albanos. As narrativas contam o
seguinte:

O ditador de Alba Longa, Mécio Fufécio, diz ao rei de Roma, Tulo Hostílio, que os
deuses dispuseram dois grupos de trigêmeos iguais em beleza, força e coragem, para serem
os campeões das duas cidades num duelo que decidirá qual delas será dominada. Os três
Horácios romanos e os três Curiácios albanos são primos-irmãos, pois suas mães são irmãs,
filhas do albano Sicínio. Tulo Hostílio diz que é boa a idéia do duelo, mas encontra uma
objeção de princípio: é contra as leis divinas que primos lutem uns contra os outros. Se seus
chefes (duces) determinam que cometam homicídios sacrílegos, a contaminação produzida

52
O sexto capítulo da Ynglingasaga descreve os berserkir deste modo: “Quanto a seus homens,iam sem
couraça,selvagens como cães e lobos.Mordiam seus escudos e eram fortes como ursos e touros.Matavam os
homens e nem o ferro e o aço podiam nada contra eles.A isso chamavam de ‘furor de berserkr”. Cf. Dumézil,
El Destino del Guerrero, ed. cit. p.171. Tácito (Germania,38,4) refere-se aos ulfhednar, “homens com pele de
lobo”que afirmavam a metamorfose usando peles para causar terror nos adversários
53
Dumézil, op.cit. p. 130.
40

pelo derramamento do sangue da família recairá sobre os reis responsáveis e sobre suas
cidades. Mécio Fufécio afirma que, para evitar a mácula, basta que os combatentes sejam
voluntários; também diz que já consultou os Curiácios e que, entusiasmados, declararam
ter escolhido lutar por Alba Longa. Tulo Hostílio se dirige aos Horácios, deixando-os livres
para decidir; submetem a questão ao seu pai, que também os libera.. Então, o primeiro deles
diz:

“São os Curiácios, não nós, que desfizeram primeiro o vínculo familiar com seus
primos; agora que o destino o quis assim, aceitaremos; tendo em vista que os Curiácios
apreciaram menos o parentesco que a glória, nós, os Horácios, não teremos a família por
bem mais precioso, mas a valentia”54
Os heróis decidem lutar porque o destino (fatum) o determina. Assim como os
Curiácios, que escolheram a glória, os Horácios escolhem a coragem que os faz furiosos.
Segue-se a narrativa da luta em que o primeiro e o segundo dos Horácios morrem e os três
Curiácios ficam feridos. O Horácio sobrevivente finge fugir; com o estratagema, separa os
Curiácios, persegue-os pelo campo do duelo e os mata um a um. Ainda possuído pelo furor
físico e sobrenatural do combate, assassina a irmã, noiva de um deles, que lamentava sua
morte publicamente: “romana de raça e nome, albana de coração, palavras e lágrimas”, diz
Dumézil55.
O herói salva Roma da servidão, mas comete um crime que mancha a ordem
natural. Associada ao religioso-jurídico, a ordem natural exige purificação. Os litores
declaram-no culpado e o condenam à morte; mas seu pai implora por sua vida e recebe
ordem de purificá-lo pecunia publica, às expensas da cidade. Mandando estender uma viga
na horizontal, cobre a cabeça do filho e o faz passar sob o jugo.
Passar sob a viga significa a aceitação das leis humanas, regressando do
sobrenatural ou do excepcional da fúria guerreira para o humano.A lenda desse Horácio
vencedor, furioso, criminoso, culpado e purificado era o mito da cerimônia que ocorria
anualmente no dia primeiro de outubro, na Roma primitiva, perto dos altares de Jano
Curiácio e Juno Sororia. A data marcava o término da estação militar, quando os guerreiros
voltavam do domínio do Marte furioso para o Mars qui praeest paci, o Marte que preside a
paz, Quirino,deus da terceira função. Para isso, eles se dessacralizavam, limpando-se das

54
Dumézil, op. cit. pp. 36-37.
55
Dumézil, op.cit. p.37.
41

violências das batalhas. A gens Horatia afirmava descender de Hora, a deusa-esposa de


Quirino.
A história contada por Dionísio de Halicarnasso evidencia os padrões tipificadores do
caráter, do pensamento e da ação do herói épico relacionados ao foedus (pacto) e à fides
(lealdade), que garantem a unidade da ordem natural. Depois da vitória do menor dos
Horácios, Mécio Fufécio finge submeter-se a Tulo Hostílio no pacto (foedus), mas conspira
contra ele, traindo a fides, a lealdade e a confiança. Mécio quer in pace bellum, a guerra na
paz, e não deseja recta consilia, os conselhos justos, mas prava, os depravados. Incitando
os veios na guerra contra Roma, finge agregar-se ao exército romano como aliado leal.
Mais tarde, no campo de batalha contra os fidenates, retira-se para pôr-se a salvo,
esperando o resultado da luta para aliar-se ao vencedor. Tulo Hostílio percebe a manobra e
grita, para assustar o exército inimigo, que Mécio Fufécio age por sua ordem. Durante o
combate, Tulo promete fundar um novo colégio de sacerdotes sálios, os de Quirino, erguer
templos para Pavor e Palor e estabelecer festas públicas para Saturno e Ops, divindades da
terceira função. O rei e os romanos são salvos, vencendo o inimigo. Mécio Fufécio volta ao
campo e finge zelo contra os fidenates vencidos; Tulo Hostílio finge ser enganado, dirige-se
a ele amistosamente e o felicita pela vitória.
No dia seguinte, convoca os exércitos para um sacrifício lustral. Os albanos chegam
desarmados e os romanos armados os cercam. Na narrativa de Tito Lívio, Tulo explicita a
traição, dizendo a Mécio Fufécio:
“Se pudesses aprender a guardar a fides e os tratados, eu te deixaria com vida e seria
teu senhor.Mas porque tua natureza é incorrigível, que pelo menos teu suplício ensine à
raça humana ter por sagrado o que violaste. Em conseqüência,do mesmo modo que antes
mantiveste teu ânimo ambíguo entre os interesses de Fidenas e os de Roma, assim agora
hás de entregar teu corpo ao esquartejamento”56.
Mécio Fufécio é esquartejado por duas quadrigas que lhe puxam o corpo em sentidos
opostos. O exército romano arrasa Alba Longa.
O motivo da ação furiosa do herói, que o leva à vitória em combate singular, seguida
de um erro grave, uma mancha, uma culpa e uma purificação que fazem dele uma
espécie de bode expiatório depois de ter sido campeão de seu grupo; o motivo da traição da

56
Tito Lívio, História de Roma, I,28,9
42

fides e da depravação do foedus57 por um tipo falso e mentiroso; o motivo da astúcia do


dux, o chefe que inflige ao traidor um castigo duplamente exemplar, físico e simbólico,
dividindo-lhe o corpo à semelhança do seu ânimo já dividido pela traição, são recorrentes
na epopéia. De modo homólogo ao das estruturas invariantes que Propp encontrou nos
contos de magia russos, os motivos constituem o nó da fábula, compondo as situações
narrativas da ação do herói e de seus oponentes, como ocorre na felonia de Ganelon, que
finge fidelidade a Carlos Magno, rompendo o pacto feudal de vassalagem quando entrega
os francos e Rolando aos sarracenos, na Canção de Rolando. Também as duas formas de
vitória sobre o inimigo - a vitória em combate, como a do menor dos Horácios contra os
Curiácios; a vitória pela astúcia, como a de Tulo Hostílio contra Mécio Fufécio - são
estruturas básicas na composição da fábula.
O terceiro Horácio é definido por Tito Lívio como homo maximus ou vir: é o varão-
macho, viril, fiel ao foedus, honrador da fides, corajoso, furioso, por isso mesmo exemplar
e digno de memória: “Canta, ó Musa,o varão que astucioso,/Rasa Ílion santa,/errou de
clima em clima”, diz Homero na Odisséia58; “Arma virumque cano”, diz Virgílio,
propondo Enéias como vir. “Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori,/le cortesie,l’ audaci
imprese io canto”, escreve Ariosto; “As armas e os barões assinalados”, imita Camões;
“Canto l’arme pietose e ‘l Capitano/Che ‘l gran sepolcro liberò di Cristo”, repete Torquato
Tasso; “...eu canto um Albuquerque soberano”, propõe Bento Teixeira ; “Cantemos, Musa,
a fundação primeira/Da Capital das Minas,onde inteira/Se guarda ainda,e vive inda a
memória/Que enche de aplauso de Albuquerque a história”, estiliza Cláudio Manuel da
Costa; “Musa, honremos o herói,que o povo rude/Subjugou do Uruguai, e no seu
sangue/Dos decretos reais lavou a afronta”, diz Basílio da Gama; “De um varão em mil
casos agitados,/(...)O valor cantarei na adversa sorte”, escreve Santa Rita Durão.

57
“Tu,Indra, hábil perseguidor das faltas,como a espada os membros, cortas as falsidades de quem viola as
regras de Mitra e de Varuna como a gente viola a aliança da amizade. Contra os maus que violam Mitra e os
pactos, e a Varuna,contra esses inimigos, ó macho Indra,aguça uma morte forte,masculina,vermelha. Como a
pedra lançada do céu,golpeia com teu furor mais ardente a quem engana a amizade!” (Rgveda,X,89)
58
Cf. Homero. Odisséia. Trad. de Odorico Mendes. Edição de Antonio Rodrigues Medina. São Paulo,
EDUSP, 2000, p.65.
43

Os exemplos de proposição épica confirmam o preceito: a ação da epopéia não é


dramática, trágica ou apenas ilustre, mas heróica59. Não acontece de dentro para fora do
herói, como realização de projeto individual exteriorizado em objetos que completem
carências do seu desejo ou resolvam questionamentos psicológicos. A coragem do herói é
uma definição dada a priori no seu caráter de tipo fiel ao foedus e à fides quando
confrontado com acontecimentos que exigem a intervenção da sua força física, como
acontece na fala do mais velho dos Horácios, ou o comportamento astucioso, como na ação
cruelmente justa de Tulo Hostílio. Hegel o diz sinteticamente: a cólera de Aquiles é um
estado, não uma finalidade.

Assim, o que caracteriza fundamentalmente a ação do herói é a objetividade da


determinação superior da sua coragem, que enfrenta os acontecimentos porque “deve ser
assim”. A mesma objetividade implacável da ação implica os excessos e as faltas que
infringem regras das outras funções: o Horácio vencedor dos Curiácios não é culpado por
matar os primos, mas por assassinar a irmã. Da mesma maneira que se lê por exemplo na
firme determinação do Cid, nos Romances del Cid, de vingar a honra do pai ultrajado:
“Por el alto Dios del cielo,/Y en fe que soy vueso fijo,/Que os he de hacer vengado/O me
mataré a mi mismo”60.

Como guerreiros, os heróis épicos têm um posto cósmico distinto e distintivo; não
podem desconhecer a ordem natural das coisas, pois sua função é justamente guardá-la:

“Mas, para garantir esse ofício, devem primeiro eles mesmos possuir, cultivar
qualidades que se assemelham demasiadamente aos defeitos de seus adversários. Na
batalha mesma, para evitar a derrota certa, devem responder à audácia, à surpresa, às fintas,
às traições, com operações do mesmo estilo, só que mais eficazes; ébrios ou exaltados,
devem pôr-se em um estado nervoso, muscular, mental, que multiplica e amplia seus
poderes, que os transfigura, mas também os desfigura, tornando-os estranhos no grupo que
protegem; e, sobretudo, consagrados à Força, são as vítimas triunfantes da lógica interna da
Força, que só se prova transpondo limites, ainda os próprios, ainda os da sua razão de ser, e
que não sossega com ser nada mais forte frente a tal ou qual adversário, em tal ou qual
situação, senão sendo forte em si, a mais forte- superlativo perigoso em um ser de segundo

59
“...o verdadeiro assumpto da Epopeia he huma acção heroica,só propria daquelles grandes homens,que
pelas suas singulares emprezas merecerão o nome de Heróes.Esta acção como heroica distingue-se da
Tragica, e da Comica: porque a Tragedia só imita huma acção illustre, e a Comedia huma ordinaria.”
Cf. Horácio. Arte Poetica de Q.Horacio Flacco. Traduzida, e Illustrada em Portuguez por Candido Lusitano.
Lisboa, Typographia Rollandiana, 1833, p. 58.
60
Cf. El Cid . In Tesoro de los Romanceros y Cancioneros Españoles Históricos,Caballerescos,Moriscos y
Otros Recogidos y Ordenados por Don Eugenio de Ochoa. Paris, Baudry,Librería Europea, 1882,p. 3.
44

nível. As revoltas dos generais e os golpes de Estado militares, as matanças e os saques da


soldadesca e de seus chefes são coisas mais velhas que a história. Eis aqui porque Indra,
como bem diz Sten Rodhe, é ‘ the sinner among the gods”61
Ao crime do herói sucede a purificação, pois a função guerreira e seus motivos
relacionam-se sistemicamente com noções ordenadoras das outras funções, soberania e
fecundidade. Logo, na função guerreira convergem de maneira exemplar os princípios que
estruturam a vida do grupo. O desconhecimento dos poderes soberanos e, por vezes, o
pouco caso deles causam a perda do guerreiro. Tito Lívio conta que Tulo Hostílio, ferocior
Romulo, “mais feroz que Rômulo”, fica doente, perde as forças e entrega-se
supersticiosamente às práticas sagradas estabelecidas no tempo do rei-sacerdote Numa
Pompílio. Fazendo sacrifícios a Júpiter Elício sem observar os requisitos, não tem nenhum
indício da aceitação do deus que, indignado com a torpeza do ritual, fulmina-o. Tulo
Hostílio queima junto com seu palácio.

Na epopéia, o restabelecimento do equilíbrio da ordem natural põe o herói em


contato com poderes infernais e celestes, que aparecem nas nekyia,as descidas aos
infernos, com que o personagem busca conselho nas sombras de antepassados para antever
o futuro que lhe reserva o Fado, como fazem Ulisses, na Odisséia, e Enéias, na Eneida. Ou
nas ascensões a lugares altos, depois de o personagem ultrapassar obstáculos, matas
cerradas, lugares escuros, desertos pedregosos e mais sítios áridos, mortos e perigosos,
como ocorre, no canto X de Os Lusíadas, na escalada do monte íngreme e coberto pela
espessa mata, alegoria platônica do mundo sensível no Sonho de Polifilo, de Francesco
Colonna, para finalmente obter a contemplação beatífica, puramente inteligível, da grande
máquina do mundo. Ou sonhos proféticos, como o prognóstico de Merlim, em Orlando
Furioso; o sonho do herói do Vila Rica; o da índia Tanajura, em O Uraguai etc..

61
Cf. Dumézil, “Fatalidades de la función guerrera”. In El destino del guerrero, ed.cit. pp. 131-132.
Comparando a ação de Indra e Varuna, Dumézil propõe que, na ação excessiva do guerreiro, encontra-se a
oposição da moral do Herói à moral do Soberano, em especial nas tradições hindus, que atribuem a Indra o
mérito de haver salvo in extremis vítimas humanas ou de ter substituído pelo ritual em que morre um cavalo o
ritual varuniano de consagração real manchado pela prática ou pela lembrança de sacrifícios humanos. O
guerreiro Indra e o bruxo Varuna ou, em outro plano, o soldado Indra e o polícia Varuna atentam igualmente,
quando faz falta,contra a liberdade e a vida de seus semelhantes, mas cada um opera segundo procedimentos
que repugnam ao outro.Assim, quando se coloca ao lado ou acima do código, o guerreiro se arroga o direito
de salvar e de quebrar os mecanismos da justiça rigorosa: em uma palavra, o direito de introduzir no
determinismo das relações humanas o milagre que é a humanidade . Lembre-se, na Ilíada, a posição dura de
Agamêmnon, semelhante à de Varuna, quando manda sacrificar a filha para que os ventos soprem.
45

A ação de restauração da ordem também se efetiva com sacrifícios votivos que


propiciam as boas graças de deuses, como as hecatombes, os sacrifícios de bois da Ilíada;
as suovetaurilia dos romanos, sacrifícios de porco, carneiro e touro, correspondentes à
sautramani hindu (um bode aos Ashvin, um carneiro a Sarasvati, um touro a Indra); na
epopéia cristã, a missa, a ingestão da hóstia consagrada, o jejum, a bênção, a ordenação
com a espada, a entrega do guante do rei ao herói etc. Em I Juca Pirama, de Gonçalves
Dias, o sacrifício ritual do herói índio no final do poema restaura a ordem tribal que o
personagem havia rompido com sua ação indecorosa de subordinar a honra guerreira à
piedade filial. Bela estilização subjetivada da épica feita como misto lírico-dramático
interessado em compor um índio sublime à moda kantiana de Schiller, o poema encontra o
aval da sua verossimilhança patética, racionalmente crítica do sentimentalismo romântico,
nos discursos nacionalistas dos primeiros românticos brasileiros e nas epopéias antigas, que
Gonçalves Dias conhecia bem.
Como emissário da fides que tipifica o foedus, o herói épico combate os inimigos
da soberania e da fecundidade do seu grupo. Para tanto, os heróis gregos e latinos são um
composto de deus e homem: Aquiles é filho de Peleu e Tétis; Enéias, de Anquises e Vênus.
Fundindo força guerreira e soberania, têm a nobreza sagrada e magnânima da origem divina
quando realizam façanhas memoráveis ou padecem insucessos dolorosos; e também
corpulência, magestade e força extraordinárias, que os capacitam a obrar coisas incomuns,
com coragem e firmeza do ânimo. Na Ilíada, Tidides lança contra Enéias uma pedra que
dois varões não suportariam ( Il. V, 302-310); na Eneida, Turno arremessa contra Enéias
um rochedo que doze homens não conseguiriam erguer (En. XII, 896). Na Odisséia,
somente Ulisses é capaz de encordoar seu arco e atirar com ele. Mantendo a caracterização
epidítica do herói como ser extraordinário, Boiardo faz Carlos Magno dar bastonadas nesse
e naquele, rompendo a cabeça a mais de trinta, em Orlando Enamorado. No canto 19,
estrofe 81, de Orlando Furioso, Marfisa, a heroína, demonstra extrema força quando
empunha uma lança carregada com esforço por quatro homens. E Tasso faz Rinaldo lançar
longe um grande tronco que despedaça e derruba as portas de uma torre, em A Jerusalém
Libertada.

Em todos os casos, o valor do herói se evidencia na bela proporção do seu corpo e


em sua força física, pois o físico é imagem da moral. Seu éthos ou caráter é, como diz
46

Luzán catolicamente, ser valente com prudência, constante com magnanimidade, obediente
aos preceitos dos deuses, observante das cerimônias de sua religião, afável e benigno62. Por
exemplo, em Orlando Enamorado (II,I,45-51), Sobrino, que passa para a França com os
sarracenos de Agramante, é contrário à expedição, mas segue seu senhor para demonstrar
que não se opõe ao seu desígnio por vileza de ânimo. Em Orlando Furioso, propõe-se
cristãmente que a vida quase sempre é mais infeliz que alegre( IV,I), pois o mal supera o
bem, o herói e a dama podem ser miseráveis (X,1-5) e o benfeitor recebe ingratidão
(XXI,1). Mas o herói e a heroína sempre têm como conforto a pureza de sua crença no Bem
etc.

Obviamente, nem todas essas virtudes podem ser achadas em todos os heróis
épicos, pois seria contrário à verossimilhança acumular em um mesmo personagem todos
os caracteres. Enéias e Aquiles têm valor heróico, mas não o mesmo: o de Aquiles está
misturado com arrojo, crueldade, sanguinolência e cólera; o de Enéias, com piedade, doçura
e afabilidade. Assim, Le Bossu prescreve que a unidade do caráter do herói deve ser
composta com juízo. A unidade faz com que seja sempre o mesmo em todas as ocasiões,
pois uma qualidade do seu caráter sempre deve dominar todas as outras.
Curtius caracterizou o caráter do herói homérico, distinguindo-o do latino. Propõe
que, na Ilíada, observa-se a oposição complementar de dois conceitos ou princípios, a força
guerreira e a sabedoria. Aquiles é guerreiro valoroso, mas bruto irrefletido e cruel quando
profana o cadáver de Heitor, entre outras coisas. O que faz dele um herói épico é sua moira
ou destino: a vida breve de guerreiro bruto com glória e fama imorredouras. Mas falta-lhe
uma virtude fundamental, a sabedoria, figurada em Nestor. No caso da épica grega, a suma
das virtudes heróicas é o equilíbrio de força guerreira e entendimento sábio das coisas. É
Ulisses, provavelmente, quem funde o valor guerreiro à prudência sábia ou astuta.
A virtude heróica desdobra-se em formas fundamentais: força guerreira,
correspondente à coragem e aos grandes feitos de armas; sabedoria, correspondente à
experiência, à prudência, ao bom conselho e à eloqüência. Tais formas também tipificam
personagens secundários: a força guerreira aparece em suas virtudes marciais como
conhecimento da arte militar, destreza no combate e perícia em armas específicas. A
sabedoria corresponde à experiência do ancião, como Nestor; à sabedoria e à astúcia do

62
Luzán. Op. cit. p.15
47

homem maduro, como Ulisses; e à eloqüência, exemplificada por ambos; em resumo, à


faculdade de ser “eloqüente nas palavras e pronto nas ações”(Il. IX 443)63.
Imitando Homero, Virgílio mantém a oposição fortitudo/sapientia para caracterizar
o valor heróico: “Também o rei Latino é todo sapientia,como Turno é todo fortitudo
(XII,18ss.), diz Curtius 64. Mas Enéias é tipificado antes de tudo pela virtude moral da pax
augusta do tempo do poeta: o principal traço de seu caráter é a piedade: ...pietate insignis et
armis (En.VI 403). Ilustre pela piedade e pelas armas, é um Rômulo-Numa que combate
reconhecendo as “lágrimas das coisas” quando a guerra rompe a ordem natural delas.
Nas epopéias cristãs, o herói muitas vezes toma a forma de herói-rei ou príncipe,
Carlos Magno, Gofredo de Bouillon, aqueles reis que “as terras viciosas de África e de Ásia
andaram devastando”. Na versão de Tasso, como em Camões, é rei-herói iluminado da
Graça: “Embalde o inferno o combateu raivoso/ E a Ásia se aliou à Líbia impura,/Que o
céu lhe deu socorro, e os espalhados /Sócios juntou sob os pendões sagrados”65. Os
preceptistas cristãos afirmam que o poeta deve fundamentar seu juízo na filosofia moral,
quando compõe o herói como “perfeito cavaleiro”, para que não seja quimérico, com
caráter desigual e variado. Cristãmente, o juízo do bom poeta sempre pode dar exemplos de
ação má, mas nunca propor ação má como exemplo.
Agindo para refazer e impor a ordem da soberania e da fecundidade ameaçadas, o
herói épico relaciona-se com acontecimentos funcionais que não valem por si mesmos, pois
são causas desencadeadoras de ações seguintes, motivadas pela movimentação exterior da
finalidade a cumprir. No caso das epopéias hindus, gregas e latinas, o grande destinador
da ação heróica é o destino, como Karma, Moira, Fatum, superior aos deuses e ao herói
como dever-ser cósmico sobre o qual não têm nenhum poder. Levado pela necessidade, “a
necessidade de mãos de bronze” dos gregos, o herói realiza ações fatais e incontornáveis.
No Mahabharata, o deus-herói Indra tem que matar o amigo Namuci, cuja cabeça cortada o
persegue, gritando “Mitradruh, mentiroso, traidor da amizade!”. Na Ilíada, Heitor sai para
enfrentar Aquiles sabendo que necessariamente vai morrer. Também Aquiles luta sabendo

63
Curtius, Ernst Robert. “Héroes e Soberanos”. In Literatura Europea y Edad Media Latina. México,Fondo
de Cultura Económica,1998,2 v., I, pp. 246-249.
64
Curtius,op.cit.p.251.
65
Tasso, T. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introd. e notas de Marco
Lucchesi.Fixação do texto e ensaios de Alexei Bueno e Pedro Lyra. Rio de Janeiro, Topbooks, 1998, p.113.
48

que necessariamente vai viver pouco. Na Eneida, Enéias tem que necessariamente
abandonar Dido, para dar origem à raça que destruirá Cartago etc.

Já nas épicas medievais desenvolvidas como canções de gesta, como A Canção de


Rolando, e de romances populares, como O Cantar del mio Cid, desaparece o determinismo
do destino, Fatum ou Fortuna, pois definem o tempo da ação heróica como criação de
Deus. Como efeito da Causa e signo da Coisa, o tempo é orientado providencialmente: o
herói tem livre-arbítrio, seu juízo é aconselhado pela luz da Graça inata quando escolhe e
age. A única fatalidade é a da absoluta objetividade da honra, que o empurra para o
cumprimento dos votos da feudalidade/fidelidade até o fim, mesmo com prejuízo próprio,
o que significa sua subordinação total à norma de ação do seu grupo. Em nome da honra, D.
Rodrigo de Bivar mata o pai de Ximena, sua futura mulher66.

Em duas das três grandes epopéias do século XVI, Os Lusíadas e A Jerusalém


Libertada, o herói continua sendo figurado como tipo da segunda função indo-européia,
caracterizando-se pela coragem guerreira, mas sua fidelidade ao foedus e à fides é modelada
como livre-arbítrio de cortesão prudente iluminado pela Graça que só patrocina e escolhe
causas justas.A teologia católica substancializa metafisicamente as virtudes da Ética a
Nicômaco como fundamento da ação. Por outras palavras, a interpretação que o narrador
dessas epopéias faz das ações heróicas é teológico-política, pressupondo as redefinições do
poder político da Europa pós-Maquiavel, pós-Reforma e pós-Trento. No caso, é a lei eterna
de Deus refletida na luz natural da Graça inata que ilumina, aconselha e orienta as leis
positivas defendidas por Vasco da Gama, Pedro da Gama, os Doze de Inglaterra, Gofredo,
Rinaldo, Tancredo, assim como Jorge de Albuquerque Coelho, Albuquerque, Gomes Freire
de Andrade, Diogo Álvares Correa, Matias Fernandes67 têm a consciência iluminada pela
sindérese, a centelha divina que lhes aconselha o Bem, orientando-os no combate ao mal.
Pressupondo o Deus contra-reformista, as epopéias católicas figuram a matéria histórica

66
Zumthor, Paul. “Les Chansons de Geste”. In Essai de poétique médiévale. Paris, Seuil, 1972, p. 455.
Zumthor trata da composição heteróclita da canção de gesta lembrando que justapõe episódios de tom e de
estilo diferentes, digressões, contradições de detalhes etc. Essas características se explicam não pela
incompetência dos poetas, mas pelo caráter exclusivamente oral que o gênero teve até a metade do século XII.
67
Matias Fernandes é celebrado em Muhuraida ou O Triumfo da Fé 1785, epopéia de Henrique João Wilkens
cuja matéria histórica é a pacificação dos índios mura da Amazônia no século XVIII. Cf. Wilkens, Henrique
João. Muhuraida ou o Triumfo da Fé 1785. Manaus:Biblioteca Nacional/UFAM, Governo do Estado do
Amazonas, 1993,p. 139.
49

como exemplaridade da revelação do princípio de identidade divina que orienta a ação do


herói como figura, exemplo e prognóstico da ação futura.
No caso de Camões, auctor dos épicos luso-brasileiros dos séculos XVI, XVII e
XVIII, o fundamento e o sentido sagrados da história figuram-se nos mitos e ritos em que
a soberania monárquica, a virtude católica e a força guerreira aparecem em fórmulas da
teologia-política que fundamenta e interpreta o poder soberano de reis e fidalgos
portugueses, legitimando-lhes a ação como evidência da luz da Graça. Compondo os
heróis, a fantasia dos épicos católicos compõe seu caráter, pensamento e ação com
metáforas de categorias da racionalidade de Corte que, nos séculos XVI e XVII, define o
“perfeito cavaleiro” como tipo perito em “letras e armas”, como se lê em Camões: “Para
servir-vos, braço às armas feito;/ Para cantar-vos, mente às Musas dada” (X, 155, 1-2). O
herói é um “mata-mouros” que se notabiliza pelas façanhas das armas; mas também das
letras, como discreto cujo engenho tem a sollertia, sagacidade derivada da perspicácia e
versatilidade do juízo. A virtude que o faz melhor em letras e armas é a da interpretação
escolástica da Ética aristotélica corrente em Portugal e em cidades italianas nesse tempo,
como a define o Tratado da Nobreza Cristã, de D. Jerónimo Osório: "[...]( a virtude é)
uma inclinação constante do ânimo, disposta pela deliberação, e que consiste em um certo
meio, que é determinado pela recta razão"68.
Definida como recta ratio agibilium, a reta razão das coisas agíveis escolástica69, a
prudência é a medida justa da perfeita nobreza do herói luso-brasileiro católico perito em
“armas e letras” ou “pluma e espada”. A prudência define a medida racional da eficácia da
sua coragem, exprimindo o momento em que seu conhecimento dos primeiros princípios,
sempre referido ao juízo, realiza-se em sua ação, pensamentos e paixões. Também é a
prudência que o faz subordinar-se livremente ao seu rei, escolhendo fazer o melhor-
catolicamente o mais justo- em cada ocasião, para manter o caráter uniforme e constante na
vassalagem. No caso, a aparelhagem técnica da guerra não se dissocia da moral, como nas
guerras da sociedade burguesa, pois a reta razão das coisas factíveis do herói , recta ratio
factibilium escolástica, conhecimento das técnicas militares e destreza nas armas,
subordina-se ao fim virtuoso da ação guerreira. Na epopéia católica, toda guerra

68
Osório, D. Jerônimo. Tratados da Nobreza Civil e Cristã. Tradução, introdução e anotações de A.
Guimarães Pinto. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, p. 141.
69
Santo Tomás de Aquino. Summa theol. III a, 57,5
50

empreendida pelo herói é, obviamente, “guerra justa” contra inimigos da verdadeira fé da


verdadeira política. Reta razão das coisas agíveis e reta razão das coisas factíveis unem-se
no herói como coragem, formulada como grandeza de alma que avulta nos grandes perigos,
por isso merecedora do mais alto louvor; como generosidade, definida como perfeito
desprendimento de si; como cortesia, especificada na elegância de maneiras, na delicadeza
com as damas, na sutileza da dicção, no conhecimento das belas letras e na alegria guerreira
partilhada com iguais.
A verdadeira virtude cristã exemplificada pelo herói católico é sempre um desprezo
da morte, um sacrifício da vida pela honra e salvação de todos, uma manutenção da fé em
Deus e da fidelidade aos laços hierárquicos até o fim70, como incitamento à glória e à fama.
Sempre guiado pela reta razão dos agíveis e pela reta razão dos factíveis iluminadas pela
luz da Graça ou o Amor de Deus, o herói luso-brasileiro católico está sempre alerta para
enfrentar o imprevisível do mal que ameaça a alma: gentios selvagens e bárbaros do Brasil,
África e Ásia; infiéis hereges, judeus, muçulmanos, maquiavélicos, luteranos, calvinistas e
tantos mais, pois o mal cristão é infinitude de não-ser .
A mesma doutrina cristã da coragem prudente é pressuposto teológico-político da
interpretação da legitimidade dos reis e fidalgos portugueses como poder orientado pela luz
da Graça, em Os Lusíadas e, de maneira bastante evidente, em três dos poemas deste livro,
que os imitam: Prosopopéia, no século XVI, e Vila Rica e Caramuru, no XVIII.
Platão e estóicos sistematizaram a alegoria do piloto que leva o navio a um porto
seguro através do mar tempestuoso para significar o bom governante que conduz a Cidade
com segurança através das dificuldades políticas. Essa alegoria modela a viagem de Vasco
da Gama e constitui sua exemplaridade de herói emblemático da fidalguia portuguesa em
Os Lusíadas. Críticos portugueses, principalmente António José Saraiva, afirmaram que ele
pouco age como herói épico: ora o narrador fala doutrinariamente, declarando suas
virtudes, ora ele mesmo fala com dignidade e prudência constantes, sem as fúrias e
indecisões patéticas dos heróis de Homero e Virgílio.
Se a ação de Vasco é mais oratória e eloqüente que épica e heróica, isso ocorre,
contudo, não porque Camões erre poeticamente, mas porque o inventa como emblema das
virtudes cristãs e fidalgas do “peito ilustre lusitano/ a quem Netuno e Baco obedeceram”.

70
Osório, D.Jerônimo.Op.cit. p.119.
51

Enquanto vai atravessando o mar do poema, é emissário da monarquia cristã que, desde o
século XII, atravessa virtuosamente o mar alegórico das dificuldades da história interna do
reino e das guerras contra o Islão e Castela. A chegada à Índia e a derrota de Baco
reconfirmam a finalidade superior, providencialmente orientada desde Ourique, da
condução do reino pelas dinastias de Borgonha e Avis, que o levaram e levam com a
concórdia e a paz do "bem comum" pelos mares das dificuldades da história. Assim,
também o heroísmo de Vasco é o da interpretação católica da Ética aristotélica corrente em
Portugal no presente de Camões: toda virtude cristã é heróica.
É útil lembrar que, na “política católica” da monarquia portuguesa, a identidade
metafísica de Deus é sempre posta como Causa Primeira do tempo e, portanto, de todos os
seres e eventos finitos da natureza e da história. Por serem finitos, existem unidos à matéria
criada como análogos da substância divina de que são efeitos e signos. Participam em sua
Causa por atribuição e proporção, relacionando-se uns com os outros pela semelhança que
os une e define como seres criados. Evidentemente, nenhum deles tem relação de igualdade
com Deus nem pode tê-la, mas todos apresentam proporcionalidade entre a sua natureza
interior e a substância metafísica incriada. Nos seres e acontecimentos históricos, Deus é
Ato ou atualidade da analogia de proporcionalidade, funcionando como o termo comum
que inclui toda a criação na semelhança. O conceito indeterminado da identidade divina
também implica a analogia de proporção, que anima os seres e os eventos como diferenças
hierarquizadas. Nelas se acha a proporção de uma medida analógica comum, que os
especifica e particulariza como participação de vários graus na substância metafísica.

As epopéias luso-brasileiras deste livro pressupõem essa medida analógica e a


aplicam lógica, retórica e metafisicamente à invenção da fábula e à caracterização do herói.
Pressupõem que as matérias históricas, o pensamento do poeta que as concebe como ficção
heróica e o estilo que lhes dá forma elevada são análogos do princípio de identidade que é
sua Causa. Assim, também pressupõem que a boa proporção retórica da forma épica
evidencia para o destinatário a presença da luz natural da Graça que aconselhou o juízo do
poeta na sua invenção, disposição e elocução. Logo, identidade, analogia e semelhança,
articulações da forma efetuada escolasticamente, são conceitos-matrizes dos conceitos
teológico-políticos e retórico-poéticos aplicados à caraterização do herói e de suas ações
nesses poemas.
52

Principalmente em Prosopopéia, Caramuru e Vila Rica, representação é o conceito


nuclear que articula a imitação dos modelos poéticos antigos, das doutrinas teológico-
políticas e das matérias coloniais formais e informais que preenchem as tópicas épicas.
Com o termo representação, entende-se a mediação ou a forma que nesses poemas
compõe e relaciona pensamento e linguagem, fazendo os conceitos representados ser
convergentes e dedutíveis da identidade do conceito indeterminado de Deus, pressuposto
catolicamente como luz da Graça atuante no engenho do poeta.

Catolicamente, a ação da fábula desses poemas ocorre entre dois limites negativos
ou duas exterioridades figuradas como falta de Bem ou ameaças à integridade da soberania
do “corpo místico” do reino e das virtudes fecundas da verdadeira fé e da verdadeira
política: de um lado, a selvageria e a barbárie de gentios desconhecedores da religião de
Cristo, índios, negros e orientais da América, África e Ásia, aos quais se dá combate em
“guerras justas”, quando o Livro não é eficaz como a Espada71; de outro, a heresia de
infiéis, tradicionalmente muçulmanos e judeus, agora também maquiavélicos, luteranos e
calvinistas, cuja destruição a ferro e fogo é celebrada. Pondo em cena as categorias
teológico-políticas das doutrinas do poder monárquico correntes em Portugal
principalmente depois do Concílio de Trento, os poemas as aplicam como interpretação do
sentido superior da fábula, propondo que o herói e seus feitos são reflexos proporcionados
da Razão eterna, signos da Providência divina, figuras proféticas dos futuros contingentes.
Quanto aos dois poemas épicos de românticos do século XIX, Gonçalves de
Magalhães e Gonçalves Dias, subjetivam psicologicamente a narração e substituem o
maravilhoso antigo pela ideologia nacionalista não menos mitológica e teológica, pintada
no índio-alegoria da originalidade política do país novo em que o herói é um burguês que
entra em casa pela porta da cozinha.

A elocução: o estilo sublime ou magnífico


Na tragédia, o público vê a ação representada por atores na cena; na epopéia, o
público a imagina. Como o estilo é instrumento com que o poeta imita coisas próprias do
gênero em que se exercita, na epopéia é muito mais necessária que na tragédia a energia ou
a evidência com que as palavras põem as coisas representadas frente aos olhos intelectuais

71
Cf. Cláudio Manuel da Costa, Soneto LXXXIII. In Obras Poéticas (1768): “Polir na guerra o bárbaro
Gentio,/Que as leis quase ignorou da natureza”.
53

do juízo do leitor, que parece vê-las, não lê-las. A evidentia do gênero épico deve ser, por
isso, magnífica ou sublime, prescrevendo-se que as palavras elevadas devem ser usadas
como correspondência às coisas elevadas da ação, para produzir o efeito visualizante da
maravilha verossímil e decorosa. O poeta é pintor. Como em torno de cada virtude pulula a
infinidade de vícios, também o desenho e a cor do estilo sublime compõem o delicado
equilíbrio da forma ameaçados pelos erros que a mancham e deformam com a
indeterminação do efeito, caso do inchado pomposo e do baixo pedestre, ambos vulgares e
defeituosíssimos.
Tasso lembra que o magnífico, o temperado e o humilde do heróico não são os
mesmos quando usados em outros gêneros. O humilde da epopéia não pode ser o humilde
do cômico, como acontece em Ariosto, quando diz: “Coveniente ad uom fatto di
stucco.../Che tutta via stesse a parlar com essa/Tenendo l’ali basse come il cucco”72,
usando palavras popularescas que inclinam o discurso segundo a baixeza cômica pela coisa
desonesta que representam. Da mesma maneira, o estilo medíocre da lírica, como “La
verginella è simile a la rosa”73, é inconveniente à épica.
O estilo heróico deve situar-se entre a gravidade simples do gênero trágico e a beleza
florida do lírico, prescrevendo-se que o poeta o incline na direção da simplicidade trágica
quando, imitando dramaticamente, faz personagens falar em primeira pessoa. Exemplo
magnífico é toda a fala de D. Inês de Castro, em Os Lusíadas, simultaneamente simples,
grave e trágica,como convém a dama de sua posição que enfrenta a crueldade de homens
“feros, e cavaleiros”. Deve fazê-lo, no entanto, sabendo que o estilo do trágico é grave,
porém menos magnífico que o épico. Quando fala na epopéia, o poeta o faz no estilo que
Camões pede às musas: “Dai-me hua furia grande e sonorosa,/E não de agreste avena ou
frauta ruda,/Mas de tuba canora e belicosa”(I,5). A tragédia trata de afetos que não existem
na epopéia. Por causa da verossimilhança, exigem pureza, propriedade e simplicidade dos
conceitos, uma vez que os personagens raciocinam e falam em cena cheios de medo, horror
ou misericórdia que, se forem figurados com muito ornamento, convencem menos, pois
desviam a atenção do público para o brilho e a agudeza das palavras, diminuindo o efeito
patético do afeto. Além disso, na tragédia o poeta nunca fala diretamente, mas inventa

72
Tasso, T. Op.cit. p. 32( grifos meus)
73
Tasso, idem ibid. p. 33
54

personagens com dicções particulares, para que a imitação dos seus caracteres seja
verossímil. Quando trata de matérias morais ou patéticas, o épico deve aplicar a
simplicidade trágica; e, quando os personagens falam em primeira pessoa, deve também
aproximar-se da beleza da lírica, mas sem a mediocridade da mesma, usando de um tom
adequado à magnificência. Lembre-se novamente a fala de Inês de Castro.
Aristóteles, Demétrio de Falero e Dionísio Longino dizem muitas coisas sobre a
magnificência, da qual Hermógenes distingue seis espécies: abundância, solenidade, brilho,
aspereza, veemência e vigor74. Essas espécies de magnificência são obtidas por meio de
conceitos, palavras e composição de palavras e frases.
A magnificência dos conceitos ocorre quando são de coisas grandes: Deus, o mundo,
batalhas, terrestres e navais, os heróis. Tasso especifica as figuras de sentença que a
efetuam, fazendo as coisas e as circunstâncias parecer grandes e solenes, como a
amplificação e a hipérbole, que elevam a coisa acima do verdadeiro; as reticências, que
calam com certa aspereza a coisa enquanto a sugerem, fazendo com que a imaginação do
destinatário a aumente; a prosopopéia, como ficção de pessoas de autoridade e reverência
que dão autoridade e reverência às coisas representadas.
Para comover o ânimo do leitor, o estilo magnífico deve usar palavras peregrinas,
distantes dos usos populares, brilhantes e veementes75. São palavras próprias, estrangeiras,
translatas, proporcionadas, fictícias. Translatas são metáforas que transferem o gênero para
a espécie, por exemplo quando o poeta dá o nome de “besta” ao cavalo; ou a espécie para o
gênero, por exemplo quando usa “armas” valendo por “guerras”; da espécie para a espécie,
quando diz que “o cavalo voa”. Ou quando usa palavras por analogia de proporção: a
mesma proporção que há entre “dia” e “pôr-do-sol” existe entre “vida” e “morte”, como em
Dante: “Che parea il giorno pianger che si more”. Palavras fictícias são as que nunca
foram usadas, como neologismos inventados pelo poeta: como taratantara, do poema de
Ênio, para imitar o som de instrumentos militares.
Como o sublime decorre de palavras translatas e de mais usos não-próprios de
palavras, seu efeito é ameaçado pela obscuridade, pois a magnificência épica deve ser
clara. Para evitar obscuridade, lembra-se que Homero e Virgílio não sobrecarregam o estilo

74
Cf. Hermógenes. Sobre los tipos de estilo. Trad. de A.Sancho Arroyo.Sevilha, Publicaciones de la
Universidad de Sevilla, 1991.
75
Tasso,T. Op.cit. p. 34.
55

com palavras desconhecidas, prescrevendo-se que o poeta relacione palavra translata com
palavra própria em um composto que impede o fechamento semântico da palavra figurada
e, simultaneamente, a vulgaridade da palavra de sentido próprio. Além disso, o poeta deve
evitar cuidadosamente palavras metafóricas cujo som possa lembrar o sentido próprio de
coisas plebéias e vulgares, também evitando transferir o significado de coisas menores para
maiores, como o som da tuba para o trovão, mas, fazendo o contrário, deve ir das coisas
maiores para as menores, atribuindo o som do trovão ao som da tuba.
Nos séculos XVI e principalmente no XVII, o discurso poético é engenhosamente
agudo, o que determina por exemplo que, ao representar a paixão amorosa do herói, o poeta
divida a oração que forma o verso em partes simétricas, que se espelham como antíteses e
quiasmas. O artifício calculadíssimo da sintaxe pode esfriar a intensidade do amor
declarado, fazendo com que a paixão impetuosa do personagem pareça mais afetação de
amor que outra coisa. Logo, o poeta também deve ser cuidadoso com as imagens ou
similitudes. É conselho dos retores que, onde a metáfora pode parecer muito rebuscada, seja
convertida numa similitude, como faz Camões no episódio da morte de D. Inês de Castro,
no canto III de Os Lusíadas, construindo a similitude - “assim como” – pela comparação de
“bonina” e “donzela”:
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, candida e bela,/
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está morta a pálida donzela (III,134).

Efetuando o magnífico elevado, o poeta épico deve necessariamente trabalhar com


hipérboles. Quando o artifício de uma delas é muito patente, deve atenuá-lo, afirmando, por
exemplo, que o exagero não é seu, mas de outro. Em Orlando Enamorado, o narrador
afirma que uma das baleias atraídas à praia pela magia da fada Alcina era imensa, mas
declara que o autor do enunciado é Turpin:
Tra le balene v’era una maggiore
che appena ardisco dir la sua grandezza;
ma Turpin m’assicura, ch’è l’ autore,
che la pone due miglia di lunghezza (Orl. Innamorato. II, XIII, 58).
Quanto à composição, o uso de períodos compostos e extensos, com muitas orações
longas, é condição para a abundância da magnificência. No caso, a oitava rima é mais
56

adequada à epopéia que o terceto dantesco, pois faculta jogos fônicos que reforçam a
aspereza ou o brilho efetuadores da evidentia. Quando Ariosto narra a ação mágica de
Alcina, fada que pesca sem redes e sem anzóis, a sonoridade, principalmente as oposições
de fonemas como /v/-/b/ e /i/-/o/, efetua a agitação dos peixes que vêm para a praia:
Veloci vi correvano i delfini
vi venia a bocca aperta il grosso tonno;
i capidogli coi vecchi marini
vengon turbati dal lor pigro sonno;
Muli, salpe,salmoni e coracini
nuotano a schiere in più fretta che ponno;
pistrici,fisisteri,orche e balene
escon dal mar con mostruose schiene(Orl.Fur.VI, 36).

Ou Camões: “Dos cavalos o estrépito parece/Que faz que o chão debaixo todo
treme”(Os Lus. VI 64). Virgílio fornece modelos para essa imitação sonora. Por exemplo,
quando pinta o galope de cavalos: “quádrupedánte putrém sonitú quatit úngula cámpum
(En.VIII 596) (“o casco sonoro dos quadrúpedes martela a areia do campo”); ou quando
descreve com espondeus os cíclopes que levantam os grandes braços com força e
vagarosamente: “illi inter sese magna vi bracchia tollunt”(En. VIII 452);e, com versos
extremamente musicais: “devenere locos laetos et amoena vireta/fortunatorum nemorum
sedesque beatas” (En.VI 638-9) (“chegaram aos lugares ledos e amenas veredas /das
florestas dos felizes, mansões beatas”).
A amplitude dos oito versos da oitava rima, as inversões, como os hipérbatos
construídos principalmente pelo uso de verbos fora do lugar usual, produzem
magnificência. Compondo a proposição, Camões formula o objeto direto “As armas e os
barões assinalados” como o primeiro verso de Os Lusíadas. Depois de 14 versos, ou seja,
depois de 130 sílabas métricas intermediárias, escreve o verbo desse objeto, “espalharei”,
acrescentando-lhe o modo como difunde a fama dos heróis e suas causas, eficiente e
formal: “Cantando espalharei por toda parte,/Se a tanto me ajudar o engenho e arte” (Os
Lus. I,15). A pouca amplitude do período determinada pelo uso de versos emparelhados é
uma das razões de limitação da magnificência épica, como ocorre nos de Vila Rica que,
imitando o prosaísmo da Henriade, de Voltaire, obrigam Cláudio Manuel da Costa a
compor enunciados sem largueza e extensão suficientes para imitar grandes ações.
57

Como a epopéia trata de tipos elevados, deve tirar lição de suas ações para o leitor.
Dois elementos narrativos são fundamentais para isso na sua disposição e elocução, a
sentença e a gnome. A sentença ( grego dianoia, latim sententia) é um axioma moral e
instrutivo; sua finalidade é o docere, o útil, exortando o destinatário a algo ou dissuadindo-
o de algo. Quando condensada, a sentença é chamada gnome. O uso é necessário para a
elevação moral do destinatário, mas o poeta facilmente fica afetado, se fala como pregador
ou professor. E, quando excessivamente gnômico, fica obscuro, contradizendo o fim do
gênero, a maravilha das grandes ações. Em seu Traité du poème épique (1675), Le Bossu
propõe que as agudezas são para o Agradável o que as sentenças são para o Útil. Na
epopéia, as sentenças comunicam “preceitos morais”; mas, por serem “morais”, esfriam a
intensidade magnífica do pathos heróico com a gravidade inoportuna com que pretendem
ensinar. Poetas maiores, como Virgílio e Camões, preferem usá-las dramaticamente: eles as
põem na boca de personagens, como que lhes atribuindo a responsabilidade por elas:
“Aprendei, ó mortais escarmentados com os castigos de Deus, a ser justos e temê-lo”.
Virgílio sabia que, sendo muito elevada, pareceria coisa de moralista se fosse dita pelo
narrador da Eneida. Por isso, faz o narrador dizer que é uma fala de Flégias, na qual a
moralidade aparece como que dissimulada: “Está sentado e o estará eternamente o infeliz
Teseu; e Flégias, ainda mais infeliz, avisa e admoesta a todos dizendo com voz alta:
aprendei, ó mortais,em meu escarmento, a ser justos e a temer os deuses” .
Poetas ineptos que pretendem ser úteis sem arte, como Gonçalves de Magalhães,
fazem o narrador dizer sentenças cívicas que aborrecem o leitor, ao invés de elevá-lo: “Ele,
que aqui nasceu,nos lega o exemplo/De como esses dous bens amar devemos/E quando
alguma vez vier altivo/Leis pela força impor-nos o estrangeiro/Imitemos a
Aimbire,defendendo/A honra, a cara pátria, e a liberdade”. A ideologia nacionalista de
Magalhães é ruim poeticamente, antes de tudo, porque é a própria imitação épica que falha
em A Confederação dos Tamoios (1856), como Alencar demonstrou com minuciosa razão
nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, indicando o romance como o gênero mais
adequado aos novos tempos.
Tão sério como esse, outro defeito da epopéia é o ampuloso ou o dilatado
produzido como inchação que, pretendendo a magnificência, cai aquém do elevado, perto
do ridículo ou já ridículo. O ampuloso nasce de conceitos muito distantes do verdadeiro:
58

Tasso dá como exemplo dizer que na pedra arremessada por Polifemo contra o navio de
Ulisses havia cabras pastando. O inchado também nasce das palavras quando
excessivamente antigas, peregrinas e rebuscadas, como as metáforas muito agudas: “O
inchado é semelhante ao contador de vantagem que se gaba dos bens que não tem, e aos
que possui usa fora de propósito”76. Exemplo de inchação dado por vários autores é o de
Lucano, agudíssimo quando diz Victrix causa Diis placuit, sed victa Catoni [A causa
vencedora agradou aos Deuses, mas a vencida a Catão] (De bello civili I,128). Hobbes
afirma que esse verso indicia grande agudeza mais apropriada para um retor que para um
poeta, opondo-se mesmo à discrição, pois nada poderia ser dito mais gloriosamente para a
exaltação de um homem, nem mais desgraçadamente para o rebaixamento dos deuses77.
Outro defeito máximo nasce de razões contrárias ao estilo inchado: trata-se da baixeza,
defeito do estilo humilde. Como se sabe, é humilde o conceito que nasce ordinário na
mente e que, dito artificiosamente como se não tivesse artifício, é apto para ensinar coisas,
mas nunca para efetuar a maravilha heróica. A elocução humilde é feita com palavras
próprias, não-peregrinas, conhecidas e não-estrangeiras, pouco translatas e sem as agudezas
que convêm ao magnífico. Também é humilde a composição de membros e períodos
breves, com orações sem conectivos e sem inversões sintáticas, com versos sem ruptura e
rimas comuns.
Na épica, a baixeza também consiste nos conceitos cômicos, vis, obscenos, porcos, e
nas palavras popularescas, que contradizem os conceitos elevados. O estilo medíocre,
posto entre o magnífico e o humilde, excede pelos conceitos e pela elocução o modo
ordinário de falar, mas com pouca força e nervo heróicos, por isso também fica aquém do
magnífico. Na epopéia, o medíocre é inépcia poética, pois inconveniente para figurar os
afetos com magnificência.
Fundamentalmente, em todos os casos, as imagens épicas devem ser semelhantes à
coisa imitada ou imaginada. Aristotelicamente, palavras são imagens e imitações de
conceitos; logo, as da epopéia devem depender ou nascer dos conceitos elevados, sendo
elevadas em decorrência deles, não o contrário.

76
Tasso,T. Op.cit. p. 36.
77
Hobbes, Thomas. “On Epic Poetry”. In Vickers, Brian (Ed.). English Renaissance Literary Criticism.
Oxford, Oxford University Press, 2003, p.622.
59

Estilo da épica luso-brasileira do século XVIII


Os poetas épicos luso-brasileiros do século XVIII restringem os elementos da
magnificência do estilo, principalmente a abundância e o brilho, como se vê na redução da
extensão da fábula de Vila Rica e O Uraguai, no uso do dístico emparelhado em Vila
Rica, no uso limitado de tropos e figuras em O Uraguai, aliás o melhor dos poemas deste
livro pela simplicidade grave, áspera e vigorosa, com que efetua o magnífico. Com
argumentos históricos e extensas notas, parecem querer subordinar o possível do épico ao
real do histórico. Tendem a substituir o magnífico sublime de Virgílio, Camões e Tasso
pela simplicidade grave do trágico e, como pretendem efetuar o útil do docere como
“ilustração católica” pombalina, tendem ao médio ou medíocre. Além disso, também para
ensinar, inventam personagens de gênero baixo, como Balda e Baldeta, jesuítas de O
Uraguai, que contrastam satiricamente com os heróis, Cacambo, Sepé, Gomes Freire de
Andrade.
Para situar historicamente essas alterações estilísticas é útil lembrar que, na
historiografia sobre o tempo das reformas pombalinas - tempo de Vila Rica e O Uraguai,
pois, escrito e publicado no tempo da “Viradeira” carola de D. Maria I, ideologicamente
Caramuru é um poema do século XVI- os usos da expressão “Ilustração católica”
apontam para a coexistência de práticas e princípios contraditórios, como inovação e
tradicionalismo, ateísmo e religião, empirismo e escolástica, liberdade e subordinação
absolutista, sugerindo a impossibilidade de definir unitariamente a cultura luso-brasileira
de então ou de propô-la como totalidade prévia unitária e positivamente dada. Justamente
por isso, não parece pertinente ler a épica luso-brasileira da segunda metade do século
XVIII com definições apriorísticas, dedutivas e fechadas de “epopéia” e, muito menos, de
“Iluminismo”, “modernidade” e “atraso”, supondo-se um sentido de mão única para a
história que já estivesse sendo realizado em lugares “modernos”, como a França, para
verificar se a representação poética era adequada às mesmas definições em lugares
supostamente “atrasados”, como Portugal e sua colônia, onde as idéias iluministas
estariam fora do lugar. Historicamente, é mais eficaz propor a simultaneidade
contraditória dos diferentes processos políticos e culturais e a particularidade das
respostas contemporâneas às questões específicas deles.
60

No caso da poesia épica, feita num tempo em que a exaustão da produção do ouro
brasileiro obriga Portugal a rever-se, revendo sua política colonial, as idéias iluministas
são apropriadas praticamente na redefinição de categorias, tópicas e preceitos retóricos e
teológico-políticos do costume antigo, que permanecem sendo aplicados, mas
modificados. As idéias iluministas têm eficácia prática na redefinição da própria prática
de fazer poesia, não importa que, como idéias, sejam ou não representacionalmente
adequadas à situação de seus usos e tenham ou não possibilidade de realização efetiva
como “iluminismo”, supondo-se também a impossibilidade de uma definição unitária do
mesmo, nas condições econômicas, políticas e culturais de Portugal e suas colônias, o
Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará.
Com isso, é possível deslocar o foco do modo habitual de ler essas letras como
representação de conteúdos. Não interessam imediatamente os supostos “conteúdos
iluministas” que a poesia luso-brasileira do século XVIII possa ou não representar. O que
se deve ressaltar é a materialidade mesma das redefinições da prática poética e das suas
modalidades elocutivas, pois não são exteriores ao seu tempo como práticas simbólicas
constitutivas da realidade dele. São tais redefinições que devem ser consideradas,
primeiramente, como práticas simbólicas “ilustradas”.
A “ilustração” da poesia desse tempo consiste fundamentalmente na apologia
intelectual e moral do juízo, que prescreve e regula o meio-termo sensato da elocução
poética. Esta continua defininindo e aplicando o juízo segundo um aristotelismo empirista
legível nos dois principais textos portugueses que então doutrinam o controle da
imaginação nas artes, Verdadeiro Método de Estudar, de 1746, de Luís Antônio Verney, e
Arte Poética, de 1748, de Francisco José Freire, Cândido Lusitano.
Comparando-se essa poesia com as idéias iluministas francesas, por exemplo, é o
meio-termo do juízo aplicado aristotelicamente à invenção dela que a torna análoga - mas
não idêntica- à racionalidade nominalista ou empirista delas. E, se é comparada com os
discursos das reformas pombalinas, a proporção racional da linguagem com que figura suas
tópicas é homóloga da racionalidade alegada neles como socialização progressiva e
ordenada da razão, pelo menos em teoria, pois o autoritarismo centralizador do Marquês de
modo algum era liberal ou democrático e, no caso da colônia brasileira, significava mais
impostos.
61

Sendo poesia que continua rigidamente regrada por preceitos aristotélicos do


costume, o que pode especificá-la poeticamente como “ilustração” da “Ilustração católica”
portuguesa é o fato de reduzir drasticamente os ornatos da elocução ao adaptar gêneros,
formas e estilos do costume antigo da épica aos assuntos coloniais. A redução constitui o
destinatário como tipo que avalia a representação por meio da clareza do estilo obtida pela
subordinação da fantasia ao juízo planificado como bom senso. A representação não é só
mimética ou figurativa de tópicas, mas também judicativa ou avaliativa do modo como
produz a figuração, compondo o destinatário como receptor da racionalização urbana ou
civil da sua linguagem. É essa civilidade por assim dizer “conversacional”, estabelecida
entre a enunciação do narrador e o destinatário, independentemente dos “conteúdos”
escolásticos ou iluministas figurados no poema, que efetivamente importa como
constituição de novos hábitos perceptivos das práticas simbólicas na circunstância das
reformas, como já foi dito por historiadores como Antonio Candido e Sérgio Buarque de
Holanda.
A “Ilustração” dessa poesia não se encontra necessariamente na ficção da matéria
histórica como representação de “conteúdos iluministas”; nem necessariamente na
interpretação deles orientada por algum projeto crítico, apenas “pré-romântico”, ou já
decididamente revolucionário, afirmando nova ordem política oposta à ordem do Antigo
Estado português. Poeticamente, a historicidade da sua “Ilustração” se define pelos modos
simbólicos adotados para dar forma ao contrato enunciativo. Trata-se, antes de tudo, de
uma pragmática efetuada na própria simplificação dos estilos com sentido homólogo ao do
sentido da simplificação empirista dos métodos de estudo então propostos contra o
“peripatetismo” jesuítico nas reformas do ensino. A desqualificação dos “estilos cultos” –
basicamente, a fantasia engenhosa e aguda de Góngora e seus imitadores na corte, na
universidade, nas academias e nos conventos do reinado de D. João V, na primeira metade
do século XVIII- associa-se diretamente à crítica do ensino jesuítico na Universidade de
Coimbra e nos colégios brasileiros e portugueses, incluindo-se praticamente no movimento
das reformas pombalinas. Não se pode esquecer, por isso mesmo, a quase nenhuma
autonomia crítica dos poetas e o forte teor encomiástico dessa poesia feita à sombra do
poder de Estado.
62

Pode-se falar, no caso, da hipervalorização programática do bom senso de uma


poesia linear, feita tendencialmente como “poesia de gramática” que efetua a mediania
eliminando a elocução ornada da metáfora e dos conceitos contrapostos da poesia do
século XVII. Nada de poeticamente inovador, no sentido do “progresso” da crítica
iluminista ou no da “originalidade” romântica, pois a mediania de estilo medíocre que
caracteriza o juízo é, no caso, uma variante estilística da longa duração da instituição
retórica praticada segundo a oposição de ático/asiático ou lacônico/asiático. No século
XVI, ela dividiu os partidários do estilo seco ou coupé de Tácito e Sêneca dos partidários
de Cícero. No século XVII, opôs os adeptos da normatividade aristotélica e horaciana do
costume, como Quevedo, aos imitadores de Góngora, adeptos do estilo sublime da retórica
de Hermógenes para figurar tópicas humildes e bucólicas. Quase sempre, a mediania do
bom senso didático dessa poesia é incongruente e chata, pois aquém do efeito heróico
pretendido- principalmente se o leitor lembra que o épico exige o som e a fúria que
nenhuma mediania é capaz de figurar.

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