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Da nova sensibilidade artificial∗

Maria Teresa Cruz


Universidade Nova de Lisboa
Fevereiro de 2000

Há hoje sinais claros de que a técnica a de mediar simbolicamente e imaginaria-


e a estética se encontram em trajectórias mente a afecção, de modo a que tudo aquilo
de convergência, e de que esta convergên- que nos pode (perigosamente) tocar, possa
cia é tão importante quanto foi aquela ou- ser simultaneamente implicado na experiên-
tra entre a ciência e a técnica, ao formar cia e desimplicado dos corpos. Problema
esse bloco denso que designamos significa- e programa de ordem prática, e só depois
tivamente como “tecno-ciência”. O ponto poética, que a estética assume aliás, desde o
em que estética e técnica convergem e tor- séc. XVII, em concorrência explícita com a
nam explícito um programa comum é o da ética e a política.
afecção. A compreensão do que possa estar Mediação do contacto e do impacto que a
em causa neste programa está bem para além afecção impõe, desafecção da afecção, por-
das discussões acerca das relações entre arte tanto, tal foi o dispositivo estético. Não
e técnica ou da emergência de novas “artes sendo puramente lógicas, as suas operações
tecnológicas” e implica, em primeira mão, não eram também nem éticas nem políti-
uma recolocação mais ampla, mas também cas, apesar de visarem os corpos, e de est-
mais precisa, da questão estética. Na eco- arem manifestamente ligadas a um desejo
nomia disciplinar do pensamento moderno, a de controlo da vida individual e colectiva.
estética representou um ensaio de modulação Sem recorrer ao conceito, à lei ou ao con-
da afeccionalidade em geral, que permitiu trato, o dispositivo estético introduz pro-
enquadrar aspectos malditos da experiência cessos de constituição da experiência sensí-
moderna, como os do prazer, das paixões vel: o gosto, o sentimento do belo, o senti-
e das sensações, transformando-os na bem- mento do sublime, etc. . . , em suma, o que
dita e bem-vista, mas também bem abstracta designa como “sensibilidade”, síntese artifi-
“sensibilidade”. O sucesso de uma tal opera- cial no interior da qual se des-integram as
ção, fica a dever-se a uma maquinaria igual- sensações, as emoções e os desejos. Há
mente abstracta de figuras, de categorias fi- pois uma produtividade estética que desa-
losóficas e de topoi literários cuja função é grega a matéria da afecção para a sinteti-

zar e recompôr de novo, como acontece ex-
No prelo (data prevista de publicação - Fevereiro
de 2000) emplarmente no caso do prazer estético en-
2 Maria Teresa Cruz

quanto prazer desinteressado ou prazer sem jamin, como se sabe, era já evidente, no in-
prazer. Por processos similares, se pro- íco deste século, que os novos dispositivos
duz quotidianamente nos media terror sem da imagem causavam comoção e impacto ge-
horror, comoção sem emoção, compaixão neralizado e que, portanto, a substância da
sem paixão, etc. . . Assim, a exacerbação da afeccionalidade estava a ser penetrada pela
produtividade estética, ou um certo pro- aparelhagem técnica moderna, de um modo
cesso de estetização da experiência, frequen- simultaneamente óptico e táctil. Na sua pers-
temente criticado como derrame da sensibi- pectiva, esta penetração da cultura (e não
lidade, acaba por produzir, na verdade, uma apenas do trabalho) pela técnica, libertava-a,
estranha insensibilidade, como se os corpos entre outros aspectos, da estetização da vida
se encontrassem definitivamente desimplica- e dos seus respectivos efeitos políticos: auto-
dos da experiência da afecção. E, de facto, contemplação e “auto-alienação” da humani-
são cada vez mais frequentes os diagnósti- dade pelo espectáculo de si mesma. Em con-
cos que associam a estetização crescente a trapartida, Benjamin via na recepção senso-
processos de anestesiamento da vida nas so- rial aparelhada pela técnica a possibilidade
ciedades modernas. de um novo comportamento, “caracterizado
Num olhar retrospectivo, a estética pode- pelo facto do prazer do espectaculo e da vi-
ria ser entendida como o primeiro grande vência nele suscitar uma ligação íntima e
dispositivo moderno de desafecção ou de ar- imediata com a atitude do observador espe-
tificialização da sensibilidade, com o ojec- cializado”1 isto é, uma atitude examinadora
tivo específico de modalizar e dar figura à e crítica.
substância traumatizante da afeccionalidade. As décadas que se seguiram provaram a
Como se, de algum modo, ela previsse e extrema lucidez de Benjamin a respeito da
preparasse, como um ensaio experiencial, o questão da técnica, mas também algum ex-
confronto com a vida contemporânea, mar- cesso de expectativas. A aparelhamento téc-
cada pela hiper-estimulação dos sentidos, nico da cultura teve como efeito dominante
pelo o sobreaquecimento das emoções, e especializar o observador no próprio espec-
pela imposição do choque. Menos facil- táculo, com a diferença de que a possibili-
mente previsível, mas em todo caso visí- dade de “ligação íntima e directa” eliminava
vel, a partir dos finais do século XIX, era tendencialmente, deste espectáculo, a distân-
o protagonismo que a técnica deveria ass- cia cultural (nomeadamente estética) e to-
umir neste processo, alimentando e contro- mava de empréstimo as vias da natureza, no-
lando, através de uma aparelhagem densa, meadamente a das sensações e das afecções.
o jogo de afecção e de desafecção da ex- Penetrado, e não substituído, pela aparelha-
periência. De facto, as afecções tornaram- gem técnica, o dispositivo estético torna-se
se matéria privilegiada da maquinação téc- então tão eficaz e tão efectivo na sua artifi-
nica moderna. E esses aparelhos chamam- cialidade, quanto a própria natureza. As no-
se: fotografia, cinema televisão, multimedia, 1
W. Benjamin, “A obra de arte na era da sua re-
redes cibernéticas e ambientes virtuais - e é produtibilidade técnica”, in Sobre arte, técnica, lin-
neste sentido, e só neste, que se pode falar guagem e política, Lisboa, Relógio d? Água, 1992, p.
de uma estética dos media. Para Walter Ben- 110

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vas máquinas da afecção tornam a sensibili- se claro que elas constituem um dipositivo
dade artificial tão real quanto necessário para planetário de produção e de gestão calcu-
efectivamente sentir e padecer sem abando- lada da afecção, fabricando-a, modalizando-
nar o seu torpor estético. O corpo estético a, intensificando-a ou entorpecendo-a. Um
aparelhado pela técnica entra numa nova re- grande número de máquinas modernas pa-
lação à natureza, tornando evidente a cre- rece assim vocacionado para prosseguir o
scente integração entre máquinas e organis- programa de constituição de uma sensibili-
mos, mesmo nesse estrato complexo e apa- dade artificial, e dar-lhe o carácter de uma
rentemente sem regras da experiência hu- efectiva experimentação com a experiência.
mana que é o da afecção. A equivalência Experimentação para a qual, os dispositivos
que Deleuze propôs entre máquina, corpo e multimedia e hipermedia, o ciberespaço e os
desejo colocava aliás a hipótese, partilhada sistemas de ambientes virtuais5 constituem
desde cedo por muitos pensadores da téc- hoje importantíssimos “laboratórios”. O es-
nica, de que “há tantos seres vivos na má- paço imaterial e lógico do digital está assim
quina como máquinas no seres vivos”2 . A a adquirir, pelo menos tendencialmente, a
famosa fórmula de o Anti-Édipo, segundo a densidade e a tangibilidade próprias daquilo
qual “a máquina é desejante e o desejo, ma- que podemos tocar e com o qual nos pode-
quinado”, mostrava que habitar um corpo era mos relacionar sensorialmente e, até mesmo,
construir “a sua pequena máquina própria, emocionalmente. É por isso que o debate
pronta segundo as circunstâncias a ligar-se a em torno da da potencialidade e da actua-
outras máquinas colectivas”3 , técnicas e so- lização, do real e do virtual, deixou de ser
ciais. Maquinação conectada do corpo, do uma discussão abstracta, ou uma avaliação
desejo e da técnica, tal seria então, a produti- das possibilidades puramente logiciais da ci-
vidade afectiva, produtividade que se pode bernética, tendo hoje lugar em torno de des-
acelerar ou desacelerar, aquecer ou arrefe- ses laboratórios de experimentação com a
cer, em suma experimentar e gerir. Esta ma- experiência e dos novos interfaces que eles
quinação da afecção, em que estética e téc- propõem para conectar homem e máquina.
nica convergem, é na verdade entendida por É importante relembrar, a este respeito,
Deleuze como “uma experimentação inevi- que as primeiras teses de McLuhan sobre
tável”, “um programa” que recai igualmente os novos media tecnológicos foram bem sin-
sobre “corpus e socius”4 . 5
Uma explicação técnica simplificada daquilo em
Se tomarmos, nesta perspectiva, o con- que consistem as experiências num ambiente virtual,
junto de máquinas que articulam o campo pode ser apresentada do seguinte modo: são experiên-
da comunicação, campo por excelência da cias sensórias sintéticas que comunicam componentes
conexão, do contacto e do impacto, torna- físicas e abstractas a um operador humano ou partici-
pante. A experiência sensória sintéctica é gerada por
2 um sistema de computador que tende cada vez mais a
Gilles Deleuze, O Anti-Édipo. Capitalismo e Es-
quizofrenia, Assírio & Alvim1972, p. 230 dispor de interfaces com o sistema sensório humano
3 de modo a que essas experiências apresentem na sua
Deleuze, Dialogues, Champ Flammarion, 1999,
p. 199 maior diversidade possível atributos do mundo real
4 (cfr. Kalawsky, 1994, “Virtual environment systems”:
G. Deleuze, “Comment se faire un corps sans or-
ganes?” in Mille Plateaux, Minuit, 1980, p. 188 1-16)

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tomáticas da relação que a técnica viria a A própria investigação das ciências cogni-
estabelecer, não apenas com o domínio co- tivas, cujos progressos e impasses vão ne-
gnitivo, estendendo e automatizando algu- cessariamente enquadrando as ambições e as
mas das nossas operações lógicas e de cál- limitações da cibernética, encontra-se hoje
culo, mas também com todo o nosso corpo especialmente voltada para as nossas expe-
e, principalmente, com a sensorialidade. A riências de afecção, nomeadamente emocio-
hipótese de cada novo medium ser, como sus- nais7 . Paralelamente, a máquina informática
tentava McLuhan, uma espécie de “prótese” deixa de se pensar apenas segundo o ideal
para cada uma das funções do nosso or- da “máquina inteligente”, da máquina que
ganismo que se tornava necessário ampliar, pensa, ou da inteligência artificial, mas tam-
especializar, prolongar, etc. . . fazia antever bém em função da hipótese de uma sen-
que as mediações técnicas viriam a ter uma sibilidade artificial, de uma “máquina que
importância fundamental ao nível da experi- sente” ou do que alguns propõem já como
ência sensível. Como diz McLuhan em Un- “affective computing”8 . A fabricação hard
derstanding Media (1964): “Não é ao nível e soft desta sensibilidade artificial está aliás
das ideias e dos conceitos que a tecnologia em marcha, nomeadamente com os dispo-
tem os seus efeitos; são as relações dos senti- sitivos wearables como o headmounted dis-
dos e os modelos de percepção que ela trans- play, as luvas, os sensores, etc. . . e toda uma
forma a pouco e pouco e sem encontrar a me- nova série de interfaces visuais, auditivos e
nor resistência” (McLuhan, 1964/1968:37). tácteis. Se as novas máquinas não são ainda
McLuhan tem também plena consciência de realmente sensitivas, são pelos menos cre-
que a criação de uma estrutura tecnológica scentemente integradoras da multisensoria-
de sensibilidade artificial traz consigo alte- lidade, razão pela qual a noção de multi-
rações que se manifestam ao nível da afec- media (off line e on line), mesmo se tecno-
cionalidade em geral, nomeadamente ao ní- logicamente vaga, designa um número cre-
vel das emoções e das paixões, ou do que
vai apenas no sentido do puro divertmento. A este gé-
chamava um “clima emotivo”. Nas suas pa- nero de tipologias bem caracterísitcas da sua lingua-
lavras, este clima sofre “arrefecimentos” e gem teórica aparentemente imprecisa, McLuhan acre-
“aquecimentos”, com consequências nomea- scenta a seguinte reflexão: “A regularização do “clima
damente políticas no conjunto da sociedade6 . emotivo” provocado pela acção dos media quentes e
frios não pode contudo ser feita com o mesmo rigor
6 com que aprendemos a estabilizar a economia mun-
É notório o modo como McLuhan descreve já
então o processo tecnológico de uma gestão da afecti- dial” (McLuhan, 1964: 47)
7
vidade em geral e das suas manifestações nos mais di- Veja-se a importância reconhecida dos trabalhos
versos domínios da experiência. Em “Os media quen- de António Damásio, nomeadamente prosseguidos no
tes e frios” (McLuhan, 1964: 41-52), McLuhan fala seu último livro, The feeling of what happens, tem
de “media quentes” que tendem a arrefecer o clima sido disso testemunho
8
de uma sociedade, assim como dos efeitos de “so- E não é por certo desprezível que a linhagem
breaquecimento” ou de grande mobilização afectiva desta nova área de investigação parta directamente de
que podem provocar os “media frios”, numa socie- Marvin Minsky, nome importante no domínio da inte-
dade pouco alfabetizada; ao mesmo tempo que esses ligência artificial, através de uma das suas discípulas
mesmos media, no caso de uma sociedade desenvol- directas, Rosalind Picard. Desta autora veja-se, no-
vida, podem conduzir a uma mobilização afectiva que meadamente, Affective Computing (MIT Press, 1997)

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scente de suportes e de produtos. Cada vez min), continuam a pôr na ordem do dia a
mais, a construção dos sistemas informáticos perda da centralidade da visão e uma certa
toma em atenção a relação entre estruturas revalorização do táctil, como se desta re-
sonoras, visuais e cinéticas e modelos for- configuração da sensorialidade humana de-
mais (numéricos e lógicos) que as possam pendesse, de facto, como sugeria Benjamin,
descrever. Dois exemplos simples existen- a possibilidade de nos posicionarmos relati-
tes e já plenamente integrados são os sin- vamente às transformações radicais da nossa
tetizadores e as paletas gráficas. Os casos experiência, em vez de sermos delas meros
mais ousados pertencem aos sistemas de si- espectadores.
mulação de ambientes virtuais (desenvolvi- É um facto que o modo de hierarqui-
dos, como se sabe, partir dos simuladores de zação e de organização das tarefas da per-
vôo) com integração de informação visual, cepção não constituem uma condição pu-
sonora, cinética e táctil, abrindo a possibi- ramente biológica, dada à partida, e que a
lidade da relação homem-máquina se fazer sua forma histórica decide, a cada momento,
pelos principais canais sensoriais e motores. aspectos fundamentais da nossa experiência.
Um dos aspectos mais importantes desta No caso do olho, Jonhatan Crary mostra bem
situação é o facto de, pela primeira vez, o que a visão moderna consistiu fundamental-
aparelhamento técnico da percepção não in- mente num conjunto de técnicas para con-
cidir privilegiadamente na visão, mas antes stuir o sujeito em observador10 . Deste pro-
num modelo multisensorial. É curioso re- cesso fez parte, precisamente, a dissociação
lembrar que Benjamin falava já duma ne- entre o tacto e o acto de ver, que se encontra-
cessária perda de relevância da visão, a re- vam ainda integrados no caso da concepção
speito do próprio cinema. A novidade do clássica da visão. Distinção e sobrevalori-
cinema, enquanto dispositivo óptico, era a zação da visão, de consequências determi-
de que ele possuía uma “qualidade táctil”, a nantes em termos científicos, filosóficos e
qual advinha sobretudo da técnica da mon- políticos. Boa parte do pensamento crítico
tagem. Ora, o mais importante é que, para moderno tem consistido, aliás, no desmas-
Benjamin, esta nova qualidade perceptiva caramento desta centralidade da visão, como
respondia a uma necessidade histórica da teoria, panóptico ou espectáculo. Em A so-
própria experiência humana pois, como diz: ciedade do Espectáculo, também Debord re-
“as tarefas que são apresentadas ao apare- 10
Cf. Jonathan Crary, Techniques of the Obser-
lho de percepção humana, em épocas de mu- ver, Cambridge, Mass., MIT Press, 1990. Nesta
dança histórica, não podem ser resolvidas obra, Crary reavalia a nossa cultura visual moderna
por meios apenas visuais, ou seja da con- como estreitamente ligada à construção histórica do
templação. Elas só são dominadas gradual- sujeito espectador. Desta genealogia da visão fazem
parte momentos fundamentais como os da invenção
mente, pelo hábito, após a aproximação da
da perspectiva, da fotografia e do cinema, com uma
recepção táctil”9 . É importante notar que, atenção especial a estes novos dispositivos da imagem
ainda hoje, as “alterações no medium da per- surgidos no século XIX, os quais, segundo Crary te-
cepção” (para usar a expressão de Benja- riam introduzido uma experiência da visibilidade pro-
priamente localizada no corpo, e que designa como
9
Walter Benjamin, idem, p. 101 “visão subjectiva” ou ainda como um corpo que vê

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laciona a imposição do “espectáculo” com trodução de mecanismos partilhados de con-


a sobrevalorização da visão, em detrimento trolo ou manipulação dos novos media, exi-
dos outros sentidos, nomeadamente o do gindo ainda a introdução, no sistema, de uma
tacto: “Uma vez que a função do espectá- sensorialidade complexa, estimulável e reac-
culo é a de fazer com que o mundo deixe de tiva, isto é, a sua transformação numa es-
ser directamente perceptível, para ser visto pécie de ecosistema tecnológico. O pro-
através de diversas mediações, é inevitável jecto que David Rokeby desenvolve desde
que procurasse elevar o sentido humano da 1983, e que intitula “Very Nervous System”,
visão ao lugar especial que era anteriormente (desenvolvidada desde 1983), é bem signi-
ocupado pelo tacto; a visão, como o mais ab- ficativo deste tipo de preocupações. Cen-
stracto dos sentidos, e o mais facilmente en- trado num conjunto de diversas interacções
ganado, é hoje naturalmente o sentido mais não-visuais, usa nomeadamente o som e o
prontamente adaptável à abstracção genera- movimento para produzir um sistema alta-
lizada da sociedade”11 . mente “sensível”, no qual a percepção tecni-
Neste ponto largamente consciencializado camente mediada parece adquirir uma nova
- o dos efeitos preversos da centralidade tangibilidade.
da visão - muitos parecem estar, pois, de A maior parte das actuais propostas mul-
acordo. E o entusiasmo actual em torno do timedia interactivas continuam, no entanto, a
multimedia, do hipermedia e a sua culmi- não dispensar o ecrã e a exibir efeitos fun-
nação no desejo de imersão total tem ainda, damentalmente visuais, mesmo quando há
como programa implícito, uma superação diversos tipos de interfaces envolvidos. É
dessa centralidade da visão. Os interfaces o caso da famosa visita a uma cidade que
sensoriais multiplicam-se e as “técnicas do percorremos visualmente, ao mesmo tempo
observador” são pelo menos complementa- que pedalamos numa bibicleta fixa diante de
das por um conjunto de “técnicas do uti- um enorme ecrã (de Jeffrey Shaw), das plan-
lizador”, que tornam o espectador, não pro- tas virtuais que vemos crescer a um gesto
priamente activo, mas menos puramente reti- nosso (de Christa Sommer e Laurent Mi-
niano. Em consequência, o espectáculo, con- gnonneau), ou dos objectos virtuais que, di-
juntamente maquinado pelo espectador, pa- ante dos nossos olhos, resistem à força e à
rece sofrer um efeito de implosão num es- duração de um sopro (de Edmond Couchot).
paço caótico, que vai dissolvendo a topo- Dispositivos com os quais podemos intera-
logia rígida do palco, dos bastidores e da gir, de vários modos (gestos dos dedos, mo-
plateia. Neste programa tecnológico ass- vimentos dos braços, das pernas, do rosto,
ume assim particular relevância, não apenas deslocações no espaço, etc. . . ) sem con-
o acrescento da interactvidade, mas a im- tudo abandonarmos completamente o papel
plicação de outras dimensões da percepção, de espectadores. A aparente multisensoriali-
na certeza de que o “espectáculo” não ce- dade da estética informacional é assim des-
derá lugar à “participação” pela simples in- mentida por uma série de experiências inter-
11
activas que permanecem fundamentalmente
Guy Debord, A Sociedade do Escpectáculo,
Secção 18 visuais. Um projecto recentemente imple-

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mentado na world wide web, “T-Vison”12 , terreno cibernético e electromagnético”14 , ou


assinala precisamente uma certa obsessão o facto de que “o computador não pode simu-
da visibilidade relativamente ao ciberespaço. lar e tornar visível senão aquilo que é já inte-
Nesta proposta, o utilizador manipula a fi- ligível15 . A visibilidade, tal como tem lugar
gura de um globo terrestre apresentado no no universo informacional dos novos meios
ecrã, composta de um conjunto de imagens revela-se uma realidade profundamente abs-
de satélite e de fotos aéreas. Cada uma de- tracta. Na verdade, a própria neurofisiologia
las permite um zoom que nos mergulha na moderna demonstrou que a nossa visão não
visão de conjunto de uma cidade, de uma é um mero processo de recepção de imagens
das suas ruas, ou mesmo, do interior de invertidas pela retina, mas sim um processo
uma das suas casas, levando-nos acompan- complexo de codificação e descodificação
har, em tempo real, o registo permanente de de informação, envolvendo partes específi-
uma câmara video. Mesmo os sistemas de cas do nosso cérebro. E é esta qualidade pro-
construção de “ambientes virtuais” são ainda priamente informacional da visão que o di-
“basicamente, aparelhos de visão”, no dizer gital na verdade revela e acompanha, como
de Simon Penny. Isto é, uma “metaforização nenhum outro dispositivo tecnológico ante-
do espaço digital no interior do visível”13 , rior a ele.
como revelam inclusivamente algumas das O modo como percepcionamos a paisa-
suas operações mais sofisticada, tais como a gem crescentemente digitalizada que nos ro-
experiência de elevação ou da perda de peso, deia responde, de facto, a “novas tarefas da
que se resumem afinal na experiência de uma percepção” e contém, efectivamente, “altera-
espécie de “flying eye”. ções no medium da percepção” (como dizia
Este tipo de insuficiências mostram, de Benjamin), mesmo no caso da percepção vi-
facto, o quanto a própria tecnologia digital sual. Para estas novas tarefas e novas perfor-
se encontra ainda longe da multisensoriali- mances da percepção, que resultam de novas
dade e, ao mesmo tempo, presa da primeira sínteses artificiais, a cultura digital propõe já
grande revolução dos computadores, nesta novos conceitos: o conceito de “ciberper-
matéria, que foi afinal a do visual display. cepção”, como “antítese do pensamento li-
Em todo o caso, e também aqui, não nos dei- near”, como percepção “all-at-once”, isto é,
xemos enganar pelos nossos olhos, ou mel- percepção imediata e completa de “uma mul-
hor, não nos deixemos enganar a respeito do tiplicidade de pontos de vista, que activa em
que é ver. A experiência do multimedia e do toda a extensão as dimensões do pensamento
hipermedia, mesmo com todas as suas limi- associativo”, como “reconhecimento da tran-
tações, e mesmo quando insiste no campo da sitoriedade de todas as hipóteses, da relati-
visão, não nos deve fazer esquecer o facto de vidade de todo o saber e da impermanência
“a visibilidade se situar crescentemente num de toda a percepção”; o conceito de “tele-
12
Criado pelo Art+Com Group, sediado em Berlin presciência”, como capacidade para “antici-
13
Simon Penny “From A to D and Back again. The 14
J. Crary, op cit, p. 2
emerging asthetics of interactive art”, in Leonardo 15
Edmond Couchot, “Vision, Corps et Mouve-
(Abril, 1999) ment”, in Les Cinqu Sens de la Création, Paris,
Champ Vallon, 1996, p.128

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par e prever mais rapidamente e com maior stituição radicalmente diferente da experiên-
alcance”; ou a “telenóia”, como actividade cia, no caso, a cibernética. O “corpo sem
“inclusiva e colaborativa” permanente que orgãos” seria o resultado da amputação do
exige a capacidade de orientação “em re- próprio sistema nervoso central, pois, “com
des transpessoais de espíritos e de imagi- o advento da tecnologia eléctrica, o homem
nações”16 . projectou a instalação no exterior de si de
A ciberpercepção representaria assim o um modelo reduzido do seu sistema nervoso
conjunto transformado e alargado das nos- central”17 . Neste caso “particular”, mas glo-
sas actividades perceptivas, no interior do balmente decisivo para todas as nossas acti-
qual a actual diversidade dos sentidos (vi- vidades, sejam elas lógicas, sensoriais, mo-
sual, auditivo, táctil, etc. . . ) seria redefi- toras ou emotivas, o funcionamento maquí-
nida, re-hierarquizada e possivelmente acre- nico não necessitaria mais de distingur entre
scentada. Isto é, a nova sensibilidade arti- o visível e o táctil, entre o audível e o legí-
ficial não se constitui por mera adaptação e vel, entre o táctil e o cinético, etc. . . , nem
capacidade de conexão das máquinas com entre o abstracto e o sensível. Esta hipótese
os nossos diferentes órgãos sensoriais e suas é de facto a hipótese cibernética, no esta-
funções. Pelo contrário, e como sugere De- dio da tradutibilidade absoluta de todos os
leuze, é o nosso corpo que primeiro perde a dados sensíveis em informação e da infor-
certeza e a necessidade dos seus órgãos e das mação em tangibilidade, e o digital, mesmo
suas funções. E, neste ponto (pelo menos), como o conhecemos hoje, parece estar já no
Deleuze é ainda Mcluhaniano. De facto, um caminho desta ambição. Esta situação é me-
dos aspectos mais interessantes das anteci- taforizada por McLuhan com uma imgem
pações de McLuhan a respeito da constitu- que ficou célebre: este seria o momento em
ição tecnológica de uma sensibilidade artifi- que transportaríamos ou experimentaríamos
cial, é o facto de ele ter compreendido bem como “pele”18 toda a experiência.
que a sua lógica radica numa inevitável am- Semelhante prognóstico só poderá apan-
putação. Apesar da maior parte dos seus co- har de surpresa aqueles que acreditam ex-
mentadores reter daqui a ideia de um corpo cessivamente no carácter logicial da razão,
progressivamente protésico, onde cada or- ou aqueles que acreditam excessivamente no
gão vai sendo substituído por mais uma pe- carácter irracional da afecção. Na verdade,
quena máquina, a verdade é que a hipótese toda a experiência e pensamento humanos
de Mcluhan é bem mais radical do que esta mostram-nos, desde há muito, que assim não
lógica construtivista e imaginária, mais ou é, apesar desta discussão (sempre recorrente,
menos robótica, do corpo híbrido, a caminho pelo menos no ocidente), conhecer hoje o en-
do pós-orgânico. O novo corpo e a nova ex- tusiamo algo ingénuo de uma (falsa) novi-
periência sensível resultariam antes de uma dade, nomeadamente no domínio das ciên-
síntese verdadeiramente outra, de uma con- cias. No seu estado actual de evolução, a
16 técnica, a tecno-ciência, e as suas máquinas
Esta recensão, onde têm lugar muitos outros con-
ceitos, é feita por Roy Ascott em “L’architecture de la 17
McLuhan, Understanding Media, 1964, p. 63
ciberperception”, in Les Cinqu Sens de la Création, 18
McLuhan, op. cit., p. 68
Paris, Champ Vallon, 1996

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não fazem mais do que revelar uma condição


da própria racionalidade: a de que inteligi-
bilidade e sensibilidade não são realmente
separáveis. Ou ainda, se quisermos, uma
condição propriamente mundana da razão:
a de que mesmo simbolicamente ou imagi-
nariamente, ela sempre teve “pele”, mesmo
quando, para o bem e para o mal, lhe é
permitido esquecer que tem corpo. Neste
sentido, a “pele” tecnológica não cumprirá
funções muito diferentes das que já con-
hecíamos bem, funcionando como uma su-
perfície disponível para afecção, que simul-
taneamente dispõe dos corpos e os protege.
Será possivelmente mais plástica e transitiva,
podendo migrar de corpo para corpo e dos
corpos para as coisas. Tal como nos é possí-
vel hoje ver, ouvir e sentir de modos directa-
mente desconhecidos pelo nosso corpo, tam-
bém o meio à nossa volta, como diz Roy As-
cott, se pôs “olhar-nos, ouvir-nos e sentir-
nos, de um modo cada vez mais fino”19 , das
câmaras de vigilância das instituiçoes públi-
cas, até à imensa rede de satélites que po-
vam o espaço. Sejam quais forem as trans-
formações profundas, secretas, metafísicas,
ou simplesmente imprevisíveis que estão em
curso na aventura tecnológica da experiência
moderna, poderemos pois estar certos de que
não deixaremos de as sentir . . . na pele.

19
Roy Ascott, op cit., p.189

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