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a
SOCIOLOGIA

SÉRIE
ENSINO
MÉDIO

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SOCIOLOGIA
Nelson Dacio Tomazi

CULTURA E IDEOLOGIA
1 Dois conceitos e suas definições . . . . . . . . . . . . . . . . 4
Os significados de cultura no cotidiano . . . . . . . . . . . . . .4
Cultura segundo a Antropologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4
Convivência com a diferença: o etnocentrismo . . . . . . . . .6
Trocas culturais e culturas híbridas . . . . . . . . . . . . . . . . .8
Cultura erudita e cultura popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
A ideologia, suas origens e perspectivas . . . . . . . . . . . .10
A ideologia no cotidiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12
2 Mesclando cultura e ideologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Dominação e controle . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19
Os meios de comunicação e a vida cotidiana . . . . . . . . .20
Está tudo dominado? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22
O universo da internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22
3 Cultura e indústria cultural no Brasil. . . . . . . . . . . . . 26
O que caracteriza nossa cultura? . . . . . . . . . . . . . . . . .26
Indústria cultural no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27
A televisão brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30
A inclusão digital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33
Conexão de saberes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Leituras e atividades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

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MÓDULO
Cultura e ideologia
MIGUEL GUITIERREZ/AFP

É comum ouvirmos dizer que um indivíduo é culto porque fala


vários idiomas ou conhece muitas obras de literatura e de arte. Costu-
ma-se dizer, ainda, que uma pessoa não é culta se não domina deter-
minados conhecimentos. Indo além do plano individual, há quem com-
pare diferentes povos e afirme que a cultura de um é mais sofisticada
e complexa que a de outro. Esse tipo de avaliação, baseada no senso
comum, comporta elementos ideológicos que nos levam a pensar na
possível superioridade de alguns indivíduos ou de determinados povos
em relação a outros.
Afinal, o que significam cultura e ideologia, termos tão usados em
nosso cotidiano e nas ciências humanas?

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Produção de grafite em parede do Museu Alejandro Otero, em
Caracas, Venezuela. Fotografia de 2010.

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CAPÍTULO

1 Dois conceitos e
suas definições

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: Há várias definições para os conceitos de cultura e de ideologia. Neste capítulo, vamos examinar
os significados e usos desses dois conceitos de acordo com diferentes autores.
c Apresentar os
conceitos de cultura
e de ideologia,
OS SIGNIFICADOS DE CULTURA NO COTIDIANO
destacando as O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas ciências sociais.
especificidades de O pensador francês Félix Guattari (1930-1992) reuniu os diferentes significados de cultura em três
cada um deles e sua grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-alma coletiva e cultura-mercadoria.
evolução ao longo do Cultura-valor é o sentido mais antigo e explicita-se na ideia de “cultivar o espírito”. É o que per-
tempo, de acordo com mite estabelecer a diferença entre quem tem cultura e quem não tem ou determinar se o indivíduo
as várias vertentes pertence a um meio culto ou inculto, definindo um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse
teóricas. grupo inclui-se o uso do termo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica,
artística ou científica.
O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de “civilização”. Ele expres-
sa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm cultura e identidade cultural. Nessa acepção,
pode-se falar de cultura negra, cultura chinesa, cultura marginal etc. Tal expressão presta-se, assim,
aos mais diversos usos por aqueles que querem atribuir um sentido para a ação dos grupos aos quais
pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los.
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à “cultura de massa”. Nessa concep-
ção, cultura compreende bens ou equipamentos — por exemplo, os centros culturais, os cinemas,
as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses estabelecimentos — e os conteúdos teóricos e
ideológicos de produtos que estão à disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão
disponíveis no mercado, como filmes, discos e livros.
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia a dia, marcando sempre uma di-
ferença entre as pessoas — seja no sentido elitista (entre as que têm e as que não têm uma cultura
erudita, por exemplo), seja no sentido de identificação com algum grupo específico, seja ainda em
relação à possibilidade de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga va-
lorativa, dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm cultura ou acesso
aos bens culturais, ou mesmo entre os que têm uma cultura considerada superior e os que têm uma
cultura considerada inferior.

CULTURA SEGUNDO A ANTROPOLOGIA


Com distintas abordagens e definições, o conceito de cultura integra o quadro teórico de todas
as ciências sociais. No entanto, com frequência é vinculado à Antropologia, por ter sido amplamente
discutido e utilizado por estudiosos dessa área do conhecimento desde o século XIX, quando as
explicações racialistas e evolucionistas da diversidade humana eram dominantes.
Naquele contexto, uma das primeiras definições de cultura foi elaborada pelo antropólogo
inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor, cultura é o conjunto complexo
de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além de costumes e hábitos adquiridos pelos indiví-
duos em uma sociedade. Trata-se de uma definição muito ampla e, para Tylor, expressa a totalidade
da vida social humana.
No livro Cultura primitiva, Tylor expôs sua análise das origens e dos mecanismos de evolução
da cultura em várias sociedades. Para ele, a diversidade cultural que se observa entre os povos con-
temporâneos reflete os diferentes estágios evolutivos de cada sociedade, em uma escala que varia

4 Cultura e ideologia

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CESAR DINIZ/PULSAR IMAGENS

do mais primitivo, representado por povos tribais, ao mais desenvolvido, alcançado


pelos europeus.
Contrapondo-se a essa visão evolucionista, segundo a qual a humanidade segue
uma trajetória comum, o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) recusou qual-
quer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa concreta
em sociedades determinadas. Para ele, cada cultura é única e deve ser analisada de
modo aprofundado e particular. Existem, portanto, “culturas”, e não “a cultura”, e é essa
diversidade cultural que explica as diferenças entre as sociedades humanas.
O antropólogo inglês Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942) afirmava que,
para fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado
atual, sem preocupação com suas origens. Concebia as culturas como sistemas
funcionais e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes da-
vam características próprias, principalmente no que dizia respeito às necessidades
básicas, como alimento, proteção e reprodução.
Malinowski desenvolveu a ideia de “observação participante”. Para ele não se
podia analisar uma cultura externamente ou mesmo a dis-
tância, pois só vivendo determinado tempo na sociedade a No alto, apresentação
de dança folclórica
ser pesquisada se podia conhecer as relações entre a cultura Trança-fitas, do grupo
e a vida social. Ô de casa, na cidade
Duas antropólogas estadunidenses, Ruth Benedict (1887- de Aparecida, São
1948) e Margareth Mead (1901-1978), investigaram as relações Paulo, em 2012: cultura
como marca de
entre cultura e personalidade. identidade.
Benedict desenvolveu o conceito de padrão cultural, Acima, cena do filme
destacando a prevalência de homogeneidade e coerência em Os mercenários, sucesso
cada cultura. Em suas pesquisas, identificou dois tipos cultu- de bilheteria dirigido
por Sylvester Stallone,
rais extremos: o apolínio, representado por indivíduos con- de 2010: cultura como
formistas, tranquilos, solidários, respeitadores e comedidos mercadoria.
na expressão de seus sentimentos, e o dionisíaco, que reunia
os ambiciosos, agressivos, individualistas, com tendência ao
exagero afetivo. De acordo com ela, entre os apolínios e os dio-
nisíacos haveria tipos intermediários que mesclariam algumas
características dos dois tipos extremos. FRANK MASI/LIONSGATE/COURTESY EVERETT COLLECTION/KEYSTONE

Mead, por sua vez, investigou o modo como os indivíduos


recebiam os elementos da cultura e a maneira como isso formava a personalidade deles. Suas pesquisas
tinham como objeto as condições de socialização da personalidade feminina e da masculina. Ao analisar
os Arapesh, os Mundugumor e os Chambuli, três povos da Nova Guiné, na Oceania, Mead percebeu
diferenças significativas entre eles.
Entre os Arapesh, homens e mulheres recebiam o mesmo tratamento: ambos eram educados
para ser dóceis e sensíveis e para servir aos outros. Também entre os Mundugumor não havia dife-
renciação: indivíduos de ambos os sexos eram treinados para a agressividade, caracterizando-se por
relações de rivalidade, e não de afeição. Entre os Chambuli, finalmente, havia diferença na educação
de homens e mulheres, mas de modo distinto do padrão que conhecemos: a mulher era educada
para ser extrovertida, empreendedora, dinâmica e solidária com outras mulheres. Já os homens eram
educados para ser sensíveis, preocupados com a aparência e invejosos, o que os tornava inseguros.
Isso resultava em uma sociedade em que as mulheres detinham o poder econômico e garantiam o
necessário para a sustentação do grupo, ao passo que os homens se dedicavam às atividades ceri-
moniais e estéticas. SOCIOLOGIA
Com base nos resultados de suas pesquisas, Mead afirmou que a diferença nas personalidades
não está vinculada a características biológicas, como o gênero, mas à maneira como a cultura define
a educação das crianças em cada sociedade.
Para Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo que nasceu na Bélgica, mas desenvolveu a maior
parte de seu trabalho na França, a cultura deve ser considerada um conjunto de sistemas simbólicos,
entre os quais se incluem a linguagem, as regras matrimoniais, a arte, a ciência, a religião e as normas eco-
nômicas. Esses sistemas se relacionam e influenciam a realidade social e física das diferentes sociedades.

Cultura e ideologia 5

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AP/GLOW IMAGES

A grande preocupação de Lévi-Strauss foi analisar o que era comum e


constante em todas as sociedades, ou seja, as regras universais e os elementos
indispensáveis à vida social. Um desses elementos seria a proibição do incesto
(relações sexuais entre irmãos ou entre pais e filhos), presente em todas as
sociedades. Partindo dessa preocupação, ele desenvolveu amplos estudos
sobre os mitos, demonstrando que os elementos essenciais da maioria deles
se encontram em todas as sociedades tribais.
Para os antropólogos estadunidenses Clifford James Geertz (1926-2006)
e Marshall Sahlins (1930-), cada cultura pode ser definida como um sistema
de signos e significados criado por um grupo social. Assim, conhecer as cul-
turas significa interpretar símbolos, mitos e ritos.
Conforme Geertz, a cultura é um sistema de signos que, para ser in-
terpretado, requer o que ele chama de “descrição densa”: o levantamento
e o registro minucioso das ações e dos significados a elas atribuídos pelos
indivíduos que as praticam.
Sahlins, por sua vez, afirma que as interpretações do passado de uma
A antropóloga Margareth Mead na
cidade indonésia de Bali, em 1957. cultura permeiam o cotidiano dos indivíduos que dela fazem parte. Com base nessas interpretações,
normalmente é possível compreender a forma como os indivíduos vivem e também sua história, que
necessariamente incorpora concepções de tempo e de espaço e muitos mitos.

NAS PALAVRAS DE LÉVI-STRAUSS

Universalidade e particularidade das culturas


O homem é como um jogador que tem nas mãos, ao se instalar à mesa, cartas que ele
não inventou, pois o jogo de cartas é um dado da história e da civilização [...]. Cada re-
partição das cartas resulta de uma distinção contingente entre os jogadores e se faz à sua
revelia. Quando se dão as cartas, cada sociedade, assim como cada jogador, as interpreta
nos termos de diversos sistemas, que podem ser comuns ou particulares: regras de um
jogo ou regras de uma tática. E sabe-se bem que, com as mesmas cartas, jogadores dife-
rentes farão partidas diferentes, ainda que, limitados pelas regras, não possam fazer qual-
quer partida com determinadas cartas.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. In: CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.
Bauru: Edusc, 1999. p. 98.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, RIO DE JANEIRO, RJ

CONVIVÊNCIA COM A DIFERENÇA: O


ETNOCENTRISMO
Ter uma visão de mundo, avaliar determinado assunto por certa ótica, nascer e conviver em
uma classe social, pertencer a uma etnia, ser homem ou mulher são algumas das condições que nos
levam a pensar na diversidade humana, cultural e ideológica, e, consequentemente, na alteridade,
isto é, no outro ser humano, que é igual a nós e, ao mesmo tempo, diferente.
Observa-se, no entanto, grande dificuldade na aceitação das diversidades em uma sociedade ou
entre sociedades diferentes, pois os seres humanos tendem a tomar seu grupo ou sociedade como
medida para avaliar os demais. Em outras palavras, cada grupo ou sociedade considera-se superior
e enxerga com desprezo e desdém os outros, tidos como estranhos ou estrangeiros. Para designar
essa tendência, o sociólogo estadunidense William Graham Summer (1840-1910) criou em 1906 o
termo etnocentrismo.

“Exotismo” para consumo europeu: Umauás nas margens do rio Japurá, na Amazônia, fotografados
em 1865 pelo alemão Albert Frisch. Imagens como esta foram reproduzidas às centenas pela Casa
Leuzinger, a maior empresa de impressão e artes gráficas do Brasil no século XIX. Fizeram um grande
sucesso comercial e valeram ao editor, o suíço Georges Leuzinger, uma menção honrosa na Exposição
Universal de Paris de 1867.

6 Cultura e ideologia

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Conforme o antropólogo brasileiro Everardo Rocha (1951-), o etnocentrismo é um fenômeno
no qual se misturam elementos intelectuais e racionais com elementos emocionais e afetivos. No
plano intelectual, o etnocentrismo está presente na dificuldade de encarar a diferença no plano
afetivo, nos sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.

NAS PALAVRAS DE EVERARDO ROCHA

O relógio, o arco e a flecha


[…] Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no
Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; mo-
desto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar
segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e,
após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos
depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado
de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava frequente-
mente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao
jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu
trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar,
não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. [...]
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus
relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso
sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez.
Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório.
Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo
tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio
foi fazer com o meu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos importan-
tes sentidos da questão do Etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para per-
ceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. [...] Cada um “tra-
duziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O
etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do
“eu”.
Em segundo lugar, esta estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo “cordial”, já
que ambos — o índio e o pastor — tiveram atitudes concretas sem maiores consequências. No mais das vezes, o etnocentrismo
implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. […]
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2002. p. 1-2.
Disponível em: <http://sites.usjt.br/leonarde/oqueeetnocentrismo.pdf>. Acesso em: 20 set. 2012.

Manifestações de etnocentrismo podem ser facilmente observadas em nosso cotidiano. Quan-


do lemos notícias sobre crises enfrentadas por povos de outros países, por exemplo, com frequência
estabelecemos comparações entre a cultura deles e a nossa, considerando a nossa superior, princi-
palmente se as diferenças forem muito grandes. Na história não faltam exemplos desse tipo de com-
paração: na Antiguidade os romanos chamavam de “bárbaros” aqueles que não eram de sua cultura;
em outras épocas, os europeus, após os contatos com culturas diversas, propiciados pela expansão
marítima, passaram a chamar os povos americanos de “selvagens”, e assim por diante.
O etnocentrismo é um dos responsáveis pela geração de intolerância e preconceito — cultural,
SOCIOLOGIA

religioso, étnico e político —, assumindo diferentes expressões no decorrer da história. Em nossos


dias ele se manifesta, por exemplo, na ideologia racista da supremacia do branco sobre o negro ou
de uma etnia sobre as outras. Manifesta-se, também, neste mundo globalizado, na ideia de que a
cultura ocidental é superior, e os povos de culturas diferentes devem assumi-la, modificando suas
crenças, normas e valores. Há, no entanto, uma pluralidade de modos de viver, pensar e sentir, e essa
forma de etnocentrismo pode levar a consequências sérias em nossa convivência com os outros e
nas relações entre os povos.

Cultura e ideologia 7

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JBC
Primeiro número
em português do TROCAS CULTURAIS E CULTURAS HÍBRIDAS
mangá japonês No mundo globalizado em que vivemos, no qual nosso cotidiano é invadido por situações e
Inu-Yasha, lançado
no Brasil em informações provenientes dos mais diversos lugares, podemos afirmar que há uma cultura “pura”?
2002. No mundo Até que ponto chegou o processo de mundialização da cultura?
globalizado, os Em seu livro Culturas híbridas, o antropólogo argentino Néstor García Canclini (1939-) analisa essas
produtos culturais questões. Lançando um olhar sobre a história, ele observa que, até o século XVIII, as relações culturais
circulam sem
fronteiras. ocorriam entre os grupos próximos, familiares e vizinhos, com poucos contatos externos. Os padrões
culturais resultavam de tradições transmitidas oralmente e por meio de livros, quando alguém os tinha
em casa, porque bibliotecas públicas ou mesmo escolares eram raras. Os valores nacionais eram quase
uma abstração, pois praticamente não havia a consciência de uma escala tão ampla.
Já no século XIX e no início do século XX, cresceu a possibilidade de trocas culturais, pois hou-
ve um grande avanço nos meios de transporte, no sistema de correios, na telefonia, no rádio e no
cinema. As pessoas passaram a ter contato com situações e culturas diferentes. As trocas culturais
efetivadas a partir de então ampliaram as referências para avaliar o passado, o presente e o futuro.
A percepção do mundo não mais se restringia ao local em que um indivíduo vivia. Tornou-se
JBC

muito mais ampla, assim como as possibilidades culturais. A cultura nacional passou a ter determi-
nada constituição e os valores e bens culturais de vários povos ou países cruzaram-se, com a conse-
quente ampliação das influências recíprocas.
No decorrer do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, o cinema,
a televisão e a internet tornaram-se instrumentos de trocas culturais intensas, e os contatos indivi-
duais e sociais passaram a ter não um, mas múltiplos pontos de origem.
As expressões culturais de países dominantes, como os Estados Unidos e alguns países da Euro-
pa, proliferam em todo o mundo mescladas com elementos culturais de outros países, antes pouco
conhecidos, tudo ao mesmo tempo e em muitos lugares. Há assim uma enorme mistura de expres-
sões culturais, construindo culturas híbridas, que não podem mais ser caracterizadas como de um
país. Fazem parte de uma imensa cultura mundial.
Isso não significa que as expressões representativas de grupos, regiões ou até países tenham
desaparecido. Elas continuam presentes e ativas, mas coexistem com essas culturas híbridas que
atingem o cotidiano das pessoas por meios diversos, como a música, as artes plásticas, o cinema
e a literatura, normalmente fomentados pela concentração crescente dos meios de comunicação.

NAS PALAVRAS DE CANCLINI

Culturas translocais
[…]
Estávamos na capital da Escócia [em outubro de 1996] a convite do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universi-
dade de Stirling, para falar sobre “as fronteiras entre culturas” diante de vários especialistas da Europa e da América Latina. Eu
me perguntava onde estariam agora as fronteiras interculturais ao comparar esse interesse crescente pela América Latina […].
Estava pensando […] enquanto jantava em um restaurante italiano de Edimburgo. Depois de ser obrigado a me comuni-
car no meu inglês de emergência com um garçom loquaz, descobri que ele era mexicano […].
Quando quis saber por que decidira ir morar em Edimburgo, ele me disse que sua mulher era escocesa […].
Por fim me disse que queria montar um restaurante mexicano de qualidade, mas não gostava das tortillas que eram ven-
didas nos restaurantes tex-mex de Edimburgo porque vinham da Dinamarca. […]
Então o garçom mexicano de Edimburgo me pediu que, ao voltar para o México, eu lhe mandasse uma boa receita de
tortillas. Pediu esse favor justo a mim, que sou argentino, cheguei faz duas décadas ao México […] e me estabeleci no país
porque estudei antropologia e fiquei fascinado com muitos costumes mexicanos, mas uma das minhas dificuldades de adap-
tação sempre foi a comida picante, e é justamente por isso que, ao escolher um restaurante, minha preferência costuma recair
nos italianos. Essa inclinação vem do fato de esse sistema precário chamado “cozinha argentina” ter-se formado com a forte
presença de imigrantes italianos, que se misturaram com espanhóis, judeus, árabes e gaúchos para formar uma nacionalidade.
Pertencer a uma identidade de fusão, de deslocados, ajudou este filósofo convertido em antropólogo a representar a identidade
mexicana perante um mexicano casado com uma escocesa, que representava a italianidade em um restaurante de Edimburgo.

8 Cultura e ideologia

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[…] Ambos extraíramos de vários repertórios hábitos e pensamentos, marcas heterogêneas de identidade, que nos permi-
tiam desempenhar papéis diversos e até fora de contexto.
Pareceu-me evidente que já não é possível entender esses paradoxos por meio de uma antropologia para a qual o objeto
de estudo são as culturas locais, tradicionais e estáveis. […] James Clifford escreve que o objeto de pesquisa devem ser as
“culturas translocais”, as mediações entre os espaços onde se habita e os itinerários: é preciso “repensar as culturas como locais
de residência e de viagem” […].
CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 54-56.

Alguém poderia perguntar: por que essas formas particulares, grupais, regionais ou nacionais
deveriam existir no universo cultural mundial, já que vivemos num mundo globalizado? Em seu livro
Artes sob pressão: promovendo a diversidade cultural na era da globalização, o sociólogo holandês
Joost Smiers responde que assim haveria a possibilidade de uma diversidade cultural ainda maior e
mais significativa; haveria uma democracia cultural de fato à disposição de todos. Em suas palavras:
“A questão central é a dominação cultural, e isso precisa ser discutido com propostas alternativas
para preservar e promover a diversidade no mundo”.

CULTURA ERUDITA E CULTURA POPULAR


A separação entre cultura popular e erudita, com a atribuição de maior valor à segunda, está
relacionada à divisão da sociedade em classes, ou seja, é resultado e manifestação das diferenças
sociais. Há, de acordo com essa classificação, uma cultura identificada com os segmentos populares
e outra, considerada superior, identificada com as elites. MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA

A cultura erudita abrangeria expressões artísticas como a música erudita de padrão euro-
peu, as artes plásticas — escultura e pintura —, o teatro e a literatura de cunho universal. Esses
produtos culturais, como qualquer mercadoria, podem ser comprados e, em alguns casos, até
deixados de herança como bens físicos e imateriais.
A chamada cultura popular corresponde à manifestação genuína de um povo e encontra
expressão nos mitos e contos, danças, música e artesanato. Inclui também expressões urbanas
recentes, como os grafites, o hip-hop e os sincretismos musicais do interior ou das grandes
cidades, o que demonstra haver constante criação e recriação no universo cultural de base
popular. Nesse universo, quem cria é o povo, nas condições possíveis. A palavra folclore (do
inglês folklore: junção de folk, “povo”, e lore, “saber”) significa “discurso do povo”, “sabedoria do
povo” ou “conhecimento do povo”.
RODRIGO BOERIN/FOTOARENA

Imagens do universo erudito e


do universo popular, segundo
classificação que exprime a
diferenciação social. Acima, retrato
renascentista do príncipe, soldado
e patrono das artes Sigismondo
Pandolfo Malatesta. A obra é
de autoria do pintor Piero della
SOCIOLOGIA
Francesca e foi produzida no século
XV.
Ao lado, apresentação de dança no
Festival Moinho Vivo, na favela do
Moinho, no centro de São Paulo,
em janeiro de 2012. O evento
ocorreu um mês após a favela ter
sido atingida por um incêndio de
grandes proporções.

Cultura e ideologia 9

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Para examinar criticamente essa diferenciação, voltemos ao termo cultura, agora segundo a
análise do pensador brasileiro Alfredo Bosi (1936-). De acordo com Bosi, não há no grego uma palavra
específica para designar cultura, mas há um termo que se aproxima desse conceito: paideia (“aquilo
que se ensina à criança”; “aquilo que deve ser trabalhado na criança até que ela se torne adulta”). A
palavra cultura vem do latim e designa “o ato de cultivar a terra”, “de cuidar do que se planta”, ou seja,
o trabalho de preparar o solo, semear e fazer tudo para que uma planta cresça e dê frutos.
O termo está, assim, vinculado ao ato de trabalhar, a determinada ação, seja a de ensinar uma
criança, seja a de cuidar de uma plantação. Nesse sentido original, todos têm acesso à cultura, pois todos
podem trabalhar. Para escrever um romance, é preciso trabalhar uma narrativa; para fazer uma toalha de
renda, uma música, uma mesa de madeira ou uma peça de mármore, é necessário trabalhar. Para Bosi,
isso é cultura. E é por essa razão que um produto cultural gerado pelo trabalho chama-se obra, que
vem de opus, palavra também do latim, derivada do verbo operar (no sentido de “fazer”, de “criar algo”).
Quando uma pessoa compra um livro, um disco, um quadro ou uma escultura, vai ao teatro
ou a uma exposição, adquire bens culturais, mas não os produz. Esses bens proporcionam deleite e
prazer e são usados por algumas pessoas para afirmar e mostrar que “possuem cultura”, quando são
apenas consumidoras de uma mercadoria como qualquer outra. Não ter acesso a esses bens não
significa, portanto, não ter cultura.
Alfredo Bosi chama a atenção para o fato de haver em muitos países órgãos públicos que pro-
curam desenvolver ações para “conservar a cultura popular original”, com certo receio de que ela
não resista ao avanço da indústria cultural. Ora, os produtos culturais — como as festas, a música,
a dança, o artesanato e outras tantas manifestações — são criados em determinadas condições e
remodelam-se continuamente. Nesse sentido, é necessário analisar a cultura como processo, como
ato de trabalho que não se extingue.
A criação cultural não morre com seus autores, e basta que o povo exista para que ela sobreviva.
Entenda-se aqui povo não como uma massa amorfa de oprimidos submissos, mas como um con-
junto de indivíduos, com ideias próprias e capacidade criativa e produtiva, que resiste muitas vezes
silenciosamente, sobretudo por meio da produção cultural, como seus cantos e festas.
Para Bosi, a cultura é algo que se faz, e não apenas um produto que se adquire. É por isso que não
tem sentido comparar cultura popular com cultura erudita. Quando afirmamos que ter cultura signi-
fica ser superior e não ter cultura significa ser inferior, utilizamos a condição de posse de cultura como
UNIVERSITY OF OKLAHOMA LIBRARIES, ESTADOS UNIDOS elemento para diferenciação social e imposição de uma superioridade que não existe. Isso é ideologia.

A IDEOLOGIA, SUAS ORIGENS E PERSPECTIVAS


A ideia de cultura nasce da análise das sociedades antigas, mas o conceito de ideologia é um
produto essencialmente moderno.
Uma das primeiras ideias sobre ideologia foi expressa por Francis Bacon (1561-1626), em seu
livro Novum organum (1620). Ele não utilizava o termo ideologia, mas, ao recomendar um estudo
baseado na observação, declarava que, até aquele momento, o entendimento da verdade estava
obscurecido por ídolos, ou seja, por ideias erradas e irracionais.
O termo ideologia foi utilizado inicialmente pelo pensador francês Destutt de Tracy (1754-
1836), em seu livro Elementos de ideologia (1801), no sentido de “ciência da gênese das ideias”. Tracy
procurou elaborar uma explicação para os fenômenos sensíveis que interferem na formação das
ideias, ou seja, a vontade, a razão, a percepção e a memória.
Um segundo sentido de ideologia, o de “ideia falsa” ou “ilusão”, foi utilizado por Napoleão Bona-
parte (1768--1821) num discurso perante o Conselho de Estado, em 1812. Nesse discurso, Napoleão
afirmou que os males da França deviam ser atribuídos “à ideologia, essa tenebrosa metafísica”1, des-
tacando a falta de conexão com a realidade do pensamento de seus adversários, que questionavam
e perturbavam sua ação governamental.
1
Apud: Chaui, Marilena de Souza. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 27. (Primeiros passos).

Frontispício da Instauratio Magna, de Francis Bacon, publicada em Londres em 1620.


Trata-se da apresentação de um projeto de estudos orientados para uma ampla
reorganização do conhecimento. Novum organum foi publicado como parte desse
projeto, que não chegou a ser concluído.

10 Cultura e ideologia

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Auguste Comte (1798-1857), em seu Curso de filosofia positiva (1830-1842), retomou o sentido
de ideologia utilizado por Tracy — o de estudo da formação das ideias, partindo das sensações (re-
lação do corpo com o meio) — e acrescentou outro, o de conjunto de ideias de determinada época.
Karl Marx (1818-1888) e Friedrich Engels (1820-1895) também trataram do conceito, mas não
apresentaram uma única definição de ideologia. No livro A ideologia alemã (1846), eles se referiram
à ideologia como um sistema de representações e de ideias que correspondem a formas de cons-
ciência que as pessoas têm em determinada época. Essa consciência é condicionada pela existência
social dos indivíduos, isto é, o modo como a pessoa vive define como ela pensa. No entanto, em
qualquer época, as ideias que predominam são as da classe dominante, pois quem controla a pro-
dução e a distribuição de bens materiais também regula e controla a produção e a distribuição dos
bens intelectuais.
Assim, para Marx e Engels, a ideologia não é mera ilusão e aparência, mas uma realidade objetiva
e atuante manipulada pela burguesia, que procura camuflar as contradições e os conflitos próprios
de uma sociedade dividida em classes e obscurecer seus fundamentos, principalmente o processo
de exploração e as desigualdades sociais. Nessa perspectiva, a ideologia seria um conjunto de ideias
e crenças cujo objetivo é legitimar e defender os interesses e a visão de mundo da classe dominante,
utilizando como ferramentas a dissimulação e a distorção.
Émile Durkheim (1858-1917), por sua vez, ao discutir a questão da objetividade científica em seu
livro As regras do método sociológico (1895), afirma que, para ser o mais preciso possível, o cientista
deve deixar de lado todas as pré-noções, as noções vulgares, as ideias antigas e pré-científicas e as
ideias subjetivas. São essas ideias que ele entende por ideologia.
Karl Mannheim (1893-1947) talvez seja o sociólogo depois de Marx que mais tenha influen-
ciado a discussão sobre ideologia. No livro Ideologia e utopia (1929), ele conceitua duas formas de
ideologia: a particular e a total. A particular corresponde à ocultação da realidade, incluindo mentiras
conscientes e ocultamentos subconscientes e inconscientes, que provocam enganos. A ideologia
total é a visão de mundo (cosmovisão) de uma classe social ou de uma época. Nesse caso, não há
ocultamento ou engano, mas apenas a reprodução das ideias próprias de uma classe ou ideias gerais
que permeiam a sociedade.
Para Mannheim, as ideologias são sempre conservadoras, pois expressam o pensamento das
classes dominantes, que visam à estabilização da ordem. Em contraposição, ele chama de utopia o
que pensam as classes oprimidas, que buscam a transformação.
Depois de Mannheim, muitos outros pensadores estudaram e utilizaram o conceito de ideolo-
gia, mas todos tiveram como referência os autores citados.

A ideologia e o grupo social


Todos nós participamos de certos grupos de ideias [...]. São espécies de “bolsões”
ideológicos, onde há pessoas que dizem coisas em que nós também acreditamos,
pelas quais também lutamos, que têm opiniões muito parecidas com as nossas. Há
alguns autores que dizem que na verdade nós não falamos de fato o que acreditamos
dizer, haveria certos mecanismos, certas estruturas que “falariam por nós”. Ou seja,
quando damos nossas opiniões, quando participamos de algum acontecimento, de
alguma manifestação, temos muito pouco de nosso aí, reproduzimos conceitos que
já circulam nesses grupos.
Ideologia não é, portanto, um fato individual, não atua inclusive de forma cons-
ciente na maioria dos casos. Quando pretendemos alguma coisa, quando defendemos
SOCIOLOGIA
uma ideia, um interesse, uma aspiração, uma vontade, um desejo, normalmente não
sabemos, não temos consciência de que isso ocorre dentro de um esquema maior, [...]
do qual somos apenas representantes — repetimos conceitos e vontades, que já exis-
tiam anteriormente.
MARCONDES FILHO, Ciro. Ideologia: o que todo cidadão precisa saber sobre. São Paulo: Global, 1985. p. 20.

Cultura e ideologia 11

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A IDEOLOGIA NO COTIDIANO
Em nosso cotidiano, ao nos relacionarmos com as outras pessoas, exprimimos por meio de
ações, palavras e sentimentos uma série de elementos ideológicos. Como vivemos em uma sociedade
capitalista, a lógica que estrutura essa sociedade, a da mercadoria, permeia todas as nossas relações,
sejam elas econômicas, políticas, sociais ou sentimentais. Podemos dizer que há um modo capitalista
de viver, de sentir e de pensar.
A expressão da ideologia na sociedade capitalista pressupõe a elaboração de um discurso ho-
mogêneo, pretensamente universal, que, buscando identificar a realidade social com o que os mem-
bros da classe dominante pensam sobre ela, silencia discursos e representações contrários.

JOKA MADRUGA/FUTURA PRESS


JUCA MARTINS/OLHAR IMAGENS

À esquerda, jovem catador de papelão em 2004, na avenida Paulista. À direita, estudante


aprovada em vestibular em Curitiba, Paraná, em 2011. As oportunidades são iguais para todos?

Esse discurso homogêneo não leva em conta a história e destaca categorias genéricas — a famí-
lia ou a juventude, por exemplo —, passando, em cada caso, uma ideia de unidade, de uniformidade.
Ora, existem famílias com constituições diferentes e em situações econômicas e sociais diversas. Há
jovens que vivem nas periferias das cidades ou na zona rural, enfrentando dificuldades, bem como
jovens que moram em bairros luxuosos ou condomínios fechados, desfrutando de privilegiada si-
tuação econômica ou educacional. Portanto, não existe a família e a juventude, mas famílias e jovens
diversos, cada qual com sua história.
Outra manifestação ideológica na sociedade capitalista é a ideia de que vivemos em uma co-
munidade sem muitos conflitos e contradições. As expressões mais claras disso são as concepções de
nação ou de região como determinado país ou espaço geográfico definido. Essas concepções passam
a visão de que há uma comunidade de interesses e propósitos partilhados por todos os que vivem
num país ou num espaço específico. Ficam assim obscurecidas as diferenças sociais, econômicas e
culturais, e os conflitos entre os vários grupos e classes, enfatizando-se uma unidade que não existe.
Um exemplo disso é a atribuição de determinadas características a toda uma região que tem em seu
interior uma diversidade muito grande.
É comum, por exemplo, pensar que existe no Brasil um “nordestino ou um sulista” típicos,
como se todas as pessoas que vivem no Nordeste ou no Sul fossem iguais, não havendo conflitos
e contradições. Essa ideia é uma construção ideológica, normalmente repleta de preconceitos que
impedem a compreensão da realidade social brasileira.

12 Cultura e ideologia

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Existem, ainda, outras formas ideológicas que são desenvolvidas sem muito alarde e que pene-
tram nosso cotidiano. Uma delas é a ideia de felicidade, que, para muitos, é um estado relacionado
ao amor, mas também à estabilidade financeira e profissional, significando bem-estar existencial e
material. Entre as várias situações relacionadas à felicidade, porém, a mais focalizada é a amorosa.
Apesar de todas as condições adversas que um indivíduo possa enfrentar, os filmes, as novelas e as
revistas estão sempre reforçando o lema: “o amor vence todas as dificuldades”.
Talvez a maior de todas as expressões ideológicas que encontramos em nosso cotidiano seja
a ideia de que o conhecimento científico é verdade inquestionável. Muitas pessoas podem não
acreditar em uma explicação oferecida por campos do conhecimento que não são considerados
científicos, mas basta dizer que se trata de resultado de pesquisa ou informação de um cientista
para que a tomem como verdadeira e passem a orientar suas práticas cotidianas por ela. Isso aparece
principalmente quando as informações e notícias são veiculadas pelos meios de comunicação e se
referem à saúde. Da busca do sentido da vida às possibilidades de sucesso, a ciência é vista como
solução para todos os problemas, males e enigmas.
Ora, nada está mais distante do conhecimento científico do que a ideia de verdade absoluta
e a pretensão de explicar todas as coisas. A ciência nasceu e se desenvolveu questionando as expli-

ROBERTO SHINYASHIKI/EDITORA GENTE


cações dadas a situações e fenômenos, e continua se desenvolvendo com base no questionamento
dos próprios resultados. O pensamento científico é histórico e tem validade temporária, sendo a
dúvida seu valor maior.
Mas o conhecimento científico, quando analisado da perspectiva de um pensamento hege-
mônico ocidental, adquire um caráter colonialista, pois o que é particular (ocidental) se universaliza
e se transforma em um paradigma que nega outras formas de explicar e conhecer o mundo. Assim,
desqualifica outras culturas e saberes, tidos como inferiores e exóticos, como o conhecimento das
civilizações ameríndias, orientais e árabes.

THINKSTOCK/GETTY IMAGES

SOCIOLOGIA

Felicidade: fórmula prometida


em capa de livro e sugerida
em fotografia. O bombardeio
de publicações, filmes, novelas
e imagens que celebram
a felicidade obscurece as
dificuldades que cada um
enfrenta em seu cotidiano.

Cultura e ideologia 13

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CENÁRIO DO MUNDO DO TRABALHO

O culto ao sucesso
“Seja uma pessoa de sucesso!” Quantas vezes ouvimos essa afirmação nos últimos tempos? A maioria das propagandas
da sociedade atual leva-nos a acreditar que só existe o caminho da vitória.
Devemos sempre ser vencedores; para isso precisamos ter sempre a melhor performance, seja corporal, seja intelectual.
Ou temos um belo corpo ou um currículo composto somente de vitórias.
Quem não aceita essas ideias normalmente é considerado perdedor, uma pessoa que não corresponde às expectativas
sociais de sucesso e, portanto, não merece estar entre os vencedores. No Japão, por exemplo, alguns jovens que não conse-
guem aprovação na escola ou na universidade, sentindo-se perdedores, se suicidam.
O culto ao sucesso afeta desde cedo a vida das crianças, que se tornam “pequenos adultos superocupados”. Na ânsia
de fabricar futuros vencedores, os pais inscrevem os filhos em toda sorte de atividade — além da escola formal —, pois
estes precisam estar preparados para o sucesso. As crianças, então, deixam de brincar e passam a ter uma agenda com ati-
vidades como inglês, informática, natação, judô, música… tudo ao mesmo tempo.
Existem até escolas que estão ministrando aulas de “empreendedorismo” e “educação financeira” para alunos do ensi-
no fundamental, na perspectiva de prepará-los para o futuro, ou seja, para o sucesso financeiro.
Na juventude e na idade adulta, o culto à performance continua de várias formas. Cuidar do corpo, por exemplo,
deixa de ser uma questão de saúde e bem-estar e passa a ser um princípio exclusivo da estética. É comum vermos aca-
demias lotadas de pessoas à procura da tão sonhada performance. Essa busca leva alguns jovens ao absurdo de tomar
remédios indicados para bois e cavalos, buscando aumento da massa muscular. As jovens querem ter o padrão de beleza
mostrado na mídia, mesmo que isso signifique ficar sem comer e debilitar-se fisicamente. É comum ver os garotos alar-
deando seu desempenho sexual, mesmo que usem medicamentos indicados para disfunção erétil para demonstrar sua
(im)potência.
LEYA BRASIL EDITORA ABRIL

O sucesso ao alcance do consumidor em livrarias e bancas. Acima,


capa de livro e de revista publicados em 2012.

O currículo “vitaminado”
Você já deve estar pensando em fazer o seu curriculum vitae e sabe o que deverá incluir nele.
O documento que registra nossa passagem pela vida produtiva foi bem analisado pelo filósofo brasileiro Leandro Konder (1936-),
em um artigo intitulado “O curriculum mortis e a reabilitação da autocrítica”2. Nesse artigo, Konder diz que o curriculum vitae é a
ponta do iceberg de nossa visão triunfalista da vida, pois nele só escrevemos o que consideramos um sucesso em nossa carreira.
Em suas palavras:
O curriculum vitae […] é o elemento mais ostensivo de uma ideologia que nos envolve e nos educa nos princípios do
mercado capitalista; é a expressão de uma ideologia que inculca nas nossas cabeças aquela “mentalidade de cavalo de corrida”
a que se refere a escritora Dóris Lessing. Não devemos confessar o elevado coeficiente de fracasso de nossas existências, porque
devemos ser “competitivos”. Camões, o genial Camões, autor de tantos poemas líricos maravilhosos, não poderia colocar em
seu curriculum vitae o verso famoso: “Errei todo o discurso dos meus anos”.
2.
A Página da Educação, n. 174, jan. 2008. Disponível em: <www.apagina.pt/?aba=7&cat=174&doc=13017&mid=2>. Acesso em: 21 set. 2012

14 Cultura e ideologia

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A ideologia que se manifesta no curriculum vitae, afinal, aumenta as nossas tensões internas, porque nos dificulta a
lucidez e a coragem de assumir o que efetivamente somos; nos obriga a vestir o uniforme do “super-homem”, a afetar su-
perioridades artificiais. Além disso, ela incita à mentira, gera hipocrisia. Por sua monstruosa unilateralidade, a imagem do
vitorioso, que ela nos obriga a exibir, empobrece o nosso conhecimento de nós mesmos, prejudica gravemente a sincerida-
de da nossa autoanálise. [...]
O que aconteceu de errado, os tropeços, as quedas e os fracassos não aparecem no curriculum, quando na maioria das
vezes são a maior parte das ocorrências. Por isso, o filósofo propõe que façamos nosso curriculum mortis e registremos nele
tudo o que não deu certo. Será uma maneira de fazer autocrítica: o primeiro passo para desenvolver a capacidade de criti-
car e ser criticado e, ainda, ampliar a autoestima.
Para destacar a importância e a necessidade da autocrítica, Konder faz as seguintes considerações:
[...] Como superar o estreitamento dos nossos horizontes, provocado pelo mercado hipercompetitivo, que nos joga
constantemente uns contra os outros? Os mecanismos do mercado forçam as pessoas a buscar lucros cada vez maiores, a
disputar um lugar de trabalho melhor remunerado, ameaçam-nas com o desemprego e a miséria, intimidam-nas com a
falência; além disso, disseminam a insegurança e produzem a cristalização não só dos interesses materiais como dos modos
de sentir e de pensar. Fortalece-se, nas criaturas, a exigência de forjar álibis.
[...]
Forjamos para nós imagens que nos ajudem a viver; e nos apegamos a elas. O autoritário se apresenta como “enérgico”
e “corajoso”; o oportunista, como “prudente” ou “realista”; o covarde, como “sensato”; o irresponsável, como “livre”. Não
existe nenhuma tomada de posição no plano político ou filosófico que, por si mesma, imunize a consciência contra a ação
desses mecanismos. Somos todos divididos, contraditórios. Por isso mesmo, precisamos promover discussões, examinar e
reexaminar a função interna das nossas racionalizações. Quer dizer: precisamos realizar permanentemente um vigoroso
esforço crítico e autocrítico.
A autocrítica é de uma importância decisiva. É por ela que passa o teste da superação do conservadorismo dentro de
nós. Um conservador — é claro — pode fazer autocrítica; mas, se a autocrítica for feita mesmo para valer, ele seguramente
não estará sendo conservador no momento em que a fizer. [...]

1 Considerando as desigualdades sociais que se observam no Brasil, indique possíveis efeitos do culto ao sucesso pessoal e das
exigências relacionadas ao currículo.

2 Dê exemplos de atividades fundamentais em nossa vida que não se resumem à performance e ao sucesso.

3 Escreva seu curriculum mortis, ou seja, a relação do que não deu certo em sua vida. Procure analisar as razões dos insucessos.

ANOTAÇÕES

SOCIOLOGIA

Cultura e ideologia 15

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TAREFA PARA CASA

1 Sobre o conceito de cultura, leia o texto a seguir e responda às questões.


São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas inatas a “raças” ou a outros grupos humanos.
Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros; que os alemães têm mais habilidade para
a mecânica; que os judeus são avarentos e negociantes; que os norte-americanos são empreendedores e interesseiros; que
os portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis; que
os ciganos são nômades por instinto, e, finalmente, que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos
índios e a luxúria dos portugueses.
Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças cul-
turais. Segundo Felix Keesing, “não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição
dos comportamentos culturais. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for colocada
desde o início em situação conveniente de aprendizado”. Em outras palavras, se transportarmos para o Brasil, logo após o seu
nascimento, uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma família sertaneja, ela crescerá como tal e não se dife-
renciará mentalmente em nada de seus irmãos de criação. Ou ainda, se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a
educarmos como filha de uma família de alta classe média de Ipanema, o mesmo acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades
de desenvolvimento que os seus novos irmãos.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 17-19.

O aluno tem uma vasta gama de possibilidades para exemplificar tal processo. Por exemplo, na escola, ele está aprendendo a cultura científica,
ou seja, o modo bem particular do Ocidente perceber e conviver com o mundo. Também pode ser interessante analisar como se modifica e
amplia esse processo de transmissão da cultura ao longo da história e como essas diferenças, longe de se anularem, se acumulam e coexistem
(oralidade, escrita, internet etc.).

a) Se, como o texto aponta, a cultura não é herdada geneticamente, então como ela é transmitida de geração a geração? Dê
exemplos de acordo com suas experiências.
Talvez o primeiro e mais importante passo para se compreender a noção antropológica de cultura seja perceber que, em todos os autores, ela é
analisada independentemente das características físicas dos indivíduos e das etnias. Se não é herdada geneticamente, a cultura é transmitida por
meio de práticas sociais.
b) Já há algum tempo as ciências sociais vêm apontando que a cultura não pode ser definida como resultante das características
físicas e genéticas dos seres humanos. No campo da política, que implicações há em acreditar que a cultura é um mero reflexo
de características físicas e genéticas?
Se a cultura é tomada como um elemento inerente à nossa genética, então ela deve ser vista como predeterminada e praticamente imutável. Tal
“erro antropológico”, cometido tantas vezes na história das sociedades, necessariamente implica hierarquizações das culturas ou, no extremo,
políticas de genocídio.

2 No dia 25 de maio de 2009, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma matéria sobre o “Dia do Orgulho Nerd”, comemorado nesse
dia em razão do lançamento do primeiro filme da série Guerra nas Estrelas, nessa mesma data, em 1977. Leia a matéria a seguir e
responda às questões sobre culturas híbridas, mídia e globalização.

Sou nerd, mas tô na moda


[...]
Esqueça o menino raquítico de óculos fundo de garrafa carregando livros de física quântica embaixo do braço: a tribo
dos nerds é, atualmente, muito mais variada do que isso. Mais variada e mais articulada também. Eles comemoram hoje,
no mundo inteiro, o Dia do Orgulho Nerd e mostram que nem todos têm vergonha de serem apaixonados por assuntos
como tecnologia de ponta e histórias em quadrinhos — apesar do preconceito de que são alvo, muitas vezes.
O filme “Guerra nas Estrelas”, outra vedete dos nerds, é a razão da data da comemoração — foi no dia 25 de maio de
1977 que estreou o primeiro longa da saga. Desde 2006, a data foi adotada para a celebração.
O termo “nerd” não tem uma definição muito rígida. Pode ser usado para se referir a quem estuda demais, mas serve tam-
bém para falar de quem é aficionado por coisas como RPG (jogos de interpretação de personagem) e computadores. “O nerd é
uma pessoa obcecada por um determinado universo”, explica Maria Stela Graciane, socióloga e coordenadora do curso de pe-

16 Cultura e ideologia

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dagogia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica).
Mas, se não é novidade que existem nerds, por que só recentemente eles decidiram dar as caras, com direito a dia de
se orgulhar e tudo o mais? Talvez porque foi só agora que eles encontraram uns aos outros.
“Com a internet, há facilidade para se agrupar”, explica Maria Stela. Assim, o fã de “O Senhor dos Anéis”, que não tinha
com quem dividir sua paixão pela trilogia na escola, encontra em fóruns de discussões on-line uma multidão pronta a dis-
cutir o sexo dos elfos. E percebe que não está sozinho. No caso de Itamar Portela, 22, moderador da comunidade “Orgulho
Nerd”, no Orkut, a paixão “obsessiva” é por tecnologia. “Desde que conheci um Pentium 286, me apaixonei”, brinca. Hoje,
passa 90% do seu tempo livre na frente de um computador — e trabalha na frente de outro, projetando fiações elétricas.
Nerds como Itamar, fascinados por tecnologia, são conhecidos pelo nome de “geeks”. No caso de Jéssica Campos, 21, o
termo que se usa é “otaku” — ela é fanática por cultura pop japonesa. Aos 18, apesar das críticas dos pais, fez seu primeiro
“cosplay” (fantasiar-se de um personagem), em um evento voltado a fãs de mangás e animês. “As pessoas queriam ser fotogra-
fadas comigo”, conta.
Dois anos depois, ela representou o Brasil no mundial de “cosplay”, no Japão. Ficou em primeiro lugar.
Jéssica não liga para chacotas (“Não vêm de pessoas de mente aberta”, diz) e já está pronta para concorrer mais uma vez
com seu arsenal de 32 fantasias, a maioria feita à mão.
Bercito, Diogo. Sou nerd, mas tô na moda. Folha de S.Paulo, São Paulo, 25 maio 2009. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/folhateen/fm2505200907.
htm>. Acesso em: nov. 2013.

Com base na leitura desse texto e das reflexões levantadas no livro, discuta a pertinência da seguinte afirmação: “A cultura nerd é
um exemplo de cultura híbrida em cuja formação os veículos de comunicação têm papel relevante”.
A questão permite que o aluno considere todos os tópicos trabalhados sobre cultura. Para começar, é preciso pensar se é possível falar de cultura
nerd. Se a cultura é uma “construção coletiva”, então como explicar que características dessa cultura já estivessem presentes em indivíduos antes de
eles constituírem um grupo (o que, pelo texto, acontece graças à internet)? Ou será que o “nerdismo”, o jeito nerd de ser, é apenas a manifestação
de um traço cultural das culturas ocidentais? É uma discussão aberta, possivelmente não haverá resposta conclusiva, mas é importante porque
mobiliza conceitos trabalhados no capítulo.

3 É possível afirmar que a cultura brasileira foi, algum dia, uma cultura “pura”? A partir de quando, e como, ela passa a ser uma cultura
híbrida? Em sua resposta, utilize exemplos de elementos de outras culturas que atualmente se incorporam à cultura brasileira.
Para responder à questão, o aluno deverá considerar a formação cultural brasileira. A cultura brasileira nunca foi pura porque se formou a partir da
fusão de elementos de várias culturas diferentes: culturas africanas diversas, culturas indígenas diversas, cultura europeia, ou seja, sempre foi uma
cultura híbrida. No entanto, é possível argumentar que essa fusão deu origem a uma cultura única, original, distinta de todas as outras. Pode-se
também argumentar que, antes da descoberta do Brasil, haveria uma cultura “pura”, mas então não havia “Brasil”, havia vários povos indígenas e,
aí sim, cada qual com sua cultura própria.

4 No romance intitulado 1984, o inglês George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair) imagina uma Londres sob um regime totalitário
identificado como Grande Irmão (ou, no original, Big Brother). Após uma revolução, esse regime de partido único domina o poder e
estabelece uma série de mecanismos de controle das pessoas, como o que o escritor chamou de teletela, um dispositivo parecido
com uma televisão, instalado obrigatoriamente em todas as residências, por meio do qual o Estado não só lançava suas ideias às pes-
soas como também poderia vigiá-las. Narrada a partir da ótica do personagem Winston Smith, um sujeito comum que trabalha para
o governo, a obra de Orwell, lançada originalmente em 1948, é um dos grandes clássicos da literatura do século XX. A seguir, leia uma
passagem do livro na qual Winston reflete sobre as condições de vida sob o regime do Grande Irmão, e, então, responda às questões.
Como saber quais daquelas coisas eram mentiras? Talvez fosse verdade que as condições de vida do ser humano médio
fossem melhores hoje do que eram antes da Revolução. Os únicos indícios em contrário eram o protesto mudo que você
sentia nos ossos, a percepção instintiva de que suas condições de vida eram intoleráveis e de que era impossível que em
outros tempos elas não tivessem sido diferentes. Pensou que as únicas características indiscutíveis da vida moderna não
eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida — era
só olhar em torno para constatar — não tinha nada a ver com as mentiras que manavam das teletelas, tampouco com os SOCIOLOGIA
ideais que o Partido tentava atingir. [...] O ideal definido pelo Partido era uma coisa imensa, terrível e luminosa — um
mundo de aço e concreto cheio de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes —, uma nação de guerreiros e fanáticos
avançando em perfeita sincronia, todos pensando os mesmos pensamentos e bradando os mesmos slogans, perpetuamente
trabalhando, lutando, triunfando, perseguindo — trezentos milhões de pessoas de rostos iguais. A realidade eram cidades
precárias se decompondo, nas quais pessoas subalimentadas se arrastavam de um lado para o outro em seus sapatos furados
no interior de casas do século XIX com reformas improvisadas, sempre cheirando a repolho e a banheiros degradados. [...]
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009. p. 93.

Cultura e ideologia 17

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a) Segundo o trecho, o ideal do partido claramente não se realiza nas condições sociais. Portanto, reflita: quem ganha e quem
perde com a propagação de ideais que não se manifestam nas condições sociais? Explique sua resposta.
O item aborda as relações de poder que envolvem as produções ideológicas.
Ocultar ou re-significar características da realidade em favor de sua posição social, em discursos ideológicos, conforma narrativas sobre a socie-
dade que só têm uma função: manter a realidade tal como ela é. Quem ganha é quem já está ganhando com tal realidade. Obviamente, quem
perde é quem acata tal narrativa, perdendo a chance de perceber fidedignamente as pressões de poder nas quais está enredada e, assim, de
avistar possibilidades de mudança. Talvez até perca mais quem não acata tal narrativa, mas que, devido à alienação de quem acata, não consegue
mobilizar as forças necessárias para tentar uma transformação.

b) É possível afirmar que esse trecho apresenta um exemplo de como a ideologia funciona? Por quê?
Sim, no sentido da produção de um discurso que sempre altera a realidade em favor de quem o produz. E é exatamente essa a reflexão do
personagem principal do livro 1984.

ANOTAÇÕES

18 Cultura e ideologia

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CAPÍTULO

2 Mesclando cultura
e ideologia

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: Vivemos em um mundo de comunicações: cotidianamente, entre outras atividades, vemos te-
levisão, fazemos pesquisas na internet, contatamos amigos por e-mail, mensagens instantâneas e sites
c Fornecer uma visão de relacionamento, ouvimos música em fones de ouvido enquanto andamos nas ruas, vemos filmes e
antropológica do propagandas, lemos jornais e revistas, escutamos rádio. Estamos mergulhados tanto na cultura como
conceito de cultura e na ideologia. Vamos tentar entender essa realidade à luz da Sociologia.
seu papel na análise
das sociedades
complexas.
DOMINAÇÃO E CONTROLE
Ao analisar a cultura e a ideologia, vários autores procuram demonstrar que esses dois conceitos
c Discernir os elementos não podem ser utilizados separadamente, pois há uma profunda relação entre eles, sobretudo no
essenciais do conceito que diz respeito ao processo de dominação nas sociedades capitalistas.
de ideologia e O pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937) analisa essa questão com base no conceito
compreender como de hegemonia (palavra de origem grega que significa “supremacia”, “preponderância”) e no que ele
ela permeia nosso chama de aparelhos de hegemonia.
cotidiano.
Por hegemonia pode-se entender o processo pelo qual uma classe dominante consegue que
seu projeto seja aceito pelos dominados, desarticulando a visão de mundo autônoma de cada grupo
potencialmente adversário. Isso é feito por meio dos aparelhos de hegemonia, que são instituições
no interior do Estado ou fora dele, como o sistema escolar, a igreja, os partidos políticos, os sindicatos
e os meios de comunicação. Nesse sentido, cada relação de hegemonia é sempre pedagógica, pois
envolve uma prática de convencimento, de ensino e aprendizagem.
Para Gramsci, uma classe se torna hegemônica quando, além do poder coercitivo e policial,
utiliza a persuasão, produz o consenso, que é desenvolvido mediante um sistema de ideias muito
bem elaborado por intelectuais a serviço do poder, para convencer a maioria das pessoas. Por esse
processo, cria-se uma “cultura dominante efetiva”, que deve penetrar no senso comum de um povo,
com o objetivo de demonstrar que a visão de mundo daquele que domina é a única possível.
A ideologia não é o lugar da ilusão e da mistificação, mas o espaço da dominação, que não se
estabelece somente com o uso legítimo da força pelo Estado, mas também pela direção moral e
intelectual da sociedade como um todo, baseada nos elementos culturais de cada povo.
ANGELI
Mas Gramsci aponta também a possibilidade de haver um processo de contra-hegemonia, de-
senvolvido por intelectuais orgânicos, vinculados à classe trabalhadora, na defesa de seus interesses.
Contrapondo-se à inculcação dos ideais burgueses por meio da escola, dos meios de comunicação
de massa etc., eles combatem nessas mesmas frentes, defendendo outra forma de “pensar, agir e
sentir” na sociedade em que vivem.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) desenvolveu o conceito de violência simbólica
para identificar formas culturais que impõem e fazem que aceitemos como normal (como verdade
que sempre existiu e não pode ser questionada) um conjunto de regras não escritas nem ditas. Ele
usa a palavra grega doxa (que significa “opinião”) para designar esse tipo de pensamento e prática SOCIOLOGIA
social estável, tradicional, em que o poder aparece como natural.
Dessa ideia nasce o que Bourdieu define como a naturalização da história, condição em que
os fatos sociais, independentemente de ser bons ou ruins, passam por naturais e tornam-se uma
“verdade” para todos. Um exemplo evidente é a dominação masculina, vista em nossa sociedade
como algo “natural”, já que as mulheres são “naturalmente” mais fracas e sensíveis e, portanto, devem

Naturalização da corrupção: “isso foi,


é e será sempre assim”...

Cultura e ideologia 19

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JOHN MINCHILLO/AP/GLOW IMAGES
se submeter aos homens. E muitos aceitam essa ideia e dizem que “isso foi,
é e será sempre assim”.
Bourdieu declara que é pela cultura que os dominantes garantem o con-
trole ideológico, desenvolvendo uma prática cuja finalidade é manter o dis-
tanciamento entre as classes sociais. Assim, existem práticas sociais e culturais
que distinguem quem é de uma classe ou de outra: os “cultos” têm conheci-
mentos científicos, artísticos e literários que os opõem aos “incultos”. Isso é
resultado de uma imposição cultural (violência simbólica) que define o que
é “ter cultura”.
Os pensadores alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkhei-
mer (1895 -1973) procuraram analisar a relação entre cultura e ideologia
com base no conceito de indústria cultural. Apresentaram esse conceito
em 1947, no texto A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação
das massas. Nele, afirmaram que o conceito de indústria cultural permitia
Quinta Avenida, Nova York, 21 de explicar o fenômeno da exploração comercial e a vulgarização da cultura.
setembro de 2012. Aglomeradas A preocupação básica de Adorno e Horkheimer era a emergência de empresas interessadas
diante de uma loja de produtos na produção em massa de bens culturais, como se fossem mercadorias (como roupas, automóveis,
eletrônicos, centenas de pessoas
sabonetes etc.). Essas empresas visam exclusivamente ao consumo, tendo como fundamentos a
compartilharam o mesmo desejo:
ser o primeiro comprador da versão lucratividade e a adesão incondicional ao sistema dominante.
mais recente de um smartphone. O Nos filmes de ação, por exemplo, o espectador é tranquilizado com a promessa de que o vilão
vencedor comemora. terá um castigo merecido. Tanto os sucessos cinematográficos quanto os musicais parecem dizer
que a vida tem sempre as mesmas tonalidades e que devemos nos habituar a seguir os compassos
previamente marcados. Dessa forma, sentimo-nos integrados a uma sociedade imaginária, sem con-
flitos e sem desigualdades.
Adorno e Horkheimer apontaram a possibilidade de homogeneização das pessoas, grupos e
classes sociais. Colocando a felicidade imediatamente nas mãos dos consumidores mediante a com-
pra de alguma mercadoria ou produto cultural, a indústria cultural seduziria todas as classes, criando
assim a uniformização dos modos de pensar, agir e sentir.

NAS PALAVRAS DE ADORNO

Televisão e ideologia
[…] Em primeiro lugar, compreendo “televisão como ideologia” […], ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa
consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto
de valores como se fossem dogmaticamente positivos […]. Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da
televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vício televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de
comunicação de massa, converte-se pela sua simples existência no único conteúdo de consciência, desviando as pessoas por meio
da fartura de sua oferta daquilo que deveria se constituir propriamente como seu objeto e sua prioridade. […]
[…] Contudo quero destacar também o que considero ser o perigo específico. […] Trata-se dessas situações inacredita-
velmente falsas, em que aparentemente certos problemas são tratados, discutidos e apresentados […]. Tais problemas são
ocultos sobretudo na medida em que parece haver soluções para todos esses problemas, como se a amável vovó ou o bondoso
tio apenas precisassem irromper pela porta mais próxima para novamente consertar um casamento esfacelado. Eis aqui o ter-
rível mundo dos modelos ideais de uma “vida saudável”, dando aos homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade,
e que além disto dando a impressão de que as contradições presentes desde os primórdios de nossa sociedade poderiam ser
superadas e solucionadas no plano das relações inter-humanas, na medida em que tudo dependeria das pessoas. […]
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 79-84.

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E A VIDA COTIDIANA


Entre todos os meios de comunicação, a televisão é o mais forte agente de informações e de en-
tretenimento, embora pesquisas recentes já demonstrem que ela pode ser desbancada pela internet
na massificação da informação. Diante disso, pode-se declarar que a análise de Adorno e Horkheimer,
desenvolvida em 1947, está ultrapassada ou mantém seu poder de explicação?

20 Cultura e ideologia

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Observando que o que mudou foi a tecnologia dos meios de comunicação, as formas de mistifi-
cação que adotam e a apresentação e embalagem dos produtos, podemos afirmar que o conceito de
indústria cultural conserva o mesmo poder de explicação. Os produtos culturais aparecem com invó-
lucros cada vez mais esplendorosos, pois a cada dia são maiores as exigências para prender a atenção
dos indivíduos. Produtos de baixa qualidade têm a oferta justificada pelo argumento de que atendem
às necessidades das pessoas que desejam apenas entretenimento e diversão, sem se preocupar com o
caráter educativo ou cultural do que consomem. Mas isso é falso, pois esses produtos são oferecidos
tendo em vista as necessidades das próprias empresas, cujo objetivo é unicamente o lucro. Por meio
de propaganda intensa, elas criam o desejo e a necessidade de consumir determinada mercadoria.
O “mundo maravilhoso” e sem diferenças está presente nos programas de televisão, que mos-
tram guerras, mortes, miséria e opressão como tragédias que atingem “o outro” e estão fora do
alcance do espectador: como sempre foi assim, é inútil e desnecessário melhorar o que aí está.
Preocupado com o que a televisão vem fazendo em termos culturais, o cientista social italiano
Giovanni Sartori (1924-), em seu livro Homo videns: televisão e pós-pensamento (2001), reflete sobre
esse meio de comunicação. Retomando a história das comunicações, ele destaca o fato de que as
civilizações se desenvolveram quando a transmissão de conhecimento passou da forma oral para a
escrita. Até o surgimento da imprensa, em 1440, a transmissão de conhecimentos era muito restrita.
Foi com Johannes Gutenberg (1398-1468) e a invenção da imprensa que ocorreu o grande salto
tecnológico que permitiu a muitas pessoas o acesso à cultura escrita.
No século XIX, além do desenvolvimento da imprensa, que possibilitou a crescente produção de
jornais e livros, outros avanços tecnológicos permitiram a diversificação das comunicações. Foram então
inventados o telégrafo e o telefone, que facilitaram a comunicação entre pessoas a grandes distâncias.
O rádio foi o primeiro meio capaz de eliminar as distâncias em termos sociais mais amplos. Mas todos
esses meios mantinham-se no universo da comunicação puramente linguística, escrita ou falada.
Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX apareceu o cinema, primeiro
mudo e depois falado, inaugurando outro universo de comunicação, no qual a imagem se tornou
fundamental. A televisão, nascida em meados do século XX, como o próprio nome indica (tele-visão
= “ver de longe”), trouxe à cena um elemento completamente novo, em que o ver tem preponde-
rância sobre o ouvir. A voz dos apresentadores é secundária, pois é subordinada às imagens que eles
comentam e analisam. As imagens contam mais do que as palavras.
A televisão nos oferece a possibilidade de ver tudo sem sair do universo local. Assim, como analisa
Sartori, além de um meio de comunicação, a televisão é um elemento que participa da formação dos
indivíduos e pode gerar um novo tipo de ser humano. Essa consideração está baseada na observação
de que as crianças, em várias partes do mundo, passam muitas horas diárias vendo televisão antes de
saber ler e escrever. Isso dá margem a um tipo de formação centralizado na capacidade de ver.
Se o que nos torna diferentes dos outros animais é nossa capacidade de abstração, a televisão,
para Sartori, “[…] inverte o progredir do sensível para o inteligível, virando-o em um piscar de olhos
[…] para um retorno ao puro ver. Na realidade, a televisão produz imagens e apaga os conceitos; mas
desse modo atrofia a nossa capacidade de abstração e com ela toda a nossa capacidade de com-
preender”. Então, o Homo sapiens está sendo substituído pelo Homo videns, ou seja, o que importa
é a imagem, é o ver, e não o compreender.

NAS PALAVRAS DE IANNI

O mundo das imagens


Talvez se possa dizer que o que predomina na mídia mundial, no fim do século XX, é a imagem. Com frequência, as outras
“linguagens” aparecem de maneira complementar, [...] ou propriamente subordinada à imagem. Tanto assim que a mídia apresen- SOCIOLOGIA
ta aspectos e fragmentos das configurações e movimentos da sociedade global como se fossem um vasto espetáculo de videoclipe.
[...] Ao lado da montagem, colagem, bricolagem, simulacro e virtualidade, muitas vezes combinando tudo isso, a mídia parece
priorizar o espetáculo videoclipe. Tanto é assim que guerras e genocídios parecem festivais pop, departamentos do shopping center
global, cenas da Disneylândia mundial. Os mais graves e dramáticos acontecimentos da vida de indivíduos e coletividades apare-
cem, em geral, como um videoclipe eletrônico informático, desterritorializado entretenimento de todo o mundo.
IANNI, Octavio. O mundo do trabalho. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). A reinvenção do futuro: trabalho, educação e política na globalização do Capitalismo.
São Paulo: Cortez, 1996. p. 39.

Cultura e ideologia 21

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EDITORA GLOBO

ESTÁ TUDO DOMINADO?


Várias críticas foram feitas à ideia de que a indústria cultural estaria des-
truindo nossa capacidade de discernimento. Uma delas foi formulada por Walter
Benjamin (1886-1940), um companheiro de trabalho de Theodor Adorno.
De acordo com Benjamin, não era preciso ser tão radical na análise e a indús-
tria cultural poderia ajudar a desenvolver o conhecimento, pois levaria a arte e a
cultura a um número maior de pessoas. Para ele, no passado, as obras de arte es-
tavam a serviço de um grupo pequeno de indivíduos, de uma classe privilegiada.
Com as novas técnicas de reprodução — como a fotografia e o cinema —, essas
obras passaram a ser difundidas entre outras classes sociais, contribuindo para a
emancipação da arte de seu papel ritualístico. A imagem em uma pintura, que
tinha unidade e duração, foi substituída pela fotografia, que pode ser reproduzida
indefinidamente. Embora analise a questão com mais abertura, Benjamin não
perde de vista a ideia de que o capitalismo utiliza as novas técnicas a seu favor.
Que a ideologia dominante está presente em todos os produtos da indústria
cultural é evidente, mas não se pode dizer que exista uma manipulação cultural
integral e avassaladora, pois isso significa declarar que os indivíduos não pensam,
apenas absorvem e reproduzem automaticamente o que recebem. É verdade que
muitos indivíduos tendem a reproduzir o que veem na televisão ou leem nas re-
vistas semanais de informação ou nos sites da internet, pois uma parcela significa-
tiva da população não dispõe das informações necessárias para questionar o que
vê e ouve. Outros, entretanto, selecionam o que recebem, filtram e reelaboram a
informação; além disso, nem todos recebem as mesmas informações.
As relações sociais cotidianas são muito diversas e envolvem laços de paren-
tesco, de vizinhança, de amizade. Formam uma rede de informação mesclando
várias fontes. Pesquisando a ação da indústria cultural, percebe-se que os indiví-
duos não aceitam pacificamente tudo o que lhes é imposto. Exemplo disso é a
dificuldade que essa indústria tem de convencer as pessoas. Essa dificuldade fica
evidente na necessidade de inventar e reinventar constantemente campanhas
Chamada em capa de revista publicitárias ou de direcioná-las a públicos específicos, como as crianças, ou a de-
publicada em 2012: “Com redes terminadas classes sociais, a fim de vender produtos que atendam aos desejos anteriormente criados.
sociais, é mais fácil mudar o
mundo”. O papel das redes sociais
É possível observar um processo de resistência — o que Antonio Gramsci chama de contra-
na disseminação de informações, -hegemonia —, mesmo que pequeno, dentro e fora da indústria cultural. Nas empresas de comuni-
na formação de opinião e cação há trabalhadores que procuram apresentar críticas ao que nelas se produz, propiciando, assim,
na organização de protestos elementos para o desenvolvimento de um pensamento divergente.
é cada vez mais destacado,
como mostram, por exemplo,
Fora dessas empresas, há indivíduos que criticam o que se faz na televisão, no cinema e em todas
as grandes manifestações que as áreas culturais. Outros procuram criar canais alternativos de informação sobre o que acontece no
marcaram a chamada “primavera mundo, desenvolver produções culturais não massificadas ou manter canais de informação e crítica
árabe”, entre 2010 e 2012. constantes em sites e blogs na internet. Não se pode esquecer também dos movimentos culturais
de milhares de pequenos grupos no mundo que desenvolvem produções culturais específicas de
seus povos e grupos de origem.

O UNIVERSO DA INTERNET
A internet originou-se de um projeto militar desenvolvido nos Estados Unidos, na década de
1960. Naquele período, questionava-se como as autoridades estadunidenses poderiam comunicar-se
caso houvesse uma guerra nuclear. Se isso acontecesse, toda a rede de comunicações poderia ser
destruída e haveria necessidade de um sistema sem controle central, baseado numa rede em que a
informação circularia sem uma autoridade única.
Assim nasceu um sistema no qual as informações são geradas em muitos pontos e não ficam
armazenadas em um único lugar, mas em todos os pontos de contato possíveis. Estes, por sua vez,
podem gerar informações independentes, de tal modo que, se fossem destruídos um ou mais pon-
tos, os outros continuariam retendo e gerando informações independentes. Posteriormente, esse
modelo foi utilizado para colocar em contato pesquisadores de diferentes universidades e acabou

22 Cultura e ideologia

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se expandindo até atingir a maioria dos lugares.
Hoje, a internet é o meio de comunicação no qual há mais liberdade de produção, veiculação
de mensagens, notícias, cultura e tudo o que possa ser transmitido por esse sistema. Na internet,
utilizam-se a palavra escrita ou falada, as imagens, a música e outras tantas formas de expressão, com
muita rapidez e para todos os que se conectarem a essa rede. Existem, é verdade, certas práticas na
comunicação via internet que podem empobrecer a linguagem escrita ou reduzir a capacidade de
expressão verbal — como o uso de um vocabulário restrito e mínimo para conversar por escrito ou
de ícones para indicar alegria, tristeza, ansiedade ou outros estados de espírito. Em contrapartida, Liberdade de consulta e
para se comunicar é necessário ler e escrever, e isso cria um movimento favorável à leitura e à escrita. produção: em sites como o
Essa tecnologia de informação oferece possibilidades quase infinitas de pesquisa. É fato que há Wikipédia, acessado de qualquer
dados demais para a capacidade humana de processamento, mas, com adequado direcionamento e computador conectado à rede, o
internauta pode pesquisar e editar
mínimo conhecimento do funcionamento da internet e seus instrumentos, é possível obter excelen- informações. A contrapartida
tes informações e com uma diversidade nunca imaginada. Portanto, dependendo de como é utiliza- dessa liberdade é a limitada
da, a internet pode empobrecer a capacidade de pensar ou ser um instrumento para a obtenção de confiabilidade do conteúdo
conhecimento. Nessa grande rede, encontram-se muitas das versões de um mesmo fato, cabendo ao disponibilizado. A página
reproduzida abaixo foi consultada
usuário descobrir bons sites e profissionais que mostrem ângulos diversos de determinado fenômeno. em 3 de novembro de 2016.
WIKIPÉDIA

ANOTAÇÕES

SOCIOLOGIA

Cultura e ideologia 23

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CENÁRIOS DO MUNDO DO TRABALHO

Sanduíche de música e literatura


Para termos uma ideia do que faz a indústria cultural, vamos tomar como exemplo a transformação de uma obra de arte numa
mercadoria de baixa qualidade. Digamos que essa obra de arte é uma sinfonia de Mozart.
Podemos ver e ouvir a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) executá-la. Nesse caso, a apreciamos em seu máximo
esplendor. Mas, se essa mesma apresentação for filmada e exibida no cinema, a experiência de quem a assistir será diferente. E a
sensação será outra se a apresentação for assistida em casa, em DVD ou blu-ray.

ANGELA PRADA/FOLHAPRESS
Público de 80 mil pessoas assiste à filarmônica de Nova York no parque do Ibirapuera, em
São Paulo, SP, em junho de 2001: o prazer de ouvir uma peça musical tal qual foi concebida
pelo autor. Observe que o palco foi montado como uma reprodução da fachada do Theatro
Municipal da cidade de São Paulo, para passar a ideia de que se poderia nele estar.

Muitas pessoas não apreciam música sinfônica, pois normalmente a obra é longa, mas gostam de um ou outro trecho mais conhe-
cido. Podem então ouvir a sinfonia de Mozart no rádio ou comprar um CD com uma parte dela. Há, nesse caso, mais um corte das
possibilidades iniciais. Esse CD pode ser ouvido em casa ou no carro, e em cada caso as sensações serão diferentes. Se a opção for
comprar um CD com os movimentos mais conhecidos interpretados por apenas um pianista, a sensação será ainda outra.
O indivíduo que adquire e ouve esse último CD pode achar que está apreciando uma obra de Mozart, mas o que ele tem em mãos
— as partes que “comprou” — é algo bem diferente da obra original.
Observa-se fato semelhante quando uma obra literária de grande expressão, como a de Machado de Assis, por exemplo, é reduzi-
da a pedaços ou a resumos, como os difundidos nos cursinhos para que os alunos obtenham alguma informação que lhes permita
resolver as questões propostas nos vestibulares. Eles não terão o conhecimento ou a sensação que decorre da leitura integral de
um livro desse autor, mas até poderão “achar” que leram e conhecem Machado de Assis, quando apenas tiveram contato com
resumos e pedaços desconectados de uma obra. Esses alunos consumirão um sanduíche quando poderiam saborear com prazer
um jantar bem elaborado.

1 Com base em suas vivências e observações, identifique produtos da indústria cultural resultantes da fragmentação ou da desca-
racterização de obras de arte.

2 A indústria cultural, principalmente por meio da televisão e da internet, procura formar futuros clientes para os produtos de seus
patrocinadores, incentivando desejos e necessidades que parecem naturais. Aponte exemplos disso em seu cotidiano.

24 Cultura e ideologia

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TAREFA PARA CASA

1 Em relação ao papel dos meios de comunicação no processo de dominação nas sociedades capitalistas, analise uma das mídias
abaixo, com base nas questões a seguir.
Mídias: Seria interessante que os alunos apoiassem e fundamen-
tassem suas respostas em exemplos concretos retirados
— Televisão (programa, comercial, novela, filme). desses meios de comunicação. Essa questão não mobiliza
— Impressos (revista, jornal, outdoor). apenas os conceitos sociológicos estudados. Por exemplo,
— Internet (sites, blogs). a análise da linguagem empregada por esses meios de co-
municação ao transmitir sua mensagem contribui enorme-
Questões: mente para responder às questões levantadas.
— Há uma “verdade” transmitida como única ou melhor para todos?
— Há distinção entre “cultos” e “incultos”?
— Visa apenas ao consumo e ao lucro?
— Ignora os conflitos e as desigualdades?
— As imagens contam mais que as palavras?

2 Leia o texto a seguir e responda às questões.


A que lugar eu pertenço? A globalização nos leva a reimaginar a nossa localização geográfica e geocultural. As cidades,
e sobretudo as megacidades, são lugares onde essa questão se torna intrigante. Ou seja, espaços onde se apaga e se torna
incerto o que antes se entendia por “lugar”. Não são áreas delimitadas e homogêneas, mas espaços de interação em que as
identidades e os sentimentos de pertencimento são formados com recursos materiais e simbólicos de origem local, nacional
e transnacional.
CANCLINI, Néstor. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2007. p.153.
De acordo com o texto, as cidades, que no passado seriam muito bem identificadas pelas características culturais de uma deter-
minada região, com a globalização se tornaram espaços de convergência de inúmeras manifestações locais, nacionais e inter-
nacionais. O termo globalização é um conceito abstrato para se referir ao processo de interação internacional. Sobre esse tema:
a) Escolha duas tecnologias de comunicação e explique como elas permitiram que culturas tão distantes se aproximassem.
A ideia do item é exercitar a compreensão da globalização como um processo de convergência material e simbólico das culturas muito mais
do que apenas um conceito. É muito provável que o aluno escolha a internet e desenvolva seu caráter de comunicação instantânea. Porém,
a segunda tecnologia requerida fará com que ele pense mais detidamente: o cinema e a padronização global de certos símbolos e discursos,
bem como a música e sua capacidade de misturar ritmos e instrumentos oriundos de diferentes localidades podem ser opções interessantes.

b) Você se sente afetado pela globalização? Explique e exemplifique.


Nesse item, a intenção é trazer a globalização para a experiência pessoal do aluno. Sendo assim, as possibilidades de resposta são inúmeras.
Desde as identidades produzidas a partir de estilos musicais veiculados pela indústria fonográfica até os shopping centers podem ser elementos
abordados pelos alunos. O foco é refletir sobre a alteração pessoal que a globalização implica. Nas respostas, não virão à tona apenas aspectos
culturais, mas também políticos e sociais; será uma oportunidade para analisar como eles podem se vincular à cultura.

c) Considerando seus conhecimentos sobre os acontecimentos geopolíticos contemporâneos, é possível afirmar que a aproxima-
ção de culturas realiza-se de maneira harmoniosa? Por quê?
Para responder a essa questão, o aluno mobilizará seus conhecimentos prévios sobre aproximações culturais já ocorridas na História e contará
também com suas ponderações a respeito do que pode observar atualmente, na época da globalização. Perceberá que, ao longo da História, há
tanto conflitos quanto relações harmônicas entre as culturas. Além de conflitos étnicos, a aproximação de culturas diferentes está pautada pela
tensão entre, de um lado, a padronização cultural e, de outro, a resistência de culturas locais ao estrangeiro. O aluno poderá até retomar algumas
ideias do capítulo anterior, como o etnocentrismo, a pretensa superioridade de certas culturas sobre outras etc.

3 As manifestações culturais e opiniões dissonantes que vemos se multiplicarem pela internet podem ser consideradas uma forma SOCIOLOGIA
do que Gramsci chamou de contra-hegemonia?
Não se espera do aluno uma resposta conclusiva, bastando que levante hipóteses e se apoie em alguns exemplos. Um ponto importante a
considerar é se essas manifestações têm um caráter de movimento organizado de um grupo que pretende enfrentar uma ideologia dominante
ou resistir a ela, ou se são apenas manifestações que buscam seu lugar ao lado de outras já existentes, sem pretender “derrubá-las” (o que,
nesse último caso, não caracterizaria um processo de contra-hegemonia). É possível também ponderar que na internet há lugar para tudo: ma-
nifestações que podem ser caracterizadas como de contra-hegemonia e outras que simplesmente divulgam opiniões e visões diferentes, sem
maiores pretensões de transformação social.

Cultura e ideologia 25

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CAPÍTULO

3 Cultura e indústria
cultural no Brasil

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: A cultura no Brasil compreende uma quantidade e uma diversidade imensas de expressões
— como festas, danças, canções, esculturas, pinturas, gravuras, literatura (contos, romances, poesia,
c Discutir sobre o papel cordel), mitos, superstições, alimentação — presentes em nosso cotidiano e incorporadas ou não
da indústria cultural pela indústria cultural.
e suas relações com Essa diversidade foi estudada por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que registrou uma
as culturas erudita e amostra das expressões culturais brasileiras no Dicionário do folclore brasileiro, publicado em 1954.
popular. Outro estudioso do assunto foi Fernando de Azevedo (1894-1974), que apresentou no livro A cul-
c Compreendam as tura brasileira, publicado em 1943, um panorama de nossa cultura e uma análise histórica da vida
possíveis relações intelectual no Brasil. O trabalho desses dois autores, entre outros, ajuda-nos a entender a dificuldade
entre indústria cultural de formular uma única definição de cultura brasileira.
e ideologia.
O QUE CARACTERIZA NOSSA CULTURA?
Na América portuguesa, no século XVI, as culturas indígenas e africanas, apesar da presença
marcante, não eram reconhecidas pelos colonizadores e expressavam-se à margem da sociedade que
se constituía sob o domínio lusitano. Tal sociedade tinha como principal referência a cultura europeia.
O estudioso brasileiro Antonio Candido, em 1968, afirmou que “imitar, para nós, foi integrar,
foi nos incorporarmos à cultura ocidental, da qual a nossa era um débil ramo em crescimento. Foi
igualmente manifestar a tendência constante de nossa cultura, que sempre tomou os valores euro-
peus como meta e modelo”.
No entanto, se o colonizador e, depois, imigrantes de distintas origens forneceram elementos
essenciais para a construção de uma cultura difusa, esta não pode ser compreendida sem suas raízes
indígenas e africanas, que impregnaram o cotidiano brasileiro, influenciando a arquitetura, a comida,
a vestimenta, a dança, a pintura, a música etc.
Casal de mestre-sala e porta-bandeira
Na música brasileira, por exemplo, encontramos uma variedade imensa de ritmos, que são puros
no carnaval carioca de 2011: uma ou misturados, cópias ou (re)elaborações constantes, invenções e inovações, com os mais diversos
representação da nobreza europeia do instrumentos, sejam eles extremamente simples e artesanais, sejam sofisticados e eletrônicos. Pode-
século XVIII. mos citar, por exemplo, o lundu, a modinha, o choro, o
maxixe, o samba (e suas vertentes, como samba-can-
ção, samba-exaltação, samba de carnaval), a marcha, o
frevo, o baião, a valsa, a valsinha, o acalanto, a lambada,
o pagode, o samba-reggae, a axé music, a tchê music, o
mangue bit, a cantiga infantil, a música erudita, a ópera,
a música contemporânea, além de ritmos estrangeiros
como rock, blues, jazz, rap, fox, bolero e tango.
Prosseguindo com o exemplo da música e lem-
brando que a cultura é o resultado de um trabalho (é
uma obra), pode-se observar que o trabalho cultural
brasileiro é desenvolvido tanto por iletrados, sem ne-
nhuma formação musical, como por músicos com for-
mação clássica, conhecidos ou anônimos. A produção
musical brasileira tem traços de origem marcadamente
africana, indígena, sertaneja e europeia (sem classificar
o que é mais ou menos importante, simples ou com-
WAGNER MEIER/AE

26 Cultura e ideologia

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 26 21/11/16 20:16


plexo). Ela é fruto do trabalho de milhares de pessoas.
Ainda que se possa afirmar que alguns ritmos são marcadamente brasileiros, como o maxixe, o
chorinho, o frevo ou o samba, nenhum deles é “puramente brasileiro”, pois as influências recebidas
são as mais variadas possíveis, desde a música medieval até a contemporânea. Genuínas mesmo são
as músicas, as danças, a arte plumária e a cerâmica dos povos indígenas. As demais manifestações
culturais são fusões, hibridações, criações de uma vasta e longa herança de muitas culturas. Talvez
seja essa a característica que podemos chamar de “brasileira”.

INDÚSTRIA CULTURAL NO BRASIL


O desenvolvimento da indústria cultural no Brasil teve como marcos a introdução do rádio,
na década de 1920, o início das transmissões de televisão, na década de 1950, e, nos anos 1990, a
expansão da internet. Os outros campos da indústria cultural, como cinema, jornais e livros, não têm
difusão tão expressiva quanto a televisão e o rádio. O cinema atinge, no máximo, 10% da população
e pouco mais de 20% dos brasileiros têm acesso às produções escritas (livros, revistas e jornais).
A primeira transmissão de rádio no Brasil ocorreu em 1922, inaugurando uma fase de experi-
mentação, voltada principalmente para atividades não comerciais. Nessa fase, a programação vei-
culada incluía recitais de poemas, música erudita, óperas e palestras científicas. Era mantida por
associações e clubes de amigos do rádio.
As emissoras eram poucas, precariamente equipadas e com transmissão irregular, pois não havia
muitos aparelhos receptores. No final de 1923, existiam apenas 536 aparelhos receptores no Brasil.
A segunda fase começou na década de 1930, quando foi autorizada a publicidade no rádio. Isso
permitiu a ampliação da difusão para ouvintes que antes estavam impossibilitados de sintonizar os
programas. Por causa do alto custo, os programas ficavam restritos às cidades em que eram produ-
zidos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Fortaleza. O dinheiro arrecadado com a publicidade
foi o que possibilitou manter a programação no ar.
Entre as décadas de 1930 e 1950, o rádio alcançou seu apogeu de audiência, principalmente
com os programas de auditório e as radionovelas, além de programas jornalísticos e humorísticos,
transmissões esportivas e grandes musicais. O sucesso era tanto que cada emissora de rádio possuía
orquestra e cantores próprios. Uma das emissoras mais conhecidas e ouvidas nacionalmente era a
Rádio Nacional. Fundada em 1936, foi a primeira a ter alcance em quase todo o território do Brasil.
Em 1940, foi estatizada por Getúlio Vargas, que a tornou a rádio oficial do governo.
Ser artista de uma grande emissora, como a Rádio Nacional, era suficiente para fazer su-
cesso no país inteiro. O desenvolvimento econômico possibilitava a ampliação do número de
ARQUIVO PAULO E NORMA TAPAJÓS

SOCIOLOGIA

Apresentação do programa de auditório Doutor


Infezulino, sucesso da Rádio Nacional nos anos
1950. Na imagem, os atores Oswaldo Elias e Dorival
Silva, mais conhecido como Chocolate.

Cultura e ideologia 27

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 27 21/11/16 20:16


emissoras e de receptores em todo o território brasileiro. Nas cidades do interior era muito
comum a programação de rádio ser retransmitida por alto-falantes nas ruas e praças.
Com a chegada da televisão, os programas ao vivo do rádio começaram a decair, principalmente
nas décadas de 1960 e 1970. A televisão iniciava, de modo mais intensivo, sua programação, retirando
do rádio não só a audiência, mas também os profissionais (programadores, artistas, locutores, reda-
tores, atores) e, principalmente, os patrocinadores (os anunciantes). As emissoras de rádio passaram
a reproduzir músicas da indústria de discos e a produzir noticiários locais, regionais e nacionais, além
de transmitir programas esportivos. Isso significou um redirecionamento dos investimentos em pes-
soal e equipamentos. É importante lembrar que nesse período a ditadura militar mantinha censura
à programação, o que limitava as poucas alternativas das emissoras.
O rádio tomou novo impulso somente a partir da segunda metade da década de 1980, com a
introdução das emissoras FM (que permitiam melhor recepção), o fim da censura e a disponibilidade
de mais investimentos oriundos da publicidade. Foram então desenvolvidos programas para públicos
específicos e constituídas grandes redes de rádio com abrangência de recepção nacional. O quadro
a seguir apresenta o crescimento do número das emissoras no Brasil desde 1922.

População e emissoras de rádio no Brasil (1922-2011)

População do Brasil Emissoras Emissoras Total de


Ano
(em milhões de habitantes) AM FM emissoras
1922 32,1 1 - 1
1930 37,6 65 - 65
1945 41,1 117 - 117
1950 51,9 243 - 243
1960 70 934 - 934
1970 93,1 956 - 956
1980 119 1.151 152 1.303
1990 146,8 1.505 410 1.915
2000 169,8 1.687 1.338 3.025
2011 192,4* 1.925 3.125 5.050
*Estimativa
FONTES: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). ESTATÍSTICAS DO SÉCULO XX. DISPONÍVEL EM: <WWW.
IBGE.GOV.BR/SECULOXX/ARQUIVOS_PDF/POPULACAO.SHTM>; CENSO DEMOGRÁFICO 2000. DISPONÍVEL EM: <WWW.IBGE.GOV.
BR/HOME/ESTATISTICA/POPULACAO/CENSO2000>; ESTIMATIVAS DAS POPULAÇÕES DOS MUNICÍPIOS EM 2011. DISPONÍVEL EM:
<WWW.IBGE.GOV.BR/HOME/PRESIDENCIA/NOTICIAS/NOTICIA_IMPRESSAO.PHP?ID_NOTICIA=1961>. TELECO. RÁDIO NO BRASIL.
DISPONÍVEL EM: <WWW.TELECO.COM.BR/RADIO.ASP>. ACESSOS EM: 21 SET. 2012.

JOÃO WAINER/FOLHAPRESS

Radialista em emissora
clandestina na zona sul
de São Paulo, em 2007.

28 Cultura e ideologia

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Além das emissoras contabilizadas no quadro, existem 4.409 rádios comunitárias que produzem
programações específicas e com pouca abrangência, além das rádios livres ou “piratas”, presentes
em muitos lugares, mas ausentes das estatísticas, já que são clandestinas. Hoje, muitas rádios são
acessadas pela internet, o que significa uma nova forma de recepção dos programas. Essa união do
rádio com a internet propiciou às emissoras uma nova forma de chegar a públicos variados, com
notícia ou música.
Desde as primeiras décadas do século XX, o rádio foi utilizado como instrumento de dominação
e reprodução ideológica e de sustentação do poder central nos Estados Unidos, no Canadá, no Japão
e em países europeus. O mesmo ocorreu no Brasil, especialmente sob o governo ditatorial de Getúlio
Vargas (1937-1945), que controlava as atividades do rádio por meio das leis e da censura, além de
utilizá-lo para sua propaganda e para o desenvolvimento de uma cultura nacionalista, e no período
dos governos militares, que se estendeu de 1964 a 1985.
Hoje, aproximadamente 85% das emissoras comerciais em operação no Brasil estão em mãos
de políticos de carreira, que usam as transmissões de acordo com os interesses próprios e dos pa-
trocinadores. Estes pressionam, por exemplo, para que sua empresa não seja relacionada a alguma
notícia que a prejudique. A indústria fonográfica também faz pressão para que seus produtos sejam
agraciados com mais tempo de execução. Isso significa que os programas musicais ou jornalísticos das
rádios não são independentes, pois estão vinculados aos interesses dos proprietários das emissoras,
dos patrocinadores ou da indústria fonográfica.
São, assim, as rádios comunitárias, as públicas e mesmo as piratas que criam espaços radiofôni-
cos alternativos e podem desenvolver uma programação sem as limitações e os constrangimentos
mencionados.

NAS PALAVRAS DE BOSI

Indústria cultural e cultura popular


[…] O homem da rua liga o seu rádio de pilha e ouve a música popular brasileira ou, mais frequentemente, música popular
(ou de massa) norte-americana. A empregada doméstica liga o seu radinho e ouve a radionovela ou o programa policial ou o
programa feminino. A dona de casa liga a televisão e assiste às novelas do horário nobre. O dono da casa liga a televisão e assiste
com os filhos ao jogo de futebol. As crianças ligam a televisão e assistem aos filmes de bangue-bangue. Quase todos ouvem o re-
pórter da noite. A música e a imagem vêm de fora e são consumidas maciçamente. Em escala menor o jornal, ou a revista, dá a
notícia do crime, ou comenta as manobras da sucessão ou os horrores da seca ou a geada do Paraná. Em escala menor ainda, o
casal vai ao cinema: assiste ao policial, à ficção científica, à comédia ligeira, à chanchada. Os adolescentes leem histórias em qua-
drinhos. As adolescentes leem as fotonovelas. Tudo isto é fabricado em série e montado na base de algumas receitas de êxito rá-
pido. Há revistinhas femininas populares e de classe média que atingem a tiragem de 500 mil exemplares semanais, com mais de
um milhão de leitoras virtuais. Isso é a cultura de massa ou, mais exatamente, cultura para as massas. […]
[…]
O problema se complica extraordinariamente hoje em dia quando precisamos considerar as imbricações que ocorrem
entre a cultura popular e a cultura de massa (ou popularesca, na expressão de Mário de Andrade), ou ainda entre a cultura
popular e a cultura criadora dos artistas. Urge cavar, em última análise, uma teoria da aculturação que exorcize os fantasmas
elitista e populista, ambos agressivamente ideológicos e fonte de arraigados preconceitos.
Uma teoria da cultura brasileira, se um dia existir, terá como sua matéria-prima o cotidiano físico, simbólico e imaginário
dos homens que vivem no Brasil. Nele sondará teores e valores. No caso da cultura popular, não há uma separação entre uma
esfera puramente material da existência e uma esfera espiritual ou simbólica. Cultura popular implica modos de viver: o ali-
mento, o vestuário, a relação homem-mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de parentesco,
a divisão das tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo,
a bebida, os provérbios, os modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o
SOCIOLOGIA

modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar galinha e
porco, os modos de plantar feijão, milho e mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e de
consolar…
[...]
Bosi, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 320-324.

Cultura e ideologia 29

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PAULO SALOMÃO/EDITORA ABRIL

A TELEVISÃO BRASILEIRA
A televisão chegou ao Brasil no início da década de 1950, quando o jornalista Assis Chateau-
briand inaugurou a primeira emissora brasileira, a TV Tupi, de São Paulo. No início, a emissora contava
com a assessoria de técnicos estadunidenses e com profissionais oriundos das redes de rádio. Ela
expandiu-se e, em 1955, já havia estações dos Diários e Emissoras Associadas (nome do grupo de
Chateaubriand) no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, em Curitiba, em Salvador, em Recife, em Campina
Grande, em Fortaleza, em São Luís, em Belém, em Goiânia e em Belo Horizonte. Assim, nos primeiros
20 anos de história, a rede de Chateaubriand liderou o mercado de televisão, mas enfrentou a con-
corrência de outras emissoras praticamente desde o início da empreitada.
Depois da implantação da TV Tupi, foram inauguradas a TV Paulista, em 1952, a Record, de São
Paulo, em 1955, a TV Itacolomi, de Belo Horizonte, e a TV Rio, em 1958. Isso não significou, entre-
tanto, uma grande expansão junto ao público: em 1960, em apenas 4,6% dos domicílios brasileiros
havia aparelho de televisão, a maioria deles no Sudeste, o que correspondia a 12,44% dos domicílios
da região. Veja, no quadro a seguir, a evolução da quantidade de casas brasileiras com televisores.

Domicílios brasileiros com televisão (em %)

1960 1970 1980 1990 2000 2010


De pé: Jorge Ben Jor, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e Gal 4,6 22,8 56,1 71 89,1 95,7
Costa; agachados: Sérgio e Arnaldo
FONTE: TELECO. ESTATÍSTICAS DE RÁDIO E TV. DISPONÍVEL EM: <WWW.TELECO.COM.BR/NRTV.ASP>. ACESSO EM: 21
Baptista. Essa era a escalação de SET. 2012.
músicos para a estreia do programa
“Divino, maravilhoso” na TV Tupi, em Ao longo dos mais de 50 anos de história da televisão no Brasil, o Estado, por intermédio dos
outubro de 1968. Apesar do sucesso,
o programa durou pouco, por sucessivos governos, influiu diretamente nessa indústria. Sempre deteve o poder de conceder e
causa das sucessivas censuras a ele cancelar concessões, mas nunca deixou de estimular as emissoras comerciais. Nas décadas de 1950
impostas pela ditadura. e 1960, o poder público contribuiu de forma substancial para o crescimento da televisão mediante
empréstimos concedidos por bancos públicos a emissoras privadas.
Foi a partir de 1964, no entanto, com o início do regime militar, que a interferência do Estado
na televisão aumentou de forma quantitativa e qualitativa. As telecomunicações foram consideradas
estratégicas pelos militares, pois serviriam de instrumento para colocar em prática a política de desen-
volvimento e integração nacional. Os militares fizeram os investimentos necessários em infraestrutura
para viabilizar a ampliação da abrangência da televisão e aumentaram seu domínio da programação
por meio de novas regulamentações, forte censura e políticas culturais normativas.
Em 1968, inaugurou-se um sistema de transmissão de micro-ondas e, em 1974, foram criadas
novas estações via satélite. Em 1981, um acordo da
Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embra-
EDSON SATO/PULSAR IMAGENS

tel) com as redes Bandeirantes e Globo permitiu às


emissoras transmitir sua programação para todo o
território nacional. Os sinais podiam ser captados
por qualquer antena parabólica, o que facilitou
muito o acesso de regiões distantes a estações
repetidoras e estimulou o surgimento de uma in-
dústria de antenas parabólicas. A comunicação via
satélite foi incrementada em 1985 e 1986, com o
lançamento dos dois primeiros satélites brasileiros.

Aldeia Yanomami situada no


município de São Gabriel da
Cachoeira, Amazonas, no extremo
noroeste do Brasil. Como a antena
parabólica indica, a televisão está
presente em todo o território
nacional. Fotografia de 2010.

30 Cultura e ideologia

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 30 21/11/16 20:16


PAULO SALOMÃO/ABRIL IMAGENS

O projeto de integração nacional pretendido pelo regime militar, ali-


cerçado numa política cultural específica, alcançou êxito graças à televisão.
Ao espalhar antenas e lançar satélites que cobriam todo o território bra-
sileiro, o projeto oferecia a infraestrutura para que o país fosse integrado,
via televisão.
Durante o regime militar, as redes de televisão — que eram privadas
— obedeciam fielmente às determinações do governo (que tinha o po-
der de fazer e retirar concessões quando bem entendesse). Os programas
transmitidos passavam a impressão de que o governo era legítimo e havia
democracia no Brasil.
A maior beneficiária desse modelo foi a Rede Globo. Fundada em
1965, cresceu rapidamente, apoiada nas relações amistosas com o regime
militar, em sintonia com o incremento do mercado de consumo. Inter-
namente, contava com uma equipe de produção e administração preo-
cupada em otimizar o marketing e a propaganda. O programa de maior
audiência foi a telenovela, que se tornou um “produto cultural brasileiro”,
criado por um grupo de artistas e diretores nascidos no cinema e no teatro.
O modelo de televisão estabelecido pela ditadura sobreviveu ao regi-
me militar e ganhou ainda mais poder. Com o fim do regime, as emissoras As atrizes Benedita Silva e Regina
continuaram atendendo aos governos seguintes, sempre dando a impressão de ser livres e democrá- Duarte em cena da novela O terceiro
ticas. A televisão converteu-se, enfim, em fonte de poder político. pecado, sucesso da extinta TV
Excelsior, em 1968.
As relações entre o Estado e as emissoras modificaram-se na década de 1990, quando os inves-
timentos públicos diminuíram, a censura foi abolida e o mercado se alterou com a introdução da
transmissão a cabo. O aumento da competição entre as redes de televisão aberta poderia ter levado
as emissoras, independentemente de sua orientação política, a adotar uma postura mais autônoma
em relação aos governos e aos partidos políticos, mas não foi o que se viu: elas continuaram a seguir
o pensamento e as orientações de quem estava no poder.
Como o rádio, a televisão é controlada pelo poder público por meio das regulamentações e
também da propaganda oficial. O governo é um grande “patrocinador” até de jornais e outros veí-
culos de comunicação que se dizem independentes. Embora esses veículos tenham muita liberdade,
o controle do poder público se manifesta quando, por força do “patrocínio”, evitam fazer críticas ao
governo ou divulgar protestos contra ele ou, ainda, discutir de modo mais aprofundado as questões
políticas fundamentais do país. Às vezes há pressão direta do governo sobre determinados jornais
(televisivos ou não) para que cessem críticas e até demitam jornalistas.
Existem redes públicas de televisão que apresentam programação de boa qualidade, mas atin-
gem apenas uma pequena parcela da população. Além disso, há uma diversidade muito grande na
forma de administrar esses veículos, que podem ser federais, estaduais e até locais, como as redes
universitárias. Isso gera uma situação difícil no processo de construção de uma televisão que veicule
programas de boa qualidade em nível nacional, já que os interesses são múltiplos.

A programação da televisão
A televisão é, no Brasil, o principal veículo de difusão cultural e de informação. Apesar de o rádio
ter maior abrangência, principalmente por causa do baixo custo e do pequeno porte dos aparelhos, a
televisão atinge quase a totalidade do território nacional. Os produtos que ela desenvolve de alguma
forma definem o que é importante e o que não é, ou seja, o gosto, a sexualidade, a opção política, o
desejo de consumo e outros sentimentos são promovidos prioritariamente pela televisão comercial.
A influência da televisão pode ser facilmente constatada nas conversas do dia a dia, nas quais se SOCIOLOGIA
observa a frequente adoção de gírias, expressões e gracejos criados por personagens dos programas
de maior audiência.
Essa influência é bastante preocupante, pois existem graves problemas relacionados à infor-
mação e à formação de opinião. Há, por exemplo, programas de crônica urbana e policial nos quais
julgamentos são feitos sem nenhuma possibilidade de revisão. Alguns deles apresentam e analisam
(sem pesquisar) os fatos, e normalmente formulam um veredicto para os casos policiais, ou seja, fa-
zem julgamento precipitado e muitas vezes errado. Outros reconstituem casos criminais (assassinatos,

Cultura e ideologia 31

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 31 21/11/16 20:16


normalmente) não resolvidos. Os produtores desse tipo de programa fazem um trabalho
STREET ART WORKERS

de detetives e, por meio de delações, conseguem “resolver” casos considerados impossíveis.


E o jornalismo? Os programas desse gênero pouco informam, já que as notícias precisam
ser rápidas e, quase sempre, variadas: um terremoto na China, uma festa no Haiti, um campeo-
nato esportivo na Espanha, uma situação inusitada na Venezuela, um ato governamental no
Brasil. Situações completamente diferentes aparecem com a mesma importância e como se
estivessem acontecendo no mesmo momento e no mesmo lugar, deslocando-se a historicidade
dos fatos para um mundo e uma sequência que não existem.
A qualidade dos programas de domingo, para comentar um último exemplo, é tão
baixa que só reforça a ideia de Theodor Adorno de que o entretenimento é utilizado para
anestesiar a capacidade das pessoas de pensar e refletir sobre a vida e as condições reais de
existência.
É possível uma televisão diferente? Embora a programação e os comerciais da televisão
brasileira influenciem os hábitos e costumes da população, favorecendo a homogeneização
de comportamentos, não se pode pensar que os indivíduos sejam receptores passivos que
gravam as mensagens e passam automaticamente a repeti-las. Há sempre uma (re)elaboração
do que se vê e se escuta, além de muitos outros elementos que influenciam o comporta-
mento e a opinião pública. Se não fosse assim, o regime militar instalado em 1964 teria total
aceitação da população brasileira e até poderia ter sobrevivido ao fim do “milagre econômi-
co”, pois os meios de comunicação, em especial a televisão, com seus programas e noticiários,
Grafite do projeto “Mídia de
quem?”, desenvolvido em 2004,
eram plenamente favoráveis a ele, principalmente a Rede Globo, emissora que detinha (e detém até
nos Estados Unidos, pelo grupo hoje) a maior audiência nacional.
de ativistas Street Art Workers. O filósofo político brasileiro Renato Janine Ribeiro (1949-), em seu livro O afeto autoritário:
Intervindo nas ruas de várias televisão, ética e democracia, analisa a televisão brasileira de um ângulo muito interessante. Deve-se
cidades, o grupo criticava a falta
de conteúdo dos programas
levar em conta, diz ele, a importância que a televisão tem no Brasil, pois ela oferece para a sociedade
televisivos. Essa crítica também uma pauta de conversa. Basta ouvir o que as pessoas estão falando numa segunda-feira para saber
vale para o Brasil? o que foi ao ar nos principais programas dominicais. Se você não viu nenhum, é bem possível que
nada tenha para dizer.
A televisão também desempenha um papel na reflexão do Brasil atual, principalmente por meio
das telenovelas, que levam para milhões de telespectadores algumas questões pouco discutidas ou
até silenciadas — como o homossexualismo, por exemplo, que de “assunto proibido” tornou-se
objeto de ampla discussão por ter sido abordado em novelas.
Outros temas, como os direitos da mulher, o preconceito racial, a violência e os direitos dos
portadores de necessidades especiais, tornam-se objetos de discussão pela população porque as
telenovelas os colocam em pauta. Pode-se dizer que as discussões são superficiais e não levam a uma
crítica mais ampla da sociedade. Entretanto, elas são importantes pelo simples fato de trazerem à luz
aqueles temas, pois é melhor falar sobre eles do que ficar em silêncio.
Janine Ribeiro deixa claro, também, que há alguns assuntos que as novelas não discutem, como
as questões sociais, a desigualdade de classes e o autoritarismo do patrão sobre o empregado. São pro-
blemas que ainda não conseguimos resolver nem discutir, e não interessa às empresas de comunicação
que isso seja feito. Como as relações de desigualdade estão internalizadas no imaginário popular, os
espectadores, que muitas vezes agem da mesma forma, passam até a achar agradáveis e positivos os
personagens autoritários e despóticos, tomando a afirmação da desigualdade como algo natural. Isso
fica evidenciado de modo muito claro quando se trata das relações entre patrão e empregado.
E qual seria a alternativa para melhorar pelo menos um pouco a programação da televisão? Uma
possibilidade estaria na criação de mecanismos de democratização dos meios de comunicação, de
modo que não houvesse uma concentração tão grande nas mãos de poucos. No caso da televisão,
um dos caminhos seria a concessão de canais para centrais sindicais, organizações não governamen-
tais (ONGs) e outras instituições de caráter público que pudessem transmitir informação e cultura,
pulverizando as transmissões no Brasil.
Em relação aos excessos da programação — de sensacionalismo, de informações tendenciosas,
de baixa qualidade dos programas, de manipulação do público, de violência —, muitos pensam
que a solução seja a censura. Mas quem define o que é excesso? A história tem comprovado que
censurar não é o caminho. Para Janine Ribeiro, o essencial é a formação de um público crítico. E a

32 Cultura e ideologia

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própria televisão pode colaborar nesse sentido, como ele destaca no trecho de seu livro apresentado
no quadro a seguir.

NAS PALAVRAS DE JANINE RIBEIRO

Público crítico
[...] O melhor modo de controlar os excessos da TV é ter um público que seja crítico. E o único modo de tê-lo é fazendo
que ele conheça os vários meios — que seja alfabetizado em livros, em jornais, em rádio, em computação, em artes.
A própria TV, a TV boa, como a cultural, ou os nichos de inteligência que há nos canais comerciais, pode ajudar nisso.
Não precisa dar aulas. Mas pode aprofundar questões, mostrar dois lados da mesma situação, dar a seu público um pouco do
grande patrimônio mundial. Pode também vencer seu complexo de inferioridade e parar de falar mal da “velha” mídia, dos
livros e bibliotecas. Há lugar para tudo na cultura, e só ganha quem aposta em tudo.
RIBEIRO, Renato Janine. O afeto autoritário: televisão, ética e democracia. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 35.

A INCLUSÃO DIGITAL LAERTE, 2004.

O caminho mais rápido e tranquilo para a democratiza-


ção dos meios de comunicação de massa no Brasil ainda é o
desenvolvimento da internet. Para que isso ocorra, é necessário,
no entanto, que o acesso a esse meio seja ampliado de modo
significativo. Isso feito, poderemos ter um canal diferenciado de
informação e cultura.
De acordo com dados de pesquisa realizada pelo Comitê
Gestor da Internet no Brasil (CGIBr), a maioria da população
não acessa a rede mundial de computadores. O gráfico abaixo
demonstra a situação de domicílios com acesso à internet por
área (urbana-rural), por região e por classe de renda no Brasil Para a grande maioria da
entre 2008 e 2010. população brasileira, o
computador ainda é um
PORTAL DE MAPAS

Proporção de domicílios com acesso à internet no Brasil — 2008-2010 (%) equipamento inacessível.
20
Charge de Laerte.
Urbana 27
31
Área

4
Rural 6
6 2008
25
Sudeste 33
36 2009
7
Nordeste 10
11
2010
Região

20
Sul 29
30
7
Norte 10
14
21
Centro-Oeste 25
33
91 Fonte: Barbosa, Alexandre F. (coord.). Pesquisa sobre o uso
A 90
das tecnologias de informação e comunicação no Brasil: TIC
90
58
Domicílios e TIC Empresas 2010. São Paulo: Comitê Gestor da
Classe

B 64
65
C
16
21 Internet no Brasil, 2011. p. 145. Disponível em: <http://op.ceptro.
24
1 br/cgi-bin/indicadores-cgibr-2010?pais=brasil&estado=pr&a
DE 3
3 cademia=academia&age=mais-de-60-anos&education=pos-
0 20 40 60 80 100 doutorado&purpose=pesquisa-academica>. Acesso em: 21 set. 2012.

Há muito a fazer para que a maior parte da população tenha pleno acesso à internet. Mas acesso
não significa democratização; é apenas um passo para que isso aconteça.
Como vimos, boa parte da trajetória da indústria cultural no Brasil se desenvolveu à sombra de SOCIOLOGIA
governos autoritários ou sob regras rígidas, que não permitiram sua democratização até os dias de
hoje, mas sempre houve brechas nas quais foi possível veicular conteúdos críticos e de boa qualidade.
Autores e atores, jornalistas e comentaristas demonstraram, por meio de filmes, novelas e debates,
que não há espaço totalmente controlado. A própria concorrência entre os meios de comunicação
muitas vezes propicia a veiculação de produtos que instigam a reflexão sobre a situação nacional.
Nesse processo, a internet caracteriza-se como um meio que proporciona uma liberdade sem
igual. Pode-se dizer, assim, que existe um potencial de liberdade em cada meio de comunicação e,
principalmente, na internet, que nenhum sistema de dominação pode conter ou calar.

Cultura e ideologia 33

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 33 21/11/16 20:16


CENÁRIOS DO MUNDO DO TRABALHO

Antes o mundo não existia verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos
[...] cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e cal-
Quando eu vejo as narrativas, mesmo as narrativas cula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele
chamadas antigas, do Ocidente, as mais antigas, elas sem- pode ter. Ali não tem música, a montanha não tem humor,
pre são datadas. Nas narrativas tradicionais do nosso povo, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura,
das nossas tribos, não tem data, é quando foi criado o essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa,
fogo, é quando foi criada a Lua, quando nasceram as es- ela transforma os eventos em datas, tem antes e depois.
trelas, quando nasceram as montanhas, quando nasceram Data tudo, tem velho e tem novo. Velho geralmente é algo
os rios. Antes, antes, já existe uma memória puxando o que você joga fora, descarta, o novo é algo que você ex-
sentido das coisas, relacionando o sentido dessa fundação plora, usa. Não há reverência, não existe o sentido das
do mundo com a vida, com o comportamento nosso, com coisas sagradas. Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando:
aquilo que pode ser entendido como o jeito de viver. Esse e agora?
jeito de viver que informa nossa arquitetura, nossa medi- Parecia que eu estava vendo um grande granito pa-
cina, a nossa arte, as nossas músicas, nossos cantos. rado na minha frente . Eu não podia olhar. Fiquei muitos
Nós não temos uma moda, porque nós não podemos dias sem graça até que eu ganhei um sonho. Ganhei um
inventar modas. Nós temos tradição, e ela está fincada em sonho desses que eu falei com vocês que não é só uma
uma memória da antiguidade do mundo, quando nós nos impressão de estar vendo coisas dormindo. Mas para nós
fazemos parentes, irmãos, primos, cunhados, da montanha o sonho é um sonho de verdade [...]. Você toma, aprende
que forma o vale onde estão nossas moradias, nossas vidas, como se estivesse dentro de um rio. Este rio, você fica
nosso território. Aí, onde os igarapé, as cachoeira, são nos- olhando ele, depois você volta, aí você olha. Não é o
sos parentes, ele está ligado a um clã, está ligado a outro, mesmo rio que você está vendo, mas é o mesmo. Porque
ele está relacionado com seres que são aquilo que chama- se você fica olhando o rio, a alma dele está correndo,
ria de fauna, está ligado com os seres da água, do vento, passando, passando... mas o rio está ali. Então ele é sem-
do ar, do céu, que liga cada um dos nossos clãs, e de cada pre, ele não foi, é sempre. Não existiu uma criação do
um das nossas grandes famílias no sentido universal da mundo e acabou! Todo instante, todo momento, o
criação. [...] tempo todo é a criação do mundo. [...]
KRENAK, Ailton. Antes o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo
Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciên- e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 202-203.
cia dos brancos estava desenvolvida, com seus
aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um
pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do
O que esse tipo de visão de mundo pode ensinar para as
meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudes-
pessoas que vivem em nossa sociedade, no século XXI?
se subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada,
concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha
que cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem
muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, práti-
Estragou a televisão
co: onde os homens organizam seu poder e submetem a — Iiiih...
natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha — E agora?
uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de — Vamos ter que conversar.
cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, — Vamos ter que o quê?
meu avô, meus primos olham aquela montanha e veem o — Conversar. É quando um fala com o outro.
humor da montanha e veem se ela está triste, feliz ou — Fala o quê?
ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam — Qualquer coisa. Bobagem.
para ela, cantam para o rio... mas o cientista olha o rio e — Perder tempo com bobagem?
calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo — E a televisão, o que é?
uma hidrelétrica, uma barragem. — Sim, mas aí é a bobagem dos outros. A gente só
Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o ven- assiste. Um falar com o outro, assim, ao vivo... Sei não...
to nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma can- — Vamos ter que improvisar nossa própria bobagem.
tiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você — Então começa você.
ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você apren- — Gostei do seu cabelo assim.
der. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, — Ele está assim há meses, Eduardo. Você é que não
para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é tinha...

34 Cultura e ideologia

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— Geraldo. — Era eu. Ainda sou eu.
— Hein? — Parece...
— Geraldo. Meu nome não é Eduardo, é Geraldo. — Como foi que isso aconteceu?
— Desde quando? — As casas geminadas, lembra?
— Desde o batismo. — A rotina de todos os dias...
— Espera um pouquinho. O homem com quem eu — Marido chega em casa cansado, marido e mulher
casei se chamava Eduardo. mal se olham...
— Eu me chamo Geraldo, Maria Ester. — Um dia marido cansado erra de porta, mulher
— Geraldo Maria Ester?! nem nota...
— Não, só Geraldo. Maria Ester é o seu nome. — Há quanto tempo vocês se mudaram daqui?
— Não é não. — Nós nunca nos mudamos. Você e o Eduardo é que
— Como não é não? se mudaram.
— Meu nome é Valdusa. — Eu e o Eduardo, não. A Maria Ester e o Eduardo.
— Você enlouqueceu, Maria Ester? — É mesmo...
— Por amor de Deus, Eduardo... — Será que eles já se deram conta?
— Geraldo. — Só se a televisão deles também quebrou.
— Por amor de Deus, meu nome sempre foi Valdusa. VERISSIMO, Luis Fernando. Estragou a televisão. In: Histórias brasileiras de
verão: as melhores crônicas da vida íntima. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. p.
Dusinha, você não se lembra? 83-86. © by Luis Fernando Verissimo
— Eu nunca conheci nenhuma Valdusa. Como é que
eu posso estar casado com uma mulher que eu nunca...
Espera. Valdusa. Não era a mulher do, do... Um de bigode.
— Eduardo. A televisão é um dos meios de comunicação de maior penetra-
— Eduardo! ção nas casas de pessoas de todas as classes sociais no Brasil. Você
— Exatamente. Eduardo. Você. acha que ela tem a capacidade de isolar as pessoas ou define o
— Meu nome é Geraldo, Maria Ester. espaço de uma nova sociabilidade no interior das famílias? Ela
— Valdusa. E, pensando bem, que fim levou o seu pode gerar discussões sobre temas importantes, de comporta-
bigode? mento ou políticos, ou apenas distrai e aliena as pessoas?
— Eu nunca usei bigode!
— Você é que está querendo me enlouquecer, Eduardo.
— Calma. Vamos com calma.
— Se isso for alguma brincadeira sua... Os meios de comunicação e a Constitui-
— Um de nós está maluco. Isso é certo. ção brasileira
— Vamos recapitular. Quando foi que nós casamos?
— Foi no dia, no dia... Veja o que está escrito nos artigos 220 e 221 da Constituição
— Arrá! Está aí. Você sempre esqueceu o dia do nos- brasileira:
so casamento. Prova de que você é o Eduardo e a maluca
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação,
não sou eu.
a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo
— E o bigode? Como é que você explica o bigode?
ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o
— Fácil. Você raspou.
disposto nesta Constituição.
— Eu nunca tive bigode, Maria Ester!
[…]
— Valdusa!
§ 3o. Compete à lei federal:
— Está bom. Calma. Vamos tentar ser racionais. Di-
I — regular as diversões e espetáculos públicos, ca-
gamos que o seu nome seja mesmo Valdusa. Você conhece
bendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles,
alguma Maria Ester?
as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horá-
— Deixa eu pensar. Maria Ester... Nós não tivemos
rios em que sua apresentação se mostre inadequada;
uma vizinha chamada Maria Ester?
II — estabelecer os meios legais que garantam à pes-
— A única vizinha de que eu me lembro é a tal de SOCIOLOGIA
soa e à família a possibilidade de se defenderem de pro-
Valdusa.
gramas ou programações de rádio e televisão que contra-
— Maria Ester. Claro. Agora me lembrei. E o nome do
riem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de
marido dela era... Jesus!
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à
— O marido se chamava Jesus?
saúde e ao meio ambiente.
— Não. O marido se chamava Geraldo.
[...]
— Geraldo...
Art. 221. A produção e a programação das emissoras
— É.

Cultura e ideologia 35

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de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: da família.
I — preferência a finalidades educativas, artísticas, [...]
culturais e informativas; Brasil. Presidência da República. Casa Civil.
II — promoção da cultura nacional e regional e estí- Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
mulo à produção independente que objetive sua divulga- Constitui%E7ao_Compilado.htm>. Acesso em: 21 set. 2012.
ção;
III — regionalização da produção cultural, artística e
jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; As emissoras de rádio e de televisão estão cumprindo a
IV — respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e Constituição do Brasil? Explique.

TAREFA PARA CASA

Nesse item, o aluno pode abordar o carnaval, o futebol, o samba,


1 O escritor, ensaísta e dramaturgo Oswald de Andrade (1890 a feijoada, entre outros elementos da nossa cultura, e exercitar a
-1954), além de ter sido um dos principais promotores da Se- percepção desse elemento como resultado da confluência de várias
mana de Arte Moderna de 1922, publicou em 1928 o Manifes- culturas. O carnaval, por exemplo, é uma data católica que aqui
foi recheada de música africana e dança indígena; o futebol é um
to Antropófago — um dos principais documentos do moder- esporte europeu que no Brasil ganhou características próprias. En-
nismo brasileiro. Mistura de ensaio e poesia, o Manifesto tinha fim, os exemplos são vários. Cabe ao aluno perceber que a cultura
como objetivo apresentar uma visão da cultura brasileira brasileira é produto de convergências culturais ocorridas ao longo
diferente daquela aceita até então, mais associada à herança da nossa história.

portuguesa do que às influências indígenas e africanas. 2 Acerca do rádio no Brasil durante a primeira metade do sécu-
lo XX, leia o texto a seguir e responda à questão.
Leia a seguir dois trechos dele e responda às questões.
Os objetivos de controlar a informação e de promover a ima-
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economica-
gem do governo Vargas não nasceram com o Estado Novo,
mente. Filosoficamente.
tendo sido vislumbrados desde os primeiros tempos, quando
[...]
em 1931 foi criado o Departamento Oficial de Publicidade.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei
Não parece ser estranho a essa iniciativa o surgimento de
do antropófago.
canções populares exaltando a figura de Getúlio, dentre as
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago.
Disponível em: <www.lumiarte.com>. Acesso em: nov. 2013. quais se destaca “Gê-Gê (seu Getúlio)”, de Lamartine Babo,
composta em 1931 e cantada por Almirante, com estes ver-
a) Obviamente, a antropofagia está sendo usada como uma sos de abertura:
metáfora nesses trechos. Considerando a influência dos di- Só mesmo com revolução,
versos povos e etnias na formação cultural do Brasil, como graças ao rádio e ao parabelo,
se pode entender o uso da ideia de antropofagia para des- nós vamos ter transformação
crever a cultura brasileira? neste Brasil verde e amarelo.
A ideia de Oswald é apresentar a cultura brasileira como uma mistu- FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso.
ra de várias culturas, ideia essa que, por mais normal que possa ser São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 116.
atualmente, representava uma grande ruptura com as ideias sobre
o Brasil do começo do século XX, principalmente por dar valor às
Quanto ao uso dos meios tecnológicos de comunicação,
culturas das sociedades indígenas e africanas que aqui estavam
e vieram. Assim, a noção de antropofagia, usada como metáfora, quais características do governo de Getúlio Vargas permitem
denota a capacidade da cultura brasileira de assimilar tudo o que ao compositor da canção citada se referir ao rádio como um
vem de fora e, num processo de síntese, formar sua própria cultura instrumento de transformação?
com base na mistura. Se a maioria das identidades nacionais se
É importante ressaltar que o governo de Getúlio Vargas, quando esta-
forma na escolha de elementos únicos, que geralmente excluem
beleceu na propaganda política um de seus pilares de atuação, teve
inúmeras tradições culturais manifestadas em tal país, o Brasil, na
que estimular a consolidação do rádio no país, esse meio de comu-
visão de Oswald, marca sua cultura como constantemente plural e
nicação que podia ser facilmente compreendido por analfabetos, a
inclusiva do outro.
maioria da população brasileira na época. Para tanto, Getúlio permitiu
b) Cite uma manifestação cultural brasileira (musical, artís- seu uso como veículo publicitário. Essa mudança atrai dinheiro, gera
a concorrência e impulsiona o crescimento do rádio. As características
tica, gastronômica, esportiva, de festas populares, entre
da programação sofrem grandes mudanças, passando do erudito ao
outras) que possa exemplificar a concepção de cultura popular e buscando levar às pessoas lazer e diversão. Popularizando
brasileira expressa no Manifesto Antropófago. Explique o rádio no Brasil, Getúlio soube utilizá-lo como instrumento de pro-
por que escolheu tal exemplo. moção das supostas virtudes transformadoras do seu governo, bem
como para silenciar as vozes opositoras. Ou seja, soube usar o rádio
como instrumento ideológico.

36 Cultura e ideologia

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3 O Estado nacional sempre encontrou uma forma de contro- 2 (UEL, 2005)
lar o desenvolvimento das tecnologias de comunicação no No Brasil e em outros países, o etnocentrismo fundamentou
Brasil. O rádio e a televisão, por mais populares que sejam, muitas práticas etnocidas e genocidas, oficiais e não oficiais,
permitem pouca ou nenhuma manifestação direta do ou- contra populações culturalmente distintas das de origem
vinte e do telespectador. europeia, cristã e ocidental, principalmente indígenas e afri-
Porém, por outro lado, a internet se caracteriza pela plura- canas. Discriminação de etnia e de classe social também se
lidade de opiniões manifestadas nela e não tem um centro inclui entre as formas de etnocentrismo.
único. Pelo contrário: cada pessoa que participa dela é um Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, assi-
centro. Nesse sentido, ela é muito mais democrática do que nale a alternativa que apresenta uma interpretação contrária
outras tecnologias de comunicação existentes. ao etnocentrismo.
Como a democratização do acesso à internet no país pode a) “Quando nos referimos a uma raça, não individualizamos
alterar a história do desenvolvimento da indústria cultural no tipos dela, tomamo-la em sua acepção mais lata. E assim
Brasil? procedendo vemos que a casta negra é o atraso; a branca,
A massificação do uso do computador e do acesso à banda larga o progresso, a evolução [...]” (Revista Brazil Médico, 1904.)
no Brasil pode dar mais poder à sociedade perante o Estado e b) “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e
as grandes corporações. Produção de informação e acesso a ela das comunidades indígenas, com o propósito de preservar
formam um cidadão, produtor e consumidor de cultura, consciente a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamen-
e atuante.
te, à comunhão nacional”. (Estatuto do Índio, Lei nº 6001 de
19 de dezembro de 1973, Artigo 1º, ainda em vigor.)
COMPLEMENTARES
PARA PRATICAR c) As sociedades humanas se desenvolvem por estádios
ou estados que vão sendo superados sucessivamente:
1 (UEM, 2008) o estado teológico, o metafísico e o positivo. Os povos in-
As grandes navegações europeias do século XV promoveram dígenas e as etnias afro-brasileiras encontram-se nos es-
o contato entre povos e culturas bastante diversos. Conside- tádios teológico ou metafísico e, por essa razão, permane-
rando esse fato e as interpretações associadas à produção de cem nos estratos sociais inferiores e marginais de nossa
diferenças culturais, assinale o que for correto. sociedade. (Baseado em Augusto Comte.)
01) É amplamente aceita até os dias atuais pela sociologia a d) “[...] segundo o que até aqui escrevi acerca dos Coroados
ideia formulada no século XIX de que as diferenças cul- [Kaingang] dos Campos Gerais, é evidente que, no seu es-
turais existentes entre os povos são determinadas direta- tado selvagem, são eles superiores em inteligência, indús-
mente pela localização geográfica. tria e previdência a muitos outros povos indígenas, e tal-
02) No século XIX, obtiveram grande prestígio as teorias que vez até em beleza. Dada essa circunstância, dever-se-ia pôr
afirmavam que a inferioridade racial dos negros e dos ín- todo o empenho em aproximá-los dos homens de nossa
dios era responsável pelo seu atraso moral e intelectual raça e, após, encorajar os casamentos mistos entre eles e
diante dos brancos europeus. X os paulistas pobres [...]. Devo dizer, porém, que é mais fácil
04) Quando chegaram ao continente americano, os portu- matar e reduzir os Coroados à escravidão, do que despen-
gueses encontraram, no território que posteriormente der tais esforços em seu favor”. (Saint Hilaire, V. E. Viagem à
seria reconhecido como brasileiro, um conjunto cultural- Comarca de Curitiba — 1820.)
mente homogêneo de comunidades indígenas, que pos- X e) “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
suíam as mesmas crenças, linguagem e valores. culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará
X 08) A perspectiva etnocêntrica prevalece quando se atri- e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
buem valores de julgamento às crenças e aos costumes culturais. 1 — O Estado protegerá as manifestações das
do “outro”, tendo como referência absoluta a própria cul- culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
tura. Por isso, ela pode promover posturas de intolerân- outros grupos participantes do processo civilizatório na-
cia. cional”. (Constituição Federal de 1988 na Seção II — Da
16) Denominamos “relativista” a perspectiva que nega vee- Cultura, Art. 215.)
mentemente as diferenças culturais existentes entre os O teste apresenta análises de culturas diversas de um ponto
de vista definitivamente etnocêntrico, ou depreciando-as, ou se
SOCIOLOGIA
povos, salientando somente os traços que lhes são co-
propondo aculturar sua população.
muns.
A somatória correta é: (02 + 08 = 10) .
Os antropólogos condenam as teorias que, ao comparar culturas, 3 (UEM, 2008)
as classificam em inferiores e superiores. Condenam também o Ao discorrer sobre ideologia, Marilena Chaui afirma
julgamento de outras culturas a partir da própria, numa perspec-
que “(...) a coerência ideológica não é obtida malgrado as
tiva etnocêntrica.
lacunas, mas, pelo contrário, graças a elas. Porque jamais

Cultura e ideologia 37

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poderá dizer tudo até o fim, a ideologia é aquele discurso nal, ao encenar peças de cunho popular.
no qual os termos ausentes garantem a suposta veracida- c) realizava uma tarefa que deveria ser exclusiva do Estado,
de daquilo que está explicitamente afirmado”. (O que é ao pretender educar o povo por meio da cultura.
ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 4). d) prestava um serviço importante à sociedade brasileira, ao
Considerando o texto acima e o conceito de ideologia incentivar a participação política dos mais pobres.
para Karl Marx, assinale o que for correto. e) diminuía a força dos operários urbanos, ao substituir os
01) Na maioria das sociedades capitalistas, as desigual- sindicatos como instituição de pressão política sobre o
dades são ocultadas pelos princípios ideológicos que governo.
afirmam a importância dos seguintes elementos: o Setores conservadores e forças políticas de direita sempre tiveram
progresso, o “vencer na vida”, o individualismo, a mí- dificuldade para aceitar reformas porque viam ameaçada sua área
de conforto.
nima presença do Estado na economia e a soberania
popular por meio da representação. X
5 (Enem, 2011)
02) Ideologia corresponde às ideias que predominam em
uma determinada sociedade, portanto expressa a reali- No final do século XIX, as Grandes Sociedades car-
dade tal qual ela é na sua objetividade. navalescas alcançaram ampla popularidade entre os fo-
04) Uma pessoa pode elaborar uma ideologia, construir liões cariocas. Tais sociedades cultivavam um pretensioso
uma “questão” individual sem interferências anterio- objetivo em relação à comemoração carnavalesca em si
res e influências comunitárias para a sua sustentação. mesma: com seus desfiles de carros enfeitados pelas prin-
Assim, com base em sua própria ideologia, ela poderá cipais ruas da cidade, pretendiam abolir o entrudo (brin-
refletir e agir em sua sociedade. cadeira que consistia em jogar água nos foliões) e outras
X 08) Na sociedade brasileira, a ideologia da democracia ra- práticas difundidas entre a população desde os tempos
cial afirma que índios, negros e brancos vivem em har- coloniais, substituindo-os por formas de diversão que
monia, com igualdade de condições. Essa formulação consideravam mais civilizadas, inspiradas nos carnavais
omite as desigualdades étnicas existentes no país. de Veneza. Contudo, ninguém parecia disposto a abrir
16) Ideologia consiste em ideias que predominam na so- mão de suas diversões para assistir ao carnaval das socie-
ciedade e que, por isso, são internalizadas por todos os dades. O entrudo, na visão dos seus animados praticantes,
indivíduos. Portanto não existem possibilidades de se poderia coexistir perfeitamente com os desfiles.
romper com seus pressupostos. Pereira, C. S. Os senhores da alegria: a presença das mulheres nas Grandes
Sociedades carnavalescas cariocas em fins do século XIX. In: Cunha, M. C.
A somatória correta é: (01 + 08 = 09) . P. Carnavais e outras festas: ensaios de história social da cultura. Campinas:
Unicamp; Cecult, 2002 (adaptado).
Com base em texto da filósofa Marilena Chaui, devem ser analisa-
das afirmações que pretendem conceituar ideologia.
Manifestações culturais como o carnaval também têm sua
4 (Enem, 2011) própria história, sendo constantemente reinventadas ao lon-
go do tempo. A atuação das Grandes Sociedades, descrita
Em meio às turbulências vividas na primeira meta-
no texto, mostra que o carnaval representava um momento
de dos anos 1960, tinha-se a impressão de que as ten-
em que as
dências de esquerda estavam se fortalecendo na área
X a) distinções sociais eram deixadas de lado em nome da cele-
cultural. O Centro Popular de Cultura (CPC) da União
bração.
Nacional dos Estudantes (UNE) encenava peças de tea-
b) aspirações cosmopolitas da elite impediam a realização
tro que faziam agitação e propaganda em favor da luta
da festa fora dos clubes.
pelas reformas de base e satirizavam o “imperialismo” e
c) liberdades individuais eram extintas pelas regras das au-
seus “aliados internos”.
toridades públicas.
KONDER, L. História das ideias socialistas no Brasil.
São Paulo: Expressão Popular, 2003. d) tradições populares se transformavam em matéria de dis-
putas sociais.
No início da década de 1960, enquanto vários setores da e) perseguições policiais tinham caráter xenófobo por repu-
esquerda brasileira consideravam que o CPC da UNE era diar tradições estrangeiras.
uma importante forma de conscientização das classes tra- A sociedade brasileira se construiu reproduzindo moldes culturais
balhadoras, os setores conservadores e de direita (políti- europeus. É o que ela considerava “civilizado”, em sua visão euro-
cêntrica. Manter tradições populares fugia ao modelo do carnaval
cos vinculados à União Democrática Nacional — UDN —,
de Veneza, no ponto de vista das Grandes Sociedades carnava-
Igreja Católica, grandes empresarios etc.) entendiam que lescas, enquanto o povo achava que Veneza e o entrudo poderiam
esta organização conviver perfeitamente.
X a) constituía mais uma ameaça para a democracia brasi-
leira, ao difundir a ideologia comunista.
b) contribuía com a valorização da genuína cultura nacio-

38 Cultura e ideologia

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6 (Enem, 2012) b) superação de aspectos culturais africanos por antigas tra-
Torna-se claro que quem descobriu a África no Bra- dições europeias.
sil, muito antes dos europeus, foram os próprios africa- c) reprodução de conflitos entre grupos étnicos africanos.
nos trazidos como escravos. E esta descoberta não se d) manutenção das características culturais específicas de cada
restringia apenas ao reino linguístico, estendia-se tam- etnia.
bém a outras áreas culturais, inclusive à da religião. Há e) resistência à incorporação de elementos culturais indíge-
razões para pensar que os africanos, quando misturados nas.
e transportados ao Brasil, não demoraram em perceber Provenientes de regiões variadas do seu continente, os africanos
a existência entre si de elos culturais mais profundos. escravizados se relacionaram pela primeira vez no Brasil colonial,
SLENES, R. Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil. descobrindo a própria diversidade fora de seu hábitat. Trabalhando
Revista USP, n. 12, dez./jan./fev. 1991-92 (adaptado). juntos em convívio muito próximo, assimilaram usos e costumes
de indígenas e europeus que aqui viviam, criando o que hoje cha-
Com base no texto, ao favorecer o contato de indivíduos mamos de afro-brasilidade.
de diferentes partes da África, a experiência da escravidão
no Brasil tornou possível a:
X a) formação de uma identidade cultural afro-brasileira.

ANOTAÇÕES

SOCIOLOGIA

Cultura e ideologia 39

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 39 21/11/16 20:16


CONEXÃO DE SABERES
IDEOLOGIA E INDÚSTRIA CULTURAL
O sucesso de produtos de entretenimento nem sempre se deve apenas à qualidade. Muitas
vezes, o conteúdo da obra ou as características de um personagem se encaixam
xam em
xa
programas de agências governamentais e da indústria cultural voltados para a difusão
di ão
de determinados ideais, valores e comportamentos. Veja a seguir alguns famosos
o s
osos
personagens utilizados na propaganda ideológica dos Estados Unidos.

Courtesy Everett Collection/Grupo Keystone


Warner Bros./Courtesy Everett Collection/Grupo Keystone

Praticamente vestido
com as cores da
bandeira dos Estados
Unidos, o kryptoniano
Super -Homem utiliza
seus superpoderes para
proteger a humanidade.
Os enredos que
protagoniza deixam
claro que esse
empenho é fruto de uma
formação fundamentada
nos mais tradicionais
valores da sociedade
William Moulton Marston era um psicólogo
estadunidense.
militante do movimento feminista e criou a
personagem com o intuito de trabalhar os
valores de igualdade entre homens e mulheres.
Não por coincidência ela rapidamente alcançou
bastante sucesso no mesmo ano em que os
Estados Unidos entraram na Segunda Guerra
(1941) e as mulheres foram convocadas a
O personagem Tony Stark ocupar os postos de trabalho dos homens
Courtesy Everett Collection/Grupo Keystone

é um industrial, playboy, enviados ao front.


multibilionário que veste
uma armadura feita de
ferro, a matéria-prima
Paramount/Courtesy Everett Collection/Grupo Keystone

básica no capitalismo
industrial. Suas fábricas Usado na
vendem armas ao Segunda Guerra
G Mundial
governo estadunidense, como uma re representação do
ainda que a armadura
patriotismo e ddo heroísmo
seja de uso exclusivo seu.
O Homem de Titânio era o estadunidense nan luta contra o
seu contraponto socialista, nazismo.
criado para ser o Até hoje su
suas histórias
personagem da União envolv
envolvem conflitos com
Soviética, antagônico naz
nazistas, neonazistas e
política e ideologicamente or
organizações racistas
ao herói dos Estados e c
conservadoras.
Unidos, nos anos 1960 e
1970. Nas histórias de
Photos 12 - Cinema/Archives du 7e Art/

lutas entre os dois, o


20th Century Fox Television/Diomedia

norte-americano levava a
melhor.

Homer Simpson é impulsivo, egoísta, preconceituoso, preguiçoso, com péssimos hábitos de saúde; ao
mesmo tempo, é extremamente leal, bonachão, patriota, fiel à esposa e dedicado à família. Trata-se de um
personagem ambíguo: ao mesmo tempo que satiriza a sociedade estadunidense, contribui para tornar
m o de
aceitáveis, por meio d sua
su simpatia e comicidade, alguns dos valores e comportamentos dessa sociedade.

40 Cultura e ideologia

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LEITURAS E ATIVIDADES
PARAPARA REFLETIR
PRATICAR

Televisão e sexualidade
O autor de novelas Agnaldo Silva, ao responder se o bombardeio de sexo na televisão aberta pode, de alguma maneira, estimu-
lar a sexualidade precoce nas crianças, escreveu o seguinte:
Não é só na TV aberta. No Brasil, houve um momento em que esse negócio de sexo exacerbou de tal maneira que
as meninas de 12 anos agora são moças! [...] É uma coisa pavorosa, porque você vê crianças com um apelo sexual incrí-
vel! Está errado! Isso foi uma mudança cultural no Brasil dos anos 1980 para cá que ainda não foi devidamente estudada
pelos antropólogos e sociólogos de plantão, que estão mais preocupados com a política do que com qualquer outra coi-
sa e não percebem que isso também é política. [...] A brasileira não é diferente de nenhuma outra mulher do mundo, mas
a levaram a acreditar que ela é um vulcão de sensualidade, e agora a maioria se comporta como tal. Vi em várias ocasiões
pais que incentivavam filhas de 7 anos a dançar na boquinha da garrafa! Essas coisas estão na TV, nas revistas, em todos
os lugares! Aonde é que vamos parar? Foi por isso que botei aquela personagem adolescente grávida na novela, porque
passei três vezes na frente de uma maternidade do Estado e vi que na fila das grávidas, onde havia umas 30 mulheres,
pelo menos 20 eram adolescentes, e pelo menos duas não teriam mais que 11 anos. Todas lá, com o barrigão de fora,
como se dissessem com orgulho “olha até onde me levou a minha sensualidade!”.
SILVA, Agnaldo. In: DANNEMANN, Fernanda. A próxima atração. Cult: Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Bregantini, n. 91, abr. 2005, p. 8-11.
TV GLOBO/GIANNE CARVALHO

Cena da novela Senhora do Destino,


de Agnaldo Silva, levada ao ar entre
2004 e 2005. Em questão, a gravidez na
adolescência.

1 Em sua opinião, a situação descrita por Agnaldo Silva é apenas uma visão pessoal ou é algo concreto, que pode ser observado
no cotidiano?

2 Como os programas de televisão dedicados às crianças podem influenciar o comportamento delas em relação às questões
SOCIOLOGIA

sexuais? Indique alguns exemplos.

3 Ao explorar cenas de sexo, as novelas formam uma visão distorcida da vida sexual do brasileiro? Que interesse haveria em cons-
truir a imagem da mulher brasileira como “um vulcão de sensualidade”?

Cultura e ideologia 41

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PARA ORGANIZAR O CONHECIMENTO
Observe a tabela a seguir, sobre os equipamentos culturais e meios de comunicação presentes nos municípios brasileiros entre
1999 e 2009.

Percentual dos municípios brasileiros que possuem equipamentos culturais e meios de comunicação,
segundo o tipo (1999-2009)
Equipamentos culturais e meios
1999 2001 2006 2009
de comunicação
Bibliotecas públicas 76,3 78,7 89,1 93,2
Cinemas 7,2 7,5 8,7 9,1
Teatros ou salas de espetáculos 13,7 18,8 21,2 21,1
Museus 15,5 17,3 21,9 23,3
Estações de rádio AM 20,2 20,6 21,2 21,3
Estações de rádio FM 33,9 38,2 34,3 35
Livrarias 35,5 42,7 30 28
Provedores de internet 16,4 22,7 45,6 55,6
Unidades de ensino superior - 19,6 39,8 38,3
Videolocadoras 63,9 64,1 82 69,5
Estádios e ginásios esportivos 65,0 75,9 82,4 86,6
Lojas de disco, CDs, fitas e DVDs 34,4 49,2 59,8 44,9
FONTE: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). SALA DE IMPRENSA. PERFIL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS — CULTURA 2006.
IBGE INVESTIGA A CULTURA NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS. DISPONÍVEL EM: <WWW.IBGE.GOV.BR/HOME/PRESIDENCIA/NOTICIAS/NOTICIA_VISUALIZA.
PHP?ID_NOTICIA=980>; PERFIL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS 2009. DISPONÍVEL EM: <WWW.IBGE.GOV.BR/HOME/ESTATISTICA/ECONOMIA/PERFILMU-
NIC/2009/TABELAS_PDF/TABELA_MUNIC_84.PDF>. ACESSOS EM: 21 SET. 2012.

1 Analise o quadro com base nos conceitos de cultura popular, de cultura erudita e de indústria cultural.

2 Quais são as alternativas para haver democratização dos meios de comunicação de massa no Brasil?

PARA
PARA PESQUISAR
PRATICAR

1 Junte-se a alguns colegas. Selecionem uma ou mais peças publicitárias (cartaz, outdoor, propaganda de rádio ou televisão,
anúncio de jornal, revista ou clipe na internet) e indiquem os elementos presentes no material pesquisado que contribuem
para a padronização de opiniões, gostos ou comportamentos. Se for possível, convidem um profissional de comunicação para
fazer a análise dos anúncios.

2 Escolha uma novela que esteja em exibição na TV e destaque alguns elementos do enredo que possam introduzir a discussão
de um problema social. Destaque, também, alguns preconceitos que estão presentes, mesmo que veladamente, nessa novela.

42 Cultura e ideologia

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 42 21/11/16 20:17


LIVROS RECOMENDADOS
PARA PRATICAR
O que é etnocentrismo, de Eve-

EDITORA BRASILIENSE
EDITORA PERSEU ABRAMOCidadania cultural. O direito à rardo P. Guimarães Rocha. São Pau-
cultura, de Marilena Chaui. São lo: Brasiliense.
Paulo: Perseu Abramo. Nesse livro, o autor explica de modo
A filósofa e historiadora Marilena claro o conceito de etnocentrismo,
Chaui faz uma reflexão a respeito além de analisar os muitos cami-
da democratização da cultura e nhos que a antropologia percorreu
do direito à memória, avaliando na busca da superação dessa visão
as condições de produção e di- de mundo.
fusão culturais. A autora destaca
a dimensão crítica e reflexiva do O que é ideologia, de Marilena

EDITORA BRASILIENSE
pensamento das artes e analisa e questiona a concepção Chaui. São Paulo: Brasiliense.
instrumental da cultura própria da sociedade capitalista. A leitura não é muito simples, mas,
se for bem orientada, poderá ser
Culturas da rebeldia. A juventu- compensadora. Dos gregos, passan-
EDITORA SENAC

de em questão, de Paulo Sérgio do pelos iluministas, a autora chega


do Carmo. São Paulo: Senac. ao conceito de ideologia em Marx,
Música, cinema, televisão, pro- explicando-o com base em elemen-
paganda, internet e contestação tos cotidianos.
estudantil mesclam-se às grandes
mudanças políticas, econômicas e
culturais que afetaram o compor- SUGESTÃO
PARA DE FILMES
PRATICAR
tamento da juventude no Brasil e
Cidadão Kane (Estados Unidos,
MERCURY PRODUCTIONS/
RKO RADIO PICTURES INC.

no mundo na segunda metade do


1941). Direção: Orson Welles.
século XX. Nesse livro, o sociólogo
Reconstrução da trajetória do
Paulo Sérgio do Carmo relata a história recente do Brasil
empresário da imprensa Charles
na perspectiva dos jovens e procura responder à seguinte
Foster Kane, que, ao herdar uma
questão: em que sentido se pode afirmar que a juventude
fortuna, passa a se dedicar à cons-
continua rebelde?
trução de um império jornalístico.
Um filme que desvenda as práticas
Consumidores e cidadãos, de
EDITORA UFRJ

desenvolvidas por muitos proprie-


Néstor Garcia Canclini. Rio de Ja- tários de meios de comunicação
neiro: Ed. UFRJ. na busca do sucesso.
Uma análise atual e original das Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966).
DIREÇÃO DE FRANÇOIS TRUFFAUT

relações entre o consumidor de Direção: François Truffaut.


bens culturais, o alcance da indús-
Baseado no romance homônimo
tria cultural, a democratização e a
de Ray Bradbury, esse filme tem
participação política no mundo
enredo ambientado no futuro, em
globalizado.
um lugar no qual o Estado totalitá-
rio proíbe a literatura por ser con-
O que é cultura, de José Luiz dos
EDITORA BRASILIENSE

siderada causadora de infelicidade.


Santos. São Paulo: Brasiliense. A função da companhia de bom-
O autor trabalha histórica e critica- beiros é queimar todos os livros
mente com o conceito de cultura. que sejam encontrados. Quando SOCIOLOGIA
Critica a oposição entre cultura uma velha mulher resiste e escolhe ser queimada com sua
erudita e cultura popular, além de biblioteca, um bombeiro passa a questionar a proibição e
analisar a cultura de massa e a cul- as intenções do regime. O personagem acaba se unindo a
tura nacional. um grupo de rebeldes que adota uma forma sui generis de
conservar os livros.

Cultura e ideologia 43

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 43 21/11/16 20:17


Violação de privacidade (Estados Unidos, 2004). Direção: Omar

DIREÇÃO DE OMAR NAIM


Naim.
Por meio de microchips implantados no cérebro dos bebês, tudo Gerente editorial: M. Esther Nejm
o que eles veem, ouvem, dizem e fazem, da hora em que nascem Editor responsável: Glaucia Teixeira M. Thomé
Coordenador de revisão: Camila Christi Gazzani
à hora em que morrem, é registrado e posteriormente editado Revisores: Cesar G. Sacramento, Eduardo Sigrist, Elza
e transformado em um filme, que a família e os amigos podem Gasparotto, Felipe Toledo
Coordenador de iconografia: Cristina Akisino
guardar como recordação. Ao abrir os registros da memória de um
Pesquisa iconográfica: Cesar Atti
executivo de uma poderosa empresa, um profissional que edita o Licenciamento de textos: Érica Brambila
passado das pessoas descobre informações que acabam colocan- Gerente de artes: Ricardo Borges
Coordenador de artes: José Maria de Oliveira
do sua própria vida em perigo.
Produtor de artes: Narjara Lara
Assistentes: Jacqueline Ortolan, Paula Regina Costa
de Oliveira
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ANOTAÇÕES Produtor gráfico: Robson Cacau Alves
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Talita Guedes
Colaboraram para esta Edição do Material:
Projeto Sistema SESI de Ensino
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Capa: Lab 212
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SESI DN
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dos Santos

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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Tomazi, Nelson Dacio


Sistema de ensino ser : sociologia : 3º ano :
professor / Nelson Dacio Tomazi. — 3. ed. — São
Paulo : Ática, 2017.

1. Sociologia (Ensino médio) I. Título.

16-08236 CDD-301

Índices para catálogo sistemático:


1. Sociologia : Ensino médio 301
2016
ISBN 978 85 08 18424 8 (AL)
ISBN 978 85 08 18425 5 (PR)
3ª edição
1ª impressão

Impressão e acabamento

Uma publicação

44 Cultura e ideologia

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SOCIOLOGIA
Nelson Dacio Tomazi

MUDANÇA SOCIAL
1 Mudança social e sociologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
A mudança social para os clássicos da Sociologia . . . . . .4
Outras análises sociológicas sobre a mudança social . . .8
2 Mudança e revolução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Grandes processos de transformação de
alcance mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14
Revoluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16
3 A mudança social no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Duas “revoluções” no Brasil do século XX . . . . . . . . . . .27
“Modernização conservadora” . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29
Mudanças nos últimos anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
Conexão de saberes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Leituras e atividades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Apêndice | História da Sociologia: pressupostos,
origem e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

2137659 (PR)

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MÓDULO
Mudança social
ZAER BELKALAI/CITIZENSIDE/AFP

Em todas as sociedades ocorrem mudanças. Às vezes não percebe-


mos as alterações, mas elas acontecem a todo momento, em toda parte.
Há mudanças maiores, que atingem toda a humanidade, e menores,
que acontecem no cotidiano das pessoas. Normalmente elas estão in-
terligadas.
Algumas mudanças ocorrem tão lentamente que não são nota-
das de imediato. É o caso de duas grandes transformações vividas pela
humanidade, atualmente conhecidas como Revolução Agrícola e Re-
volução Industrial. Hoje estão em curso mudanças provocadas pela
microeletrônica, pela engenharia genética, pela nanotecnologia, pela
robótica, pelos sistemas de comunicação ou pela busca de alternativas
energéticas, mas não conseguimos enxergar todos os seus efeitos em
nossa vida.
Ocorrem, porém, mudanças que se evidenciam com mais rapidez,
como as relacionadas às revoluções políticas e sociais. As revoluções que
ocorreram na Europa nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, suscitaram
a reflexão de vários pensadores da época e constituíram o contexto no
qual a Sociologia começou a se desenvolver.

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Protesto em Paris contra o poder militar no Egito, em 2011.

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CAPÍTULO

1 Mudança social e sociologia

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: A Sociologia nasceu da crise provocada pela desagregação do sistema feudal e pelo surgimento
do capitalismo. As transformações decorrentes desse processo abalaram todos os setores da socieda-
c Compreender que a de europeia e depois atingiram a maior parte do mundo. Muitos autores se esforçaram para entender
Sociologia nasceu e o que estava ocorrendo.
se desenvolveu em
momentos de crise e
mudança social.
A MUDANÇA SOCIAL PARA OS CLÁSSICOS DA
SOCIOLOGIA
c Demonstrar que
As transformações e crises nas diversas sociedades constituem um dos principais objetos da
determinadas
Sociologia. No século XIX, uma das ideias que orientavam as discussões sobre esse tema era a de
sociedades devem ser
progresso. Conforme o sociólogo estadunidense Robert Nisbet (1913-1996), a ideia de progresso
vistas como ideais a
tinha raízes no pensamento grego e, desde a Antiguidade, esteve presente no imaginário de todas
atingir.
as sociedades, mas no século XVIII, com o surgimento do Iluminismo, e no XIX ela ocupou um lugar
c Mostrar que as destacado e permeou o pensamento da maioria dos autores clássicos da Sociologia.
sociedades não
puderam transformar- Auguste Comte (1798-1857)
se por causa Auguste Comte foi um dos pensadores do século XIX que mais influenciaram o pensamento
da relação de social posterior. Desde cedo, ele rompeu com a tradição familiar, monarquista e católica, tornou-se
dependência existente republicano, adotando as ideias liberais, e passou a desenvolver uma atividade política e literária que
entre as colônias e as lhe permitiu elaborar uma proposta para resolver os problemas da sociedade de sua época.
metrópoles. Sua obra está permeada pelos acontecimentos da França pós-revolucionária. Defendendo sem-
pre o espírito da Revolução Francesa de 1789 e criticando a restauração da monarquia, Comte se
preocupou fundamentalmente com a relação entre a ordem social e a mudança ou progresso.
Para Comte, o progresso se fundamenta na qualidade e na quantidade de conhecimentos das
sociedades. Com base nisso, ele afirmou que a humanidade percorreu três estágios no processo da
evolução do conhecimento:
Primeiro estágio — teológico. As pessoas atribuíam a entidades e forças sobrenaturais as respon-
sabilidades pelos acontecimentos. Essas entidades podiam ser os espíritos dos objetos, animais e
plantas (fetichismo), vários deuses (politeísmo) ou um deus único e onipotente (monoteísmo).
Segundo estágio — metafísico. Nesse estágio, as entidades sobrenaturais foram substituídas por
ideias e causas abstratas e, portanto, racionais. Seria o momento da Filosofia.
Terceiro estágio — positivo. Correspondeu à era da ciência e da industrialização, na qual se invo-
caram leis com base na observação empírica, na comparação e na experiência. Seria o momento
da Sociologia.
Em termos sociológicos, Comte dividiu seu sistema em dois campos: o da estática (ordem) e
o da dinâmica (progresso). Ao estabelecer a relação entre ambos, destacou a ideia de que toda mu-
dança deveria estar condicionada pela manutenção da ordem social. Nesse sentido, sua opção era
conservadora, pois admitia a mudança (progresso), mas limitava-a a circunstâncias que não alteras-
sem profundamente a situação vigente (ordem). A expressão que pode resumir bem seu pensamento
é: “nem restauração nem revolução”, isto é, não devemos voltar à situação feudal nem almejar uma
sociedade diferente desta em que vivemos.
Para nós, brasileiros, a relação entre estática e dinâmica social proposta por Comte é muito clara,
pois, desde a instauração da República, assumiu-se no país o lema positivista “ordem e progresso”,
que norteia as ações dos que dominam nossa sociedade.

4 Mudança social

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ALTA PINACOTECA, MUNIQUE, ALEMANHA

MUSEU E GALERIAS DO VATICANO, ITÁLIA


Obras de arte de diferentes autores e épocas evocam o espírito
MUSEU DE BELAS ARTES, HOUSTON, ESTADOS UNI-
DOS/THE BRIDGEMAN ART LIBRARY/KEYSTONE
dominante em cada estágio da evolução do conhecimento
caracterizado por Auguste Comte. Da esquerda para a direita,
do alto para baixo, os estágios teológico, metafísico e positivo,
representados, respectivamente, pelas telas de Giotto (Crucifixo,
1320-1325), Rafael (A escola de Atenas, 1511) e Daumier (O
encontro dos advogados, 1880).

Karl Marx (1818-1883)


As ideias mais importantes de Marx sobre a razão das mudanças estruturais nas sociedades
estão no prefácio do livro Para a crítica da economia política, de 1859. De acordo com Marx, as
mudanças que ocorrem na produção da vida material (econômicas) alteram e condicionam outras
mudanças na esfera da vida social (jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas).

NAS PALAVRAS DE MARX

Por que ocorrem as transformações sociais


[…] O resultado a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado
em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e indepen-
dentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciên-
cia. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a cons-
ciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma SOCIOLOGIA
certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais
aquelas até então se tinham movido. […] Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base eco-
nômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez.
Marx, Karl. Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar.

Mudança social 5

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Em seus estudos sobre as transformações sociais, Marx também analisou a Revolução France-
sa, mas a considerou puramente política, já que não alterou substancialmente a vida da maioria da
população, ou seja, dos que nada tinham. De acordo com ele, apesar de ter sido fundamental para o
fim do feudalismo, essa revolução foi parcial, pois, realizada por uma minoria, não emancipou toda
a sociedade.
Para Marx, o radicalismo de uma revolução está no fato de ela ser realizada por quem é maioria
na sociedade. Só uma classe nessa condição é capaz de representar os interesses de libertação para
todos e liderar uma transformação, pois esta é sempre o resultado dos conflitos entre as classes fun-
damentais da sociedade. No capitalismo essas classes são a burguesia e o proletariado. E, para Marx,
só o proletariado pode transformar a sociedade.
Mas por que a teoria marxista atribui ao proletariado o poder revolucionário? De acordo com
o sociólogo francês Robert Castel (1933-2013):
A constituição de uma força de contestação e de transformação social supõe a reunião
de pelo menos três condições: uma organização estruturada em torno de uma condição co-
mum, a posse de um projeto alternativo de sociedade, o sentimento de ser indispensável para
o funcionamento da máquina social. Se a história social gravitou durante mais de um século
em torno da questão operária, é porque o movimento operário realizava a síntese dessas três
condições: tinha seus militantes e seus aparelhos, era portador de um projeto de futuro, e
era o principal produtor da riqueza social na sociedade industrial.
As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 597.
Entretanto, para Marx, a transformação não parte do
zero. Ela sempre nega e supera uma situação anterior; os
STEFANO BIANCHETTI/CORBIS/LATINSTOCK/COLEÇÃO PARTICULAR

participantes de uma revolução utilizam a cultura e as tec-


nologias transmitidas pelas gerações anteriores para criar
novas formas de organização produtiva e política. As trans-
formações sempre incorporam alguma coisa do passado. A
parte do passado que é incorporada e a maneira como isso
ocorre muitas vezes condicionam o resultado das mudan-
ças futuras. Há um processo de ruptura e continuidade que
depende das forças sociais em conflito. Tais forças definem
o que será preservado e o que será abandonado.
Marx destacou o fato de que na atividade revolucioná-
ria os indivíduos se transformam para mudar as condições
sociais em que vivem. Além disso, observou que as revolu-
ções só são possíveis por meio da violência, a “parteira da
história”, pois os que detêm o poder jamais abrem mão dele
e de seus privilégios pacificamente.

Revolução e violência: segundo Marx, a Émile Durkheim (1858-1917)


primeira não se realiza sem a segunda.
Acima, em tela do século XIX, de autor
Esse autor clássico da Sociologia, ao analisar a questão da mudança social, observou que, na
desconhecido, a Guarda Nacional reprime história das sociedades, houve uma evolução da solidariedade mecânica para a orgânica por causa da
revoltosos em Paris, em 1848. crescente divisão do trabalho. Como já vimos, para Durkheim, a solidariedade mecânica tem por base
as semelhanças e decorre da adesão total do indivíduo ao grupo, no qual as consciências individuais
são determinadas pela consciência coletiva. Já a solidariedade orgânica baseia-se nas diferenças entre
os indivíduos que necessitam cooperar uns com os outros e implica o desenvolvimento da divisão
social do trabalho.
A passagem de um tipo de solidariedade ao outro resulta em transformações da estrutura
social e leva à evolução histórica das sociedades. Para ele, isso se deve a fatores como a expansão
urbana e o crescimento industrial. A concentração de pessoas em determinado território promove
a diferenciação das atividades e a divisão do trabalho, intensifica as interações, torna mais complexas
as relações sociais e muda a qualidade dos vínculos sociais, que passam a se basear na dependência
mútua. Essa visão dicotômica e evolutiva pode ser resumida no quadro a seguir, elaborado pelo
sociólogo polonês Piotr Sztompka (1944-).

6 Mudança social

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 6 21/11/16 20:17


Mudança social: da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica
Tipos de solidarie-
Aspectos dade Solidariedade mecânica Solidariedade orgânica
de diferenciação
Caráter das atividades Similares, uniformes Altamente diferenciadas
Principal vínculo social Consenso moral e religioso Complementaridade e dependência mútua
Individualismo, com ênfase em indivíduos
Posição do indivíduo Coletivismo, com ênfase no grupo
autônomos
Divisão do trabalho, dependência mútua entre
Estrutura econômica Grupos isolados, autárquicos, autossuficientes
grupos, intercâmbio
Leis repressivas para a punição de ofensas Leis restritivas para a salvaguarda de contratos
Controle social
(Direito Penal) (Direito Civil)
FONTE: SZTOMPKA, PIOTR. A SOCIOLOGIA DA MUDANÇA SOCIAL. RIO DE JANEIRO: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1998. P. 188.

Como se pode perceber, as maiores preocupações de Durkheim eram as questões relacionadas


à integração social, envolvendo as formas como ela ocorre em cada tipo de sociedade e as razões
que propiciam a mudança social.

MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, ANTUÉRPIA, BÉLGICA


Max Weber (1864-1920)
Como vimos, ao analisar as transformações sociais,
Karl Marx utilizou categorias sociológicas macro, como
relações de produção, forças produtivas, base econômi-
ca e superestrutura. Weber, diferentemente, procurou
centrar sua análise nas ideias, ações, crenças e valores
individuais que permitiram a mudança social, apesar
de sua perspectiva estar voltada para grandes unidades
territoriais e longos períodos históricos, bem como para
grandes mudanças históricas e sociais.
Na obra A ética protestante e o “espírito” do capita-
lismo (1904-1905), Weber desenvolveu a ideia de que a
ética protestante foi fundamental para o surgimento do
capitalismo, pois propiciou maior acumulação de capital
ao valorizar o trabalho e um modo de vida disciplinado,
responsável e racional, sem gastos ostentatórios. Representação, de autor e data
desconhecidos, da feira da Antuérpia,
Ele enfatizou o esforço individual dos capitalistas, que procuravam utilizar o cálculo racional
importante centro portuário e comercial
para garantir a eficiência na produção de mercadorias, tendo por objetivo o ganho monetário. Os da Europa no século XVI. Compatível
trabalhadores, por sua vez, passaram a ver o trabalho como um valor em si mesmo. Ocorreu assim com o “espírito” do capitalismo, a ética
uma confluência entre certa visão de mundo e determinado estilo de atividade econômica — ou seja, protestante valoriza o trabalho e as
atividades da vida secular.
além das condições econômicas, determinadas ideias e valores explicariam por que só no Ocidente
se desenvolveu o capitalismo.
Weber também analisou a mudança social com base em tipos ideais de ação e de dominação
(assunto que já estudamos nas unidades 1 e 4). Dessa perspectiva, as sociedades caracterizadas
por ação afetiva e dominação tradicional passariam por outras combinações de tipos de ação e de
dominação até chegarem a formas sociais com o predomínio da ação racional vinculada a fins e
dominação legal-burocrática.
Haveria, então, a tendência a um aumento na racionalização das ações sociais e na burocrati-
SOCIOLOGIA
zação da dominação. Para Weber, a burocratização crescente seria um entrave a qualquer processo
de mudança social. Em uma sociedade administrada por diversos instrumentos controladores, a
mudança estaria sempre limitada pela ação burocrática.
Ao recorrer aos tipos ideais de ação e de dominação para analisar a mudança, Weber aproxima-
-se de Durkheim, que, como vimos, utilizou em sua abordagem os tipos de solidariedade social. No
entanto, Weber afasta-se de Durkheim ao desenvolver uma análise mais complexa e histórica.
Em relação a Marx, é possível notar algumas diferenças importantes no que concerne à ori-
gem do capitalismo e da mudança social. Para Marx o processo de mudança é determinado pela
Mudança social 7

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 7 21/11/16 20:17


produção da vida material, que interfere nas outras esferas da vida social. Já para Weber muitas
são as causas da mudança social e todas dependem da compreensão das ações racionais humanas
que a impulsionam.

NAS PALAVRAS DE WEBER

Ascese protestante e acumulação do capital


[…]
A ascese protestante intramundana […] agiu dessa forma, com toda a veemência, contra o gozo descontraído das posses;
estrangulou o consumo, especialmente o consumo de luxo. Em compensação, teve o efeito [psicológico] de liberar o enrique-
cimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas
também ao encará-lo […] como diretamente querido por Deus. […]
A ascese lutou do lado da produção da riqueza privada contra a improbidade, da mesma forma que contra a avidez pura-
mente impulsiva […]. Pois, a exemplo do Antigo Testamento e em plena analogia com a valorização ética das “boas obras”, ela
via, sim, na ambição pela riqueza como fim o cúmulo da culpa, mas na obtenção da riqueza como fruto do trabalho em uma
profissão, a bênção de Deus. Eis porém algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho profissional mundano,
sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais
segura e visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das contas, a alavanca
mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de “espírito” do capitalis-
mo. E confrontando agora aquele estrangulamento do consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado exter-
no é evidente: acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança. Os obstáculos que agora se colocavam contra
empregar em consumo o ganho obtido acabaram por favorecer seu emprego produtivo: o investimento de capital.
Weber, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 155-157.

OUTRAS ANÁLISES SOCIOLÓGICAS SOBRE A


MUDANÇA SOCIAL
Progresso e desenvolvimento talvez sejam as palavras que melhor expressam, em nosso coti-
diano, uma possível mudança social. Já vimos o que pensavam os autores clássicos sobre esse tema.
Vamos examinar a seguir como a questão foi proposta a partir de meados do século XX.
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ganharam visibilidade as desigualdades entre
as sociedades do mundo, e alguns estudiosos se propuseram analisar esse fenômeno. É sobre essas
análises que vamos refletir um pouco.

Teorias da modernização
As teorias da modernização baseiam-se no pressuposto de que as sociedades partem de um
estágio inicial, considerado tradicional, para um estágio superior, considerado moderno, em uma
escala de aperfeiçoamento contínuo.
Essas teorias utilizam alguns elementos das análises de Émile Durkheim e de Max Weber, mas
procuram dar-lhes uma nova roupagem. De acordo com essas teorias, as sociedades são tradicionais
ou modernas conforme as características que as identificam. O padrão de modernidade é dado
pelas sociedades norte-americanas — do Canadá e dos Estados Unidos — e pelas europeias oci-
dentais — principalmente da França, da Inglaterra e da Alemanha.
Vários sociólogos dos Estados Unidos, como Talcott Parsons (1902-1979), David McClelland
(1917-1998) e Everett E. Hagen (1906-1986), e também o ítalo-argentino Gino Germani (1911-1979),
utilizaram esquemas muito parecidos para caracterizar cada tipo de sociedade.
De acordo com esses sociólogos, a mudança social ocorreria quando os indivíduos e os gru-
pos — isto é, as sociedades — deixassem as características tradicionais e passassem a internalizar as
modernas. Assim, desde que os valores tradicionais fossem superados, ocorreria a evolução social
modernizante.
De acordo com as críticas mais gerais, as teorias da modernização são etnocêntricas, pois têm
como referência as sociedades consideradas desenvolvidas economicamente e com determinado

8 Mudança social

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tipo de estrutura política. Ademais, tais teorias definem a trajetória de todas as sociedades como
se fosse linear, ou seja, presumem que as sociedades modernas de hoje foram um dia tradicionais e
mudaram sua mentalidade e sua maneira de ver e organizar o mundo.

Características e diferenças das sociedades

Tradicionais Modernas

Particularismo Universalismo
Orientação para a atribuição Orientação para a realização
Difusão funcional Especificidade funcional
Pouca motivação para o desempenho Muita motivação para o desempenho
Nenhuma abertura à experiência Grande abertura à experiência
Hierarquia profissional Especialização profissional
Pouca imaginação criadora Muita imaginação criadora
Pequena mobilidade social Grande mobilidade social
Resistência às mudanças Abertura às mudanças
Fotografias de 2012: à esquerda, aragem
da terra com o uso de tração animal em
A história é tratada por essas teorias como um processo único, um caminho de mão única e São Paulo; abaixo, colheita mecanizada
destino igualmente único determinado pelo “estágio” de desenvolvimento alcançado pelas socieda- de milho no Mato Grosso do Sul. Para
des tomadas como modelo. A ênfase é posta na cultura, na visão de mundo e no comportamento passar de uma situação a outra, do
tradicional ao moderno, basta mudar
das pessoas e dos grupos sociais, deixando de lado as estruturas econômicas e políticas.
atitudes e comportamentos?

Subdesenvolvimento e dependência

CESAR DINIZ/PULSAR IMAGENS


Após fazer uma análise crítica das teorias da modernização, vários
autores, nas décadas de 1960 e 1970, procuraram explicar a questão da
diferença entre os países por outro ângulo, focalizando a diversidade
histórica de cada sociedade e as relações econômicas e políticas entre
os países. A pergunta que se fazia era a mesma proposta pelas teorias
anteriores: O que explica as desigualdades entre os países da América
Latina, da África e da Ásia e os da Europa e os Estados Unidos? As res-
postas, porém, mudaram.
Esses autores partiram de uma visão que foi desenvolvida pela Co-
missão Econômica para a América Latina (Cepal), da Organização das
Nações Unidas (ONU). De acordo com os estudos da Cepal, do ponto
de vista econômico, nas relações entre países desenvolvidos e subde-

GERSON GERLOFF/PULSAR IMAGENS


senvolvidos havia uma troca desigual e uma deterioração dos termos
de intercâmbio.
Historicamente, isso se explicava por uma divisão internacional
do trabalho em que cabia aos países periféricos (dominados) vender
aos países centrais (dominantes) produtos primários (agrícolas, basica-
mente) e matérias-primas (sobretudo minérios) e comprar produtos SOCIOLOGIA
industrializados. Ao longo dos anos, foi necessário que os países perifé-
ricos vendessem mais matérias-primas e produtos agrícolas para pagar
a mesma quantidade de produtos industrializados, ou seja, trabalhavam
mais e vendiam mais para receber o mesmo e assim enriquecer aqueles
que já eram ricos.
Os países centrais e os periféricos tinham um passado diferente. Os
países europeus foram as metrópoles no período colonial, ao passo que

Mudança social 9

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os da América Latina foram as colônias e, mesmo depois da independência, continuaram depen-
dentes econômica e politicamente. Os Estados Unidos, que haviam sido colônia da Inglaterra, não
mantiveram essa posição e conseguiram desenvolver-se autonomamente, para depois se tornarem
um dos países dominantes, principalmente sobre a América Latina.
O sociólogo alemão Andreas Gunder Frank (1929-2005) afirmava que na América Latina havia
apenas o desenvolvimento do subdesenvolvimento, pois os países centrais, além de explorar eco-
nomicamente os periféricos, dominavam-nos politicamente, impedindo qualquer possibilidade de
desenvolvimento autônomo. E essa relação desde o período colonial explicava por que alguns tinham
se desenvolvido e outros não.
Um segundo grupo de sociólogos, do qual participaram o brasileiro Fernando Henrique Cardo-
so (1931-) e o chileno Enzo Faletto (1935-2003), propôs uma explicação um pouco mais detalhada
dessa relação: a chamada Teoria da Dependência. De acordo com essa teoria, após a primeira fase de
exploração, que durou até o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um novo movimento que
aprofundou a dependência dos países da América Latina. Esta continuou produzindo os mesmos
bens primários para exportação, mas a partir da década de 1960 houve uma mudança, principal-
mente no Brasil, na Argentina, no Chile e no México: a internacionalização da produção industrial
dos países periféricos. Como isso ocorreu?
A industrialização dependente configurou-se mediante a aliança entre os empresários e o Estado
nacional. Os produtos industriais que antes eram fabricados nos países desenvolvidos começaram a
ser produzidos nos países subdesenvolvidos, porque, com a produção local, evitava-se o gasto com
transporte. Além disso, as matérias-primas estavam próximas, a força de trabalho era mais barata e o
Estado concedia incentivos fiscais (deixava de cobrar impostos) e construía a infraestrutura necessária
para que essas indústrias se instalassem e funcionassem.
Em alguns países onde havia essas condições, as grandes indústrias estrangeiras se instalaram
e geraram um processo de industrialização dependente, principalmente, da tecnologia. Com isso,
além de manter a exploração anterior, os países centrais exploravam diretamente a força de trabalho
das nações subdesenvolvidas.
CLAYTON DE SOUZA/AE Essas teorias procuravam explicar a existência das diferenças entre os países, as possibilidades
de mudança e as condições para que isso acontecesse no sistema capitalista, sem necessariamente
questioná-lo.
Um terceiro grupo de analistas, que pode ser representado pelos sociólogos brasileiros Theo-
tonio dos Santos (1936-) e Ruy Mauro Marini (1932-1997), parte da teoria do desenvolvimento
desigual e combinado (já delineada em Marx e, posteriormente, formulada por León Trotsky) para
tratar da questão da diferenciação entre as sociedades capitalistas de um modo dialético. Conforme
esses analistas, a situação de cada nação e a situação internacional não podem ser analisadas sepa-
radamente, pois estão intimamente ligadas: as sociedades capitalistas não são polos que se excluem,
mas que se completam.
Na perspectiva desses estudiosos, o fenômeno do imperialismo é fundamental para a com-
preensão da dependência. De acordo com eles, a história do subdesenvolvimento latino-americano
é a mesma do desenvolvimento do sistema capitalista mundial. Portanto, o processo de dependência
Linha de montagem de empresa alemã foi simplesmente a forma particular que a integração da região ao capitalismo mundial assumiu
em São Bernardo do Campo, SP, em 2009.
Produzir localmente é mais lucrativo que
numa situação em que o imperialismo se fazia presente e sufocava as possíveis alternativas de mu-
exportar produtos industriais para os dança. Atestam isso os vários golpes de Estado que ocorreram na América Latina, apoiados pelos
países periféricos. Estados Unidos, que sufocaram movimentos sociais e políticos e impediram qualquer possibilidade
de mudança.
Ruy Mauro Marini desenvolveu o conceito de superexploração do trabalho para explicar o fato
de que a burguesia nacional dos países periféricos, mesmo após a industrialização, tornou-se sócia
minoritária do capital transnacional. Para compensar, ela se valeu de mecanismos extraordinários de
exploração da força do trabalho, que visavam ampliar a mais-valia extraída do trabalho. O resultado
foi a realimentação da dependência, mesmo com a industrialização interna.
De acordo com Marini, a superação do subdesenvolvimento passa pela ruptura da dependência,
mediante o rompimento com o imperialismo e até com o próprio capitalismo, e não pela industria-
lização e pela modernização da economia.

10 Mudança social

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CENÁRIOS DA MUDANÇA SOCIAL NOS SÉCULOS XIX E XX

“Tudo o que era sólido e estável se des- mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e
mancha no ar” locais nasce uma literatura universal. […]
Sob pena de ruína total, ela [a burguesia] obriga todas
Em 1848, dois jovens, um com 29 anos e outro com 27, es- as nações a adotarem o modo burguês de produção, cons-
creveram um panfleto que se tornou um dos documentos trangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se
que mais influenciaram os movimentos sociais no mundo. tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à
Eles não foram “profetas” ou “visionários”; apenas utilizaram a sua imagem e semelhança.
capacidade de refletir sobre seu tempo e fizeram projeções MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista.
com base em elementos que indicavam as mudanças que São Paulo: Boitempo, 1998. p. 43-44.
viriam. Leia um trecho do panfleto escrito por esses jovens:
[…] 1 Como foi possível aos autores perceber por alguns indícios,
A burguesia não pode existir sem revolucionar inces- há mais de 150 anos, aspectos que caracterizariam o mundo
santemente os instrumentos de produção, por conseguin- globalizado do final do século XX e início do XXI?
te, as relações de produção e, com isso, todas as relações
sociais. […] Essa subversão contínua da produção, esse 2 Identifique alguns desses aspectos abordados no texto.
abalo constante de todo o sistema social, essa agitação per-
manente e essa falta de segurança distinguem a época bur- O capitalismo está no fim?
guesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as rela- As notícias sobre a morte do capitalismo são, parafra-
ções sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de seando Mark Twain, um pouco exageradas. A capacidade
concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações surpreendente de ressurreição e regeneração é inerente ao
que as substituem tornam-se antiquadas antes de se con- capitalismo. Uma capacidade parecida com a dos parasitas
solidarem. Tudo o que era sólido e estável se desmancha —
no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são organismos que se alimentam de outros organismos, es-
obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição tando agregados a outras espécies. Depois de exaurir com-
social e as suas relações com os outros homens. pleta ou quase completamente um organismo hospedeiro,
Impelida pela necessidade de mercados sempre no- o parasita normalmente procura outro, que o nutra por
vos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita mais algum tempo.
estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar Há cem anos, Rosa Luxemburgo compreendeu o se-
vínculos em toda parte. gredo da misteriosa habilidade do sistema em ressurgir das
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia im- cinzas repetidamente, assim como uma fênix; uma habili-
prime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo dade que deixa atrás de si traços de devastação — a histó-
em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela ria do capitalismo é marcada pelos túmulos de organismos
roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias que tiveram suas vidas sugadas até a exaustão. Luxembur-
nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas go, no entanto, restringiu o conjunto dos organismos que
diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja aguardavam em fila, esperando a conhecida visita do pa-
introdução se torna uma questão vital para todas as na- rasita, às “economias pré-capitalistas”, cujo número era
çõescivilizadas — indústrias que já não empregam maté- limitado e em constante regressão, sob o impacto da ex-
rias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das pansão imperialista.
regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não […]
somente no próprio país mas em todas as partes do mun- Hoje o capitalismo já atingiu uma dimensão global,
do. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos ou está muito próximo disso — um cenário que Luxem-
produtos nacionais, surgem novas demandas, que recla- burgo via em horizonte distante. Sua previsão estará a
mam para sua satisfação os produtos das regiões mais lon- ponto de se concretizar? Penso que não. Nos últimos 50 SOCIOLOGIA
gínquas e de climas os mais diversos. No lugar do antigo anos, o capitalismo aprendeu a inimaginável e desconhe-
isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvol- cida arte de criar novas “terras intocadas”, em vez de se
vem--se um intercâmbio universal e uma universal inter- limitar às já existentes. Essa nova arte tornou-se possível
dependência das nações. E isto se refere tanto à produção porque o sistema viveu uma transição. A “sociedade de
material como à produção intelectual. As criações intelec- produtores” converteu-se numa “sociedade de consumi-
tuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A es- dores”. E a fonte principal da “agregação de valor” já não
treiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez está na relação capital-trabalho, mas na que há entre mer-

Mudança social 11

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cadoria e cliente. Lucro e acumulação baseiam-se princi- tante limitada, dada a natureza parasítica do capitalismo?
palmente na progressiva mercantilização das funções da O sistema funciona por um processo contínuo de
vida; na mediação, pelo mercado, da satisfação de neces- destruição criativa. O que se cria é capitalismo numa
sidades sucessivas; na substituição do desejo pela necessi- “fórmula nova e melhorada”; o que se destrói é a capaci-
dade, como engrenagem principal da economia voltada dade de autossustentação e vida digna nos inúmeros “or-
para o lucro. ganismos hospedeiros” para os quais todos somos atraí-
A crise atual deriva da exaustão de uma dessas “terras dos e/ou seduzidos, de uma maneira ou de outra.
intocadas” criadas artificialmente. Milhões de pessoas fo- Suspeito que um dos recursos cruciais do capitalismo
ram obrigadas a abandonar a “cultura dos cartões de cré- deriva do fato de que a imaginação dos economistas —
dito” para se dedicar à “cultura das planilhas de gastos”. incluindo os que o criticam — está muito atrasada em
Por algum tempo, elas foram estimuladas a gastar o dinhei- relação à sua invenção, à arbitrariedade do seu procedi-
ro que ainda não haviam ganhado, vivendo com crédito, mento e crueldade com que opera.
falando de empréstimos e pagando juros. A exploração BAUMAN, Zygmunt. Contra o capitalismo Bauman convoca à imaginação.
dessa “terra intocada” particular está, em linhas gerais, aca- Outras Palavras, 29 out. 2011. Disponível em: <www.outraspalavras.
net/2011/10/29/para-superar-capitalismo-bauman-convoca-a-imaginacao>.
bada. O sistema entregou para os políticos a tarefa de lim- Acesso em: 21 set. 2012.
par os detritos deixados pela farra dos banqueiros. É algo
que entrou na lista dos “problemas políticos”: passou de
“problema econômico” para (citando a chanceler alemã, Relacione esse texto com o anterior, de Karl Marx e Friedrich
Angela Merkel) algo dependente de “vontade política”. Engels, identificando os elementos que têm em comum e os
Mas alguém poderia duvidar que estão em construção no- elementos que os distinguem.
vas “terras intocadas” — as quais também terão vida bas-

TAREFA PARA CASA

1 O historiador José Murilo de Carvalho, comentando a manei- 2 O escritor estadunidense Edmund Wilson, tratando do con-
ra como Auguste Comte concebia a República, escreve: teúdo de obras como A ideologia alemã e o Manifesto comu-
A República entrava nessa concepção como fator es- nista, comenta:
sencial da transição orgânica para a fase final. Ela marcaria Marx e Engels — que assimilaram com extraordiná-
o início da transição, por superar a fase metafísica em que ria rapidez o pensamento social e histórico de sua época
elementos externos (monarquias hereditárias com base no — elaboraram, portanto, uma teoria completa e coerente,
direito divino dos reis) ainda perturbavam a evolução hu- que explicava mais mistérios do passado, simplificava
mana. Repúblicas deveriam ser verdadeiras comunidades, mais complicações do presente e abria para o futuro um
extensões da família. [...] caminho aparentemente mais prático do que qualquer
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no outra teoria dessa espécie jamais proposta. E fizeram mais:
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 131.
apresentaram um “princípio dinâmico” [...] que impulsio-
Considerando o texto de José Murilo de Carvalho e os co- nava todo o sistema, motivava de modo convincente uma
nhecimentos sobre os três estágios ou fases em que Comte progressão na história, como nenhuma outra generaliza-
dividia o processo das mudanças sociais, a instalação da Re- ção histórica fizera antes, e que não apenas despertava o
pública, para o pensador francês, representaria qual transfor- interesse do leitor num grande drama, mas também o
mação no processo da evolução humana? obrigava a reconhecer que ele próprio era parte dele e o
O aluno precisa identificar a fase final da qual o texto fala com o estimulava a desempenhar um papel nobre.
estágio positivo do pensamento de Comte. Portanto, a instalação da WILSON, Edmund. Rumo à Estação Finlândia.
República representaria o começo do terceiro estágio da evolução São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 153.
humana, no qual a humanidade teria alcançado a plenitude de seu
desenvolvimento através do pensamento empírico. Dessa maneira,
a questão retoma também a posição de Comte perante os aconteci-
mentos franceses do século XIX.

12 Mudança social

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a) Como passado, presente e futuro se entrelaçam na teoria cionais. A história do Japão nos séculos XIX e XX é o
da transformação histórica proposta por Marx e Engels? exemplo mais notável de contato com forasteiros, rápida
A transformação histórica na teoria de Marx e Engels é um pro- industrialização e acentuada mudança social. Mas o Japão
cesso que não desconecta as diferentes realidades temporais. também é um exemplo de uma sociedade que conseguiu
Uma realidade social entra em contradição consigo mesma na
medida em que se desenvolve no presente, por estar calcada
conservar alguns elementos essenciais de sua cultura tra-
em uma exploração. Uma vez que tais contradições se tornam dicional. É uma mistura do velho e do novo. Ilustra bem
manifestas, uma nova realidade aflora, primeiro na mente dos que a mudança social não acontece da mesma maneira em
explorados, para, em um segundo momento, por processos todas as sociedades. A modernização ocorre no contexto
revolucionários práticos, impulsionar as alterações das próprias
relações sociais de produção, ou seja, fazer o futuro, vislumbrado
dos antigos padrões sociais.
como momento de mudanças possíveis, virar presente. Esse é, CHARON, Joel M. Sociologia.
resumidamente, o movimento da dialética marxista. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 204.

b) Na teoria de Marx e Engels, qual seria esse “princípio dinâ- a) Segundo as teorias da modernização, sociedades vistas
mico” ao qual o texto se refere? como atrasadas e subdesenvolvidas, para se industrializar,
O “princípio dinâmico”, o fator que define a transformação his- deveriam deixar suas características tradicionais e seguir
tórica é a luta de classes, na concepção de Marx e Engels. É o exemplo de outras sociedades, vistas como mais desen-
útil apontar ao aluno, na correção, qual é o papel do indivíduo volvidas. Essa visão é compartilhada pelo autor do texto?
nesse processo, tão bem salientado no texto de Wilson. Na me-
Por quê?
dida em que os sujeitos percebem suas posições nas relações
sociais de produção, ou seja, sua condição de classe, eles dão Não, o autor do texto entende que, por mais avassaladora que
o primeiro passo para participar efetivamente do processo de seja a industrialização de um país, ela acontece a partir do con-
transformação. texto específico desse país. A industrialização causa, sim, pro-
3 Em uma perspectiva que procura na história a formação fundas mudanças; estas, porém, não solapam completamente
a realidade social e cultural. Desenvolvendo uma resposta que
dos sentidos que os indivíduos dão às suas ações, qual é a contenha essa reflexão, o aluno estará apto a perceber que
relação apontada por Max Weber entre a conduta de vida não existe um padrão ideal de industrialização, tal como as
prescrita pelo protestantismo e a consolidação de uma cul- teorias da modernização indicavam, mas realidades distintas
que vão sendo alteradas de acordo com suas características a
tura do capitalismo? partir da industrialização.
Diferentemente de Marx e Durkheim, Weber entende que a formação
do capitalismo melhor se explicará se as motivações individuais de b) De acordo com os conhecimentos sobre a industrializa-
acumulação de capital e impulso ao trabalho forem explicadas. Essas ção brasileira, é possível afirmar que a modernização do
são as razões que fazem da teoria de Weber mais interessada em
sentidos e significados. O capitalismo é explicado à medida que se país forçou o completo desaparecimento de suas carac-
explicam as razões que fazem as pessoas viverem de maneira capi- terísticas sociais e culturais? Explique.
talista. O protestantismo, formulado na ética da ascese (que é a ética
Trata-se da mesma reflexão proposta no primeiro item, mas
do investimento: gastar para ter mais retorno) e do trabalho como
direcionada ao caso brasileiro. As características culturais e
redentor, é visto por Weber como o berço desse espírito capitalista
sociais brasileiras, produzidas e reproduzidas ao longo da his-
— foi preciso apenas que, ao longo dos anos, esses valores religiosos
tória do país, ainda estão sendo vivenciadas atualmente, em
se transformassem em valores econômicos. A relação entre conduta
conjunto com nossa industrialização. Porém, houve alterações
de vida protestante e cultura do capitalismo é assim uma relação
profundas. A desigualdade social, fruto da nossa história, se
de causa e efeito, mas não a única, pois Weber sempre respeitou
aprofundou, ou no mínimo não se alterou, com a chegada das
a ideia de múltiplas relações de causa e efeito na conformação das
indústrias. Assim como as supostas revoluções no país não
realidades sociais.
alteraram estruturalmente as relações de poder, a moderniza-
4 Sobre as relações entre industrialização, modernização e ção da economia não alterou nossos problemas econômicos.

mudança social, leia o texto a seguir e responda às questões.


O ímpeto de industrializar e modernizar produziu c) Descreva com suas próprias palavras como certos soció-
um enorme impacto sobre a maioria das sociedades no logos, a partir da década de 1960, explicaram as diferen-
século XX. Em grande medida, a industrialização foi im- ças de desenvolvimento industrial e modernização entre
pingida ao mundo pela expansão do Ocidente. Seja por- países centrais e periféricos.
que se acredita que a industrialização e modernização são A atividade proposta visa exercitar a compreensão da leitura.
benéficas, seja porque elas são vistas como um modo de Para isso, solicita do aluno uma retomada das concepções teó-
livrar-se do domínio estrangeiro ou ainda porque interes- ricas produzidas a partir da Cepal para explicar as diferenças SOCIOLOGIA
dos processos de modernização e industrialização entre países
ses poderosos na sociedade a incentivam, a maior parte do centrais e periféricos.
mundo, graças ao contato com países ocidentais, passou
por marcantes mudanças estruturais, culturais e institu-

Mudança social 13

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CAPÍTULO

2 Mudança e revolução

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: Abordaremos neste capítulo mudanças sociais de dois tipos: as que envolveram um longo
processo de transformação, afetando toda a humanidade, e as que atingiram determinada socie-
c Discutir e compreender dade, alterando suas estruturas. A Sociologia e a Ciência Política conceituam como revolução as do
o alcance dos segundo tipo.
movimentos
revolucionários, seus
métodos e o resultado
GRANDES PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO DE
de cada um. ALCANCE MUNDIAL
Para analisar os grandes processos de mudança que alteraram substancialmente a vida da hu-
c Discutir sobre as
manidade, vamos tomar três exemplos, cada qual de um momento distinto da história: as chamadas
muitas revoluções
“revoluções” Agrícola, Industrial e tecnológica.
assistidas nos
períodos moderno e
A Revolução Agrícola
contemporâneo.
O domínio da agricultura transformou radicalmente a forma como as populações humanas
produziam alimentos. A expressão “revolução agrícola” foi criada pelo arqueólogo australiano Gordon
Childe (1892-1957) para denominar o processo de sedentarização (fixação em algum lugar e dimi-
nuição dos deslocamentos) de boa parte dos grupos humanos, que passaram a viver em pequenas
aglomerações, depois em vilas e mais tarde em núcleos urbanos.
Essa revolução não ocorreu ao mesmo tempo em todos os lugares. Ela teve início no Oriente
Médio há 9 ou 10 mil anos, no Egito há 9 mil anos, na Índia há 8 mil anos, na China há 7 mil anos,
na Europa há 6,5 mil anos, na África tropical há 5 mil anos e na América, principalmente nas regiões
onde hoje se localizam o México e o Peru, há 4,5 mil anos.
O processo foi longo. Inicialmente, os seres humanos perceberam que, no local em que as
sementes caíam, nasciam novas plantas. Por meio da experiência e da observação, passaram a plan-
tar as sementes, obtendo uma oferta regular de alimentos e tornando-se menos dependentes da
caça e da coleta. Como não precisavam mais se deslocar constantemente em busca de alimentos,
grupos e famílias passaram a permanecer em lugares onde o solo era fértil. Foi assim que surgiram
as primeiras aldeias.
Com o decorrer do tempo, os seres humanos começaram a produzir trigo, cevada, milho, arroz,
tubérculos (tipos de batata) variados e árvores frutíferas. Puderam, também, selecionar sementes e
mudas, além de identificar a melhor época para plantar e o tipo de solo adequado para cada cultivo.
Além disso, passaram a confeccionar alguns instrumentos, como foices e arados, que facilitaram o
plantio e a colheita.
Outros elementos essenciais do processo de sedentarização foram a domesticação e a criação
de animais, que proporcionaram aos grupos humanos a obtenção regular de carne, peles e leite. A
domesticação deve ter surgido espontaneamente em vários locais, resultado do processo de apro-
ximação e observação dos animais no decurso das caçadas.
Por meio de um intenso processo de subdivisões e deslocamentos dos grupos humanos, difun-
diram-se as técnicas agrícolas e a atividade pastoril.
A maioria das sociedades ainda pratica a agricultura e o pastoreio. Há povos caçadores e coleto-
res em vários lugares, mas a maioria deles também pratica a agricultura e a domesticação de animais.

A Revolução Industrial
O que se chama de Revolução Industrial na Europa nos séculos XVIII e XIX não começou re-

14 Mudança social

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pentinamente nesses séculos. Foi um processo lento que se desenvolveu desde o século XV e atingiu
grandes setores de produção, como o mineiro, o metalúrgico e o têxtil.
A expansão da produção nesses setores envolveu a invenção de novas técnicas e máquinas,
além de uma estrutura (a fábrica) que permitisse a concentração de equipamentos e trabalhadores
em um só lugar.
Situadas quase sempre nas cidades, as fábricas requeriam abundante mão de obra. Atraindo
as pessoas que deixavam o campo em busca de trabalho, as cidades cresceram vertiginosamente,
passando a abrigar a maioria da população. Transformou-se, assim, com a forma de produzir bens e
serviços, a maneira de viver.
Pode-se dizer que, paralelamente à Revolução Industrial, houve na Europa uma segunda revo-
lução agrícola. Ela teve início com a mudança na estrutura da propriedade rural, quando os proprie-
tários de terras se juntaram a ricos comerciantes das cidades, interessados em investir na agricultura,
e promoveram a introdução de novas técnicas de cultivo, entre as quais a rotação de culturas sem
pousio (período em que parte de um terreno fica em repouso, sem ser cultivado), a fim de retirar
o máximo proveito das terras. Promoveram também a drenagem de terras pantanosas, o abate de
florestas e a ocupação de terras comunais.
No intuito de melhorar a produção, promoveram-se a seleção das espécies mais produtivas e de
sementes e o apuramento dos melhores rebanhos. Além disso, foram introduzidas máquinas e houve
melhora do transporte no espaço rural. Isso permitiu relativa abundância de produtos agropecuários
essenciais (carne, leite e derivados, legumes, cereais etc.), que, com a expansão da indústria extrativa
do sal, indispensável para a conservação dos alimentos, propiciou melhora gradual na dieta alimentar.
Essas mudanças e a diminuição crescente da mortalidade propiciaram o que se pode chamar de
revolução demográfica. Para se ter uma ideia, na Inglaterra, onde a Revolução Industrial teve início, a
população em 1750 era de 6,5 milhões de pessoas, em 1801 passou a 16,3 milhões e em 1851 somava
27,5 milhões. Isso demandou um aumento na produção de alimentos e de matérias-primas vegetais
e animais (transformadas nas fábricas).
No século XIX, outras transformações ocorreram em razão da emergência de novas fontes energé-
ticas (eletricidade e petróleo), de novos ramos industriais e da alteração profunda nos processos produ-
tivos, com a introdução de novas máquinas e equipamentos. Todas essas transformações propiciaram
mudanças nas comunicações (telégrafo e telefone), nos meios de transporte (navio e trem a vapor,
automóvel) e também em todas as outras esferas da vida (familiar, educacional, jurídica, governamental
etc.). Além disso, provocaram o surgimento de inovações na arte, na literatura e nas ciências.
THE BRIDGEMAN ART LIBRARY/KEYSTONE/COLEÇÃO PARTICULAR

A Revolução Industrial começou no


setor têxtil, na produção da lã e do
algodão, com o uso das máquinas de
fiar conhecidas como Spinning Jenny
(1764) e Spinning Mule (1789), inventadas,
respectivamente, por James Hargreaves e
Samuel Crompton.
Na imagem de 1825 (autor
desconhecido), manufatura do
algodão com o uso da
Spinning Mule.
SOCIOLOGIA

Mudança social 15

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A revolução tecnológica do século XXI
AFP

Estamos participando de um processo de grandes transfor-


mações mundiais baseadas em avanços da ciência e da tecno-
logia em vários campos, como a microeletrônica, a engenharia
genética e a nanotecnologia. Essas transformações têm afetado
profundamente a maneira de a humanidade produzir, viver e
pensar.
A microeletrônica revolucionou a escala produtiva de bens e
serviços mediante o desenvolvimento de sistemas computacionais.
Provocou uma mudança significativa também nos meios de co-
municação. O uso de celulares, computadores pessoais e portáteis,
tablets e outros tantos equipamentos está alterando a forma de
as pessoas e organizações públicas e privadas se comunicarem e
se estruturarem.
Novos componentes eletrônicos com base na nanotecno-
logia poderão revolucionar o que hoje conhecemos por compu-
tação, permitindo a produção de computadores pessoais com
muitos processadores, extremamente rápidos e com enorme ca-
A tecnologia a serviço do registro e da pacidade de armazenamento. No futuro, os nanoprocessadores provavelmente estarão presentes na
transmissão instantânea de informações:
na imagem, uso do tablet em
maioria dos objetos que utilizaremos.
manifestação no Bahrein, em 2012. Por meio da microeletrônica e da nanotecnologia, o nível de desenvolvimento da bioengenharia
(ou engenharia genética) beirará a ficção científica. A manipulação genética, com o aprofundamento
do conhecimento do DNA humano, de plantas e animais, será ampliada.
As pesquisas mais divulgadas nessa área se referem às possibilidades de intervenção no campo
da Medicina, como as vinculadas à utilização de células-tronco, à produção de vacinas e medica-
mentos específicos, à produção sintética de elementos essenciais à saúde humana (como a insulina
e a albumina), à análise genética das doenças e à consequente terapia gênica, aos transplantes, ao
mapeamento genético dos indivíduos, à formação de bancos de genoma de espécies em extinção, à
recuperação de DNA de espécies extintas e até à clonagem de animais.
Essas transformações podem gerar, entretanto, novos desafios e suscitar questões vinculadas,
por exemplo, à privacidade dos indivíduos, ao acesso desigual à tecnologia, aos riscos ambientais
(aos seres vivos, incluindo os humanos), às relações sociais e de trabalho, às mudanças de valores e
normas sociais e principalmente às possibilidades de maior liberdade e igualdade ou maior opressão/
controle, além de maior ou menor desigualdade social. Assim como ocorreu com a energia atômica,
que trouxe benefícios à humanidade, mas quando utilizada como arma causou destruição, as novas
tecnologias poderão trazer tanto grandes benefícios quanto destruição.
A Sociologia, que, como vimos, nasceu na Europa no contexto de grandes transformações,
propõe debates sobre essas novas tecnologias e as mudanças sociais provocadas pelo uso delas.
São necessários novos olhares, novos conceitos e teorias para dar conta desses elementos que estão
afetando a vida humana em todos os sentidos.

REVOLUÇÕES
Na Sociologia, o termo revolução é utilizado para designar a transformação radical das estrutu-
ras sociais, políticas e econômicas de uma sociedade. Outros tipos de alteração podem ser chamados
de reformas sociais ou de mudanças parciais. De acordo com o pensador italiano Umberto Melotti
(1940-), tanto o reformador quanto o revolucionário almejam mudanças sociais. Entretanto, as mu-
danças propostas pelos reformadores não se contrapõem aos interesses das classes dominantes,
podendo até ser utilizadas para consolidar sua permanência no poder. Já uma revolução se opõe aos
interesses das classes dominantes, pois tem por objetivo tirá-las do poder.
Os reformadores procuram alterar elementos não essenciais, reparando determinados proble-
mas para garantir a manutenção da situação vigente. As reformas ocorrem em muitos países sempre
que se instala uma crise política ou econômica. O revolucionário, por sua vez, objetiva destruir o
existente para reconstruir a sociedade em novas bases.

16 Mudança social

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Como há sempre quem resista às transformações e quem lute por elas, pode-se dizer que ana-
lisar as mudanças sociais implica analisar conflitos.

NAS PALAVRAS DE ARENDT

O termo revolução na história


[…]
A palavra “revolução” originou-se provavelmente da astronomia a partir da teoria de Copérnico […]. No seu uso científico
o termo reteve o seu significado original latino, designando o movimento rotativo, regular e inexorável dos astros. […] No sé-
culo dezessete encontramos pela primeira vez a utilização política da palavra, mas o conteúdo metafórico ainda estava ligado
ao sentido original, o movimento de retornar a um ponto preestabelecido. A palavra foi primeiramente usada na Inglaterra não
para designar a assunção de Cromwell ao poder (a primeira ditadura revolucionária), mas ao contrário, depois da queda do
déspota por ocasião da restauração da monarquia.
Podemos precisar o exato instante em que a palavra “revolução” foi utilizada no sentido de mudança irresistível e não mais
como um movimento recorrente. Foi durante a noite de 14 de julho de 1789 em Paris, quando Luís XVI ouviu de um emissá-
rio que a Bastilha havia caído. “É uma revolta”, disse o rei. Ao que o mensageiro retrucou: “Não, majestade, é uma revolução”.
Nas décadas seguintes confirmou-se um quadro de que as revoluções não são feitas de homens isolados, mas resultado de
um processo incontrolável do qual os homens são parte. E foi somente na metade do século dezenove que Proudhon cunhou
a expressão “revolução permanente” e com ela trouxe o conceito de que não existem revoluções, mas uma só, total e perpétua.
Teoricamente, a consequência mais ampla da Revolução Francesa foi o nascimento da noção de História e do processo dialéti-
co, da filosofia de Hegel. Foi a Revolução Francesa e não a Americana que incendiou o mundo e foi consequentemente dela e
não do curso dos acontecimentos na América que a presente conotação da palavra ganhou o formato atual. Neste nosso século
as ocorrências revolucionárias passaram a ser examinadas dentro dos padrões franceses e em termos de necessidades históricas.
ARENDT, Hannah. Arendt e as revoluções. Folha de S.Paulo. São Paulo, 8 nov. 1977.
Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/filosofiaarendt.htm>. Acesso em: 21 set. 2012.

Revoluções políticas clássicas


Três grandes revoluções ocorreram no mundo ocidental nos séculos XVII e XVIII, lideradas pela
burguesia ascendente: a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Vamos
examinar a importância de cada uma delas.
Revolução Inglesa
A Revolução Inglesa foi um movimento em que parte dos senhores de terras e dos co-
Representação da derrubada do rei Carlos
merciantes se insurgiu contra o poder absoluto do rei e de seus associados (principalmente a I, da Inglaterra, em 1649. Charge do
nobreza e o clero, que nada produziam). Iniciado em 1642, tinha como objetivo limitar e condi- século XVII de autor desconhecido.
cionar esse poder a determinadas funções, impedindo

BIBLIOTECA BRITÂNICA, LONDRES, INGLATERRA/THE BRIDGEMAN ART LIBRARY/KEYSTONE


o controle do comércio e da indústria e a criação de im-
postos pelo rei sem autorização do Parlamento. Após
prolongado conflito civil, as forças políticas que lutavam
contra o absolutismo derrubaram a monarquia, em 1649,
e proclamaram a república. Esse movimento tornou possível
a eliminação dos últimos laços que prendiam os ingleses a
uma sociedade feudal.
A monarquia foi restaurada em 1660, mas o rei e os
nobres perderam os poderes anteriores. O Parlamento havia
adquirido força política e dividia o poder com a monarquia.
Era o grande passo para que o mercantilismo se expandisse
SOCIOLOGIA

e, como consequência, o processo de industrialização se de-


senvolvesse a partir do século seguinte. O fundamental nesse
processo foi a implantação de uma série de direitos que hoje
são considerados universais. Mas foi um movimento em um
único país e alterou substancialmente a situação apenas em
uma sociedade. Só posteriormente teve repercussão maior.

Mudança social 17

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Revolução Americana
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK/COLEÇÃO PARTICULAR

A Revolução Americana, ocorrida em 1776, caracterizou-se como uma luta


contra o colonialismo inglês. O movimento teve grande repercussão, principalmente
nos países da América Latina, pois provocou o rompimento dos laços coloniais. Teve
influência significativa também por pregar a liberdade individual como um dos pilares
da sociedade que se formara na América do Norte.
Revolução Francesa
A Revolução Francesa eclodiu em 1789 como um movimento contrário ao po-
der monárquico e aos resquícios do feudalismo na França. Foi exemplo para a luta em
várias nações do mundo ocidental contra os regimes absolutistas e pela eliminação
da monarquia, porque essas formas e sistemas de governo significavam opressão à
maioria da população.
Além disso, com a revolução foi alterada profundamente a estrutura da proprieda-
Cartaz, produzido no século XVIII,
de rural, eliminando-se entraves para o desenvolvimento de uma nova sociedade. Entre-
de recrutamento para a luta pela tanto, o fato mais importante foi que os revolucionários lutaram em nome dos seres humanos (apesar
independência das colônias inglesas na de não incluírem as mulheres), e não só dos franceses, o que transformou o movimento em paradigma
América do Norte. das revoluções posteriores.

MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA


Invasão do Palácio das Tulherias, Paris, pela
multidão insurgente no dia 10 de agosto de
1792, em representação de Gerard François,
século XVIII.

Revoluções políticas no século XX


No século XX ocorreram várias experiências revolucionárias. Entretanto, foram poucas as que
envolveram os mais explorados e, portanto, a maioria da sociedade. Vamos tratar de duas delas.
A Revolução Mexicana
A Revolução Mexicana começou em 1910 e foi uma resposta dos explorados no campo e
nas cidades a uma situação insustentável de desigualdade e de exploração. Havia no México uma
grande desigualdade social: 1% da população possuía 97% das terras, o que gerava uma situação de
exploração e miséria muito grande.
Três grandes grupos, representando classes sociais diferentes, participaram do movimento: o dos
camponeses, que eram a maioria (seus líderes mais conhecidos foram Pancho Villa no norte e Emilia-
no Zapata no sul), o dos trabalhadores urbanos organizados em torno da Casa del Obrero Mundial

18 Mudança social

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(COM), de orientação inicialmente anarquista, e o da burguesia urbana e rural, liderado por Francisco
Madero. Os camponeses exigiam o fim da concentração e a redistribuição das terras. A burguesia
dissidente exigia que fossem definidas regras claras sobre as eleições para que se implantasse uma
democracia de tipo liberal. Os trabalhadores urbanos, por sua vez, que não tinham nenhum direito
nem liberdade de expressão e reunião, exigiam direitos garantidos pela Constituição.
O movimento estendeu-se até 1917, quando foi promulgada uma nova Constituição para o
México. Várias reivindicações dos camponeses foram atendidas, mas todas sob o controle do Estado.
Grandes propriedades, principalmente as da Igreja, foram expropriadas e repartidas. Possibilitou-se
a manutenção das terras comunais na forma de cooperativas, mas a reforma agrária (divisão dos
latifúndios) propriamente dita não foi realizada e a restituição das terras usurpadas não se efetivou.
Assim os camponeses pouco tiveram a comemorar.
Aos trabalhadores urbanos garantiu-se uma série de novos direitos, como jornada máxima de
oito horas e a regulamentação do trabalho das mulheres e de menores, do trabalho noturno, do
repouso semanal, das férias e das horas extras. Além disso, foram regulamentados a liberdade de Marcha para a Cidade do México, em
organização sindical e o direito à greve, entre outros direitos. 1914. Os líderes dos rebeldes do sul e do
norte, respectivamente, Zapata e Villa,
A burguesia industrial, os banqueiros, os grandes comerciantes e proprietários de terras, em
são vistos ao centro: Zapata, com chapéu
nome da “Revolução Mexicana”, constituíram o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que se de abas largas, e Villa mais à direita, com
manteve no poder de 1929 até 2000. uniforme militar.
MUSEU NACIONAL DE HISTÓRIA, CIDADE DO MÉXICO/ALBUM/ORONOZ/LATINSTOCK

SOCIOLOGIA

A Revolução Russa
Enquanto os mexicanos conquistavam sua Constituição, na Rússia a sociedade fervilhava. A
maior parte dos russos, tanto no campo como na cidade, vivia em condições precárias e, desde 1905,
lutava pela construção de uma nova ordem social.
A Revolução Russa de 1917 começou com a derrubada do czar, em feverei-
ro, e culminou com a tomada do poder pelos bolcheviques, liderados por Vladimir Ilitch

Mudança social 19

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Ulianov, o Lênin, e por Leon Trotsky, em outubro. O movimento teve como base os trabalhadores
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK

urbanos e os soldados.
Os revolucionários organizavam-se em conselhos populares que expressavam a proposta de
uma sociedade que se orientasse pela vontade da maioria. Esses conselhos populares eram chamados
de sovietes e constituíram o fato mais inovador da revolução.
Após a tomada do poder, com a constituição de uma nova estrutura estatal, os sovietes per-
deram pouco a pouco o poder. O termo, no entanto, ficou gravado no nome da unidade política e
nacional formada em consequência da revolução: República Soviética.
A situação na Rússia, que era terrível por causa da Primeira Guerra Mundial, tornou-se ainda pior
no período de afirmação da revolução. Mesmo assim, a propriedade privada foi extinta e procurou-se
alterar a estrutura estatal e de serviços, como a educação, a saúde, o transporte ferroviário e o sistema
bancário. A grande dificuldade foi mudar a estrutura da propriedade rural, que ainda era medieval, e
a condição dos camponeses, precária em todos os sentidos. Assim, foi necessário primeiro privatizar
De fevereiro a outubro de 1917, seguidos a terra para depois torná-la coletiva. Isso foi possível com a concentração do poder pelo Partido
levantes populares impulsionaram Comunista e pelo Estado.
o processo revolucionário que se Em 1922 foi criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), formada por 12 repúbli-
desenrolava na Rússia. Na foto, cena cas, todas sob o comando político e militar da República Soviética Russa. Depois da Segunda Guerra
da repressão desencadeada pelo
Governo Provisório contra milhares Mundial, mais três repúblicas foram incorporadas à URSS.
de trabalhadores e soldados que se Em 1924, com a morte de Lênin, Josef Stálin assumiu o comando da URSS e aprofundou a con-
insurgiram em julho, na então capital centração do poder no Partido Comunista e no Estado, eliminando a oposição. A partir de então,
Petrogrado (atual São Petersburgo). uma revolução que nascera com o propósito de transformar o sistema anterior e garantir a liberdade
para todos gerou uma sociedade que teve parte dos problemas econômicos resolvidos, mas à custa
da submissão a um Estado autoritário que oprimiu a maioria da população.

DPA/AFP

População
comemora
a queda do
Muro de Berlim,
em 11 de
novembro de
1989.

20 Mudança social

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A União Soviética desmoronou na década de 1980, tendo seu fim assinalado pela queda do
Muro de Berlim, em 1989. Deixou oficialmente de existir em dezembro de 1991.
Além da experiência russa, outras revoluções populares de orientação socialista ocorreram no
século XX. Podemos citar alguns exemplos: na China, em 1949, a revolução liderada por Mao Tsé-
-tung; em Cuba, em 1959, o movimento revolucionário encabeçado por Fidel Castro e Che Guevara;
no Vietnã, de 1945 a 1954, o movimento liderado por Ho Chi Minh.
BALDWIN H. WARD & KATHRYN C. W./LATINSTOCK

AFP

Tropas de Mao Tsé-tung desfilam em Pequim, Populares comemoram a vitória da revolução nas ruas de Havana,
China, em junho de 1949, em ação de propaganda Cuba, em janeiro de 1959.
revolucionária.

Um breve balanço
Como se pode perceber, uma coisa é o início de uma revolução, com seus propósitos transfor-
madores; outra é a situação pós-revolucionária ou a institucionalização da revolução, em que o mo-
mento inicial de tomada do poder e alteração das estruturas políticas, econômicas e sociais precisa
ser deixado para trás. É necessário, então, criar novas instituições ou reformular as antigas para que
a revolução possa se desenvolver.
Com o passar dos anos, a liderança muda e as situações interna e externa se modificam; apare-
cem interesses novos e são necessárias novas ações, que podem gerar maior emancipação ou não.
Algumas revoluções, como a do México, são populares, mas depois do momento inicial as
demandas da maioria do povo são deixadas de lado e, em nome delas, há uma reorganização das
classes dominantes para continuar no poder.
Os exemplos analisados aqui são de sociedades que alteraram sua estrutura e seu modo de vida,
mas avançaram pouco no processo de liberdade e emancipação. Podemos, então, dizer que não são
parâmetros para futuras mudanças.

As revoltas do século XXI


A transformação radical de uma sociedade — revolução — está sempre ligada à superação de
um sistema por outro, havendo um movimento popular ou uma classe social oprimida organizada
para ir à frente e derrubar o antigo regime.
Na sociedade capitalista, segundo Marx, a classe social oprimida é o proletaria-
do. Depois das muitas revoluções que ocorreram no mundo, há a possibilidade de a clas- SOCIOLOGIA
se proletária, ou trabalhadora, organizar-se para derrubar o sistema capitalista? Há con-
dições objetivas (crise do sistema, organização, poder, armas) e subjetivas (consciência
social, aliança entre os diversos segmentos dos explorados) para que isso ocorra? Não se pode
negar a existência de algumas dessas condições, principalmente nos países periféricos do sis-
tema capitalista, mas, com as sociedades submetidas a forte esquema de massificação, torna-
-se cada dia mais difícil acontecer um movimento revolucionário nos moldes da Revolução Russa.
Hoje, em todos os meios de comunicação, ouvimos declarações de que estamos vivendo em

Mudança social 21

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uma “nova” sociedade, em uma “era pós-moderna”, em uma “sociedade pós-burguesa”, em uma
“sociedade pós-industrial” etc. Com isso, afirma-se que está se estruturando uma nova organização
social, completamente diferente da anterior.
Ora, na sociedade atual estão sendo levadas ao limite as potencialidades da modernidade es-
tabelecida pela Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, sem mudanças nas estruturas de poder
e na economia; mas há indícios de que uma transformação esteja ocorrendo. Em que direção? As
respostas a essa questão são divergentes.
Podemos perceber que a ideia de uma revolução violenta, com a tomada do poder do Estado
para desenvolver uma nova sociedade, está cada dia mais distante da realidade. Parece remota, tam-
bém, a ideia de uma mudança significativa mediante ações lentas e graduais por parte das institui-
ções políticas, pois estas estão muito amarradas às estruturas de poder existentes. Quando há uma
possibilidade de mudança, a força da reação normalmente é muito grande e pode aniquilar qualquer
tentativa de resistência. Além disso, por causa da crise na democracia representativa, as pessoas já não
acreditam que seus representantes possam tomar medidas para alterar profundamente a sociedade.
Então não há alternativa? Há uma apatia geral e nada acontece porque pouco se pode fazer
para promover mudanças profundas na sociedade em que vivemos? Não é possível uma revolução
e a criação de uma nova sociedade por meio da ação consciente dos trabalhadores explorados? Pa-
rece difícil, porque a capacidade de cooptação por parte dos poderes vigentes é muito grande. Mas
a consciência da desigualdade e do sofrimento que isso acarreta não é apagada ou silenciada, e se
expressa em manifestações populares e revoltas pontuais em várias partes do mundo.
Características das mobilizações
Na década de 2010, teve início uma série de movimentos sociais importantes. Os mais significa-
tivos aconteceram no norte da África, principalmente no Egito, na Tunísia e na Líbia, e conseguiram
derrubar três longas ditaduras. Entretanto, será necessário um bom tempo para avaliar o impacto da
Mudanças efetivas são possíveis? Abaixo, mudança de governo para a maioria da população desses países.
protesto contra o governo na praça Tahrir, O filósofo italiano Toni Negri (1933-) e o filósofo estadunidense Michael Hardt (1960-) desta-
no Cairo, Egito, caram três características que podem multiplicar o alcance desses movimentos.
em 2011.
A primeira delas é a emergência de
novos sujeitos políticos: a juventude bem
formada, conectada com o mundo e in-
conformada com os limites e a medio-
cridade de sua vida cotidiana, e os mora-
dores das periferias de metrópoles como
o Cairo, que já não aceitam a condição
subalterna e, para deixá-la, estão dispos-
tos a sacudir o status quo.
A segunda é o cultivo, por esses se-
tores da sociedade, do embrião de um
projeto emancipador: querem organizar
a produção e a distribuição de riquezas
horizontalmente e em rede — sem os
limites das hierarquias e da mercantiliza-
ção atuais.
A terceira está na prática do esboço
de uma nova democracia, numa época
em que a representação tradicional está
se tornando cada vez mais obsoleta e
desprestigiada.
As manifestações contra a situação
vigente abrem, assim, espaços para trans-
formações, que podem ser relevantes ou
não, dependendo da relação de forças em
conflito.
MOSA’AB ELSHAMY/AFP

22 Mudança social

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CENÁRIOS DAS MUDANÇAS HOJE

Prenúncios de um mundo novo Quais as implicações antropológicas e sociológi-


cas no longo prazo?
Talvez o primeiro impacto será descobrir que somos
Miguel Nicolelis é um dos pesquisadores brasileiros
todos muito parecidos: as pretensas diferenças entre gru-
de maior prestígio. Pioneiro nos estudos sobre interface
pos de seres humanos vão se reduzir, pois todos percebe-
cérebro-máquina, suas descobertas aparecem na lista das
rão que somos iguais. Costumo dizer que será a verdadei-
dez tecnologias que devem mudar o mundo, divulgada em
ra libertação da mente do corpo, porque será ela quem
2001 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT,
determinará nosso alcance e potencial de ação na nature-
na sigla em inglês). […] Ao Estado, Nicolelis falou sobre o
za. O corpo permanecerá para manter a mente viva, mas
impacto da neurociência no futuro da humanidade. […]
não precisará atuar fisicamente. Nossa mente cria as ferra-
[Início da entrevista de Miguel Nicolelis ao jornal O
mentas e as absorve como extensão do nosso corpo. Ago-
Estado de S. Paulo.] ra, a mente vai controlar diretamente as ferramentas. O
Para onde a neurociência deve nos levar nos pró- que definimos como ser mudará drasticamente no próxi-
ximos anos? mo século.
No curto prazo, penso que as principais aplicações De que modo a evolução poderá ser influenciada
serão na medicina com novos métodos de reabilitação neu- pelo cérebro?
rológica, para tratar condições como paralisia. No médio, O processo de seleção natural vai agir de uma forma
chegarão as aplicações computacionais. Nossa relação com muito mais rápida. Em um mundo onde as pessoas terão
as máquinas será completamente diferente: não usaremos de atuar com a atenção dividida entre múltiplas ferramen-
mais teclados, monitores, mouse… o computador conven- tas, os atributos evolucionais para sobreviver mudam. A
cional deixará de existir. Vamos submergir em sistemas mente que consegue controlar vários processos de forma
virtuais e nos comunicaremos diretamente com eles. No eficaz tem uma vantagem evolucional sobre as outras. Há
longo prazo, o corpo deixará de ser o fator limitante da uma base genética para essa facilidade. À medida que gen-
nossa ação no mundo. Nossa mente poderá atuar com má- te com essa vantagem se reproduz mais que os outros,
quinas que estão a distância e operar dispositivos de pro- ocorre seleção. Várias pessoas — como os biólogos evolu-
porções nanométricas ou gigantescas: de uma nave espa- cionistas Richard Dawkins e Stephen Jay Gould — previ-
cial a uma ferramenta que penetra no espaço entre duas ram que o cérebro passaria a ter um papel mais fundamen-
células para corrigir um defeito. E, no longuíssimo prazo, tal na evolução. Mas creio que estamos acelerando este
a evolução humana vai se acelerar. Nosso cérebro roubará papel. Os neandertais acordaram um dia e encontraram o
um pouco o controle que os genes têm hoje. [...] Homo sapiens jogando bola na esquina da casa deles. Um
O que você chama de curto, médio, longo e lon- dia, um sujeito pode acordar e se dar conta de que ele já
guíssimo prazo? não pertence mais à espécie dos pais. Mas estamos falando
Curto prazo são os próximos anos. Médio prazo, nas de milênios aqui.
próximas duas décadas. Longo prazo, no próximo século. [...]
Longuíssimo prazo, alguns milhares de anos. GONÇALVES, Alexandre. Integração entre cérebro e máquinas vai influenciar
evolução. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 8 jan. 2011. Disponível em: <www.
No médio prazo, ainda precisaremos dos nossos estadao.com.br/noticias/vidae,integracao-entre-cerebro-e-maquinas-vai-
sentidos para dialogar com sistemas computacionais? influenciar-evolucao,663729,0.htm>. Acesso em: 21 set. 2012.
Em breve, vamos publicar um trabalho descrevendo
o envio do sinal de uma máquina diretamente ao tecido
1 Indique as principais mudanças relativas à interface cérebro-
neural de um animal, sem mediação dos sentidos: na prá-
tica, criamos um sexto sentido. […] A internet como co- -máquina apontadas pelo cientista nos trechos da entrevista
nhecemos vai desaparecer. Teremos uma verdadeira rede apresentados. Comente algumas possíveis consequências
cerebral. A comunicação não será mediada pela linguagem, sociais dessas mudanças.
que deixará de ser o principal canal de comunicação. Para
SOCIOLOGIA
2 Dê exemplos de mudanças tecnológicas observadas nas últi-
entender isso, basta pensar que toda linguagem é um com-
portamento motor — como mexer o braço. Esse compor- mas décadas e descreva como elas afetaram nosso cotidiano.
tamento motor também poderá ser decodificado e trans-
As revoltas se espalham pelo mundo
mitido. Grandes empresas — como Google, Intel,
Microsoft — já têm suas divisões de interface cérebro- O que há de comum entre as mobilizações da Tuní-
-máquina. sia, Egito, Iêmen e Síria, com as do Reino Unido, Itália e

Mudança social 23

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Chile; Portugal e Grécia; as da Espanha com as dos Estados Conservador cogitou criar um esquadrão especial antipro-
Unidos? testos e restringir o uso da internet, o que, convenhamos,
Muita coisa, mas vamos com calma. A lista de diferen- são propostas para ditador algum botar defeito.
ças é ainda maior. Mesmo na Primavera Árabe, a Revolu- [...]
ção Jasmim, da Tunísia, e a Revolução de Lótus, do Egito, Há uma revolta global contra a esclerose das referên-
floresceram em um mesmo terreno, mas são espécimes cias políticas tradicionais. Isso vale para a Tunísia, o Egito,
diversos. a Líbia, o Iêmen, mas também para a Europa, os Estados
Respeitadas essas diferenças, o que há de semelhante Unidos e o Chile. No caso das ditaduras, a esclerose esta-
pode e deve ser considerado global. Há questões econômi- va associada à figura dos próprios ditadores. Ocorre o
cas, sociais, políticas e culturais comuns.
mesmo com Berlusconi, na Itália. Nos demais países, a
A mais evidente é a indignação contra as desigualda-
des econômicas e sociais e a dominação política que as esclerose é dos partidos, que não se renovam ou não em-
mantém e as faz aumentar. O slogan nova-iorquino “somos punham projetos alternativos, menos capazes ainda de
os 99%” estampou a sensação de que a maioria vive no encampar a defesa da igualdade.
mundo da carência por se deixar dominar politicamente As manifestações tiveram referências espontâneas,
pelo 1% que vive no mundo da opulência. A mesma ideia mas contaram com o apoio e o ativismo de várias organi-
ganhou diferentes expressões em todos os cantos. É um zações, algumas mais, outras menos consolidadas, mas
sentimento global compartilhado. todas essenciais para que a indignação tomasse as ruas. O
A crise internacional é um fator comum. Ela tem ge- desafio é justamente conseguir canalizar a energia de sua
rado a revolta contra o mundo das finanças, que mandou espontaneidade para referências políticas capazes de mon-
as pessoas desocuparem suas casas hipotecadas, nos Esta- tar coalizões governantes e disputar projetos de poder em
dos Unidos, que demitiu servidores públicos na Grécia, seus países.
que desempregou em massa na Espanha. A inflação mun- Há mudanças demográficas globais em curso afetan-
dial, com tendência de crescimento, tem como uma de do principalmente jovens, mulheres e idosos. Surgiram
suas vertentes o encarecimento dos alimentos, que afeta novas formas de expressão cultural e novos hábitos de
mais diretamente a população pobre. Este foi um problema consumo de informação. Há uma revolta contra a velha
de fundo na Tunísia, no Egito e no Oriente Médio. A es- mídia por conta da deturpação ou omissão de informa-
tagnação econômica elevou o desemprego e todos se per- ções, do sarcasmo contra os pobres e da celebrização dos
guntam por que os governos ajudam os bancos, mas não opressores.
ajudam as pessoas em pior situação. As marchas desmentiram aqueles que por aí diziam
A maneira como os manifestantes foram tratados tam- que havia acabado a época das grandes mobilizações po-
bém tem traços em comum. Primeiro eles foram tidos por pulares, e que as novas maneiras de protestar eram cada
vozes isoladas; depois, provocadores, baderneiros, criado- vez mais individuais e virtuais. A comunicação eletrônica,
res de confusão. O governo sírio chamou os revoltosos de ou autocomunicação de massa (como diz Manuel Cas-
gangues. As autoridades britânicas também. O Partido tells), deu fôlego às manifestações, facilitou a mobilização,
protegeu ativistas, disseminou a revolta.
O feitiço virou-se contra o feiticeiro, e a tão propalada
AP/GLOW IMAGES

globalização agora ganha a forma de protesto, com cores


muito diferentes, mas com um leve toque de jasmim.
LASSANCE, Antonio. O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Viomundo, 16 out.
2011. Disponível em: <www.cartamaior.com.br/?/Coluna/A-globalizacao-da-
revolta/22140>. Acesso em: fev. 2014.

1 Com vários aspectos em comum, os participantes das mobi-


lizações abordadas no texto enfrentam desafios semelhantes
na consecução de seus objetivos. Quais são esses desafios,
na visão do articulista?

2 Explique o uso da expressão “o feitiço virou-se contra o feiti-


ceiro” no contexto da análise apresentada.
Manifestação do movimento Occupy Wall Street em Nova York, em
2011. Em questão estavam as instituições políticas e econômicas
responsáveis pelas desigualdades sociais.

24 Mudança social

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TAREFA PARA CASA

1 Em um livro escrito nos últimos anos do século XX, o historiador cubano estabeleceu sólidas relações políticas e econômi-
inglês Eric Hobsbawm, fazendo uma comparação da Revolução cas com a União Soviética e realizou na ilha caribenha po-
Russa de 1917, ou, como ele denomina, Revolução de Outubro, líticas públicas claramente associadas ao que se entendia,
com a Revolução Francesa iniciada em 1789, defende que o na época, como comunismo. Mesmo Fidel Castro, já em
acontecimento russo 1960, diz ser comunista.
[...] Tornou-se portanto tão fundamental para a his- Considerando essas informações, situe a Revolução Cuba-
tória deste século quanto a Revolução Francesa de 1789 na no contexto das relações internacionais da segunda
para o século XIX. [...] metade do século XX e explique os fatores que contribuí-
Contudo, a Revolução de Outubro teve repercussões ram para a adoção do comunismo pelo governo de Fidel
muito mais profundas e globais que sua ancestral. Pois se Castro.
as ideias da Revolução Francesa, como é hoje evidente, du-
O contexto internacional da Revolução Cubana é a Guerra Fria, uma
raram mais do que o bolchevismo, as consequências práticas
dualidade econômica, política, ideológica e militar que basicamente
de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as cindiu o globo em duas partes ao longo da segunda metade do século
de 1789. XX. Sabe-se que era praticamente impossível, para um país periférico,
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. não se alinhar a uma das duas potências da Guerra Fria, Estados Unidos
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 62. e União Soviética. Fidel Castro liderou uma revolução eminentemente
a) Por que ele afirma que as ideias da Revolução Francesa de anti-imperialista, interessada em realizar reformas sociais que
promovessem a igualdade na ilha caribenha. Porém, tomado o poder,
1789 duraram mais do que o bolchevismo, ou seja, do que
Fidel constatou que não conseguiria realizar satisfatoriamente suas
as ideias e posturas políticas vencedoras da Revolução Rus- reformas sem o apoio externo e com o bloqueio comercial dos Estados
sa de 1917? Unidos e seus aliados. Daí sua guinada ao polo soviético, mesmo
estando a menos de 100 quilômetros da costa dos Estados Unidos.
As ideias da Revolução Francesa são as ideias do Ocidente moderno
ou, se preferir, da sociedade burguesa: liberdade, no sentido de um
Estado de direito que defenda juridicamente as liberdades individuais,
3 Sobre as mudanças sociais na atualidade, leia o texto a se-
e igualdade, no sentido de não haver princípios morais que prescrevam guir e responda às questões.
desigualdades entre os indivíduos, ideias ainda vivas. O bolchevismo
ficou em 1991 com o fim da União Soviética. Já não se fala em uma
Geração Y
alternativa mais igualitária em relação ao sistema capitalista, mas, sim, Eles já foram acusados de tudo: distraídos, superficiais e
em uma promoção da igualdade no sistema capitalista. até egoístas. Mas se preocupam com o ambiente, têm fortes
valores morais e estão prontos para mudar o mundo
b) Baseado em quais fatos Hobsbawm entende que as “con- Priscila só faz o que gosta. Francis não consegue
sequências práticas” da Revolução Russa, de 1917, foram passar mais de três meses no mesmo trabalho. E Felipe
bem mais significativas do que as da Revolução Francesa, leva a sério esse papo de cuidar do meio ambiente. Eles
de 1789? são impacientes, preocupados com si próprios, interes-
sados em construir um mundo melhor e, em pouco
Hobsbawm se refere, primeiramente, ao fato de que a Revolução Russa
inspirou, e muitas vezes incentivou com financiamento e treinamento, tempo, vão tomar conta do planeta.
outras revoluções de cunho socialista/comunista ao longo do século XX Com 20 e poucos anos, esses jovens são os repre-
e, em segundo lugar, ao fato de que tal acontecimento estabelece o sentantes da chamada Geração Y, um grupo que está,
marco de origem da Guerra Fria, o grande cenário político, econômico,
aos poucos, provocando uma revolução silenciosa. Sem
militar e ideológico do século passado. Ou seja, enquanto a Revolução
Francesa causou alterações de ordem simbólica muito mais contundentes as bandeiras e o estardalhaço das gerações dos anos 60
no século XIX, a Russa modificou muito mais materialmente todo o e 70, mas com a mesma força poderosa de mudança,
século XX. eles sabem que as normas do passado não funcionam
— e as novas estão inventando sozinhos. “Tudo é pos-
2 Em 1956, no começo do processo que ficará conhecido sível para esses jovens”, diz Anderson Sant’Anna, pro-
como Revolução Cubana, de 1959, o líder Fidel Castro se de- fessor de comportamento humano da Fundação Dom
SOCIOLOGIA
clarava abertamente não comunista. Aliás, o Partido Comu- Cabral. “Eles querem dar sentido à vida, e rápido, en-
nista cubano foi contra a luta armada que Fidel organizou. quanto fazem outras dez coisas ao mesmo tempo.”
Até mesmo o governo estadunidense, sempre antenado Folgados, distraídos, superficiais e insubordinados
com o que acontecia na América Latina e no Caribe, chegou são outros adjetivos menos simpáticos para classificar os
à conclusão de que o movimento de Fidel Castro não era nascidos entre 1978 e 1990. Concebidos na era digital,
comunista. Porém, como se sabe, a partir de 1959 o governo democrática e da ruptura da família tradicional, essa ga-

Mudança social 25

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rotada está acostumada a pedir e ter o que quer. [...] b) A partir das informações citadas, reflita e argumente:
A novidade é que esse “umbiguismo” não é, necessa- você se identifica com os integrantes da “geração Y”, tal
riamente, negativo. “Esses jovens estão aptos a desenvol- como descritos no texto? Por quê?
ver a autorrealização, algo que, até hoje, foi apenas um
Resposta subjetiva. O objetivo é fazer o aluno se aproximar, por
conceito”, afirma Anderson Sant’Anna. “Questionando o semelhança ou diferenciação, da geração Y. Partir da própria
que é a realização pessoal e profissional e buscando agir experiência para avaliar as informações do texto enriquecerá suas
de acordo com seus próprios interesses, os jovens estão reflexões.
levando a sociedade a um novo estágio, que será muito
diferente do que conhecemos.” c) No mundo atual, marcado pela ausência das grandes
[...] utopias, as mudanças sociais ganharam outros senti-
[ ..] “Descobrimos que eles não são revoltados e têm dos. Reflita: quais mudanças sociais a “geração Y” pode
valores éticos muito fortes, priorizam o aprendizado e as realizar?
relações humanas”, diz [a pesquisadora] Miriam. “Mas é Procura-se, com essa questão, incentivar o aluno a se questionar:
preciso, antes de tudo, aprender a conversar com eles para se as mudanças sociais no presente não são pensadas de maneira
que essas características sejam reveladas.” totalizante, qual é a mudança possível? Uma mudança pontual,
relacionada a causas específicas, como as ambientais? Uma mudança
LOIOLA, Rita. Revista Galileu, out. 2009. Disponível em: <http://revistagalileu.
globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG87165-7943-219,00-GERACAO+Y.html>. na postura individual, direcionada para a ética? A mudança, hoje, só
Acesso em: mar. 2014. pode se dar no plano individual? Essas questões exemplificam o tipo
de reflexão que o aluno poderá fazer ao considerar as possibilidades
a) De acordo com o texto, em quais aspectos a “geração Y” de mudança social em um mundo globalizado, marcado pela
se distingue das gerações anteriores? presença do capitalismo em todos os cantos do planeta.
Primeiramente, espera-se que o aluno observe as condições
materiais que diferenciam a chamada geração Y das anteriores.
Segundo a matéria, essa geração nasceu com os meios tecnológicos
de comunicação ao seu dispor, o que facultou a seus integrantes
desenvolver a capacidade de estar atento a várias tarefas e conversas
simultaneamente. Em um segundo momento, o aluno deve perceber
o valor dado por tal geração à independência e à realização
pessoal. Finalmente, o aluno pode apontar as preocupações éticas
e ambientais dessa geração. Menos mimados e alienados do que se
imagina, os integrantes da geração Y são muito preocupados com os
rumos que as transformações sociais estão tomando.

ANOTAÇÕES

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CAPÍTULO

3 A mudança social no Brasil

Veja, no Guia do Professor, o quadro de competências e habilidades desenvolvidas neste módulo.

Objetivos: Quando se fala sobre mudança social no Brasil, uma pergunta presente nos escritos de muitos
pensadores é: Por que existe tanta resistência às mudanças no país?
c Discutir a questão das Algumas explicações são anteriores à constituição do Brasil como país independente. Na edição
mudanças sociais no de 11 de maio de 1811 do Correio Braziliense, jornal que publicava em Londres, o liberal Hipólito da
Brasil. Costa afirmou: “Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas ninguém aborrece mais do
que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo”.
c Ressaltar que as
Poucos anos após a independência, em 1832, outro liberal, Evaristo da Veiga, ao defender emen-
mudanças tecnológicas
das de caráter federalista à Constituição brasileira, exortou em seu jornal, Aurora Fluminense: “Modi-
nas mais diversas
fique-se o pacto social, mas conserve-se a essência do sistema adotado. […] Faça-se tudo quanto é
áreas do cotidiano
têm exercido
preciso, mas evite-se a revolução”.
papel significativo
A fala dos dois liberais ajuda a entender por que a independência do Brasil não significou uma
nos processos de revolução: apesar de o país se tornar independente de Portugal, suas estruturas políticas, sociais e
mudanças sociais e econômicas praticamente não foram afetadas. Enquanto em toda a América Latina aconteceram
comportamentais. transformações com o processo da independência dos países — que se tornaram repúblicas e extin-
guiram a escravidão —, o Brasil continuou sendo uma monarquia e manteve a escravidão. A expres-
são de dom Pedro I serve de exemplo: “Tudo farei pelo povo e para o povo, mas nada com o povo”.
Além disso, quando analisamos a instalação da república no Brasil, constatamos que houve
mudança nas estruturas políticas e na organização do poder, mas os que dominavam no império
continuaram dominando na república.
Talvez a frase que melhor sintetize esse tipo de conduta e pensamento dominante desde a
independência seja a de Antonio Carlos, que foi governador de Minas Gerais e presidente do Partido
Charge de K. Lixto publicada em edição Republicano Mineiro (PRM) um pouco antes do movimento de 1930: “Façamos a revolução antes
da revista Fon-Fon de 1909. A Monarquia que o povo a faça”. Quem domina o país faz de tudo para continuar no controle, mesmo havendo
e a República comentam a mudança do mudança. Assim, os termos modernização ou reforma seriam mais apropriados para caracterizar
regime político. Diz a Monarquia: “Não
é por falar mal, mas com franqueza... o tipo de mudança que tem ocorrido no Brasil, embora muitos eventos políticos sejam chamados
eu esperava outra coisa”. A República de “revolução”.
responde: “Eu também!”.

DUAS “REVOLUÇÕES” NO BRASIL DO SÉCULO XX


K. LIXTO/FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, RIO DE JANEIRO, RJ

No século XX, o Brasil conviveu com muitos movimentos políticos localizados. Dois foram mais
duradouros e tiveram repercussões significativas na vida dos brasileiros: as “revoluções” de 1930 e
de 1964.

“Revolução” de 1930
Como já vimos, o movimento cívico-militar, chamado de “revolução” de 1930, que desembocou
na tomada do poder por Getúlio Vargas foi apenas uma mudança de grupos na estrutura de poder
do Estado brasileiro. SOCIOLOGIA
Na década de 1920, os grupos que dominavam a política nacional eram os mesmos desde o
império. No quadro socioeconômico, dois elementos sinalizavam mudança: uma pequena indus-
trialização nas cidades grandes e um significativo movimento de trabalhadores que tinha por base
as ideias anarquistas. Com a crise internacional de 1929, entretanto, a situação no Brasil piorou,
pois muitas fábricas fecharam e o café deixou de ser exportado. Houve desemprego no campo e
na cidade, além de fome e desamparo do Estado. Foi nesse contexto que se desenvolveu o movi-
mento que alterou os grupos no poder.

Mudança social 27

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COLEÇÃO PARTICULAR

Analistas desse movimento o


classificam como uma “revolução pelo
alto”, ou “revolução passiva”, ou “revo-
lução sem revolução”. Com essas classi-
ficações, querem dizer que houve uma
mudança social, sem a participação
popular, feita com base nos interesses
das classes dominantes.
Por meio dessa “revolução”, como
já vimos, o governo de Getúlio Vargas,
embora autoritário no encaminhamen-
to das questões sociais e econômicas,
procurou construir a infraestrutura ne-
cessária ao processo de industrializa-
ção que se projetava. Apesar de excluir
os trabalhadores como força política,
implantou a legislação trabalhista que
existe até hoje no Brasil. Essa ambigui-
dade da “revolução” de 1930 fez do
movimento um marco nas mudanças
sociais do país.

“Revolução” de 1964
Getúlio Vargas em Itararé, SP, a caminho A “revolução” de 1964, desenca-
do Rio de Janeiro, em 24 de outubro de deada por um golpe liderado pelos militares que derrubou o governo constitucional de João Goulart,
1930, dia em que Washington Luís foi foi de fato uma contrarrevolução. Os movimentos sociais (de trabalhadores do campo e da cidade)
deposto da presidência.
vinham se organizando gradativamente desde meados dos anos 1950 e estavam conquistando mui-
tos direitos, o que significava uma mudança importante no Brasil. Embora não se configurasse um
processo revolucionário capaz de transformar radicalmente o sistema político e econômico, havia
um grande avanço na participação dos setores populares na condução dos destinos do país.
Isso não era interessante para os grandes proprietários do campo, nem para os industriais das
cidades, nem para as empresas estrangeiras instaladas no Brasil. Essas forças, então, organizaram-se e,
com o apoio de militares conservadores e de parte da classe média, que temia a presença das “classes
perigosas” e do “comunismo” na cena política, propiciaram o golpe militar de 1.o de abril de 1964.
Os militares reprimiram intensamente todos os movimentos populares e, depois, estabeleceram
a censura aos meios de comunicação. Gradativamente retiraram uma série de direitos dos trabalha-
dores e ampliaram muito a presença do capital estrangeiro no Brasil. No final do período de ditadura
militar, a inflação brasileira era maior do que em 1964, e configurou-se uma desigualdade social nunca
vista. Além disso, foi contraída uma dívida externa gigantesca, o que colocava o país nas mãos dos
grupos financeiros internacionais.
AE

Marcha da Família
com Deus pela
Liberdade, no
Recife, em 1964.

28 Mudança social

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AE

Repressão a opositores do regime militar no


centro de São Paulo, SP, em 1968.

Entretanto, nesse período ditatorial, o país se modernizou, pois foram ampliadas as bases in-
dustriais que, desde a década de 1950, eram internacionalizadas. Desenvolveu-se a infraestrutura
na área de energia e transportes e alterou-se profundamente a agricultura nacional, que se tornou
uma atividade capitalista significativa. Com essas medidas, criaram-se as bases para que houvesse a
presença capitalista em todos os setores da sociedade, mesmo que isso significasse a marginalização
da maior parte da população, tanto econômica quanto política e socialmente.
Mas a grande mudança ocorreu no modo de vida da população urbana. Essa mudança, oca-
sionada pela produção em massa dos mais diversos artigos industriais, como alimentos, roupas,
eletrodomésticos e automóveis, foi coroada pela expansão das comunicações telefônicas e, princi-
palmente, pela presença marcante da televisão, que se estendeu por quase todo o território nacional
e, de alguma forma, criou novos comportamentos e valores.
FOLHAPRESS

Militares assistem à primeira


viagem do metrô de São
Paulo, SP, em setembro de
1972. O próprio presidente,
Garrastazu Médici, acionou a
sirene que autorizava o início
da viagem.

“MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA”
Considerando processos históricos como os que abordamos anteriormente, muitos autores
caracterizam a mudança social no Brasil como “modernização conservadora”, pois ocorre sempre por
meio do Estado, ou seja, de cima para baixo e, na maioria dos casos, sob controle deste.
Os pensadores Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), Sérgio Buarque de Holanda (1902-
1982), Azevedo Amaral (1881-1942) e Nestor Duarte Guimarães (1902-1970) foram os primeiros a
analisar a questão da “modernização” no Brasil, no período de 1920 a 1940. Pode-se dizer que para
todos eles, de uma forma ou de outra, havia uma ligação entre o passado colonial e a situação daque-
SOCIOLOGIA
le momento. O passado colonial deveria ser eliminado para que o Brasil saísse do atraso e pudessem
se abrir possibilidades de mudança social.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil (1936), fez uma crítica às elites anacrô-
nicas brasileiras e procurou discutir a possibilidade da promoção da modernização no contexto de
uma organização social nova e de uma efetiva democracia.
Em vários escritos, mas principalmente em seu livro Instituições políticas brasileiras (1949), Oli-
veira Vianna atribuiu à estrutura do poder e da sociedade na Primeira República — que estava ba-

Mudança social 29

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 29 21/11/16 20:17


STORNI/FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, RIO DE JANEIRO, RJ

seada no latifúndio e no poder local dos coronéis — a razão de nosso atraso. Para a superação dessa
situação, Vianna propunha uma série de reformas e um poder central forte, que faria oposição às
oligarquias locais e regionais, além de garantir a unidade e o desenvolvimento nacionais.
Azevedo Amaral, no livro O Estado autoritário e a realidade nacional (1938), defendeu uma in-
dustrialização brasileira que só poderia ser realizada com a presença de um Estado forte e autoritário.
Já Nestor Duarte Guimarães, no livro A ordem privada e a organização política nacional (1939),
destacou a visão privatista como um dos traços culturais do país. Para ele, o Estado era fraco, apesar
de o governo ser forte. O que havia era o domínio privado do Estado, que sempre ficou nas mãos
das grandes oligarquias.
Esses quatro autores ressaltaram que, de uma forma ou de outra, nossos problemas estavam
no passado colonial, mas sobretudo na visão de que sempre havia um empecilho para o desenvol-
vimento e era necessário um Estado forte (para Vianna e Amaral) ou uma sociedade democrática
(para Holanda e Duarte) que pudesse promover a modernização do país.
Nas décadas posteriores, vários autores se mostraram preocupados com a questão das mudan-
ças sociais no Brasil. A maioria deles procurava demonstrar que havia uma vinculação entre o passado
colonial brasileiro, principalmente a escravidão, e a situação social que se vivia. Apesar de todas as
mudanças ocorridas, esse passado estava evidente na estruturação das classes sociais e do Estado,
sempre a serviço dos que detinham o poder econômico: além dos grandes proprietários de terras,
os industriais nacionais e estrangeiros e o setor financeiro.
Divisão política do “trono” presidencial
entre as oligarquias de Minas e
de São Paulo, em charge de
Storni, 1925: o domínio privado do Estado
Modernidade sem modernização no Brasil
como empecilho à democracia e à […] Temos vivido, como nação, atormentados pelos “males” modernos e pelos
modernização. “males” do passado, pelo velho e pelo novo, sem termos podido conhecer uma histó-
ria de rupturas revolucionárias. Não que não tenhamos nos modernizado e chegado
ao desenvolvimento. Fizemos isso de modo expressivo, mas não eliminamos relações,
estruturas e procedimentos contrários ao espírito do tempo. Nossa modernização tem
sido conservadora, aliás, duplamente conservadora. Em primeiro lugar, porque tem
se feito com base na preservação de expressivos elementos do passado, que são assi-
milados, modernizados e tornados funcionais, alcançando tamanha força de reprodu-
ção que conseguem condicionar todo o ritmo e a qualidade mesma da mudança […].
Trata-se, para ficar num exemplo fácil, do peso paralisante adquirido no curso do
nosso capitalismo pelo latifúndio, capaz de resistir por décadas seja ao desenvolvi-
mento nacionalista e popular de Vargas, seja à modernização autoritária do regime de
64. Em segundo lugar, porque tem se feito de modo não democrático, sem participa-
ção popular e sob o comando do Estado, desdobrando-se quase sempre de modo a
ser hegemonizada por interesses conservadores. Foi assim que chegamos à época do
capitalismo e da indústria e é assim que estamos caminhando para o século XXI. […]

NOGUEIRA, Marco Aurélio. As possibilidades da política: ideias para a reforma democrática do Estado. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 266-267.

Entre os autores que mantiveram constante preocupação com a mudança social no Brasil, des-
tacamos Florestan Fernandes (1920-1995), um dos maiores sociólogos brasileiros. Tal preocupação foi
expressa nos livros Mudanças sociais no Brasil (1974) e A revolução burguesa no Brasil: ensaio de inter-
pretação sociológica (1975), entre outros.
Diante do golpe militar de 1964, Florestan Fernandes procurou uma explicação sociológica para
a sociedade brasileira que fosse além da visão tradicional e conciliadora, cultivada pelos intelectuais
vinculados às classes dominantes. Para ele, a sociedade de classes constituída no Brasil pelo capitalismo
é incompatível com o que se considera universal no que concerne aos direitos humanos, pois resulta
numa democracia restrita, no contexto de um Estado autoritário-burguês, no qual as mudanças só
ocorrem em benefício de uma minoria privilegiada nacional articulada com os interesses estrangeiros. E
isso porque o passado escravista está presente nas relações sociais, principalmente nas de trabalho, em
que o preconceito ainda é muito forte e as pessoas são excluídas por serem pobres, negras ou mulheres.

30 Mudança social

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JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

Assembleia de trabalhadores em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, SP, em 1979.

Segundo Florestan, não haveria a possibilidade de uma revolução no Brasil se essa carga do pas-
sado, que envolvia o escravismo e suas consequências, não fosse abolida e a visão da política como
relação de favor e arte de se manter no poder não fosse substituída por práticas políticas e relações
pelo menos democráticas. Para ele, era necessária a adoção de uma democracia de base ampliada
que fosse além do voto e permitisse a participação efetiva do povo nos destinos do país.
Já no fim da ditadura militar, em 1980, quando as greves e manifestações sociais voltavam à
cena, Florestan Fernandes escreveu, em seu livro Brasil: em compasso de espera (São Paulo: Hucitec,
1980. p. 33):
O protesto operário está nos tirando do pântano colonial em que o despotismo bur-
guês nos deixou atolados, mesmo nove décadas após a proclamação da República. A his-
tória volta a ter, de novo, uma face de esperança, embora tudo ainda seja muito frágil,
incerto e obscuro.
O sociólogo estava atento ao que acontecia, mas não era um entusiasta, pois sabia que o poder
dos conservadores era muito grande e a possibilidade de uma democracia no Brasil era frágil e incerta.
Mesmo assim, Florestan Fernandes sempre procurou criticar as iniquidades da sociedade brasileira.

MUDANÇAS NOS ÚLTIMOS ANOS


SOCIOLOGIA

Como vimos até aqui, muitas coisas mudaram no Brasil e muitas outras foram conservadas
ou não mudaram de modo significativo. Podemos observar que em alguns lugares o modo de vida
assemelha-se ao das sociedades industrializadas de qualquer parte do mundo, tanto nas áreas ur-
banas como nas áreas rurais. Nas grandes cidades as duas situações convivem. Há no mesmo lugar
extrema riqueza e extrema pobreza: gente que mora em condomínios fechados luxuosos e gente
que vive embaixo de viadutos.

Mudança social 31

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Politicamente, pode-se dizer que as regras do jogo democrático estão consolidadas, isto é, as
eleições são realizadas regularmente e os eleitos tomam posse dos cargos e terminam os mandatos
(desde que não sejam julgados e tenham os mandatos extintos, como ocorreu com o ex-presidente
Fernando Collor de Mello e vários parlamentares). No entanto, persistem ainda velhas práticas, como
o clientelismo, o “favor”, as decisões judiciais parciais e os conchavos políticos, o que demonstra que
o país não mudou tanto.
Nos últimos 30 anos, houve uma alteração substancial na situação econômica do Brasil. Foram
necessárias mudanças internas para que o país pudesse se adequar ao padrão internacional de rela-
ções políticas e econômicas.
O processo produtivo industrial foi modificado com a entrada de novas indústrias e a moder-
nização tecnológica, principalmente via automação. Criou-se uma nova maneira de produzir muito
com menos trabalhadores. Isso conduziu, entretanto, a uma situação em que a economia continua
fundamentada na exploração do trabalho e o país ainda é dependente de exportação de produtos
agropecuários (o chamado agronegócio) e de minérios, sendo ainda grande importador de produtos
e insumos industrializados.
Houve também uma mudança no consumo e nas relações entre os indivíduos. Para indicarmos ape-
nas uma situação, a utilização dos telefones celulares e da internet ocasionou mudanças comportamen-
tais que impressionam — por exemplo, na relação entre os trabalhadores autônomos e seus clientes;
nas relações afetivas, que incluem constantes contatos, mas também vigilância; nas relações trabalhistas,
pois o empregado pode ser alcançado a qualquer hora e em qualquer lugar; na sociabilidade, pois as
pessoas não conseguem mais viver “desconectadas”.
Isso significa que a chamada globalização nos atingiu plenamente. E, como diz o sociólogo
brasileiro Francisco de Oliveira (1933-), os meninos nas ruas vendendo balas, doces e quinquilharias
não são o exemplo do atraso do país, mas a forma terrível como a modernização aqui se implantou.

RICARDO AZOURY/PULSAR IMAGENS

Lan house na cidade de São


Gabriel da Cachoeira, no
interior do Amazonas, em
2012: o acesso à rede mundial
de computadores se estende a
todo o território brasileiro.

32 Mudança social

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CENÁRIOS DA MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL

A revolução das pequenas coisas [...]


O município de Alto Alegre do Pindaré, no sul do Em Belo Horizonte, alunos de escolas municipais são
Maranhão, tem 24 mil habitantes, espalhados em diversas apoiados, em atividades extracurriculares, pelas várias
comunidades. As casas são de taipa, cobertas com ramos universidades — lá, aliás, monta-se uma articulação que
de babaçu — boa parte dos homens e das mulheres não vem permitindo aos estudantes mais pobres dividir seu
sabe ler nem escrever. Ali, inventou-se um novo tipo de tempo entre a escola e alguma entidade, garantindo edu-
biblioteca: a bibliojegue. cação em tempo integral.
Abarrotado de livros, um jegue percorre os povoados [...] Em Nova Iguaçu, no Rio, para evitar que jovens
e para debaixo de uma árvore frondosa. As crianças e os fiquem na rua, expostos à violência, lançaram-se torneios
adolescentes se aproximam, sentam em roda, pegam um de basquete e futebol de madrugada durante os finais de
livro e ouvem um contador de histórias. semana. Em Diadema, a violência caiu abruptamente por-
[...] Responsável pelo projeto, Alda Beraldo, professo- que a prefeitura comandou uma ação na cidade, envolven-
ra de português, conta que uma das maiores emoções de do os diversos níveis de poder.
sua vida foi ver mulheres analfabetas com os olhos cheios O que está se inventando, em resumo, é tecnologia
de lágrimas ao ouvirem, pela primeira vez, uma poesia. social.
[...] É essa tecnologia social que se vê nas 33 escolas com
A bibliojegue faz parte de uma tendência ainda pouco bom desempenho, em lugares de extrema carência, bene-
percebida e valorizada no Brasil, mas que integra a revolu- ficiadas pela inventividade local. Numa delas criou-se a
ção das pequenas coisas. É a constelação de engenhosas “sacola literária” — os alunos levam livros numa sacola
soluções que, isoladamente, têm baixo impacto, mas jun- para casa nos finais de semana. São convidados, então, a
tas seriam capazes de mexer nos indicadores nacionais de contar a seus colegas o que leram. Em outras dessas esco-
educação, saúde, emprego e preservação do ambiente. las, o professor vai à casa da família cujo filho está faltan-
A revolução das pequenas coisas engloba um bairro do às aulas. Na José Negri, em Sertãozinho (interior de
deteriorado no centro do Recife transformado em porto SP), aprende-se fração comendo bolo. [...]
DIMENSTEIN, Gilberto. A revolução das pequenas coisas. Folha de S.Paulo. São
digital, onde se criaram 108 empresas que produzem soft- Paulo, 24 dez. 2006. Cotidiano, p. C9. Licenciado pela Folhapress.
ware; a cidade de Santa Rita de Sapucaí, em Minas, que, a
partir de uma escola de ensino médio de eletrônica, mon-
tou uma cadeia produtiva em torno das telecomunicações Além das grandes transformações que ocorrem e poderão
(lá se criou, por exemplo, a urna eleitoral eletrônica) [...]. ocorrer no Brasil, pequenas ações estão mudando a vida de
A Universidade Federal de Santa Catarina orientou pesca- muitas pessoas e comunidades, como as relatadas no texto.
dores, em Florianópolis, a ganhar dinheiro cultivando os- Você conhece outras ações desse tipo? Essas ações pontuais
tras. A Universidade de Campinas ensina prefeituras a podem resolver a situação das pessoas envolvidas ou consti-
movimentar seus veículos com o óleo descartado nos res- tuem apenas paliativos, cuja supressão trará de volta a situa-
taurantes da cidade. ção anterior?

ANOTAÇÕES

SOCIOLOGIA

Mudança social 33

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TAREFA PARA CASA

1 Considerando que ambíguo é aquilo que permite duas in- porque a própria sociedade deixava de secretar suas ener-
gias democráticas). No conjunto, o golpe de Estado ex-
terpretações diferentes e até mesmo opostas, é o que tem
traía a sua vitalidade e a sua autojustificação de argumen-
dois sentidos distintos, pesquise e responda: por que Getúlio
tos que nada tinham a ver com “o consentimento” ou com
Vargas e a “Revolução” de 1930, no que diz respeito às mu-
“as necessidades” da Nação como um todo. Ele se voltava
danças sociais no Brasil, podem ser considerados ambíguos?
contra ela porque uma parte precisava anular e submeter
A questão propõe um exercício de reflexão sobre a “Revolução” de 1930 a partir
da última frase do trecho do nosso livro que trata do assunto. A ambiguidade
a outra à sua vontade e discrição pela força bruta [...].
está no fato de que, por um lado, o governo de Getúlio aprofundou o processo Nessa conjuntura, confundir os espíritos quanto ao sig-
de industrialização no Brasil a tal ponto que, pela primeira vez na história nificado de determinadas palavras-chave vinha a ser fun-
do país, as atividades industriais rivalizaram com a produção de matérias- damental. É por aí que começa a inversão das relações
-primas agrícolas. Por outro lado, o governo de Getúlio manteve, e sofisticou,
a prática do Estado autoritário. Suas leis trabalhistas visavam amainar os
normais de dominação. Fica mais difícil para o domina-
ímpetos participativos da população, técnica essa que acabava se ocultando do entender o que está acontecendo e mais fácil defender
sob o carisma de Vargas. Eis a ambiguidade: o dinamismo inovador da os abusos e as violações cometidas pelos donos do poder.
industrialização convivendo com práticas antigas de autoritarismo. FERNANDES, Florestan. O que é revolução.
São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 7-9.
2 Sobre os usos sociais da palavra revolução, leia o texto a se-
guir, de Florestan Fernandes, e responda à questão. Segundo o texto, quais eram as intenções dos agentes do
A palavra revolução tem sido empregada de modo a golpe de Estado de 1964 no Brasil ao empregar o termo re-
provocar confusões. Por exemplo, quando se fala de “re- volução para designar esse acontecimento?
volução institucional”, com referência ao golpe de Estado Espera-se que o aluno seja capaz de inferir duas ideias básicas
de 1964. É patente que aí se pretendia acobertar o que apresentadas no texto, referentes ao aspecto ideológico com que
ocorreu de fato, o uso da violência militar para impedir a se aplica o termo revolução. A primeira é o reconhecimento de que
o emprego de “revolução” para nomear o golpe de 1964 implica o
continuidade da revolução democrática (a palavra correta entendimento de que não se tratou de uma interrupção do processo
seria contrarrevolução: mas quais são os contrarrevolucio- democrático. Ao contrário, chamar de “revolução” esse golpe de Estado
nários que gostam de se ver na própria pele?). Além disso, é, segundo Florestan, criar a ideia de que foi feita em nome dos
a palavra “revolução” encontra empregos correntes para interesses da nação. A segunda ideia é a de que o significado do termo
“revolução” convence de maneira mais fácil os dominados em relação à
designar alterações contínuas ou súbitas que ocorrem na sua submissão e, inclusive, à defesa que se possa fazer dela, exatamente
natureza ou na cultura [...]. No essencial, porém, há pou- porque não se percebe suas reais intenções contrarrevolucionárias.
ca confusão quanto ao seu significado central: mesmo na
3 Leia o texto a seguir sobre as mudanças sociais no Brasil.
linguagem de senso comum, sabe-se que a palavra se apli-
ca para designar mudanças drásticas e violentas da estru- Ao contrário de outros países da América Latina,
tura da sociedade. Daí o contraste frequente de “mudança como México, Bolívia, Cuba e Nicarágua, o Brasil nunca
gradual” e “mudança revolucionária”, que sublinha o teor conheceu uma verdadeira revolução social. A indepen-
da revolução como uma mudança que “mexe nas estrutu- dência de 1822 foi um assunto entre pai (d. João VI) e
ras”, que subverte a ordem social imperante na sociedade. filho (d. Pedro I), como sabe qualquer aluno de ensino
O debate terminológico não nos interessa por si mes- médio. A República, um pronunciamento militar contra
mo. É que o uso das palavras traduz relações de poder e d. Pedro II. A assim chamada Revolução de 1930, con-
relações de dominação. Se um golpe de Estado é descrito flito entre oligarquias regionais (Rio Grande do Sul e
como “revolução”, isso não acontece por acaso. Em pri- Minas Gerais contra São Paulo), tinha muito pouco de
meiro lugar, há uma intenção: a de simular que a revolu- revolucionária — apesar das veleidades democráticas de
ção democrática não teria sido interrompida. Portanto, os alguns dos jovens “tenentes” que apoiaram Getúlio Var-
agentes do golpe de Estado estariam servindo à Nação gas — e poderia, no máximo, ser considerada, segundo
como um todo (e não privando a Nação de uma ordem o termo irônico de Gramsci, uma “revolução passiva”,
política legítima com fins estritamente egoísticos e antina- isto é, uma mudança sociopolítica “de cima para baixo”,
cionais). Em segundo lugar, há uma intimidação: uma sem participação popular. A queda de Getúlio Vargas em
revolução dita as suas leis, os seus limites e o que ela ex- 1945 e o fim do Estado Novo foram outro assunto de-
tingue ou não tolera (em suma, golpe de Estado criou uma cidido entre militares. A pretensa Revolução de 31 de
ordem ilegítima que se inculcava redentora; mas, na rea- março de 1964 não passou de um golpe militar reacio-
lidade, o “império da lei” abolia o direito e implantava a nário e antipopular patrocinado pelos Estados Unidos.
“força das baionetas”: não há mais aparências de anarquia, E, por fim, a redemocratização de 1985 deu-se sem rup-

34 Mudança social

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turas: os militares decidiram entregar o governo nova- b) Max Weber considerou que a mudança de um estado para
mente aos civis, mas não permitiram eleições diretas, outro decorre de modificação nos fatores econômicos es-
apesar da enorme pressão popular. senciais, ou seja, nos métodos de produção e distribuição.
LÖWY, Michael. Revoluções. c) Segundo Karl Marx, a mudança social é causada pela in-
São Paulo: Boitempo, 2009. p. 533.
teração de vários setores de uma cultura, nenhum deles
a) Já que, como o texto afirma, nunca houve uma “verda- podendo ser considerado primordial.
deira revolução social” no Brasil, como se pode com- X d) Os positivistas entendiam a mudança social como sinô-
preender as mudanças decorrentes de todos os eventos nimo de progresso, isto é, definiam os estágios das socie-
listados no texto? dades, desde os níveis mais baixos até os mais elevados,
A questão exige uma reflexão por parte do aluno que considere pois consideravam o homem capaz de atingir uma ordem
todos os principais eventos da modernização brasileira. Portanto, uma social perfeita.
reflexão sobre os sentidos da mudança social no país. Será necessário,
na produção da resposta, arregimentar um conhecimento histórico que
e) Tanto Karl Marx como Max Weber defendiam a teoria do
vá além do exposto no texto que serve como base para a pergunta. ciclo biológico, ou seja, consideravam que a raça é o mais
A resposta exigirá reflexão sobre o conceito de “modernização importante determinante da cultura, e que a raça nórdica,
conservadora”, abordado em nosso livro. Apesar de serem listados superior às outras, é a principal responsável pelo alto esta-
vários acontecimentos históricos, há entre eles a característica comum
de terem gerado mudanças pontuais e não estruturais, mais ligadas à
do de civilização.
concepção do termo “reforma”, e de terem sido feitas “de cima para 2 (Fuvest, 2000)
baixo”, para manter a ordem vigente. Cada alternativa contém partes corretas por corresponderem parcialmente aos
dados históricos relativos à Revolução Francesa e à Revolução Russa. É importante
b) Com base no texto, reflita e responda: quais são as con- Há controvérsias entre historiadores sobre o caráter das duas
sequências sociais decorrentes do fato de nunca ter havi- grandes revoluções do mundo contemporâneo, a Francesa de
do uma “verdadeira revolução social” no Brasil? 1789 e a Russa de 1917; no entanto, existe consenso sobre o fato
de que ambas verificar a alternativa que mostra como e em que momentos
da História houve influência direta de cada uma das duas.
Fundamentalmente, a desigualdade social incidindo negativamente
sobre descendentes de escravos, indígenas, mulheres, trabalhadores do a) fracassaram, uma vez que, depois de Napoleão, a França
campo e pessoas oriundas de regiões historicamente desprestigiadas, voltou ao feudalismo com os Bourbons e a União Soviéti-
como o norte e o nordeste. Outra consequência é o fato de o Estado, ca, depois de Gorbatchev, ao capitalismo.
ainda hoje, em grande medida, estar a serviço dos grupos dominantes. b) geraram resultados diferentes das intenções revolucioná-
Isso mostra que o Brasil se modernizou mas não rompeu com o
passado colonial. Afinal, se a desigualdade incide negativamente sobre rias, pois tanto a burguesia francesa quanto a russa eram
uns, ela privilegia enormemente outros. Essa é a consequência de uma contrárias a todo tipo de governo autoritário.
modernização desencadeada somente pelas elites. c) puseram em prática os ideais que as inspiraram, de liber-
dade e igualdade e de abolição das classes e do Estado.
d) efetivaram mudanças profundas que resultaram na supe-
COMPLEMENTARES
PARA PRATICAR ração do capitalismo na França e do feudalismo na Rússia.
X e) foram marcos políticos e ideológicos, inspirando, a pri-
1 (UEL, 2007) meira, as revoluções até 1917, e a segunda, os movimen-
tos socialistas até a década de 1970.
Leia o texto a seguir: 3 (UEL, 2007)
“Mudança social refere-se às modificações que ocor-
rem nos padrões de vida de um povo. Essas modificações Em relação ao processo de formação social no Brasil, o soció-
são causadas por uma variedade de fatores, de natureza logo Florestan Fernandes escreveu:
interna ou externa, isto é, por forças decorrentes de con- “Lembremo-nos de que da vinda da Família Real, em
dições existentes dentro do grupo ou fora dele”. 1808, da abertura dos portos e da Independência, à Abo-
Fonte: KOENIG, S. Elementos de Sociologia. Tradução de Vera Borda. 5. ed. lição em 1888, à Proclamação da República e à “revolução
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 326.
liberal”, em 1930, decorrem 122 anos, um processo de
São apresentadas, corretamente ou não, cinco análises que os principais longa duração, que atesta claramente como as coisas se
sociólogos fizeram das mudanças sociais. Será necessária uma atenção especial
passaram. Esse quadro sugere, desde logo, a resposta à SOCIOLOGIA
para identificar cada um com sua teoria e não com variantes dos demais.
pergunta: a quem beneficia a mudança social?”
Com base no texto e nos conhecimentos das diferentes Fonte: FERNANDES, F. As mudanças sociais no Brasil. In: IANNI, Octavio (org.).
Florestan Fernandes. Coleção Grandes cientistas sociais.
abordagens teóricas sobre o tema, é correto afirmar: São Paulo: Ática, 1986. p. 155-156.
a) Émile Durkheim propôs a teoria cíclica da mudança so-
cial, isto é, as sociedades atravessam períodos de vigor De acordo com o texto e os conhecimentos sobre o tema,
político e declínio que se repetem. em relação à indagação feita pelo autor, é correto afirmar que
a mudança social beneficiou:

Mudança social 35

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Florestan Fernandes mostra como os grandes eventos de nossa história beneficiaram
a seus protagonistas, os mesmos que se beneficiavam da situação anterior. Em
vez de provocar mudanças sociais, se mantinham no comando, fazendo apenas as
mudanças de seu interesse direto, evitando as necessárias revoluções e, de modo
bem claro, qualquer participação popular.
a) fundamentalmente os trabalhadores, uma vez que as liber- gonizou ações revolucionárias armadas.
dades políticas e as novas formas de trabalho aumentaram X e) tornou-se porta-voz da sociedade e influenciou no
a renda. processo de impeachment do então presidente Collor.
X b) os grupos sociais que dispunham de capacidade econô-
5 (Enem, 2013)
mica e poder político para absorver os efeitos construti-
vos das alterações ocorridas na estrutura social. Rua Preciados, seis da tarde. Ao longe, a massa hu-
c) a elite monárquica, pois ao monopolizar o poder político mana que abarrota a Praça Puerta Del Sol, em Madri, se
impediu que outros grupos sociais pudessem surgir e ter levanta. Um grupo de garotas, ao ver a cena, corre em
acesso aos efeitos construtivos das alterações na estrutu- direção à multidão. Milhares de pessoas fazem ressoar
ra social. o slogan: “Que não, que não, que não nos representem”.
d) os grupos sociais marginalizados ou excluídos, pois, em de- Um garoto fala pelo megafone: “Demandamos submeter
corrência deste processo, passaram a fazer parte do proces- a referendo o resgate bancário”.
so produtivo. RODRÍGUEZ, O. Puerta Del Sol, o grande alto-falante. Brasil de Fato,
São Paulo, 26 maio-1 jun. 2011 (adaptado).
e) a população negra, uma vez que a alteração na estrutu-
ra da sociedade criou novas oportunidades de inserção Em 2011, o acampamento dos indignados espanhóis ex-
social. pressou todo o descontentamento político da juventude
4 (Enem, 2011) Convencida da validade das acusações de corrupção contra o
X europeia. Que proposta sintetiza o conjunto de reivindica-
presidente Collor, com suas caras pintadas, os jovens saíram ções políticas destes jovens?
O movimento dos Caras-Pintadas, do início dos anos 1990, a) Voto universal.
arrebatou milhares de jovens no Brasil. Nesse contexto, a ju- b) Democracia direta.
ventude, movida por um forte sentimento cívico, c) Pluralidade partidária.
a) aliou-se aos partidos de oposição e organizou a campa- d) Autonomia legislativa.
nha Diretas Já. às ruas em defesa da ética na política e no uso do
dinheiro público. A partir daí, conhecedores da força e) Imunidade parlamentar.
b) manifestou-se contra a corrupção e pressionou pela A indignação tomou conta de vários países nas crises financeiras de vários países
aprovação da Lei da Ficha Limpa. que possuem, quando unidos
na defesa de uma causa,
considerados prósperos e até de Primeiro Mundo. As massas foram às ruas na
c) engajou-se nos protestos-relâmpago e utilizou a internet tentativa de serem ouvidas como principais vítimas da situação ao notarem que
houve várias manifestações os bancos tinham primazia no socorro dos governos. Agir democraticamente,
para agendar suas manifestações. inspiradas no modelo de 1992. defendendo seus direitos e sendo atendidos, era a base de suas reivindicações,
d) espelhou-se no movimento estudantil de 1968 e prota- não permitindo que outros decidissem por eles contra eles.

ANOTAÇÕES

36 Mudança social

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ANOTAÇÕES

SOCIOLOGIA

Mudança social 37

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CONEXÃO DE SABERES

“México: hoje e amanhã”, parte do mural História do México, de Diego rivera.

38 Mudança social

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Atenção: a tela deve ser lida de baixo para cima, do lado direito para o esquerdo. Explore a imagem e, em seguida, produza um pequeno
texto associado a obra aos conceitos de mudança social e de revolução.

SOCIOLOGIA

Mudança social 39

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LEITURAS E ATIVIDADES
mente os 1 000 iens (que a essa altura já eram 10.000)
PARAPARA REFLETIR
PRATICAR
prometidos a cada um e foi dormir feliz, envolvido em
lençóis de seda e adorável silêncio. Mas no dia seguinte
acordou sobressaltado, os ouvidos estourando com o mes-
Nada é impossível de mudar mo barulho de sempre.
Desconfiai do mais trivial, E, quando ia reclamar violenta e legalmente contra a
na aparência singelo. quebra de contrato, verificou que não tinha o que recla-
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. mar. Os dois ferreiros tinham cumprido fielmente o que
Suplicamos expressamente: haviam prometido. Ambos tinham se mudado. O ferreiro
não aceiteis o que é de hábito da direita tinha se mudado pra esquerda e o da esquerda
como coisa natural, tinha se mudado pra direita.
pois em tempo de desordem sangrenta, MORAL: Cuidado quando a esquerda e a direita
de confusão organizada, estão de acordo
de arbitrariedade consciente, FERNANDES, Millôr. Mudanças radicais imutáveis. À maneira dos... chineses.
de humanidade desumanizada, Fábulas fabulosas. Disponível em:
nada deve parecer natural <www2.uol.com.br/millor/fabulas/034.htm>. Acesso em: 17 ago. 2012.

nada deve parecer impossível de mudar.


1 Em seu artigo “Por um partido democrático, de esquerda e
BRECHT, Bertolt. Antologia poética de Bertolt Brecht. 2. ed. Rio de Janeiro:
Elo, 1982. p. 45. contemporâneo”, publicado em 1997 na revista Lua Nova,
o economista e cientista político Luiz Carlos Bresser-Pereira
(1934-) estabelece a seguinte distinção entre a esquerda e a
direita: “É de esquerda quem está disposto a arriscar a ordem
em nome da justiça. É de direita quem prioriza a ordem em
Pense nas alternativas para mudar alguma coisa em sua vida,
relação à justiça social”. Em outras palavras, a esquerda prio-
na vida de sua família, na escola em que você estuda ou em
riza a equidade e a direita prioriza a segurança e a estabili-
outros lugares que frequenta. O que você faria para que isso
dade. Converse com seus colegas sobre as duas posturas e
acontecesse?
procure formular uma opinião.
Mudanças radicais imutáveis. À maneira
2 Considerando a definição de Bresser-Pereira, é possível
dos... chineses
distinguir no Brasil partidos de direita e de esquerda, ou
Olin-Pin, abastado negociante de óleos e arroz, vivia não há diferença nas posições dessas organizações polí-
numa imponente mansão em Kin-Tipê. A sua posição so-
ticas? Fundamente sua resposta com exemplos.
cial e a sua mansão só não eram perfeitas porque, à direi-
ta e à esquerda da propriedade, havia, há algum tempo,
dois ferreiros que ferreiravam ininterruptamente, tinindo PARA ORGANIZAR O CONHECIMENTO
e retinindo malhos, bigornas e ferraduras.
Olin-Pin, muitas vezes sem dormir, dado o tim-pin- Hans Gerth e C. Wright Mills, no livro Caráter e estrutura so-
-tin, pan-tan-pan a noite inteira, resolveu chamar os dois cial: a psicologia das instituições sociais, ao discutirem a ideia
ferreiros, e ofereceu a eles 1.000 iens de compensação, de mudança social, formulam seis questões que devem de
para que ambos se mudassem com suas ferrarias. Os dois alguma maneira orientar o nosso pensamento sobre esse
ferreiros acharam tentadora a proposta (um ien, na época, tema:
valia mil euros) e prometeram pensar no assunto com
todo empenho. 1 O que muda? A sociedade como um todo, alguns aspectos
E pensaram. E com tanto empenho que, apenas dois dela, apenas algumas instituições?
dias depois, prevenidamente acompanhados de oito ad-
vogados, compareceram juntos diante de Olin-Pin. E as- 2 Como alguma coisa muda? De forma violenta e radical, ou
sinaram contrato, cada um prometendo se mudar para lentamente, por pequenas alterações sucessivas, ou por pe-
outro lugar dentro de 24 horas. Olin-Pin pagou imediata- quenas alterações e saltos qualitativos mais amplos?

40 Mudança social

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3 Qual é a direção da mudança? A alteração modifica algo chegar a um sistema compatível com as exigências da dig-
visando a um processo de maior liberdade ou de maior re- nidade humana e da sustentabilidade ecológica.
pressão? É um movimento em direção a caminhos novos
ou regressão a formas anteriores? As revoluções burguesas, de Paulo

EDITORA ATUAL
Miceli. São Paulo: Atual.
4 Qual é o ritmo da mudança? A mudança é lenta e pouco Por que a Revolução Francesa é con-
perceptível, ou rápida e ocasionada, por exemplo, por uma siderada o modelo clássico de revolu-
guerra, em que são destruídas muitas coisas, ou rápida e ção democrático-burguesa? Por que
ocasionada por transformações tecnológicas, como a infor- a Revolução Inglesa, após atingir um
mática, por exemplo? ponto máximo de radicalismo, recuou
e não avançou mais? O autor desse
5 Por que ocorreu tal mudança? Quais são as causas da mu- livro analisa a ascensão burguesa e
dança? Há uma causa apenas ou um conjunto delas? seu significado para as sociedades
contemporâneas, estabelecendo a relação histórica entre
6 Quais são os fatores objetivos e subjetivos que concor-
revolução burguesa e revolução socialista.
rem para a mudança? Fatores objetivos são, por exemplo,
a propriedade da terra, a estrutura da industrialização, a
O que é revolução, de Florestan Fer-

EDITORA BRASILIENSE
estrutura de poder e o processo de exploração em deter-
nandes. São Paulo: Brasiliense.
minada sociedade; fatores subjetivos são, por exemplo, a
questão individual (liderança), os valores contestados, as O autor procura discutir a revolução
ideias presentes no processo de mudança. e a contrarrevolução como realida-
des históricas. Analisando o conceito
Essas seis questões podem ajudá-lo a entender qualquer marxista de revolução, evidencia as
processo de mudança social, seja apenas uma alteração no diferentes características de uma re-
comportamento, seja a transformação de uma sociedade. volução burguesa e de uma revolução
Escolha uma situação de mudança social estudada nesta proletária.
unidade (a Revolução Industrial, a Revolução Russa ou a re-
volução tecnológica do século XXI, por exemplo) e, com
base nela, responda a essas questões.
SUGESTÃO
PARA DE FILMES
PRATICAR
PARA
PARA PESQUISAR
PRATICAR
Blade Runner: O caçador de androi-
WARNER BROTHERS/EVERETT COLLECTION/
KEYSTONE

des, (Estados Unidos, 1982). Direção:


Em grupo, pesquisem como era a escola nos anos 1950,
Ridley Scott.
considerando os seguintes aspectos: os edifícios, o pátio,
Esse filme apresenta uma história de
as salas de aula, as carteiras, os equipamentos utilizados nas
ficção científica que se passa em 2019,
aulas, a rotina escolar, a relação entre professor e aluno. Se
época na qual uma grande corpora-
possível, colham o depoimento de uma pessoa que tenha
ção fabrica robôs, chamados de re-
estudado nessa época. Depois, discutam o que permane-
plicantes, que são usados em tarefas
ceu e o que mudou em relação à escola de hoje. Façam a
pesadas, perigosas ou degradantes
apresentação dos resultados para a classe.
em colônias humanas fora da Terra.
Quando um grupo de replicantes provoca um motim, é
LIVROS RECOMENDADOS
PARA PRATICAR formado um esquadrão de elite, conhecido como Blade
Runner, para detê-los. No decorrer do filme, os replicantes
As conexões ocultas: ciência para parecem adquirir características humanas, ao passo que os
EDITORA CULTRIX

uma vida sustentável, de Fritjof Capra. humanos que os caçam parecem adquirir, cada vez mais, SOCIOLOGIA
Fritjof Capra discute nesse livro as re- características desumanas. Esse filme é excelente para mo-
des complexas nas quais se integram tivar a reflexão sobre as questões que envolvem o uso de
as dimensões biológica e social da novas tecnologias.
vida humana e propõe a promoção da
mudança do sistema de valores que
determina a economia global para

Mudança social 41

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 41 21/11/16 20:17


DIREÇÃO DE SERGIO LEONE
Quando explode a vingança, (Itália, 1971). Direção: Sergio Leone.
Esse filme relata como um bandido que desrespeitava qualquer ideal
Gerente editorial: M. Esther Nejm
humano e um irlandês fugitivo, militante do Exército Republicano Irlan- Editor responsável: Glaucia Teixeira M. Thomé
dês (IRA), se encontram em 1913 em plena Revolução Mexicana. É um Coordenador de revisão: Camila Christi Gazzani
filme divertido e cheio de emoções, que discute o significado da revo- Revisores: Cesar G. Sacramento, Eduardo Sigrist, Elza
Gasparotto, Felipe Toledo
lução para esses e outros personagens que normalmente eram apenas Coordenador de iconografia: Cristina Akisino
usados como massa de manobra. Pesquisa iconográfica: Cesar Atti
Licenciamento de textos: Érica Brambila
Gerente de artes: Ricardo Borges
Coordenador de artes: José Maria de Oliveira
Produtor de artes: Narjara Lara
Reds, (EUA, 1981). Direção: Warren Beatty.
PARAMOUNT PICTURES/JRS/BARCLAYS
MERCANTILE IÅNDUSTRIAL FINANCE

Assistentes: Jacqueline Ortolan, Paula Regina Costa


O filme é baseado na vida de John Reed, um jornalista estaduniden- de Oliveira
Ilustrações: Alex Silva, Luigi Rocco, Rogerio Soud
se que escreveu o livro Os dez dias que abalaram o mundo, em que
Cartografia: Mario Yoshida, Portal de Mapas
narrou os primeiros dias da Revolução Russa. Ele era um socialista con- Tratamento de imagens: Emerson de Lima
victo e já havia feito a cobertura da Revolução Mexicana. O filme, que Produtor gráfico: Robson Cacau Alves
Projeto gráfico de miolo: Daniela Amaral,
ganhou o Oscar em várias categorias, mostra John Reed como um Talita Guedes
militante incansável procurando conhecer as revoluções de seu tem- Colaboraram para esta Edição do Material:
po, como jornalista e socialista, e lutando pelo movimento socialista Projeto Sistema SESI de Ensino
Gestão do Projeto: Thiago Brentano
em seu país. Coordenação do Projeto: Cristiane Queiroz
Coordenação Editorial: Simone Savarego, Rosiane
Botelho e Valdete Reis
Revolução, (EUA, 1985). Direção: Hugh Hudson.
ALBUM CINEMA/LATINSTOCK

Revisão: Juliana Souza


Al Pacino faz o papel de um cidadão do século XVII no meio da Guer- Diagramação: Lab 212
Capa: Lab 212
ra da Independência dos Estados Unidos (1775-1783). Enquanto nin- Ilustrações de capa: Aurielaki/Golden Sikorka/
guém é convocado para a guerra, ele e o filho se mantêm longe e Sentavio/Macrovector/Shutterstock
alheios ao conflito. Mas um dia o filho é convocado e tudo muda, pois Consultores
Coordenação: Dr. João Filocre
o pai pretende segui-lo onde ele estiver. De maneira bastante simples, Sociologia: Dra. Vera Alice Cardoso da Silva
o filme mostra como um movimento revolucionário atinge as pessoas SESI DN
de modos distintos. Superintendente: Rafael Esmeraldo Lucchesi
Ramacciotti
Diretor de Operações: Marcos Tadeu de Siqueira
Gerente Executivo de Educação: Sergio Gotti
Gerente de Educação Básica: Renata Maria Braga
Utopia e barbárie, (Brasil, 2005). Direção: Silvio Tendler.
SILVIO TENDLER

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Esse documentário aborda as transformações mundiais após a Segun- Todos os direitos reservados por SOMOS Educação S.A.
da Guerra Mundial. Documenta o desmonte das utopias da geração Avenida das Nações Unidas, 7221
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tirar os olhos do passado.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
O diretor percorreu 15 países, nos quais entrevistou personagens que (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
participaram ativamente de acontecimentos que marcaram a história Tomazi, Nelson Dacio
do século XX. Sistema de ensino ser : sociologia : 3º ano :
professor / Nelson Dacio Tomazi. — 3. ed. —
São Paulo : Ática, 2017.

1. Sociologia (Ensino médio) I. Título.

16-08236 CDD-301
ANOTAÇÕES Índices para catálogo sistemático:
1. Sociologia : Ensino médio 301
2016
ISBN 978 85 08 18424 8 (AL)
ISBN 978 85 08 18425 5 (PR)
3ª edição
1ª impressão

Impressão e acabamento

Uma publicação

42 Mudança social

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 42 21/11/16 20:17


APÊNDICE HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA: PRESSUPOSTOS, ORIGEM
E DESENVOLVIMENTO

AFP
Barricada na Comuna de Paris, em 1871.

Para compreender como a Sociologia nasceu e se desenvolveu, devemos analisar as transformações que ocorreram a partir
do século XIV, na Europa ocidental, marcando a passagem da sociedade feudal para a sociedade capitalista, ou a passagem
da sociedade medieval para a sociedade moderna. Por isso, vamos fazer uma pequena viagem histórica.
Em cada sociedade, em todos os tempos, os seres humanos elaboraram explicações religiosas, míticas, culturais, étnicas
etc. para as situações que viviam. No século XIX, a busca de outro tipo de explicação para os fenômenos da sociedade — a
explicação científica — deu origem à Sociologia. Por que essa “nova ciência” surgiu justamente nesse momento?
Para demonstrar como o pensamento social organizou-se historicamente e como a Sociologia estruturou o saber sobre a
sociedade humana, analisaremos neste apêndice alguns autores que se sobressaíram no processo de desenvolvimento da
disciplina.
Procuraremos demonstrar que, para entender as ideias de um autor e de determinada época, é fundamental contextualizá- SOCIOLOGIA
-las historicamente. Podemos dizer que os indivíduos e grupos concebem a sociedade em que vivem por meio de catego-
rias do pensamento que emergem das tradições, do universo religioso, das raízes filosóficas e do conhecimento científico.
Vamos, a seguir, contextualizar o surgimento da Sociologia.

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 43

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rias (sedas, especiarias e produtos tropicais, como açúcar, milho,
NOVAS FORMAS DE PENSAR A tabaco e café) entre as metrópoles e as colônias, bem como
SOCIEDADE entre os países europeus. Surgiu a possibilidade de um mercado
A Sociologia surgiu como um corpo de ideias a respeito muito mais amplo e com características mundiais.
do processo de constituição, consolidação e desenvolvimento A exploração de metais preciosos, principalmente na
da sociedade moderna. É fruto da Revolução Industrial e, nesse América, e o tráfico de escravos para suprir a mão de obra nas
sentido, é denominada “ciência da crise”, porque, com base nela, colônias deram grande impulso ao comércio, que não mais
procurou-se dar respostas às questões sociais propostas por essa ficou restrito aos mercadores das cidades-repúblicas (Vene-
revolução que, num primeiro momento, alterou a sociedade eu- za, Florença ou Flandres), passando também para as mãos de
ropeia e, depois, a maior parte do mundo. grandes comerciantes e de soberanos dos Estados nacionais em
Como todas as ciências, a Sociologia não despontou de re- formação na Europa.
pente ou da reflexão de algum autor iluminado. Constituiu-se Toda essa expansão territorial e comercial acelerou o desen-
com base em conhecimentos sobre a natureza e a sociedade volvimento da economia monetária, com a acumulação de capi-
que se desenvolveram a partir do século XIV, acompanhando as tais pela burguesia comercial, que, mais tarde, teve importância
mudanças que marcaram a transformação da sociedade feudal decisiva na gestação do processo de industrialização da Europa.
e a constituição da sociedade capitalista. Entre essas mudanças
podemos citar a expansão marítima europeia e a ampliação do A constituição do Estado moderno
comércio ultramarino, a formação dos Estados nacionais, a Refor- As mudanças que se operavam nas formas de produzir
ma protestante e o desenvolvimento científico e tecnológico. Elas riqueza só poderiam funcionar se ocorressem modificações na
são o pano de fundo do movimento intelectual que alterou pro- estrutura política. Assim, pouco a pouco se efetivou um pro-
fundamente as formas de explicar a natureza e a sociedade. Estão cesso de centralização da justiça, com a adoção de um novo
todas vinculadas e não podem ser entendidas de forma isolada. sistema jurídico fundamentado no Direito romano. Verificou-se
também a centralização das forças armadas, com a constituição
A expansão marítima de um exército permanente, e da administração, com o esta-
Com a circum-navegação da África e o descobrimento da belecimento de um aparato burocrático ordenado hierarquica-
rota para as Índias e para a América, a concepção de mundo mente. Um sistema de cobrança de impostos permitiu a arre-
dos europeus foi consideravelmente ampliada. A definição de cadação constante de recursos para manter todo esse aparato
um mundo territorialmente bem mais vasto, com outros povos, jurídico, burocrático e militar sob um único comando. Nascia,
outras culturas e outros modos de explicar as coisas, requereu dessa forma, o Estado moderno, que favoreceu a expansão das
a reformulação da maneira de ver e de pensar dos europeus. atividades vinculadas à produção têxtil, à mineração e à side-
Ao mesmo tempo que conheciam novos povos e novas rurgia, bem como ao comércio interno e externo.
culturas, os europeus instalavam colônias na África, na Ásia e na
América. Em razão disso, expandiu-se o comércio de mercado-

Cultivo de pimenta no sul da Índia.


Ilustração de manuscrito francês do
século XV atribuída ao Mestre de
Boucicaut (1390-1430).
BIBLIOTECA NACIONAL, PARIS, FRANÇA/THE BRIDGEMAN LIBRARY/GRUPO KEYSTONE

44 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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ANN ROAN PICTURE LIBRARY, LONDRES, INGLATERRA/AFP

Na representação de Gottfried, datada do século XVII,


Martinho Lutero queima em Wittemberg, Alemanha, a
bula Exsurge Domine, de 1520, por meio da qual o papa
Leão X ameaçou puni-lo com a excomunhão. No ano
seguinte, a bula Decet romanum pontificem consumaria a
excomunhão de Lutero e de seus seguidores.

Spinoza (1632-1677).
Os conhecimentos desses precursores alimentaram
outros pensadores, como John Locke (1632-1704), Gottfried
Leibniz (1646-1716) e Isaac Newton (1643-1727), que propu-
seram novos princípios para a compreensão da sociedade e
da natureza.

MUSEU DA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS, FLORENÇA, ITÁLIA/LEEMAGE


A Reforma protestante
No século XVI, assistiu-se também ao movimento que fica-
ria conhecido como Reforma protestante. Os reformistas ques-
tionavam as condutas do clero, a estrutura da Igreja católica e
a autoridade do Papa. Os líderes do movimento promoviam a
valorização do indivíduo ao pregar a livre leitura das Escrituras
Sagradas e dispensar a intermediação dos ministros da Igreja nas
práticas religiosas e nos assuntos relativos à fé.
A Reforma contribuiu assim para alimentar um movimen-
to de resistência à autoridade e à tradição que desembocaria
na Ilustração. Entre seus principais líderes figuram Martinho
Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564).

O desenvolvimento científico e Os pensadores europeus dos séculos XV a XVII buscaram


compreender os fenômenos da natureza e da sociedade por meio
tecnológico da observação e da experimentação. Na imagem, o astrônomo
A nova maneira de se relacionar com as coisas sagradas foi Galileu Galilei e o matemático Vincenzo Viviani, em tela de Tito Lessi
acompanhada de uma nova forma de analisar o universo e a (1858-1917).
vida em sociedade. A razão passou a ser considerada elemento
essencial para se conhecer o mundo; com base nela, as pessoas As transformações no século XVIII
se consideraram livres para julgar, avaliar, pensar e emitir opi- No final do século XVIII, na maioria dos países europeus, a
niões sem se submeter a nenhuma autoridade transcendente burguesia comercial, formada basicamente por comerciantes e
ou divina. banqueiros, constituía uma classe poderosa, em razão, na maior
A análise do universo e da vida em sociedade com base no parte das vezes, das ligações econômicas que mantinha com
conhecimento racional, fundado na observação e na experimen- as monarquias. Além de sustentar o comércio entre os países
tação, difundiu-se de maneira lenta, entre os séculos XV e XVII. europeus, a burguesia europeia lançava seus tentáculos a vários
Os pensadores que adotaram essa forma de análise enfrentaram pontos do mundo, até onde pudesse chegar, comprando e
o dogmatismo e a autoridade da Igreja. Por meio do Concílio de vendendo mercadorias.
Trento (1545-1563) e dos processos da Inquisição, por exemplo, O capital mercantil estendia-se também a outro ramo
os membros do clero procuraram impedir toda e qualquer ma- de atividade: gradativamente se organizava a produção ma-
nifestação que pudesse pôr em dúvida a autoridade eclesiástica, nufatureira. A compra de matérias-primas e a organização da SOCIOLOGIA
fosse no campo da fé, fosse no das explicações que se propu- produção, por meio do trabalho domiciliar ou do trabalho em
nham para a sociedade e a natureza. oficinas, levavam ao desenvolvimento de um novo processo
Os principais representantes do pensamento racional nos produtivo em contraposição ao das corporações de ofício.
séculos XV a XVII foram Nicolau Maquiavel (1469-1527), Eras- Os organizadores das manufaturas passaram a se interes-
mo de Rotterdam (1466-1536), Nicolau Copérnico (1473-1543), sar cada vez mais pelo aperfeiçoamento das técnicas de pro-
Galileu Galilei (1564--1642), Thomas Hobbes (1588-1679), Fran- dução, a fim de produzir mais com menos gente e aumentar
cis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650) e Baruch significativamente seus lucros. Para tanto, procuraram financiar

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 45

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a invenção de máquinas que pudessem ser utilizadas no processo atividades era realizada com a utilização do trabalho escravo
produtivo. ou servil. Esses elementos, conjugados, asseguraram as bases
Com a invenção das máquinas de tecer e de descaroçar do processo de acumulação necessária para a expansão da in-
algodão e a aplicação industrial da máquina a vapor e de outros dústria na Europa.
tantos inventos destinados a aumentar a produtividade do tra- Essas mudanças, somadas à herança cultural e intelectual
balho, desenvolveu-se o fenômeno que veio a ser chamado de do século XVII, definiram o século XVIII como explosivo. Se no
maquinofatura. O trabalho que as pessoas faziam com as mãos século anterior a Revolução Inglesa determinou novas formas
ou com ferramentas passava, a partir de então, a ser realizado de organização política, no século XVIII a Revolução Americana
por máquinas, elevando muito o volume da produção de mer- e a Francesa alteraram o quadro político ocidental e serviram de
cadorias. exemplo e parâmetro para as revoluções políticas posteriores.
A utilização da máquina a vapor, que podia mover outras As transformações na esfera da produção, a emergên-
tantas, impulsionou a indústria construtora de máquinas e, con- cia de novas formas de organização política e a exigência da
sequentemente, a indústria voltada para a produção de ferro e, representação popular conferiram características muito es-
posteriormente, de aço. pecíficas a esse século, em que pensadores como Charles de
Nesse contexto de profundas alterações no processo pro- Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Denis Dide-
dutivo, no qual a utilização do trabalho mecânico era cada vez rot (1713-1784), Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), David
mais frequente, o trabalho artesanal continuou a existir. A ma- Hume (1711-1776), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Adam
quinofatura se completou com o trabalho assalariado, no qual Smith (1723-1790) e Immanuel Kant (1724-1804) procuraram,
eram utilizadas, numa escala crescente, a mão de obra feminina por caminhos às vezes divergentes, refletir sobre a realidade,
e a infantil. na tentativa de explicá-la.
Longe da Europa, explorava-se ouro no Brasil, prata no Mé-
xico e algodão nos Estados Unidos e na Índia. A maioria dessas
MUSEU DO LOUVRE, PARIS, FRANÇA/ROGER VIOLLET/AFP

Na tela A liberdade guiando o povo (1830), o pintor Eugène Delacroix representou a liberdade como uma mulher que
conduz o povo à luta em defesa da República, simbolizada pela bandeira tricolor. O regime republicano foi estabelecido
na França em 1792, em meio ao processo revolucionário que levou a burguesia ao poder.

46 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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úteis e independen-

LEEMAGE/COLEÇÃO PARTICULAR
A CONSOLIDAÇÃO DA tes (1816-1817), O
SOCIEDADE CAPITALISTA E A organizador (1819),
CIÊNCIA DA SOCIEDADE O sistema industrial
No século XIX, ocorreram transformações impulsionadas (1821-1823), O ca-
pela emergência de novas fontes energéticas (eletricidade e pe- tecismo dos indus-
tróleo), por novos ramos industriais e pela alteração profunda triais (1822-1824) e
nos processos produtivos, com a introdução de novas máquinas O novo cristianismo
e equipamentos. (1824).
Inauguração da iluminação elétrica no
Depois de 300 anos de exploração por parte das nações S aint-Simon cais Vitória, de Londres, no século XIX.
europeias, iniciou-se, principalmente nas colônias latino-ameri- influenciou Augus- Ilustração de Jules David, de 1879.
canas, um processo intenso de lutas pela independência. te Comte, Émile
É no século XIX, já com a consolidação do sistema capitalis- Durkheim (por meio de algumas obras que tratam da organi-
ta na Europa, que se encontra a herança intelectual mais próxima zação de uma nova sociedade e da formulação de uma ciência
da qual surgirá a Sociologia como ciência particular. No início da sociedade) e Karl Marx (que considerava Saint-Simon um
desse século, as ideias do Conde de Saint-Simon (1760-1825), de reformador social e um socialista utópico).
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), de David Ricardo Leia a seguir uma síntese de suas principais ideias.
(1772-1823) e de Charles Darwin (1809-1882), entre outros, fo- Concepção de história
ram o elo para que Alexis de Tocqueville (1805-1859), Auguste
Na visão de Saint-Simon, a história marcha através de uma
Comte (1798-1857), Karl Marx (1818-1883) e Herbert Spencer
série de afirmações e negações que dão lugar a momentos mais
(1820-1903) desenvolvessem reflexões sobre a sociedade de seu
elevados. Ele defendia a ideia de que o apogeu de um sistema
tempo.
coincide com o início de sua decadência. Para ele, existiram três
Esses pensadores lançaram as bases do pensamento socio-
grandes momentos na história ocidental, divididos em épocas
lógico e de duas grandes tradições — a positivista e a socialista
orgânicas (assentadas em crenças e valores bem estabelecidos)
— que muito influenciaram o desenvolvimento da Sociologia
e críticas (momentos de crise). A primeira época orgânica foi
no Brasil. Vamos estudar alguns deles, começando por um autor
a Antiguidade greco-romana e a primeira época crítica, a das
que exerceu influência sobre as duas vertentes mencionadas: o
invasões “bárbaras”. A segunda época orgânica foi a da Idade
Conde de Saint-Simon.
Média e a segunda época crítica compreendeu o Renascimento
Saint-Simon e a nova ciência da e a Revolução Francesa. A terceira época orgânica seria a que
ele vislumbrava: a do industrialismo.
sociedade
Claude-Henri de Rouvroy — o Conde de Saint-Simon As classes sociais
— era descendente de uma família aristocrática muito antiga Em todas as épocas históricas houve uma divisão entre
na França e, por isso, teve uma educação aprimorada. Aos 18 dominantes e dominados, segundo Saint-Simon, e a história da
anos, juntou-se ao exército, do qual chegou a se tornar coronel. humanidade se explicaria pelas contradições entre essas cama-
Durante sua carreira militar, participou da luta pela indepen- das sociais. Ele não pensava em uma sociedade igualitária, pois
dência dos Estados Unidos. imaginava haver a possibilidade de uma harmonização entre as
Saint-Simon defendeu a Revolução Francesa de 1789, pois camadas sociais. Afirmava que, na sociedade francesa em par-
entusiasmou-se com os ideais de liberdade, igualdade e fraterni- ticular, existiam duas grandes camadas: a dos ociosos (a realeza,
dade. Além disso, acreditava que o Antigo Regime estava corrom- a aristocracia e o clero, os militares e a burocracia que adminis-
pido e não podia durar muito mais. Não aceitava, entretanto, a trava a estrutura dos que nada produziam) e a dos produtores
violência e a destruição que o movimento revolucionário infligia. ou industriais (cientistas, engenheiros, médicos, banqueiros,
No início do século XIX, procurou formular uma filosofia da comerciantes, industriais, artesãos, agricultores, trabalhadores
ciência capaz de unificar todos os fenômenos naturais e sociais braçais, enfim, todos os cidadãos úteis para o desenvolvimento
e propôs a reorganização das sociedades europeias tendo por da França).
fundamento a ciência e a indústria.
Novos dirigentes
No fim da vida, Saint-Simon formulou as bases de uma for-
SOCIOLOGIA
ma de religiosidade — um cristianismo mais dinâmico — que De acordo com Saint-Simon, para que a sociedade pós-re-
teria por objetivo fundamental a elevação física e moral da classe volucionária na França se firmasse, seria necessário que a ciência
mais numerosa e pobre da sociedade. tomasse o lugar da autoridade religiosa da Igreja, formando-se
Suas obras mais importantes, do ponto de vista socioló- assim uma nova elite: a científica. A ciência deveria substituir
gico, são: Reorganização da sociedade europeia (com Augustin a religião como força de coesão. Os cientistas substituiriam os
Thierry, 1814), A indústria ou discussões políticas, morais e filo- clérigos e os industriais substituiriam os senhores feudais. Os
sóficas no interesse de todos os homens livres e trabalhadores cientistas porque estudam a sociedade e os industriais porque

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pela prática sabem o que funciona melhor. A aliança dos cientis- tipologias para explicar a sociedade. Suas principais obras são:
tas com os industriais conformaria a nova classe dirigente. Curso de filosofia positiva (1830-1842), Discurso sobre o espírito
Essa classe dirigente deveria seguir uma “ciência da socie- positivo (1848), Catecismo positivista (1852) e Sistema de política
dade”, que teria como principal tarefa descobrir as leis do desen- positiva (1854).
volvimento social, pois elas indicariam o caminho que se deveria
seguir para que a sociedade alcançasse o progresso continuado.

MUSEU CARNAVALET, PARIS, FRANÇA/THE BRIDGE-


MAN LIBRARY/GRUPO KEYSTONE
Auguste Comte e a tradição
positivista
Auguste Comte nasceu em Montpellier, na França, em 19 de
janeiro de 1798. Com 16 anos de idade, ingressou na Escola Poli-
técnica de Paris, fato que teria significativa influência na orientação
posterior de seu pensamento.
De 1817 a 1824, foi secretário do Conde de Saint-Simon.
Comte declarou que, com Saint-Simon, aprendeu muitas coisas
que jamais encontraria nos livros e que, no pouco tempo em
que conviveu com o conde, fez mais progressos do que faria em
muitos anos, se estivesse sozinho.
Toda a obra de Comte está permeada pelos acontecimentos
que ocorreram após a Revolução Francesa de 1789. Ele defendeu Festa nas Tulherias em comemoração à restauração da monarquia na
parte dos princípios revolucionários e criticou a restauração da França, em 1815. Auguste Comte era contra o retorno de Luís XVIII ao
monarquia, preocupando-se fundamentalmente em reorganizar trono: em sua concepção, a sociedade industrial que emergia requeria
um governo fundado na razão. Ilustração de autoria desconhecida.
a sociedade, que, no seu entender, estava em ebulição e mergu-
lhada no caos. Para Comte, a desordem e a anarquia imperavam
em virtude da confusão de princípios (metafísicos e teológicos), A tradição socialista: Karl Marx e
que não se adequavam à sociedade industrial em expansão. Era, Friedrich Engels
portanto, necessário superar esse estado de coisas, usando a ra- Karl Marx nasceu em Tréveris, na antiga Prússia, em 1818,
zão como fundamento da nova sociedade. e, em 1830, ingressou no Liceu Friedrich Wilhelm, nessa mesma
Propôs, então, a mudança da sociedade por meio da refor- cidade. Anos depois, foi cursar Direito na Universidade de Bonn,
ma intelectual plena das pessoas. De acordo com o pensador, transferindo-se para Berlim em seguida. Pouco a pouco, entre-
com a modificação do pensamento humano, por meio do méto- tanto, seus interesses migraram para a Filosofia, área na qual
do científico, que ele chamava de “filosofia positiva”, haveria uma defendeu, em 1841, a tese de doutorado A diferença da filosofia
reforma das instituições. da natureza em Demócrito e Epicuro.
Com a proposta do estudo da sociedade por meio da aná- Sua vida universitária foi marcada pelo debate político e
lise de seus processos e estruturas, e da reforma prática das ins- intelectual influenciado pelo pensamento de Ludwig Feuerbach
tituições, Comte criou uma nova ciência, à qual deu o nome de (1804-1872) e, principalmente, pelo de Georg Wilhelm Friedrich
“física social”, passando a chamá-la posteriormente de Sociologia. Hegel (1770-1831).
A Sociologia representava, para Comte, o coroamento da Em 1842, passou a escrever para A Gazeta Renana, jor-
evolução do conhecimento, mediante o emprego de métodos nal da província de Colônia, do qual se tornou editor-chefe. O
utilizados por outras ciências, que buscavam conhecer os fenô- jornal, que criticava o poder prussiano, foi fechado em 1843, e
menos constantes e repetitivos da natureza: a observação, a expe- Marx se viu desempregado.
rimentação, a comparação e a classificação. De acordo com esse Ao perder o empre- ULLSTEIN BILD

pensador, a Sociologia, como as ciências naturais, deve sempre go, Marx mudou-se para
procurar a reconciliação entre os aspectos estáticos e os dinâmi- Paris, na França. Ali escre-
cos do mundo natural ou, no caso da sociedade humana, entre veu, em 1844, os Manus-
a ordem e o progresso. critos econômico-filosóficos
O lema da “filosofia positiva” proposta por Comte era “co- (só publicados em 1932).
nhecer para prever, prever para prover”, ou seja, o conhecimento Entre 1845 e 1847, exilou-
é necessário para fazer previsões e também para solucionar pos- -se em Bruxelas, na Bélgica,
síveis problemas. onde escreveu A ideologia
A influência de Comte no desenvolvimento da Sociologia alemã (em parceria com
foi marcante, sobretudo, na escola francesa, evidenciando-se
em Émile Durkheim e seus contemporâneos e seguidores. Seu
Marx em representação
pensamento esteve presente em muitas das tentativas de criar de autoria desconhecida.

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Friedrich Engels, entre riam no mundo ocidental, principalmente na esfera da produ-
MUSEU KARL MARX, TRIER, ALEMANHA/THE ART ARCHI-
VE/ALFREDO DAGLI ORTI/AFP
1845 e 1846) e Misé- ção industrial, houve um crescimento expressivo no número
ria da filosofia (1847), de trabalhadores industriais urbanos, com uma consequência
obra na qual criticou evidente: precariedade da vida dos operários nas cidades.
o filósofo Pierre-Joseph As condições de trabalho no interior das fábricas eram
Proudhon (1809-1865). péssimas. Os empregados eram superexplorados, alimentavam-
Em 1848, Marx -se mal e trabalhavam em ambientes insalubres. Para enfrentar
foi expulso da Bélgica essa situação e tentar modificá-la, os trabalhadores passaram a
e retornou a Colônia, se organizar em associações e sindicatos e a promover movi-
na Alemanha, sempre mentos de reivindicação. Desenvolveu-se, então, uma discussão
pensando na possibili- das condições sociais, políticas e econômicas para se definirem
dade de uma mudança as possibilidades de intervenção nessa realidade.
estrutural em sua terra Desde o início do século XIX, muitos pensadores discu-
natal. Isso, entretanto, tiram essas questões, nas perspectivas socialista e anarquista.
não aconteceu e Marx Na Inglaterra podem ser citados, entre outros: William God-
Friedrich Engels. Fotografia de 1891. foi expulso da Alema- win (1756-1836), Thomas Spence (1750-1814), Thomas Paine
nha em 1849, ano em (1737-1809), Robert Owen (1771-1858) e Thomas Hodgkin
que migrou para Londres, na Inglaterra, onde permaneceu até (1787-1866). Na França, destacaram-se Étienne Cabet (1788-
o fim da vida. 1856), Flora Tristan (1803-1844), Charles Fourier (1772-1837) e
Na Inglaterra, desenvolveu pesquisas e concluiu seu maior Pierre-Joseph Proudhon.
trabalho: O capital: crítica da economia política. O primeiro volu- Marx e Engels levaram em conta esses pensadores, deba-
me dessa obra foi publicado em 1867; os outros três, em 1885, 1894 tendo com alguns contemporâneos e os criticando. Além disso,
e 1905, após a morte de Marx. incorporaram a tradição da economia clássica inglesa, presente
Quando trabalhava no jornal A Gazeta Renana, Marx principalmente nas obras de Adam Smith e de David Ricardo.
conheceu Friedrich Engels (1820-1895), seu parceiro intelec- Pode-se dizer, portanto, que Marx e Engels desenvolveram seu
tual. Filho mais velho de um rico industrial, Engels nasceu em trabalho com base na análise crítica da economia política inglesa,
Bramen, na Alemanha. Com 22 anos, foi enviado pelos pais a do socialismo utópico francês e da filosofia alemã.
Manchester, na Inglaterra, para trabalhar nas fábricas da família. Esses dois autores não buscavam definir uma ciência es-
Engels ficou impressionado com a miséria na qual viviam os pecífica para estudar a sociedade (como a Sociologia, para Au-
trabalhadores das fábricas inglesas. guste Comte) ou situar seu trabalho em um campo científico
Em 1844, decidiu voltar para a Alemanha, onde publicou, particular. Em alguns escritos, Marx afirmou que a História seria
em 1845, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Entre a ciência que mais se aproximava de suas preocupações, por
outros importantes trabalhos que desenvolveu, vários foram abarcar as múltiplas dimensões da sociedade, a qual deveria
em coautoria com Karl Marx. ser analisada na totalidade, não havendo uma separação rígida
entre os aspectos sociais, econômicos, políticos, ideológicos,
O contexto histórico e a obra de Marx e
religiosos, culturais etc.
Engels
Para situar a obra de Marx e Engels,
é necessário conhecer um pouco do que
estava acontecendo em meados do sécu-
lo XIX. Com as transformações que ocor-

SOCIOLOGIA

Fábrica de ferramentas Richard


Hartmann, em Chemnitz, Alemanha,
em 1878. Gravura de autoria
desconhecida.

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 49

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O objetivo de Marx e Engels era estudar criticamente a so- Com base no trabalho de Marx e Engels, muitos auto-
ciedade capitalista com base em seus princípios constitutivos e res desenvolveram estudos acadêmicos em vários campos do
em seu desenvolvimento, visando dotar a classe trabalhadora conhecimento. Podemos citar, por exemplo, Georg Lukács
de uma análise política da sociedade de seu tempo. Assim, a (1885-1971), Theodor Adorno (1903-1969), Walter Benjamin
tradição socialista nascida da luta dos trabalhadores, muitos anos (1892-1940), Henri Lefebvre (1901-1991), Lucien Goldman
antes e em situações diferentes, tem como expressão intelectual (1913-1970), Louis Althusser (1918-1990), Nikos Poulantzas
o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. (1936-1979), Edward Palmer Thompson (1924-1993) e Eric
Para entender as concepções fundamentais de Marx e En- Hobsbawm (1917-2012). O pensamento de Marx e Engels con-
gels é necessário fazer a conexão entre as lutas da classe traba- tinua, assim, presente em todo o mundo, com múltiplas ten-
lhadora, suas aspirações e as ideias revolucionárias que estavam dências e variações, sempre gerando controvérsias.
presentes no século XIX na Europa. Para eles, o conhecimento
Capa de edição

BOITEMPO
científico da realidade só tem sentido quando visa à transforma- brasileira de 2005 do
ção dessa mesma realidade. A separação entre teoria e prática Manifesto comunista,
não é discutida, pois a “verdade histórica” não é algo abstrato e com caricatura de Marx
que se define teoricamente; sua verificação está na prática. e Engels assinada por
Maringoni. Lançado
Apesar de haver algumas diferenças em seus escritos, os inicialmente em 1848,
elementos essenciais do pensamento de Marx e Engels podem com o título Manifesto
ser assim sintetizados: do partido comunista, o
historicidade das ações humanas — crítica ao idealismo ale- livro é considerado um
dos tratados políticos
mão; com maior influência
divisão social do trabalho e o surgimento das classes sociais na sociedade de seu
— a luta de classes; tempo, difundindo
o fetichismo da mercadoria e o processo de alienação; uma concepção de
história que teria
crítica à economia política e ao capitalismo; presença marcante
transformação social e revolução; nas universidades e
utopia — sociedade comunista. no desenvolvimento
A obra desses dois autores é muito vasta, mas podemos do pensamento
sociológico.
destacar alguns livros e escritos, além dos que já citamos: A sagra-
da família (Karl Marx e Friedrich Engels, 1845), Manifesto comu-
nista (Karl Marx e Friedrich Engels, 1848), O 18 Brumário de Luís DESENVOLVIMENTO DA
Bonaparte (Karl Marx, 1852), Contribuição à crítica da economia
política (Karl Marx, 1857). SOCIOLOGIA
Essa obra não ficou vinculada estritamente aos movimen- A partir do último quartel do século XIX, a Sociologia
tos sociais dos trabalhadores. Pouco a pouco foi introduzida como saber acadêmico, isto é, universitário, desenvolveu-se es-
nas universidades como parte do estudo em diferentes áreas pecialmente na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. Em
do conhecimento. Estudiosos de Filosofia, Sociologia, Ciência outros lugares também se desenvolveu um saber sociológico,
Política, Economia, História e Geografia, entre outras áreas, fo- mas não tão vigoroso nem tão amplo quanto nesses países.
ram influenciados por ela. Na Sociologia, como afirma Irving M.
Zeitlin, no livro Ideología y teoría sociológica, tanto Max Weber A Sociologia na França
quanto Émile Durkheim fizeram em suas obras um debate com No início do século XX, a França ainda estava sob a sombra
as ideias de Karl Marx. da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e de seus desdobramen-
Pelas análises da sociedade capitalista de seu tempo e a tos. A derrota nessa guerra e o aniquilamento da Comuna de
repercussão que tiveram em todo o mundo, principalmente no Paris deixaram marcas profundas na sociedade francesa, deman-
século XX, nos movimentos sociais e nas universidades, Marx dando a reformulação de sua estrutura produtiva, tecnológica e
e Engels são considerados autores clássicos da Sociologia. No educacional.
campo dessa disciplina, porém, o pensamento deles ficou um A chamada Terceira República Francesa (1871-1940),
pouco restrito, pois perdeu aquela relação entre teoria e prática declarada durante a Guerra Franco-Prussiana, caracterizou-se
(práxis), ou seja, entre a análise crítica e a prática revolucionária. pela radicalização das posições políticas e foi marcada por es-
Essa relação esteve presente, por exemplo, na vida e na obra cândalos e crises políticas. Durante esse período, a miséria e o
dos russos Vladimir Ilitch Ulianov, conhecido como Lênin (1870- desemprego conviveram com uma grande expansão industrial,
1924), e Leon D. Bronstein, conhecido como Trotsky (1879-1940), ocasionando o fortalecimento das associações e organizações
da alemã Rosa Luxemburgo (1871-1919) e do italiano Antonio de trabalhadores e, consequentemente, a eclosão de greves e
Gramsci (1891-1937), que tiveram significativa influência no mo- o aguçamento das lutas sociais, campo propício ao desenvolvi-
vimento operário do século XX. mento das teorias socialistas.

50 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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Muitas inovações criminalité comparée (1890), La philosophie pénale (1890), Les
BIANCHETTI/IEEMAGE/COLEÇÃO PARTICULAR tecnológicas propi- lois de l’imitation (1890), Les transformations du droit: étude so-
ciaram, nesse período, ciologique (1891), Monadologie et sociologie (1893), La logique
uma expansão significa- sociale (1895), Fragment d’histoire future (1896), L’opposition
tiva na esfera da produ- universelle: essai d’une théorie des contraires (1897), Écrits de
ção, e invenções como psychologie sociale (1898), Les lois sociales: esquisse d’une socio-
o telégrafo, o avião, o logie (1898), L’opinion et la foule (1901) e La psychologie écono-
cinema e o automóvel mique (1902-1903).
transformaram o am-

EDITORA MARTINS FONTES


Émile Durkheim
biente social.
As inovações e Émile Durkheim nas-
os problemas da socie- ceu em Épinal, em 15 de abril
dade capitalista, que de 1858, e morreu em Paris,
permeavam a vida dos em 1917. Em 1879, ingressou
franceses, levaram à na Escola Normal Superior,
proposição de explica- na qual teve professores de
ções para o que estava reconhecida competência,
acontecendo. como Foustel de Coulanges
Ilustração do Massacre de Fourmies, (1830-1889), historiador de
ostensiva ação policial contra grevistas na Nessa época,
cidade industrial de Fourmies, no norte destacaram-se no ce- renome na França, e recebeu
da França, em 1o. de maio de 1891, em nário intelectual alguns influência de filósofos neo-
publicação francesa datada de 17 de maio
pensadores que parti- kantianos como Émile Bou-
de 1891. troux (1845-1921) e Charles
ciparam ativamente da
institucionalização da Renouvier (1815-1903). Capa do livro Da divisão do

Sociologia na França. Destacam-se, entre outros, Frédéric Le Play Em 1882 graduou-se trabalho social, de Émile Durkheim,
em edição de 2010. Nessa obra,
(1806-1882), René Worms (1869-1926), Jean-Gabriel de Tarde em Filosofia. A fim de am- o autor avalia positivamente
(1843-1904) e Émile Durkheim (1858-1917). pliar sua formação, viajou a crescente especialização do
Leia a seguir algumas informações sobre esses dois últimos para a Alemanha em 1885, trabalho, argumentando que ela
onde permaneceu durante cria solidariedade e propicia a
pensadores. coesão social.
um ano. Lá, teve aulas com
Jean-Gabriel de Tarde
Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920) e conheceu as obras
De família nobre, Jean-Gabriel de Tarde nasceu na cidade
de Wilhelm Dilthey (1833-1911), de Ferdinand Tönnies (1855-
francesa de Sarlat em 1843 e morreu em Paris em 1904. Obteve o
1936) e de George Simmel (1858-1918).
bacharelado em Letras em 1860 e em Direito em 1867. A partir de
Em 1887, tornou-se professor na Faculdade de Letras de
então seguiu carreira na magistratura. Nessa posição desenvolveu
Bordeaux, onde lecionou Pedagogia e Ciência Social até 1902.
investigações sobre criminologia, publicando vários artigos em
Em 1896, fundou a revista L’année Sociologique, em torno da
revistas da época. Posteriormente foi designado diretor da seção
qual se congregaram jovens colaboradores que posteriormente
de estatística criminal do Ministério da Justiça em Paris, cargo
dariam continuidade a seu trabalho. Em 1906 assumiu a cadeira
que conservou por toda a vida. Paralelamente, manteve intenso
de Ciência da Educação na Universidade de Sorbonne e, em
trabalho de investigação nas ciências sociais e humanas. Foi um
1910, conseguiu transformá-la em cátedra de Sociologia.
dos pensadores mais influentes na França de seu tempo.
De 1893 a 1899, Durkheim publicou três de seus principais
Para Jean-Gabriel de Tarde, do ponto de vista sociológico,
livros — Da divisão do trabalho social (1893), As regras do méto-
não há vida social sem imitação. Em sua definição, sociedade é
do sociológico (1895) e O suicídio (1897). Nessas obras e também
uma coleção de seres com tendência a imitar uns aos outros ou
em As formas elementares da vida religiosa, de 1912, conforme o
que, sem se imitar, se parecem, com qualidades comuns que são
sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983), a argumentação
cópias antigas de um mesmo modelo. Assim, a imitação seria o
de Durkheim segue um roteiro preciso:
processo elementar de construção do social, pois ela é a ação de
Como ponto de partida, define-se o fenômeno a ser analisado.
SOCIOLOGIA
um indivíduo sobre outro e de uma subjetividade sobre outra. As
A seguir, refutam-se todas as interpretações anteriores.
oposições e adaptações representariam os processos de criação
Por último, desenvolve-se uma explicação propriamente so-
e transformação social.
ciológica do fenômeno considerado.
As obras de Jean-Gabriel de Tarde vêm sendo objeto de
Entre outras obras expressivas de Émile Durkheim, publi-
reedições e comentários, pois sua temática, ao discutir a imitação,
cadas por ele ou organizadas e publicadas posteriormente por
a invenção, o público, as multidões e os meios de comunicação,
seus alunos e seguidores, encontram-se Educação e sociologia
mostra-se de uma atualidade significativa. As principais são: La
(1905), Sociologia e filosofia (1924), A educação moral (1902) e

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 51

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Lições de sociologia (1912). Nikos Poulantzas (1936-1979), nascido na Grécia, e Michael
Émile Durkheim tornou-se a grande expressão da Sociologia Löwy (1938-), nascido no Brasil.
francesa. A Sociologia foi para ele uma vocação pessoal e uma Entre os sociólogos franceses do século XX das mais va-
missão política, já que a concebia como uma ciência que permi- riadas tendências, podem ser citados: Georges Gurvitch (1894-
te a compreensão da crise social e moral da sociedade francesa 1965), Georges Friedman (1902-1977), Raymond Aron (1905-
e indica os remédios para restabelecer a solidariedade entre os 1983), Roger Bastide (1898-1974), Jean Duvignaud (1921-2007),
membros dessa sociedade. Michel Crozier (1922-2013), Alain Touraine (1925-), Pierre Bour-
A principal preocupação de Durkheim, já presente em dieu (1930-2002), Raymond Boudon (1934-2013) e Michel Maf-
Saint-Simon, foi dar um estatuto científico à Sociologia. Para isso, fesoli (1944-).
formulou alguns parâmetros lógicos importantes: Pela importância da obra de Pierre Bourdieu nos estudos
Os fatos sociais só podem ser explicados por outro fato social. sociológicos desenvolvidos no Brasil, seguem algumas informa-
Os fatos sociais devem ser analisados como se fossem coisas, isto ções sobre esse sociólogo francês.
é, em sua materialidade. Pierre Bourdieu nasceu em um vilarejo no sudoeste da
É necessário abandonar os preconceitos ao analisar os fatos so- França. Em 1951, ingressou na Faculdade de Letras, em Paris, e
ciais. na Escola Normal Superior. Em 1954, graduou-se em Filosofia,
Atribuindo os males da sociedade de seu tempo a certa assumindo a função de professor em Moulins. Na mesma dé-
fragilidade moral (ideias, normas e valores), Durkheim propôs a cada, foi enviado à Argélia, então colônia francesa, para prestar
formulação de novas concepções morais capazes de guiar a con- serviço militar. Em 1958, assumiu o cargo de professor assistente
duta dos indivíduos. De acordo com ele, a ciência, e em especial na Faculdade de Letras em Argel. Nesse período, iniciou uma
a Sociologia, por meio de suas investigações, poderia indicar os pesquisa sobre a influência da colonização francesa na socie-
caminhos e as soluções, pois os valores morais constituiriam ele- dade cabila.
mentos eficazes para neutralizar as crises econômicas e políticas, De volta à França, em 1960 tornou-se assistente do filósofo
mediante a constituição de relações estáveis entre as pessoas. As- Raymond Aron, na Faculdade de Letras de Paris. Na década de
sim, o elemento fundamental seria a integração social, assegurada 1970, atuou como professor em importantes instituições es-
pela consciência coletiva e pela solidariedade, que permitiriam a trangeiras, como as universidades de Harvard e Chicago, nos
articulação funcional de todos os elementos da realidade social. Estados Unidos, e o Instituto Max Planck, em Berlim, na Ale-
Durkheim preocupou-se também com o processo educa- manha. Em 1982, tornou-se docente da Escola de Sociologia do
cional e com a contribuição da Sociologia para que a educação Collège de France, instituição que o consagrou como um dos
francesa se desvencilhasse das amarras religiosas existentes em maiores intelectuais de seu tempo.
seu tempo. Suas análises da questão educacional estão relaciona- Bourdieu desenvolveu estudos em diversas áreas do co-
das com a possibilidade de se instituir uma educação de cunho nhecimento humano, discutindo temas como educação, cul-
laico e republicano, em contraposição à presença religiosa e mo- tura, literatura, arte, mídia, linguística e política. Sua discussão
narquista no sistema de ensino francês. sociológica centralizou-se na tarefa de desvendar os mecanis-
Vinculada à perspectiva de transformação da educação mos da reprodução social que legitimam as diversas formas de
francesa e a uma nova moral burguesa, a Sociologia como dis- dominação, contribuindo significativamente para a formação
ciplina foi inicialmente ministrada nos cursos secundários e só do pensamento sociológico contemporâneo.
depois nos universitários. Tendo a educação como constante Desenvolveu também conceitos específicos, como o de vio-
objeto de estudo em sua vida acadêmica, Durkheim refletiu não lência simbólica, por meio da qual a classe dominante impõe sua
só sobre a história da organização educacional francesa, como cultura aos do-
também sobre os conteúdos ministrados. minados e legi- PIERRE VERDY/AFP
tima suas forças,
A Sociologia na França depois de Durkheim
que expressam
Os principais continuadores do trabalho de Durkheim seus gostos de
foram Marcel Mauss (1872-1950), Maurice Halbwachs (1877- classe e seu estilo
1945), François Simiand (1873-1935), Paul Fauconnet (1874-1938) de vida, gerando
e Célestin Bouglé (1870-1940). Todos eles partiram de pontos o que ele define
de vista durkheimianos, mas não seguiram necessariamente os como distinção
pressupostos e as posições do mestre e professor. Desenvolve- social.
ram pesquisas próprias e até questionaram Durkheim em muitos Analisan-
pontos. Halbwachs, por exemplo, não aceitava a análise do pen- do a Sociologia
sador sobre o suicídio. como disciplina,
Na Sociologia francesa de orientação marxista, destacam-se Bourdieu lançou
Henri Lefebvre (1901-1991), Lucien Goldman (1913-1970), nasci- um olhar crítico Pierre Bourdieu por ocasião do lançamento de sua
do na Romênia, Louis Althusser (1918-1990), nascido na Argélia, sobre a forma- obra A dominação masculina, de 1998.

52 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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ção do sociólogo como censor e detentor de um discurso de de terra, tendo em vista uma transição mais adequada aos seus
verdade sobre o mundo social. Destacou-se ainda por se posi- interesses. A burguesia industrial não estava preocupada em
cionar com muita clareza contra o liberalismo e a globalização alterar de modo significativo a estrutura fundiária e os grandes
capitalista. proprietários, que se encastelaram na burocracia estatal, não
Entre as obras de Bourdieu traduzidas no Brasil, destacamos: permitiram a formulação de uma legislação trabalhista que pre-
A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino judicasse os interesses da burguesia. Assim se fez uma mudança
(1970), A economia das trocas simbólicas (1974), A distinção: crí- “por cima”, sem levar em conta os interesses dos trabalhadores
tica social do julgamento (1979), O poder simbólico (1989), A misé- urbanos ou rurais.
ria do mundo (1993), Escritos de educação (organizado por Maria Vamos focalizar a seguir dois importantes sociólogos ale-
Alice Nogueira e Afrânio Catani, 1998), A dominação masculina mães: Georg Simmel e Max Weber. Depois, trataremos breve-
(1998) e Esboço de uma autoanálise (2004). mente da Escola de Frankfurt.

A Sociologia na Alemanha Georg Simmel


Na Alemanha, a Sociologia foi profundamente influen- Nascido em Berlim, Georg Simmel é um pensador difícil
ciada pela discussão filosófica, histórica e metodológica que de enquadrar em alguma tendência ou campo específico do
se desenvolveu entre o final do século XIX e o início do século conhecimento. Vamos ler um trecho do que escreveu sobre ele
XX. Em seus fundamentos encontra-se o pensamento de vários o sociólogo brasileiro Leopoldo Waizbort:
filósofos, como Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Wi- Quem tentar esboçar a fisionomia de Georg Simmel
lhelm Joseph von Schelling (1775-1854), Friedrich Daniel Ernst (1858-1918), logo se encontra em meio a dificuldades que
Schleiermacher (1768-1834) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel são características próprias daquilo que se quer apreender.
(1770-1831). Simmel sempre postulou para seu próprio pensamento
O representante mais expressivo da Sociologia alemã é Max uma mobilidade e uma plasticidade para se adaptar ao seu
Weber (1864-1920). Outros pensadores, entretanto, contribuíram objeto — uma multiplicidade de direções, uma defesa do
significativamente para a formação e o desenvolvimento da So- fragmento —, que se opõem a toda tentativa de fixação e
ciologia na Alemanha, entre os quais Ferdinand Tönnies (1855- acabamento, a toda pretensão de sistema.
1936), Werner Sombart (1863-1941), Georg Simmel (1858-1918) Por isso todos os rótulos que lhe são atribuídos, ape-
e os estudiosos que a partir da década de 1920 constituíram a sar de possuírem seu teor de verdade, sempre soam tão
chamada Escola de Frankfurt. falsos: vitalismo, relativismo, esteticismo, formalismo, ir-
A obra desses autores liga-se fortemente ao processo de racionalismo, psicologismo, impressionismo e tantos mais.
unificação alemã, promovido somente após o triunfo de Otto Disto também é exemplo o fato de Simmel, hoje conside-
von Bismarckna Guerra Franco-Prussiana, e à aceleração da in- rado, ao lado de Max Weber e Ferdinand Tönnies, um dos
dustrialização alemã. Esses dois fatores conferiram à Alemanha “pais” da sociologia alemã, não poder ser classificado sem
uma situação muito diferente da de outros países europeus. mais como “sociólogo”, sob pena de se perderem várias
A alteração nas estruturas de poder, na Alemanha, não outras dimensões que são essenciais ao seu pensamento.
ocorreu por meio de uma revolução, como na França, mas por Walter Benjamin, que ainda pôde ouvir Simmel, de-
um acordo entre a burguesia industrial e os grandes proprietários tectou em sua “dialética característica” a transição da filo-
BIANCHETTI/LEEMAGE/AFP/COLEÇÃO PARTICULAR
sofia tradicional (“de cátedra”) para uma filosofia en-
saística. Virtuose na forma do ensaio, este tem muito
a ver com o tipo e com os objetos de conhecimento
que Simmel tinha em vista. Theodor Adorno — que
estudou com Siegfried Kracauer, aluno dileto de Sim-
mel — retomou o enfoque de Benjamin e apontou o
núcleo do esforço simmeliano, a “virada da filosofia
rumo aos objetos concretos”. É dessa virada, que exige
sua concepção muito própria de “filosofia”, que se ori-
ginam suas múltiplas preocupações, em uma obra que
conjuga de modo original diversas “perspectivas” — a SOCIOLOGIA
sociologia, a filosofia, a economia, a psicologia, a his-
tória, a estética e outras mais — na análise do que

Franceses e prussianos se enfrentam na Batalha de


Weissembourg, em 4 de agosto de 1870. Gravura
da época, de autoria desconhecida.

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 53

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pode ser esperado e convencional, mas é sempre rica em sidade, teve o primeiro contato

ULLSTEIN BILD
nuances […]. com os escritos de Immanuel
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: USP,
Curso de Pós-Graduação em Sociologia/Ed. 34, 2000. p. 11.
Kant e com neokantianos, os
quais nunca deixou de lado em
Simmel foi o último
THE GRANGER COLLECTION, NOVA YORK, ESTADOS UNIDOS/OTHER IMAGES

dos sete filhos de um seus estudos.


próspero comerciante Em 1889, concluiu o dou-
judeu convertido ao cris- torado em Direito Comercial
tianismo. Com a morte do com uma tese sobre a história
pai, herdou uma fortuna das sociedades comerciais da
considerável que lhe per- Idade Média. Em 1891, defen-
mitiu independência para deu outra tese: A importância
da história agrária romana

EDITORA THOMPSON PIONEIRA


desenvolver a vida acadê-
mica. Estudou História e para o direito público e privado.
Filosofia na Universidade Em 1894, tornou-se professor
de Berlim, onde foi alu- de Economia na Universidade
no das mais importantes de Freiburg e, dois anos depois,
figuras acadêmicas da transferiu-se para a Universida-
época. Em 1881, defendeu de de Heidelberg.
uma tese sobre Immanuel A partir de 1897, acome-
Georg Simmel em fotografia de 1901. tido de uma depressão profun-
Kant e recebeu o título de
doutor em Filosofia. Entre da, não conseguiu desenvolver
1885 e 1914, lecionou Filosofia, Ética e Sociologia na Universidade as atividades acadêmicas. En-
de Berlim, mas nunca foi incorporado formalmente à universi- tre 1902 e 1903, retomou as
dade. Ocupou o cargo de professor titular de Filosofia somente No alto, Max Weber atividades intelectuais, mas
em 1914, em Estrasburgo, cidade onde permaneceu até a morte,
em fotografia de fora da universidade, pois não
aproximadamente 1917. tinha condições psicológicas
em 1918. Acima, capa do livro A ética
Na virada do século XIX para o século XX na Alemanha, protestante e o espírito do para ministrar aulas. No ano
houve uma intensa efervescência filosófica, cultural e artística, capitalismo, em edição de seguinte, tornou-se coeditor
cenário em que se desenvolveram a psicanálise, a teoria da rela-
2008. Nesse famoso trabalho, do Arquivo de Ciências Sociais,
Weber relaciona elementos publicação muito importante
tividade, o positivismo lógico e a música atonal. Nesse cenário, da doutrina protestante,
Simmel tornou-se um conferencista muito aclamado e escreveu como a valorização da vida para o desenvolvimento dos
artigos e ensaios sobre os mais variados temas da Filosofia, como terrena e a predestinação, às estudos sociológicos na Ale-
lógica, teoria do conhecimento, ética, estética ou metafísica, além
condições que propiciaram a manha.
emergência e a consolidação Entre agosto e dezem-
de temas da Psicologia, da Sociologia, da História e da religião. do capitalismo.
Escreveu também muitas biografias (de Johann Wolfgang von bro de 1904, viajou, com Fer-
Goethe, de Friedrich Nietzsche, de Immanuel Kant e de Rem- dinand Tönnies e Werner Sombart, aos Estados Unidos, por
brandt, entre outros). ocasião da Exposição Universal de Saint-Louis, onde entrou
Suas obras sociológicas mais importantes são: Da diferen- em contato com as igrejas e seitas protestantes daquele país
ciação social (1890), A filosofia do dinheiro (1907), Sociologia e também com vários escritos de Benjamin Franklin (1706-
(1908) e Questões fundamentais da Sociologia (1917). 1790), o que foi fundamental para suas pesquisas sobre a re-
Georg Simmel teve influência marcante no desenvolvimen- lação entre a ética protestante e o capitalismo.
to da Sociologia na Alemanha, nos Estados Unidos (em especial Em 1907, recebeu uma herança significativa. A partir de
na Escola de Chicago) e na França (em Durkheim e seus colabo- então, dedicou-se exclusivamente à investigação histórica e so-
radores diretos). Suas obras foram traduzidas para o francês e o ciológica. Em 1909, colaborou na fundação da Sociedade Alemã
inglês, muitas vezes antes de ser publicadas em alemão. de Sociologia. Ao ser deflagrada a Primeira Guerra Mundial, em
1914, Weber foi convocado como oficial da reserva para dirigir
Max Weber um hospital militar. Entre as atividades no hospital encontrou
Max Weber nasceu em 21 de abril de 1864, em Erfurt, e tempo para continuar a escrever partes do livro que foi publi-
morreu em Munique, em 1920. De família abastada, teve uma cado postumamente por sua esposa, com o título Economia
educação formal de boa qualidade, o que lhe permitiu uma eru- e sociedade. Além disso, desenvolveu estudos sobre ética eco-
dição notável. Com 18 anos, ingressou na Universidade de Hei- nômica e as religiões universais e escreveu uma série de artigos
delberg, onde escolheu como área de concentração o Direito e para os grandes jornais da Alemanha. Nesses artigos, criticou a
como correlatas a História, a Filosofia e a Economia. Nessa univer- estrutura partidária do país e a burocratização das esferas polí-
ticas na Alemanha, afirmando que aquela situação ainda era a

54 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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herança de Otto von Bismarck. A Escola de Frankfurt
Em 1917, pronunciou uma conferência — A ciência como Logo após a morte de Max Weber, abriu-se um novo ho-
vocação — e produziu um escrito, no qual explicitou seu método rizonte para a Sociologia alemã com a fundação do Instituto
— Ensaio sobre neutralidade axiológica nas ciências sociológicas e de Pesquisa Social, vinculado à Universidade Johann Wolfgang
econômicas. Goethe de Frankfurt, que ficou conhecido como Escola de
Pelas ideias expostas em debates e nos jornais e por sua Frankfurt. Em 1923, um grupo de intelectuais — entre eles
erudição, Max Weber, após a derrota alemã na Primeira Guer- Friedrich Pollok (1894-1970), Leo Löwenthal (1900-1993), Karl
ra Mundial, fez parte da comissão que redigiu, em 1919, a nova August Wittfogel (1896-1988), Max Horkheimer (1895-1973) e
constituição política alemã, conhecida como a Constituição de Theodor Adorno (1903-1969) — desenvolveu uma análise da
Weimar. sociedade contemporânea com base em concepções filosófi-
Pode-se afirmar que a vida de Max Weber foi dedicada cas de Immanuel Kant, Friedrich Hegel e Friedrich Nietzsche,
aos estudos, à pesquisa e à participação ativa na política alemã em visões sociológicas de Karl Marx e de Max Weber e no
de seu tempo, por meio de conferências e artigos para jornais pensamento de Sigmund Freud.
e revistas. Os integrantes do grupo de Frankfurt pretendiam desenvol-
Weber não media esforços para analisar e compreender mais ver uma teoria crítica da sociedade capitalista e buscavam expli-
profundamente os temas que elegia. Aprendeu grego e hebraico car fenômenos que iam da análise da personalidade autoritária à
para ler a Bíblia no original, espanhol para ler os documentos sobre indústria cultural. Mantiveram a crítica ao positivismo e ao prag-
as companhias de navegação e comércio espanholas, russo para ler matismo, procurando demonstrar a necessidade de refletir sobre
os jornais sobre os acontecimentos na Rússia de 1905 até a revolu- as condições que permitiram a emergência do nazismo e sobre
ção de 1917, inglês para ler os textos estadunidenses sobre a vida o significado dessa ideologia. As reflexões desses intelectuais cul-
religiosa e a ética dos protestantes. minaram com uma crítica à razão instrumental e às formas de
Para Max Weber, o indivíduo é o núcleo de análise por ser controle sobre a sociedade contemporânea.
o único que pode definir intenções e finalidades para seus atos. Além dos estudiosos citados, são representantes desse pen-
Desse modo, o ponto de partida da Sociologia é a compreensão samento Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm (1900-1980)
da ação dos indivíduos, atuando e vivenciando situações sociais e Herbert Marcuse (1898-1979), entre outros. Todos os integran-
com determinadas motivações e intenções. Instituições como tes da Escola de Frankfurt precisaram sair da Alemanha por causa
Estado e família só ganham sentido quando vistas da perspectiva da perseguição nazista. Adorno e Horkheimer voltaram ao país
das relações sociais. Assim, Max Weber não concebe a socieda- depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
de como um bloco, uma estrutura una, mas como uma teia de Deram continuidade à Escola de Frankfurt, entre outros,
relações. Jürgen Habermas (1929-), da segunda geração, e Axel Honneth
A obra de Max Weber é vasta e engloba história, direito e (1949-), da terceira.
economia, passando pelas questões religiosas, pelos processos
burocráticos, pela análise da cidade, da música e, enfim, pela A Sociologia nos Estados Unidos
discussão metodológica das ciências humanas e dos conceitos A Sociologia nos Estados Unidos desenvolveu-se no con-
sociológicos. texto de dois grandes eventos que marcaram profundamente a
Entre os seus escritos, podemos destacar: A ética protestante história do país. O primeiro foi a Guerra de Secessão (também co-
e o espírito do capitalismo (1904-1905/1920), A ciência como voca- nhecida como Guerra Civil Americana), que ocorreu entre 1861
ção (1917), A política como vocação (1919), Economia e sociedade e 1865 e gerou ressentimentos e atritos entre a população do sul
(1920), História geral da economia (1923) e Ensaios reunidos de e a do norte dos Estados Unidos.
sociologia da religião (1917/1920).
Outros sociólogos alemães manti-

FRANK MAY/AFP
veram-se em atividade após a Primeira
Guerra Mundial, como Ferdinand Tönnies,
Leopold von Wiese (1876-1969), Hans
Freyer (1887-1969) e Franz Oppenheimer
(1864-1943), que fundou, em 1919, a pri-
meira cátedra de Sociologia na Alemanha, SOCIOLOGIA
em Frankfurt.

Universidade Johann Wolfgang Goethe de


Frankfurt. Fotografia de 2008.

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 55

book-SESI_EM_SOC_3SERIE.indb 55 21/11/16 20:18


HULTON-DEUTSCH COLLECTION
BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK

Na segunda metade do século XIX e início do século XX, os pioneiros


da Sociologia nos Estados Unidos preocupavam-se particularmente
com os problemas gerados pela industrialização e pelo crescimento
das cidades, que atraíam não só migrantes, mas também um grande Fábrica de aço em Pittsburg, nos Estados Unidos (século XIX).
número de imigrantes europeus. Na foto, chegada de imigrantes
europeus aos Estados Unidos (1900).

Em contrapartida, houve a urbanização das terras do oeste e influenciados principalmente pela tradição religiosa protestante
das áreas centrais do país, o que contribuiu para o crescimento da disseminada em quase todo o território, pelo liberalismo eco-
economia e a expansão industrial. No norte, graças ao esforço de nômico clássico conservador, do tipo laissez-faire, pelo evolucio-
guerra, houve um grande crescimento, principalmente na meta- nismo do inglês Charles Darwin (1809-1882) e pelo darwinismo
lurgia, no transporte ferroviário, na indústria de armamentos e na social de Herbert Spencer (1820-1903). Acrescente-se a essas
indústria naval. O comércio também se expandiu de maneira ex- concepções de mundo e ciência o pragmatismo do filósofo e
ponencial em todo o território estadunidense. O padrão de cultura psicólogo William James (1842-1910) e do filósofo Charles Pierce
dos Estados Unidos passou a ser o ideal nortista de “trabalho duro, (1839-1914).
educação e liberdade econômica a todos”. Houve ainda um grande Essa herança permite compreender as duas grandes carac-
desenvolvimento de escolas e instituições de ensino superior. terísticas da Sociologia nos Estados Unidos:
O segundo grande evento que marcou a história estaduni- Multiplicidade de temas, problemas e propostas e diversidade
dense foi a chegada em massa de estrangeiros. Entre 1860 e 1900, teórica e metodológica.
os Estados Unidos passaram de país agrícola, com população em Desenvolvimento desse campo do conhecimento em univer-
torno de 30 milhões, para país industrial, com uma das maiores sidades, nas quais as atividades eram financiadas pelo Estado
economias do mundo e com 75 milhões de habitantes. e pelo setor privado (Fundação Rockefeller, comitês e associa-
O incremento populacional e a industrialização redundaram ções normalmente religiosas).
em um processo de urbanização sem precedentes que continuou Por causa dessa segunda característica, optamos por analisar
até a década de 1930. Para se ter uma ideia, em 1860 viviam em o desenvolvimento da Sociologia nos Estados Unidos em três
Chicago 102.260 pessoas; em 1900, a população da cidade passou importantes universidades estadunidenses: a de Chicago, Harvard
a 1.698.575 e, em 1930, a 3.375.329. e Columbia.
Em virtude desses fatores, consolidaram-se nos Estados Uni-
dos uma burguesia industrial, comercial e financeira significativa, Universidade de Chicago
uma classe trabalhadora majoritariamente formada por imigran- A Universidade de Chicago foi fundada em 1890 pelo
tes e uma classe média em ascensão. As principais cidades passa- magnata do petróleo John D. Rockefeller e recebeu os primeiros
ram a ser um espaço de conflito e alvo de preocupações. Temas alunos em 1892. Nela foi criado o primeiro departamento de
como imigração, aculturação, conflitos étnicos, comportamentos Sociologia dos Estados Unidos, sob a direção de Albion Wood-
desviantes e políticas públicas foram importantes na Sociologia bury Small.
desenvolvida inicialmente no país. No início de seus trabalhos sociológicos, a Universidade
Entre os principais fundadores da Sociologia nos Estados de Chicago deu primazia à pesquisa empírica, procurando co-
Unidos estão William Graham Sumner (1840-1910), Lester Frank nhecer, por meio da observação direta, a dinâmica das rela-
Ward (1841-1913), Albion Woodbury Small (1854-1926), Franklin ções sociais. Desenvolveu uma forte tendência pragmática e
Henry Giddings (1855-1931), Thorstein Bunde Veblen (1857-1929), microssociológica, que viria a ser conhecida como a Escola de
William Isaac Thomas (1863-1947), Robert Ezra Park (1864-1944), Chicago. A maior preocupação dos integrantes dessa Escola foi
Charles Horton Cooley (1864-1929) e George Herbert Mead (1863- com os problemas das grandes cidades dos Estados Unidos,
1931). como a marginalidade social, o alcoolismo, as drogas, a segre-
A herança cultural desses fundadores é muito diversa: foram gação racial e a delinquência, estabelecendo uma relação entre

56 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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a pesquisa sociológica e a intervenção dos organismos públicos de bacharel pela Universida-

EDITORA VOZES
na sociedade. Os sociólogos de Chicago também se dedicaram de de Toronto, em 1945, e
ao que chamaram de ecologia humana em oposição à ecologia concluiu o mestrado (1949)
animal e vegetal. e o doutorado (1953) na
Universidade de Chicago,
onde estudou Sociologia
Em 1895, Albion Woodbury Small fundou o American Jour-
e Antropologia Social. Em
nal of Sociology e, em 1907, participou ativamente da fundação
1958, tornou-se professor
da Sociedade Americana de Sociologia. Ele publicou, com Geor-
da Universidade da Califór-
ges Vincent, em 1894, talvez o primeiro manual de Sociologia
nia e, em 1968, ingressou na
para estudantes, intitulado
Introdução ao estudo da socie- Universidade da Pensilvânia,
dade. Tendo estudado na Ale- onde foi professor de Antro-
manha, Small foi o principal pologia e Sociologia. Entre
divulgador do pensamento 1981 e 1982, foi presidente
de Georg Simmel nos Estados da Sociedade Americana de
Unidos. Sociologia.
Goffman realizou pes- Capa do livro Comportamento em
lugares públicos, de Erving Goffman,
JOHNSON REPRINT CORPORATION

quisas na linha da Sociolo- publicado pela primeira vez em


gia interpretativa e cultural, 1963.
iniciada por Max Weber, e
desenvolveu a ideia de que o mundo é um teatro e cada um de
nós, individualmente ou em grupo, teatraliza ou é ator de acor-
do com as circunstâncias em que se encontra. Essas circunstân-
cias são marcadas por rituais e posições distintivas em relação
a outros indivíduos ou grupos. Para ele, é possível distinguir
indivíduos, grupos e classes com base, por exemplo, em aspec-
Entre os integrantes da Escola de Chicago mais conhecidos
tos como as formas de vestir ou de se apresentar publicamente.
no Brasil, podemos citar William I. Thomas (1863-1947) e Florian
O sociólogo considera a interação social um processo fun-
Znaniecki (1882-1958), cuja principal obra foi O camponês polo-
damental de identificação e de diferenciação dos indivíduos e
nês na Europa e na América, editada em 1918. Destacam-se ainda
grupos, analisando-a no cotidiano, especialmente em lugares
Robert E. Park (1864-1944) e Ernest W. Burgess (1886-1966), que
públicos. Goffman estudou com especial atenção o que cha-
escreveram, entre outras obras, Introdução à ciência da sociolo-
mou de “instituições totais”, lugares onde o indivíduo é isolado
gia, em 1921. Os dois, com Roderick Mackenzie, escreveram o
da sociedade, como prisões e manicômios.
clássico A cidade, em 1925. Outro membro de destaque foi Louis
De acordo com o sociólogo brasileiro Édison Gastaldo:
Wirth (1897-1952), autor de O gueto, escrito em 1928, e de um
O trabalho de Goffman trouxe à luz aspectos da vida
artigo que se tornou famoso, “Urbanismo como modo de vida”,
cotidiana que não se julgavam “sociologicamente relevan-
publicado em 1938, no American Journal of Sociology.
tes”. Seus insights sobre as interações ordinárias, sobre
A Escola de Chicago congregou, ainda, sociólogos e an-
o deslocamento dos pedestres, sobre a ocupação social dos
tropólogos ligados à Psicologia Social, que desenvolveram uma
espaços públicos, sobre a atuação dos vigaristas, mendi-
abordagem sociológica das relações sociais conhecida como
gos, loucos, espiões, jogadores e de todos aqueles que pas-
interacionismo simbólico. A principal figura dessa vertente foi
sam cotidianamente debaixo de nossos narizes sem que
George Herbert Mead (1863-1932), que trabalhou em diversas
prestemos atenção modificaram o pensar sociológico no
áreas, sobretudo como psicólogo social e como professor de vá-
mundo. Sua descrição etnográfica de um hospital para
rias gerações de antropólogos e sociólogos. Seus escritos foram
doentes mentais colaborou decisivamente para deflagrar a
sistematizados por seus alunos e publicados com o nome Mind,
luta antimanicomial no mundo inteiro. Vinte e dois anos
self and society (A mente, o eu e a sociedade), em 1934.
depois de sua morte, os temas e os conceitos desenvolvi-
Além da tradição intelectual dos Estados Unidos, os inte-
dos por Goffman ainda estão em pleno uso e vitalidade.
grantes da Escola de Chicago receberam a influência de Jean-
SOCIOLOGIA
Gastaldo, Édison. Erving Goffman, desbravador do cotidiano. Porto
-Gabriel de Tarde, Émile Durkheim e Georg Simmel. Seus conti- Alegre: Tomo Editorial, 2004.
nuadores foram Herbert Blumer (1900-1987) e Everett C. Hughes Suas três obras mais conhecidas são: A representação do eu
(1897-1983). na vida cotidiana (1959), Manicômios, prisões e conventos (1961)
O representante da Sociologia desenvolvida na Universi- e Estigma: notas sobre a manipulação da identidade (1963).
dade de Chicago mais influente no Brasil é Erving Goffman.
Erving Goffman nasceu em Manville, Alberta, no Canadá,
em 1922, e faleceu nos Estados Unidos em 1982. Obteve o grau

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 57

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UNIVERSITY OF SASKATCHEWAN SPECIAL COLLECTIONS

Universidade -se na Universidade de Heidelberg, na Alemanha.


Harvard Nos Estados Unidos, lecionou Economia e Sociologia na
A história de Harvard Universidade Harvard durante 45 anos (1927-1973). Em 1944,
começa em 1636, quando tornou-se presidente do Departamento de Sociologia, trans-
foi fundada, na cidade de formando-o, dois anos depois, no Departamento de Relações
Cambridge, no estado de Sociais, a fim de unir a Sociologia a outras ciências sociais.
Massachusetts, uma ins- Assim como Sorokin, Talcott Parsons voltou-se para a
tituição de ensino deno- Sociologia europeia, tendo por base as ideias de Max Weber,
minada New College. Em Vilfredo Pareto (1848-1923) e Émile Durkheim, além das do
1639, essa instituição re- economista inglês Alfred Marshall (1842-1924). Fundamenta-
cebeu o nome de Harvard do nesses autores, desenvolveu uma grande obra teórica, que
College, em homenagem a dominaria a Sociologia estadunidense desde então.
John Harvard, seu principal Parsons é o sociólogo estadunidense mais conhecido no
mecenas. A partir de 1780 mundo. Em geral, seus críticos entenderam-no como um pen-
passou a ser chamada de Pitirim Alexandrovich Sorokin. Data sador conservador, preocupado basicamente com o bom orde-
universidade. desconhecida. namento da sociedade. Seu interesse era determinar a função
A Sociologia desen- THE GRANGER COLLECTION/OTHER IMAGES
que os indivíduos desempenhavam na estrutura social. Entendia
volvida na Universidade o indivíduo como expressão dessa estrutura, a qual devia ser
Harvard é marcada por mantida e preservada. Caso isso não ocorresse, deviam entrar
uma preocupação teóri- em ação os mecanismos de controle social (moral, ética, siste-
ca e tem dois sociólogos ma jurídico e penal etc.), como instrumentos preventivos ou
como expoentes: Pitirim corretivos.
Alexandrovich Sorokin Seu trabalho exerceu influência em diversos países e am-
(1889-1968) e Talcott bientes acadêmicos (particularmente nas décadas de 1950 a
Edgar Frederick Parsons 1970), até na então União Soviética, onde, em 1964, ministrou
(1902-1979). aulas sobre a Sociologia estadunidense a convite da Academia
Pitirim Alexandrovich de Ciências Soviéticas.
Sorokin nasceu no norte Suas principais obras foram: A estrutura da ação social
da Rússia. Em 1922, rece- (1937), O sistema social (1951), Economia e sociedade (1956,
beu o título de doutor em com N. Smelser), Estrutura e processo nas sociedades modernas
Sociologia pela Universida- (1960), Sociedades: perspectivas evolucionárias e comparativas
de de São Petersburgo. Por Talcott Parsons. Data desconhecida. (1966), Teoria sociológica e sociedade moderna (1968), Política
opor-se ao governo russo, e estrutura social (1969), Sistemas sociais e a evolução da teoria
foi obrigado a sair do país em 1923. No mesmo ano, após perma- da ação (1977) e Teoria da ação e a condição humana (1978).
necer um curto período em Praga, partiu para os Estados Unidos Universidade
e passou a lecionar na Universidade de Minnesota. Columbia

AFP
Em 1930, obteve a cidadania estadunidense e se tornou o
A King’s Col-
primeiro professor de Sociologia da Universidade Harvard. Foi
lege foi fundada
também o primeiro presidente do Departamento de Sociologia
em 1754, em Nova
dessa instituição, cargo que ocupou até 1944, quando foi substi-
York, nos Estados
tuído por Talcott Edgar Frederick Parsons. Permaneceu em Har-
Unidos. Quando
vard até a morte, em 1968.
as colônias ingle-
A base teórica de Sorokin vincula-se a autores europeus
sas declararam-se
e não à tradição estadunidense. Ele desenvolveu estudos sobre
independentes da
as teorias da dinâmica social e dos processos de mobilidade e
Grã-Bretanha, a
mudança sociais. Suas principais obras foram: Sociologia da revo-
instituição passou
lução (1925), Mobilidade social (1927), Dinâmica social e cultural
a se chamar Uni-
(1937-1941), A crise de nosso tempo (1941), Sociedade, cultura e
versidade Colum-
personalidade (1947) e Novas teorias sociológicas (1966). As três
últimas foram publicadas no Brasil.
Talcott Parsons nasceu no Colorado, nos Estados Uni-
dos. Em 1924, graduou-se em Biologia e Filosofia na Faculdade
Amherst. Em 1925, pós-graduou-se em Ciências Sociais na Escola Universidade
Columbia. Fotografia
de Economia de Londres, na Inglaterra, e, em seguida, doutorou- de 2011.

58 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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bia. A partir da última década do século XIX, essa universidade caberiam à sociedade, e sim ao próprio cientista, sempre ade-
se destacaria por uma importante produção no campo da Socio- quando seus valores aos da sociedade.
logia. A seguir, trataremos de alguns dos principais sociólogos que Companheiro de Merton no desenvolvimento do Depar-
ali atuaram: Franklin Giddings, Robert K. Merton, Paul Lazarsfeld tamento de Pesquisa Aplicada da Universidade Columbia, Paul
e Charles Wright Mills. Felix Lazarsfeld nasceu em Viena, na Áustria, em 1901. Filho de
Franklin Giddings (1855-1931) foi o fundador da cadeira de um advogado socialista atuante, viveu desde cedo num am-
Sociologia na Universidade Columbia. Fortemente marcado pelo biente onde circulavam intelectuais de diferentes formações
evolucionismo e pelo pragmatismo, foi pioneiro no uso de mé- políticas e expoentes ligados às ciências, à literatura, à música,
todos quantitativos e experimentais no estudo dos fenômenos ao teatro e à psicanálise. Estudou na Universidade de Viena,
sociais. onde, em 1925, defendeu tese de doutorado em Matemática.
PICTORIAL PARADE/GETTY IMAGES Entre as principais Após o doutoramento, fundou, em 1929, na capital austríaca,
obras de Giddings, po- um instituto de pesquisa em Psicologia Social Aplicada.
demos citar: The theory Em 1933, Lazarsfeld emigrou para os Estados Unidos, onde
of Sociology (1894), The foi diretor do Gabinete de Pesquisa Radiofônica na Universida-
principles of Sociology de de Princeton, depois de receber um patrocínio da Fundação
(1896), The theory of so- Rockefeller para a pesquisa sobre Sociologia e Psicologia asso-
cialization (1897), The ele- ciadas à comunicação. Em 1940, transferiu-se para a Universida-
ments of Sociology (1898), de Columbia, na qual atuou como professor do departamento
Inductive Sociology (1901), de Sociologia até 1970.
Descriptive and historical Lazarsfeld desenvolveu metodologias quantitativas — uti-
Sociology (1906). lizando índices, análises multivariadas, escalas, testes, correla-
Depois de Franklin ções etc. — para analisar o comportamento dos habitantes dos
Giddings, a principal ex- Estados Unidos em relação aos mais diversos aspectos, como
pressão da Sociologia na os meios de comunicação de massa, as escolhas eleitorais e os
Universidade Columbia padrões de consumo. Tudo, na opinião dele e de seus colabo-
foi Robert King Merton, radores, era quantificável.
que nasceu na Filadélfia, Entre seus críticos nos Estados Unidos destacam-se Pitirim
em 1910, e faleceu em Sorokin, que chamava sua metodologia de quantofrenia e de
Robert Merton em 1950. Nova York, em 2003. Mer- numerologia, e Charles Wright Mills.
ton graduou-se em Socio- Mills nasceu em Waco, no Texas, Estados Unidos, em
logia na Universidade Temple e pós-graduou-se na Universidade 1916. Mestre em Artes, Filosofia e Sociologia pela Universida-
Harvard, onde trabalhou com Pitirim Sorokin e Talcott Parsons de do Texas, concluiu, em 1942, seu doutorado em Sociologia
até a defesa de seu doutorado, em 1936. e Antropologia pela Universidade de Wisconsin. Foi professor
Em 1941 transferiu-se para a Universidade Columbia, onde de Sociologia nas universidades de Maryland e Columbia, na
permaneceu durante 38 anos, até se aposentar. Nessa universi- qual passou a lecionar, em 1947, permanecendo até a morte,
dade procurou integrar teoria à prática sociológica. Estudou o em 1962.
comportamento desviante e os processos de adaptação social, Charles Mills representa uma tendência quase marginal na
tendo por base pesquisas qualitativas e quantitativas do exercício Sociologia dos Estados Unidos, por apresentar uma visão crítica
profissional em ambiente de solidariedade e de conflito. Com e militante da sociedade estadunidense e da própria Sociologia.
Paul Lazarsfeld (1901-1976), desenvolveu o Departamento de Influenciado por Karl Marx e Max Weber, procurou con-
Pesquisa Social Aplicada. ciliar o conceito de classe social com o de status, visando escla-
O nome de Merton está vinculado à proposta de criação de recer processos e mecanismos dos conflitos e das mudanças
teorias de alcance médio, segundo o qual os sociólogos seriam sociais. Por meio de pesquisas, tentou elucidar a complexidade
mais úteis à sociedade se deixassem de lado as grandes teorias de estruturas de poder, particularmente das elites (em lugar de
(criticando Parsons) e criassem outras de médio alcance. Essas classes dominantes), e de seu papel na mudança social, fugin-
teorias estariam situadas entre as hipóteses de trabalho rotineiras do da ideia de revolução como única via para a transformação
na pesquisa e as amplas especulações. Mediariam, dessa forma, as social. SOCIOLOGIA
abstrações, generalizações e fundamentos empíricos da pesquisa. Charles Wright Mills é conhecido principalmente por
Merton tinha uma visão humanista da função social da seu livro A imaginação sociológica, publicado originalmente
ciência, demonstrando influência clara de Max Weber. Concebia nos Estados Unidos em 1959. Nele o autor propõe que os
a ciência como um conjunto de conhecimentos compartilhados sociólogos, ao exercer a profissão, não deixem a imaginação e
por todos os membros da sociedade, que deveriam julgar a credibi- a criatividade de lado em favor de uma pretensa objetividade
lidade das postulações científicas de acordo com suas expectativas e neutralidade do trabalho científico. Para Mills, os grandes
e valores morais. Mas as decisões acerca do fazer científico não intelectuais da história nunca abriram mão da reflexão e da

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 59

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criatividade e mantive- ráter polêmico: As causas da Terceira Guerra Mundial (1958),

GETTY IMAGES
ram uma postura críti- no qual discute a corrida nuclear, e A Revolução em Cuba
ca diante da realidade. (1960), em que analisa a fase inicial da Revolução Cubana.
Atribuindo aos so- Outros sociólogos que defendem uma postura crítica na
ciólogos a responsabili- Sociologia estadunidense, continuadores ou não de Charles
dade de agentes ativos Wright Mills, são Irving Louis Horowitz (1929-2012), Martin
na sociedade, cabendo- Nicolaus (1928-) e Alvin Gouldner (1920-1980).
-lhes tomar parte nos
debates públicos de sua A SOCIOLOGIA
época, Mills defendia a
ideia de que a Sociolo- CONTEMPORÂNEA
gia deveria ser acessí- Se até a década de 1960 podia-se falar em uma Sociolo-
vel à compreensão do gia dividida por países, após essa década, tendo em vista um
grande público. processo significativo de circulação de informações pelos mais
C. Wright Mills
Para ele, a ciência em 1960. variados meios de comunicação, pode-se dizer que os princi-
social era inseparável da pais cientistas sociais se tornaram globalizados, assim como a
vida pessoal do cientista: a intuição, a imaginação e o compro- literatura sociológica.
metimento com o tempo em que se vivia eram fundamentais As questões sociais, que até então podiam estar localiza-
para compreender cientificamente a sociedade. Suas obras das em países ou em blocos de países, também se tornaram
foram publicadas em vários idiomas. Além da citada anterior- mundializadas, e vários pensadores passaram a refletir sobre
mente, as mais importantes são: A nova classe média (1951), A temas chamados de pós-modernos, hipermodernos ou sim-
elite do poder (1956), Sobre o artesanato intelectual (1959) e plesmente contemporâneos, e que afetam um país, uma região
Os marxistas (1962). ou todo o mundo.
Escreveu também artigos em revistas e dois livros que tive-
ram grande exposição na mídia dos Estados Unidos, por seu ca-

ZAHAR
ZAHAR
DFA/AFP

À esquerda, Zygmunt Bauman por ocasião do Congresso do Futuro promovido pelo Partido Verde alemão, em 2006. À direita, reprodução da capa de
duas obras de Bauman: Globalização: as consequências humanas e Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Em Globalização, Bauman faz uma
análise do modo de vida da sociedade contemporânea; em Amor líquido, o autor apresenta reflexões sobre o amor na era digital.

A Sociologia contemporânea, porém, mantém uma relação a weberiana ou compreensiva, com o desenvolvimento da
significativa com as grandes vertentes da Sociologia anterior: fenomenologia e da hermenêutica;
a marxista ou histórico-estrutural, com suas variações; a teórica e pragmática estadunidense, com variadas linhas.
a durkheimiana ou funcionalista, com o desenvolvimento de Além dessas vertentes, pensadores como Jean-Gabriel de
um neofuncionalismo; Tarde e Georg Simmel, que estavam um tanto esquecidos, pelo

60 Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento

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menos no Brasil, em razão da ênfase em Émile Durkheim, num dos jovens fora do contexto religioso que era predominante en-
caso, e em Max Weber, em outro, retomaram seus lugares de tão. Mas, sem nunca ter sido incluída nos currículos escolares, a
destaque. Sociologia foi eliminada pela Reforma Epitácio Pessoa, em 1901.
Essas vertentes inspiraram outros tantos pensadores, que Somente em 1925, a Sociologia retornou ao currículo do
— refletindo sobre a realidade em que vivem, mesclando ou não ensino secundário por meio da Reforma de Rocha Vaz, que ti-
contribuições de diferentes linhas teóricas e formulando uma sé- nha os mesmos objetivos de Benjamin Constant. Em decorrência
rie de conceitos — demonstram as possibilidades e a diversidade dessa reforma, o Colégio Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro,
do pensamento sociológico e fazem a Sociologia avançar muito implantou a Sociologia regularmente no seu currículo. Em 1928,
no processo de compreensão da realidade contemporânea. a disciplina foi introduzida nas escolas de São Paulo, Rio de Janeiro
A combinação de diversas vertentes teóricas torna difícil e Pernambuco.
fazer qualquer enquadramento ou mesmo tentar classificar de- Desde 1925, podem-se destacar alguns intelectuais que
terminados autores. Muitos analistas veem nisso uma crise de pa- contribuíram para o ensino de Sociologia no ensino secundário,
radigmas na Sociologia contemporânea. Essa “crise” poderia ser lecionando e escrevendo manuais para esse nível: Fernando de
entendida do ponto de vista epistemológico; entretanto, sempre Azevedo (1894-1974), Gilberto Freyre (1900-1987), Carneiro Leão
houve diversidade de epistemologias na Sociologia. Acreditamos (1887-1966) e Delgado de Carvalho (1884-1980), em São Paulo,
que essa diversidade epistemológica, de teorias, de objetos e de Rio de Janeiro e Recife. Eles tinham por objetivo preparar inte-
métodos, concorrentes ou não, na explicação de fenômenos so- lectualmente os jovens das elites dirigentes, elevando o conheci-
ciais deve ser vista como indicativo de vigor, e não de decadência. mento daqueles que chegavam às escolas médias. Esses autores,
Indicamos a seguir, em ordem alfabética, alguns dos pen- em sua maioria, foram influenciados pela Sociologia desenvolvida
sadores e sociólogos contemporâneos cujo trabalho tem dado na Europa e nos Estados Unidos.
especial contribuição à Sociologia desenvolvida no Brasil: Alain Em 1931, a reforma de Francisco Campos, no governo de
Touraine (1925-), Anthony Giddens (1938-), Axel Honneth (1949- Getúlio Vargas, introduziu a Sociologia nos cursos preparatórios
), Boaventura de Sousa Santos (1940-), David Harvey (1935-), ao ensino superior nas faculdades de Direito, Ciências Médicas,
Edgard Morin (1921-), François Dubet (1946-), Gilles Lipovetsky Engenharia e Arquitetura, além de mantê-la nos cursos normais
(1944-), Howard S. Becker (1928-), Immanuel Wallerstein (1930- (de formação de professores).
), István Mészáros (1930-), Jean Baudrillard (1929-2007), Jürgen Oficialmente extinta do currículo do ensino médio nos
Habermas (1929-), Manuel Castells (1942-), Marshall Berman anos 1940, a Sociologia voltou a marcar presença em um ou
(1940-), Michael Löwy (1938-), Michel Maffesoli (1944-), Néstor outro estado da federação, de modo intermitente, na década de
García Canclini (1939-), Niklas Luhmann (1927-1998), Norbert 1980. Na década seguinte, organizações representativas de so-
Elias (1897-1990), Peter Ludwig Berger (1929-), Ralph Dahren- ciólogos de várias tendências, assim como pequenos grupos nas
dorf (1929-2009), Raymond Boudon

COLEÇÃO PARTICULAR
(1934-2013), Richard Sennett (1943-
), Serge Moscovici (1928-), Thomas
Luckmann (1927-), Zygmunt Bau-
man (1925-).

A SOCIOLOGIA
NO BRASIL
Experiências no ensino
médio
Como na França de Émile Dur-
kheim, os primeiros passos da Socio-
logia no Brasil, em termos institucio-
nais, corresponderam a iniciativas
para a inclusão dessa disciplina no en- SOCIOLOGIA
sino secundário. A primeira tentativa
ocorreu em 1890, logo após a procla-
mação da República, com a reforma
educacional de Benjamin Constant,
que defendia o ensino laico em todos
os níveis. O ensino secundário tinha A Escola Livre de Sociologia e Política nas páginas do Correio paulistano.
Na fotografia, o prédio que abrigou a escola, no largo São Francisco, na capital de São Paulo, até 1954.
por objetivo a formação intelectual

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 61

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universidades do país, começaram a desenvolver um movimento do Júnior (1907-1990), Sérgio Buarque de Holan da (1902-1982),
em defesa da obrigatoriedade do ensino da Sociologia no nível Gilberto Freyre (1900-1987) e Fernando de Azevedo (1894-1974).
médio, considerando que os conteúdos dessa disciplina contri- Pode-se afirmar que foi nas décadas de 1920 a 1940 que a
buem para a formação do jovem estudante. De acordo com as Sociologia fincou alicerces no Brasil. Nesse período, procuraram-se
Orientações curriculares para o ensino médio: definir mais claramente as fronteiras entre a Sociologia e áreas do
[…] as razões para que a Sociologia esteja presente no conhecimento afins, como a Literatura, a História e a Geografia,
ensino médio no Brasil não só se mantêm como se têm re- e institucionalizou-se o curso de Sociologia em faculdades e uni-
forçado. As estruturas sociais estão ainda mais complexas, versidades. Foram fundadas a Escola Livre de Sociologia e Política
as relações de trabalho atritam-se com as novas tecnologias (ELSP) em São Paulo, em 1933, e as Universidades de São Paulo
de produção, o mundo está cada vez mais “desencantado”, (USP) e do Distrito Federal (UDF), esta última no Rio de Janeiro,
isto é, cada vez mais racionalizado, administrado, dominado respectivamente em 1934 e 1935, nas quais foram instituídos cur-
sos de Ciências Sociais.
pelo conhecimento científico e tecnológico. No campo po-
Os professores estrangeiros que vieram ao Brasil para tra-
lítico, os avanços da democratização têm sido simultâneos
balhar nessas universidades contribuíram de modo significativo
aos avanços das tecnologias da comunicação e informação,
para o desenvolvimento da Sociologia no Brasil. Entre eles, podem
tendendo a corromper-se esse regime político em novas for- ser citados: Donald Pierson (1900-1995), Alfred Radcliffe-Brown
mas de populismo e manipulação. No campo social, o pre- (1881-1955), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Georges Gurvitch
domínio do discurso econômico tem promovido uma “re- (1894-1965), Roger Bastide (1898-1974), Charles Morazé (1913-
naturalização” das relações, reforçando aqui o caráter 2003), Jacques Lambert (1901-?) e Paul-Arbousse Bastide (1901-
ambíguo (e perverso) da racionalidade contemporânea. 1985).
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para A revista Sociologia, da Escola Livre de Sociologia e Políti-
o ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério
da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2006. p. 111. Disponível em: ca, foi um exemplo da produção sociológica da época. Criada
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet. em 1939 e publicada até 1981, em São Paulo, constituiu um
pdf>. Acesso em: 12 set. 2012. verdadeiro marco de estudo, pesquisa e divulgação das ciências
O movimento estendeu-se ao início do século XXI, con- sociais no Brasil. Atualmente, uma revista também intitulada
quistando o apoio de instituições de ensino, associações cien- Sociologia reúne debates e análises sobre fenômenos sociais
tíficas, intelectuais, sindicatos e associações de categorias pro- contemporâneos.
fissionais. Finalmente, pela Lei nº. 11.684, de 2 de junho de 2008, De 1940 a 1960
que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a
Sociologia retornou oficial e obrigatoriamente ao currículo do A partir do final da Segunda Guerra Mundial até meados
ensino médio brasileiro. da década de 1960, disseminaram-se as Faculdades de Filosofia,
Ciências e Letras no Brasil, em universidades ou fora delas, e a
A Sociologia no ensino superior Sociologia passou a fazer parte do currículo dos cursos de Ciên-
cias Sociais ou a apresentar-se como disciplina obrigatória em
As primeiras décadas do século XX outros cursos.
Nas primeiras décadas do século XX, a Sociologia estava pre- Uma nova geração de cientistas sociais passou a ter pre-
sente de forma embrionária em vários estados brasileiros, mas se sença marcante no Brasil. Entre eles, podemos citar: Florestan
desenvolveu de modo mais consistente no Rio de Janeiro e em São Fernandes (1920-1995), Antonio Candido (1918-), Maria Isaura
Paulo, que passavam por um processo de industrialização e urba- Pereira de Queiroz (1918-), Juarez Rubens Brandão Lopes (1925-
nização crescente desde o final da década de 1910. Essas transfor- 2011), Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), Luiz Aguiar da Cos-
mações da estrutura econômica e social repercutiram nas esferas ta Pinto (1920-2002), Darcy Ribeiro (1922-1997), Celso Furtado
culturais e educacionais, propiciando um crescente interesse pelos (1920-2004) e Hélio Jaguaribe (1923-), que influenciaram muitos
estudos científicos da realidade social da época. cientistas sociais em todo o território nacional.
Em decorrência disso, foram publicados importantes trabalhos Os principais temas de pesquisas, análises e discussões nesse
que contribuíram para o desenvolvimento das ciências sociais no período foram: imigração e colonização, estudos de comunida-
Brasil. Uma das preocupações dos pensadores daquele período era des, educação, folclore, questão rural e urbana, teoria e método
a busca do entendimento do Brasil por meio de seus componentes das Ciências Sociais, estratificação e mobilidade sociais e socio-
históricos, tendo por base as muitas vertentes europeias e estaduni- logia da arte e da literatura. Cabe um destaque para o tema das
denses das ciências humanas.
relações étnico-raciais envolvendo a questão do negro no Brasil,
Esses pensadores defendiam a ideia de que havia uma ligação
graças a um projeto de pesquisa financiado pela Unesco.
entre o passado colonial e a configuração social em que viviam.
Nesse período, a Sociologia tornou-se disciplina hegemô-
Para eles, esse condicionamento do passado deveria ser superado
para que o país saísse do atraso. As preocupações desses pensado- nica no quadro das Ciências Sociais no Brasil, e a primeira a
res giravam em torno do futuro do Brasil e das possibilidades de formar uma “escola” ou uma “tradição” em São Paulo, tendo
mudança social e das resistências a elas. Entre eles, podemos citar: em Florestan Fernandes um dos seus mentores.
Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), Caio da Silva Pra-

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ciologia da Educação e da Juventude e Sociologia da Arte e
UH/FOLHAPRESS
Literatura. Além disso, foram publicados vários livros sobre tais
assuntos.
Muitos foram os estudiosos que, em diferentes áreas do
pensamento sociológico, desenvolveram pesquisas nas déca-
das de 1960 e 1970. Relacionamos a seguir alguns dos que
formaram a segunda geração de sociólogos no Brasil: Octa-
vio Ianni (1926-2004), Fernando Henrique Cardoso (1931-),
Leôncio Martins Rodrigues (1934-), Heleieth Saffioti (1934-
2010), Marialice Mencarini Foracchi (1929-1971), Maurício
Tragtenberg (1929-1998), Francisco de Oliveira (1933-), Luiz
Pereira (1933-1985), Luiz Eduardo W. Wanderley (1935-), José
de Souza Martins (1938-), Gabriel Cohn (1938-), Roberto Sch-
warz (1938-), Elide Rugai Bastos, Luiz Werneck Vianna (1938-)
e Simon Schwartzman (1939-).
Diversificação da Sociologia no Brasil
A partir da década de 1980, ampliam-se os cursos de
pós-graduação (mestrado e doutorado) em Ciências Sociais
e, em particular, de Sociologia em todo o território nacional,
elevando o nível, em número e em qualidade, das pesquisas
e do ensino da área. Os estudos sociológicos passaram a ser
mais específicos. Nos últimos anos, houve uma fragmentação
Aula de Florestan Fernandes na Faculdade de Filosofia da Universidade
de São Paulo, em 1964. Cientista social de destacada atuação na segunda dos temas/objetos, como: violência, gênero e sexualidade, cor-
metade do século XX, Florestan lecionou em universidades do Brasil, po e saúde, religião, cotidiano, comunicação e informação,
Estados Unidos e Canadá e desenvolveu inúmeros projetos e pesquisas indústria cultural, representações sociais, consumo, cidadania,
acadêmicos.
direitos humanos, questão ambiental, globalização, ciência e
tecnologia, urbanização, juventude, família, trabalho, classes e
De 1960 a 1980: a consolidação da mobilidade social, questões étnico-raciais, Estado e sociedade
Sociologia no Brasil civil.
Mesmo com a presença da ditadura militar no Brasil, a par- Novas gerações de sociólogos se formam nas universida-
tir de 1964, a Sociologia começou a se expandir, principalmente des em quase todos os estados da federação, e há centros de
nos grandes centros urbanos, e a relacionar-se com outros cam- ensino e pesquisa na maioria das universidades, disseminando-
pos das ciências humanas. As discussões sobre o processo de -se assim a formação de sociólogos, sob influências diversas. A
industrialização crescente no país foram o centro das atenções. formação em Sociologia, que havia começado em São Paulo e
Um dos temas de discussão era o desenvolvimento, incluin- no Rio de Janeiro, na década de 1930, expandiu-se para todo
do as teorias da dependência e da modernização. Outros temas o território nacional em pouco mais de 50 anos.
de debates e pesquisas da época foram o trabalho industrial e o
sindicalismo, a formação da classe trabalhadora, a urbanização ANOTAÇÕES
crescente e as transformações no campo, o êxodo rural, os pro-
blemas da marginalidade social, a presença do capital estrangeiro
e a indústria nacional. A questão educacional também esteve
presente, pois de alguma forma os problemas sociais estavam
vinculados à precariedade da educação.
Foram bastante debatidos, ainda, o autoritarismo, princi-
palmente depois do golpe militar de 1964, e o planejamento,
fazendo-se uma interface com a ciência política. Além disso, SOCIOLOGIA
destacaram-se, nesse momento, os estudos sobre a América
Latina.
Em razão desses debates, foram incluídas nas universida-
des disciplinas como: Sociologia do Desenvolvimento, Sociolo-
gia Urbana, Sociologia Rural, Sociologia Industrial e do Trabalho
(incluindo a questão sindical), Sociologia do Planejamento, So-

Apêndice | História da Sociologia: pressupostos, origem e desenvolvimento 63

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Tomazi, Nelson Dacio


Sistema de ensino ser : sociologia : 3º ano :
professor / Nelson Dacio Tomazi. — 3. ed. —
São Paulo : Ática, 2017.

1. Sociologia (Ensino médio) I. Título.

16-08236 CDD-301

Índices para catálogo sistemático:


1. Sociologia : Ensino médio 301
2016
ISBN 978 85 08 18424 8 (AL)
ISBN 978 85 08 18425 5 (PR)
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