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O texto de Freud datado de 1920 é um Eros e Tânatos, relações que ele denomina
objeto de leitura especialmente difícil de um “jogo”.
apreender, por diversas razões, que pode- 4. Enfim, qual ganho é possível
riam ser assim anunciadas: retirar dessas aproximações numerosas
e heterogêneas demais para repensar a
1. Freud coloca em série, para definir importância, na vida sexual, do sadismo
o que ele denomina “pulsões de morte”, e do masoquismo?
fenômenos tão heterogêneos que é difícil Na história da psicanálise, numerosas
acreditar que um campo unificado se vozes se elevaram para pôr em causa a
delineie nessas aproximações: pesadelos necessidade de introduzir esse princípio
de neuroses de guerra, jogos de crianças, estranho de uma pulsão de morte que
prazer de adultos em ir ao teatro, trans- caracterizaria tanto o ser vivo quanto as
posição para o tratamento analítico dos pulsões sexuais. O “fato” da repetição não
conflitos subjetivos, que impede a solução exigiria essa hipótese. E a que ela serve, já
destes em lugar de torná-la possível, re- que o próprio Freud afirma que não adere
ferência a textos filosóficos – Symposium, a ela, que se trata somente de desenvolver
de Platão, ou teses de Schopenhauer – e uma ideia para ver aonde leva?
“especulação biológica”, como ele mesmo Fica-se tentado, ante a confusão dessa
diz, isto é, inscrição da vida sexual nas con- problemática, a “jogar a toalha” ou a dizer,
cepções embriológica e evolucionista de como fez Jacques Derrida em La Carte
seu tempo. Essa heterogeneidade remete à postale, que o além do princípio do prazer
questão: qual a relação entre o fenômeno não cessa de recuar nesse texto que não
clínico da repetição e a hipótese de uma tem como “objeto” senão organizar uma
pulsão de morte colocada como um prin- sequência de deslizamentos retóricos por
cípio impossível de encontrar como tal na meio dos quais Freud, de maneira per-
experiência das análises? formativa, produz-se a si mesmo como
2. Em que a teoria dos traumas tu- escritor-fundador de uma instituição
multua as relações a serem estabelecidas analítica. Com esse fim, ele utiliza os jogos
entre o que se denomina o interior e o de seus netos, fazendo crer que somente
exterior desse “aparelho da alma” (seelische os psicanalistas sabem do que se trata na
Apparat) cujo modelo Freud construiu em oposição demasiado simples da presença
1895 e retrabalha aqui? e da ausência. Toda a história da filosofia,
3. Como Freud descreve os parado- contudo, se desenvolve nos múltiplos
xos que regulam ao mesmo tempo a função intervalos da escrita e do discurso que
do ego e as relações quase contraditórias, os psicanalistas não inventaram. Freud,
conforme os momentos do texto, entre pois, como um Sócrates ilusionista, faria
1. Conferência pronunciada em 15/04/2014, na Columbia University (Heyman Center), NY, em seminário promovido
por Judith Butler.
crer por meio de seu texto que seria ele, e diminuir as cargas investidas em cada
não Platão, o escritor e o fundador. Já que parte do aparelho. Primeira ambiguidade,
o próprio Freud produz no texto tantos portanto.
curtos-circuitos entre dados heterogêneos, A segunda ambiguidade concerne à
por que não fazer mais um e mostrar que relação paradoxal entre a estrutura e o
o além do princípio do prazer, impossível funcionamento desse aparelho: nesse mo-
de encontrar, instaura Freud como Pai e delo, o prazer é definido como a sensação
fundador? de uma descarga, ou seja, um esvaziamen-
A leitura que proponho hoje recorre to de circuitos investidos de quantidades.
mais uma vez a esse texto para colocar a O horizonte ideal do aparelho seria que
questão das relações entre o campo da clí- o sistema se esvaziasse completamente,
nica, a escrita e a construção de conceitos. o que seria um prazer máximo, mas essa
experiência de excesso seria ao mesmo
1 O primeiro fio condutor: quais fatos tempo a extinção do próprio sistema.
obrigam a pôr um limite ao princípio do Se se combinam as duas ambiguida-
prazer como regulador da vida sexual? des, resulta que o aparelho visa à descarga
Freud toma exemplos de repetição, que das energias e, no entanto, o aumento e
parecem inicialmente nada ter em co- a repartição das cargas evita em geral que
mum em Além do princípio do prazer: os ele transborde, isto é, que sua estrutura –
pesadelos das neuroses de guerra, os jogos neuronal ou associativa – seja rompida por
das crianças, o prazer dos adultos em ir ao quantidades intensas demais para o apa-
teatro, as neuroses de destino, a própria relho. O fato de o prazer ser um princípio
transferência, que, de instrumento de implica que ele é o objetivo do funciona-
uma mudança pulsional, passa a ser regu- mento do aparelho e, ao mesmo tempo,
larmente o entrave a uma transformação. que seu excesso deve ser evitado para que
O que reúne esses exemplos é a revi- o aparelho continue em funcionamento. O
são que eles impõem ao tema freudiano, interesse do modelo freudiano – que pode
segundo o qual toda a vida anímica tem sempre ser lido seja em termos de energias
por objetivo um ganho de prazer. O “prin- circulando nos neurônios, seja em termos
cípio do prazer” é uma noção que ganha de representações e afetos – está nisto:
sentido nos modelos do funcionamento poder conferir uma figuração à ambigui-
do aparelho psíquico. O texto do Entwurf dade do prazer tomado como princípio de
einer wissenschaftlichen Psychologie,2 como funcionamento do aparelho.
se sabe, desde os anos 1950, permanecera Esse esquema de funcionamento do
inédito entre os papéis de Wilhelm Fliess. aparelho psíquico data de 1895. A ques-
Mas ele assombra toda a obra de Freud. tão do trauma e da extinção de todas as
Desde o início, desde 1895, o princípio do tensões com a função ambígua do prazer
prazer tem uma ambiguidade dupla, que não é, portanto, em 1920, um tema novo
o modelo do aparelho psíquico permite em Freud (cf. p. 9 de Beyond the pleasure
explicitar: a estrutura desse aparelho pos- principle, Standard Edition).3
sibilita armazenar energias ou representa- Qual é, pois, a novidade em 1920, com
ções, o que constitui um desprazer devido a hipótese de uma pulsão de morte? É que,
ao aumento das cargas nos circuitos, mas até então, trata-se sempre, nos fenômenos
a repartição das energias nos circuitos clínicos aos quais o “princípio do prazer”
múltiplos serve, ao mesmo tempo, para remete, de uma mescla (Mischung) de
prazer e desprazer: a função da descarga mostrar que a distinção dos dois campos
se combina com a estrutura do aparelho, é igualmente demarcável, justamente na
que permite suportar a carga. Esse relativo medida em que se sabe o que ele toma
desprazer barra a ruptura. de empréstimo à biologia e o que ele não
Em Além do princípio do prazer, o ce- chegava a conceber diretamente com as
nário muda: o além do princípio do prazer palavras da psicanálise. Em um sentido,
(e não mais apenas a extinção como limite assegurar uma ligação, ainda que muito
do funcionamento do aparelho psíquico) penosa, é o contrário de se autodestruir.
é um princípio de ligação entre neurônios No entanto, Freud denomina “pulsão de
(ou representações), que seria uma experi- morte” um horizonte original contra o qual
ência de puro desprazer tornada necessária lutariam não só todos os mistos de prazer e
no caso de a estrutura do aparelho ser desprazer, mas ainda a ligação desprazerosa
posta em perigo. que se produz na proximidade, por pouco
Certos fatos clínicos conduzem a evitada, de um risco de morte do aparelho
emitir essa hipótese: não só uma pro- psíquico. Trata-se, nesse caso, de uma in-
funda ambiguidade da busca por prazer consequência, de uma falta de lógica no
que anima o aparelho psíquico e arrisca pensamento de Freud, ou de um processo
provocar sua extinção, mas também próprio do sexual e próximo dos modos de
uma independência do funcionamento determinação do ser vivo?
do aparelho com relação à finalidade de Mesmo se, desde o início do texto, o
produzir prazer. Ligar nem sempre é visar tema da pulsão de morte ligada à espe-
à descarga; pode ser também lutar peno- culação biológica é anunciado, ele não
samente contra o desligamento máximo é justificado logo em seguida: o além do
que se chama morte. princípio do prazer é inicialmente tomado
É a demarcação dessa independência como a independência de uma atividade
o que constitui a razão de ser da sucessão de ligação em situação de catástrofe.
dos exemplos: Freud tenta tornar mais Donde o privilégio do primeiro exemplo:
e mais inteligível a ideia dessa indepen- Freud parte das neuroses de guerra, nas
dência de uma tarefa de ligação que seria quais a maneira como a repetição de um
independente de toda mistura com a pro- sofrimento se produz parece impor uma
dução do prazer. Por que então ele fala em nova concepção da repetição: na vida
pulsão de morte? No plano da obra, é essa corrente, temos uma lembrança mais ou
passagem da noção de independência à menos precisa de nossos sonhos; alguns
ideia de um princípio de funcionamento continuam presentes para nós durante
“mais original” o que leva à especula- o dia, outros não. A vivacidade de sua
ção biológica. Ela é anunciada desde o lembrança varia com os períodos de nossa
início como a radicalização do conceito, existência. Em todos os casos, a impres-
operatório na clínica, da independência. são que nos fica é a de uma variedade de
Em seguida, a hipótese de uma “pulsão de cenários oníricos. Além disso, o fato de
morte” parece desenvolvida por si mesma, que esses sonhos nos escapem, que não
em páginas nas quais não se sabe mais se saibamos onde estamos nesses pensamen-
Freud fala como biólogo que também era tos em imagens que contudo produzimos,
ou como psicanalista. Ele retoma certos é ligado a essa grande diversidade; ela é
pontos da clínica sem que essa retomada, o que nos permite ter esses pensamentos
poder-se-ia dizer, seja dirigida por um es- sem nos darmos conta. Ora, após certas
quema, no sentido kantiano do termo, e provações, como as guerras (tratava-se da
sem que a heterogeneidade dos dois cam- guerra de 1914 para Freud, mas todos os
pos seja formulável. Tentarei, contudo, estudos sobre as post-traumatic syndroms
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Como ler Além do princípio do prazer?
o ilustram), os sonhos dos soldados que inventivas. Não podemos mais lidar com o
retornam a sua casa têm outra feição: horror produzindo sonhos variados e ati-
os antigos soldados revivem em sonho vidades inventivas cuja própria variedade
o evento real no curso do qual algum de permite o esquecimento do ponto de pe-
seus camaradas teve o corpo amputado ou sadelo. Contudo, essa repetição aparente-
um outro perdeu a visão, etc. Ora, o que mente vã, isto é, incapaz de vivificar a vida
retém a atenção do clínico nas neuroses de vigília graças ao jogo de esquecimento
traumáticas é que desapareceu a diversi- e lembrança que se instaura entre sonho
dade dos sonhos, que habitualmente lhes e vigília, é ainda uma atividade de nossa
dá seu caráter imaginário e que organiza o “alma”. Freud diz: “O princípio do prazer é
contraste com a coerência relativa da vida posto fora de funcionamento”. Todo mun-
de vigília. Os pacientes produzem sempre o do produz pesadelos que nos confrontam
mesmo sonho-catástrofe, e esse sonho não com aquilo que ele chamara, desde a Trau-
mantém mais nenhuma distância em rela- mdeutung, o Unerkannt [desconhecido] e
ção à realidade esmagadora e precisa que não o Urverdrängt [realçado originário].
se abateu sobre eles. Ao mesmo tempo, “Dies ist dann der Nabel des Traumes,
Freud observa que a vida desses homens die Stelle an der er dem Unbekannten
e mulheres se torna arrastada e mecânica, aufsitzt” (Gesammelte Werke Band II-III,
repetitiva no sentido de um estereótipo, de S. 530), e em inglês “This is the dream’s
uma funcionalidade vazia. Essas pessoas navel, the spot where it’s reaches down
sonham todas as noites com a mesma into the unknown (Standart Edition v. 5, p.
catástrofe e não mais inventam sua vida. 525).4 E ele fazia notar desde 1900 que esse
Há muitas famílias nas quais se conta que, ponto é também aquele no qual se perde
após a guerra da Argélia ou a do Vietnã, a possibilidade de interpretar o sonho: há
os soldados regressados não tinham mais demasiados fios associativos entrelaçados
gosto em nada, que se contentavam para que fazem fracassar a possibilidade do
o resto de suas vidas em conversar no café discurso.
com os colegas. Isso permite compreender, Depois do caso puro de repetição mo-
por contraposição, que há uma relação nótona e não mais variada, Freud retorna
entre o desenvolvimento imaginário e as outras situações em que, na ligação dos
variado de nossos sonhos e a vivacidade de componentes de uma experiência trau-
nossa existência, mesmo e principalmente mática, a necessidade de repetir sem uma
se essa correlação nos escapa a maior parte finalidade de prazer não se deixa isolar tão
do tempo. bem como nas neuroses de guerra ou de
Segundo tempo do raciocínio freudia- acidente, ou ainda no pesadelo. Foi talvez
no: Como temos também a experiência de isso o que fez Derrida dizer que o além do
sonhos que se tornam pesadelos, podemos princípio do prazer é impossível de encon-
compreender isso que aparece de modo trar nesse texto e que Freud se serve de seu
exclusivo nas neuroses traumáticas. Esses neto para mascarar esse fato. Mas eu não
pacientes vão direto ao ponto de pesadelo creio que se trate de um impasse teórico.
que apaga a possibilidade das fantasias A próxima questão é a seguinte: Se há
multiformes que ordinariamente rodeiam, sempre um ponto de pesadelo em nossos
transformam e mascaram as nossas angús- sonhos, a vizinhança entre o desprazer do
tias mais radicais. Nas neuroses traumá- pesadelo e o prazer do sonho permite dizer
ticas, um evento aparentemente exterior que há um gozo do pesadelo ou, ao contrá-
cristalizou na sua realidade aquilo que é
para nós o horror mesmo, e não podemos 4. Na ESB, v. V, 1977, p. 482: “Esse é o umbigo do sonho,
mais transformá-lo por meio de repetições o ponto onde ele mergulha no desconhecido”.
gozo, permite detalhar o que está em jogo para o espaço do tratamento: fazer do
na transferência: contingente o motor de uma transforma-
ção subjetiva.
No paciente em análise, por outro No fundo, a única afirmação contes-
lado, aparece claramente que a com- tável nesse texto de Freud é a ideia de
pulsão à repetição, na transferência, que o aparelho psíquico “procuraria” a
dos eventos do período infantil de sua morte. Para um darwiniano consequente,
vida ultrapassa, de todas as maneiras, essa formulação é inadequada. O fato de
o princípio do prazer. O doente tem que a solução da morte seja mais direta
nesse caso uma conduta completa- que a da vida não significa que a morte
mente infantil e nos mostra assim que seja exatamente procurada como tal, mas
os traços mnêmicos recalcados de suas principalmente que uma parte de nós mes-
vivências dos tempos originários não mos à qual resistimos o quanto podemos
estão presentes nele em estado de permanece, contudo, sempre confrontada
ligação e, de fato, em certa medida, com essa prova.
não são aptos ao processo secundário. Igualmente, é necessário dizer, o prin-
É também a essa não ligação que eles cípio do prazer não faz do prazer uma meta
devem sua capacidade de formar, por do aparelho psíquico, como afirma Freud
vinculação com os restos diurnos, desde 1895, mas uma possibilidade de seu
uma fantasia de desejo que deverá funcionamento devida à sua estrutura.
estar presente no sonho. Essa mesma O fato de que o prazer seja um princípio
compulsão à repetição se opõe bem não faz dele um propósito desse aparelho,
frequentemente a nós como obstá- mas um dos modos de seu funcionamento
culo terapêutico quando, no final da desde que as condições o permitam.
análise, queremos impor o completo O fato de que os nós do prazer e do
desligamento com relação ao médico desprazer não governem toda a nossa vida,
[...].15 de que haja sempre uma camada prévia
que permanece independente dessa cap-
Esse texto é um convite a reavaliar a tura pelo prazer/desprazer, não significa
importância dos restos diurnos em de- que nós procuremos esse ponto de ruptura.
corrência dos quais se forma um sonho Tal fato significa somente que, por uma
e que têm a mesma função dos detalhes parte de nossa existência, essa que aparece
insignificantes que os pacientes levam como a mais razoável ou a mais racional
enquanto funcione, nós nos defendemos
contra o excesso de sofrimento por meio
15. Ibidem [Na ESB, v. XVIII, 1977, p. 53: “No caso da projeção.
de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão
à repetição na transferência dos acontecimentos da
infância evidentemente despreza o princípio do prazer Epílogo epistemológico
sob todos os modos. O paciente se comporta de modo Esse trabalho conceitual de diferenciação
puramente infantil e, assim, nos mostra que os traços que permite dar um conteúdo clínico à
de memória reprimidos de suas experiências primevas
não se encontram presentes nele em estado de sujeição, noção de morte provém, ao que me pare-
mostrando-se, na verdade, em certo sentido, incapazes ce, do trabalho ordinário da inteligência
de obedecer ao processo secundário. Além disso, é ao científica. É verdade que Freud se engaja
fato de não se acharem sujeitas, que se deve sua capa-
cidade de formar, em conjunção com os resíduos do dia em um duplo movimento: de uma parte,
anterior, uma fantasia de desejo que surge num sonho. ele não renuncia a inscrever as pulsões na
A mesma compulsão à repetição frequentemente se nos evolução da vida; de outra parte, ele diz
defronta como um obstáculo ao tratamento, quando, ao
fim da análise, tentamos induzir o paciente a se desligar desconfiar disso que seria aqui mais do que
completamente do médico”.]. uma analogia. Trata-se, nesse caso, em
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Como ler Além do princípio do prazer?
Freud, de um equilíbrio constante entre uma vez que se raciocinava sobre graus
um empirismo de método e uma tendên- sutis de aumento da velocidade na que-
cia a uma especulação sobre as origens da dos corpos. Não é esse, exatamente,
da qual ele se defende.16 Não seria mais o raciocínio de Freud quando examina
interessante, em vez de se deixar levar múltiplas situações repetitivas nas quais a
imaginando o ponto onde a biologia e a pulsão de morte não é isolável, situações
psicanálise se reencontrariam, afirmar que cuja série só é compreensível como ho-
se concebe da mesma maneira o intrinca- mogênea a partir dessa hipótese? Lançar
mento da morte e da vida em biologia e pedras do alto do mastro de um navio em
o intrincamento, em psicanálise, da des- movimento aparentemente nada tem a
truição e da reinvenção nos destinos das ver com as experimentações a que se de-
pulsões? Não é necessário buscar, no ser dicavam incansavelmente os engenheiros
ou em uma origem impossível de encon- do Renascimento, mesmo na ausência de
trar, esse momento comum que pertence técnicas satisfatórias: qual força e qual
somente ao pensamento. Com efeito, con- direção é preciso dar a uma bala de canhão
ceitualmente, o momento de especulação para que ela atinja uma alvo cuja posição
biológica em Além do princípio do prazer é é conhecida? Por que os engenheiros
menos exitoso em inscrever as pulsões nos hidráulicos de Florença não podem fazer
processos evolutivos do que em precisar o subir a água das fontes acima de certa
conceito de pulsão de morte, que unifica, altura? Por que os relojoeiros devem pôr
para o pensamento, as formas múltiplas da um freio no pêndulo de seus relógios se
compulsão à repetição, as quais entretêm eles querem que o tempo dos relógios não
com o gozo uma relação que é, a cada vez, seja indefinidamente acelerado? O próprio
específica. termo “aceleração” não existe ainda nesses
Leio, portanto, Além do princípio do Diálogos, mas a referência neles feita ao
prazer como leio os Diálogos entre Galileu “grau de rapidez” que um objeto móvel
e Sagredo discutindo interminavelmente adquire uniformemente a cada instante de
sobre “[...] o aumento do grau de rapidez seu movimento de queda é precisamente o
de um objeto móvel quando se lança uma conceito que se define permitindo reunir
pedra do alto do mastro de um navio”. esses fenômenos heterogêneos. A afirma-
Alexandre Koyré17 havia mostrado que ção, por Freud, de uma pulsão de morte
as experiências de Galileu eram todas em Além do princípio do prazer não tem
variadas porque nenhuma era capaz de o mesmo estatuto que o enunciado do
isolar o fator da aceleração de um movi- princípio da inércia por Descartes? Mas
mento uniforme, já que não se sabia fazer onde o Galileu experimentador e o Des-
o vazio, sendo que ele raciocinava em um cartes filósofo repartem, de certo modo,
espaço concebido como vazio. Tampouco seu trabalho, enunciando o primeiro a
se sabia como construir relógios precisos, lei da queda dos corpos, enunciando o
segundo o “princípio de inércia” que essa
lei supõe, Freud faz sozinho o trabalho
16. Por exemplo: “A especulação pretende que esse inteiro: o do mais filósofo, Descartes, que
Eros esteja em ação desde os primórdios da vida e que enuncia que não há mais diferença onto-
ele entre como ‘pulsão de vida’ em oposição à ‘pulsão lógica entre o movimento e o repouso, e
de morte’ que apareceu com o fato de que o inorgânico
ganhou vida” Op. cit., p. 335, nota 1 e S. 66. o do experimentador, Galileu, que isola o
17. KOYRE, A. Études Galiléenne (1966) e Études fator tempo realizando experiências que
d’histoire de la pensée scientifique (1966). (Em particular os jamais isolam efetivamente tal fator, mas
capítulos “Le De motu graviul de Galilée. De l’expérience
imaginaire et de son abus” e “Une expérience de me- que, graças à variedade de sua mistura
sure”). com outros fatores, permitem conceber
110 Reverso • Belo Horizonte • ano 37 • n. 69 • p. 99 – 112 • Jun. 2015
Monique David-Ménard, Tradução: Bernardo Maranhão, Revisão técnica: Carlos Antônio Andrade Mello
Referências
FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901).
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasi-
leira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 5).
SOBR E A AU TOR A
Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta
em filosofia e psicanálise.
Doutora em psicopatologia clínica e psicanálise,
sob a orientação de Pierre Fédida (1978),
Universidade de Paris 7.
Doutora em filosofia, sob a orientação
de Jean-Marie Beyssade (1990),
Universidade de Paris 4/Sorbonne-nouvelle.
Membro da Escola Freudiana de Paris
(1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa
Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade
de Psicanálise Freudiana desde 1994.
Títulos e funções atuais: psicanalista, membro
associado da Sociedade de Psicanálise
Freudiana; professora emérita de cadeiras
superiores; orientadora de pesquisa da Universi-
dade Paris-Diderot, Escola de Pós-Graduação.
Membro da Rede Internacional de Mulheres
Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.