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Nada na Lingua e por acaso *“Atentado contra o idioma”, “pecado contra a lingua”, “atropelar a gramatica”. Todo esse discurso da a entender (enganosamente) que a lingua esta fora de nés, é um objeto externo, alguma coisa que nao nes pertence e que, para piorar, é de di il acesso. A criagao de um padrao de lingua muito distante da realidade dos usos atuais fez surgir, nas sociedades ocidentais, uma milenar “tradigao da queixa”. Em todos os paises, em todos os periodos historicos, sempre apare- cem as manifestagées daqueles que lamentam e deploram a “ruina” e a “corrupgao” do idioma © o assunto é lingua, existem na sociedade discurso que se contrapéem: 1-0 discur- smbasado nas teorias da Lingiifstica moder- nna, que trabalha com as nogées de variagéo e mudanca; 2-0 discurso do senso comum, impregnado de concep- .g6es arcaicas sobre a linguagem e de preconceitos sociais fortemente arraigados, que opera com a nosio de erro. Para asciéncias da linguagem, nao existe erro na lin- gua. Se a lingua é entendida como um sistema de sons ¢ significados que se organizam sintaticamente para permi- tira interagao humana, toda e qualquer manifestacio lin- giuistica cumpre essa funcao plenamente, A nogio de erro se prende a fendmenos sociais e culturais, que néo esto inclufdos no campo de interesse da Lingiiistica propriamen- tedita, isto 6, da ciéncia que estuda a lingua “em si mesma”, em seus aspectos fonolégicos, morfol6gicos e sintiticos. Para analisar as origens eas conseqtiéncias da nogao de erro na hhist6ria das linguas ser preciso recorrer a uma outra cién- cia, necessariamente interdisciplinar, a Sociolingiistica, cntendida aqui em sentido muito amplo, como o estudo dlas relagbes sociais intermediadas pela linguagem. * Profesor de Linguistica da Universidade de Brasilia, UnB. E-mail mbagno@rerra.com.br A nogdo de erro em lingua nasce, no mundo oci- dental, junto com as primeiras descrigées sistemsticas de uma lingua (a grega), empreendidas no mundo de culeu- ra helenistica, particularmente na cidade de Alexandria (Egito), que era o mais importante centro de cultura grega no século III a.C. Como a lingua grega tinha se tornado o idioma ofi- cial do grande império formado pelas conquistas de Alexandre (356-323 a.C.), surgiu a necessidade de nor- matizar essa lingua, ou seja, de criar um padrio uniforme ¢ homogéneo que se erguesse acima das diferengas regio- nis e sociais para se transformar num instrumento de uni- ficacio polftica e cultural. Data desse perfodo o surgimento daquilo que hoje sechama, nos estudos lingiisticos, de Gramética Tradicional — um conjunto de nogées acerca da lingua ¢ da lingua- gem que representou o inicio dos estudos lingiisticos no Ocidente, Sendo uma abordagem nao-cientifica, nos ter- mos modernos de ciéncia, a Gramdtica Tradicional com- binava intuigoes filosdficas e preconceitos sociais » vi2+n71*ser/out.2006 + PRESENGA PEDAGOGICA * 23 Nada na Lingua é por acaso As intuigoes filos6ficas que sustentam a Gramitica ‘Tradicional estao presentes até hoje na nomenclatura gra- matical e nas definigdes que aparecem ali. Por exemplo, a nogio de sujeito que encontramos em importantes com- péndios normativos se expressa como “o sujeito €0 ser sobre © qual se faz uma declaragao”, ou coisa equivalence. Como € facil perceber, nao se trata de uma definigéo lingiifstica ~nada se diz ai a respeito das fungies do sujeito na sin- taxe nem das caracteristicas morfolégicas do sujcito -, ‘mas sim de uma definigao metafisica, em que 0 préprio uso da palavra “ser” denuncia uma anillise de cunho filo- s6fico. Com isso, 0 emprego dessa nogio para um estudo propriamente lingtiistico fica comprometido. Para com- provar isso, vamos examinar o seguinte enunciado: “Nesta sala cabem duzentas pessoas”. Se tivermos de considerar a definigéo tradicional, seremos obrigados a classificar como sujeito o elemento “sala” do enunciado acima, jd que é sobre a sala que se est “dizendo alguma coisa’, se esta “declarando algo”. Ora, no enunciado o sujeito é “duzentas pessoas”, por- que, numa definicdo propriamente lingiistica, 0 sujeito 0 termo sobre o qual recai a predicagio da oracéo ¢ com o qual o verbo concorda. Dificuldades semelhantes de lidar com as defini- (96es tradicionais aparecem quase a cada passo quando as estudamos com cuidado. Isso porque, repito, a Gramética Tradicional, ao se formar no século TI a.C. como uma disciplina com pretensdes ao estudo da lin- gua, nao produziu um corpo tedrico propriamente lin- giiistico, mas se valeu de um importance aparato de espe- culagées filoséficas que vinha se gestando na cultura sgrega desde o século V a.C., gracas 20 trabalho dos sofis- tas, de Platéo, de Aristételes, dos estéicos ¢ de outros, grandes pensadores, para os quais 0 estudo da linguagem humana (logos) era sé uma ctapa inicial para a com- preensio de fenémenos de outra natureza, como o fun- cionamento da mente humana (psigue) e sua correspon- 24 © PRESENGA PEDAGOGICA = 12+ 1.71 «sec/out. 2006 déncia com 0 funcionamento-organizagéo do préprio universo (cosmo). Por tudo isso, a Gramética Tradicional merece ser estudada, como um importante patriménio cultural do Ocidente, mas ndo para ser aplicada cega- mente como tinica teoria linglifstica valida nem, muito menos, como instrumental adequado para o ensino. Além de ser anacrdnica como teoria lingtifstica, a Gramética ‘Tradicional também se constituiu com base em preconceitos sociais que revelam o tipo de sociedade em que ela surgiu — preconceitos que vém sendo siste- maticamente denunciados ¢ combatidos desde o inicio da era moderna e mais enfaticamente nos th 10s cem relectual de uma sociedade aris- tocritica, escravagista, oligérquica, fortemente hicrar- quizada, a Gramética ‘Tiadicional adorou como modelo anos. Como produto de lingua “exemplar” o uso caracteristico de um grupo restrito de falantes: + do sexo masculino; + livres (nao-escravos)s + membros da elite cultural (letrados); * cidadaos (cleitores ¢ elegiveis); + membros da aristocracia politica; + deventores da riqueza econdmica, Os formuladores da Gramética Tradicional foram os primeiros a perceber as duas grandes caracteristicas das linguas humanas: variagio (no tempo presente) ¢ a mudanga (com o pasar do tempo), No entanto, a per- cepgio que cles tiveram da variagio e da mudanga lin- glifsticas foi essencialmente negativa. Por causa de seus preconceitos sociais, os primei- ros gramaticos consideravam que somente os cidadaos do sexo masculino, membros da elite urbana, letrada ¢ aristocrética falavam bem a lingua, Com isso, todas as demais variedades regionais ¢ sociais foram consideradas feias, corrompidas, defeituosas, pobres etc.

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